Merval Pereira
Merval Pereira: A força dos evangélicos
Os evangélicos são a sustentação da base eleitoral de Bolsonaro e Trump, que representam a atual guinada ideológica à direita
O embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley ter comparado o presidente Jair Bolsonaro a Oswaldo Aranha, que presidiu em 1947 a sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas que levou à criação do Estado de Israel, só mostra a importância para Israel do compromisso político do novo governo de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, como fez Trump.
Os evangélicos fundamentalistas são o sustentáculo da base eleitoral dos dois presidentes que representam, cada qual a seu modo, a atual guinada ideológica no mundo à direita, sob três pilares fundamentais: contra o aborto, a favor de Israel e a favor de armas.
No Brasil, esses pilares podem ser traduzidos pela segurança pessoal e a defesa de valores morais conservadores.
Nos Estados Unidos, o grupo Christian United for Israel que faz o mais forte lobby a favor de Israel bíblica, o que implica o reconhecimento de Jerusalém como capital, independentemente de um acordo com os palestinos. Por isso o governo de Israel, nas palavras de seu embaixador no Brasil, considera que Bolsonaro está mudando a História.
Os evangélicos apoiaram Bolsonaro, que, católico, foi batizado no Rio Jordão, a exemplo de Cristo, pelo pastor Everaldo, presidente do Partido Social Cristão (PSC) ligado à Assembléia de Deus, a maior igreja evangélica do país.
Outra igreja evangélica importante no apoio a Bolsonaro foi a Universal do Reino de Deus comandada pelo auto-intitulado Bispo Macedo, do PRB, Partido Republicano Brasileiro. O PRB foi criado em 2005 para substituir o PL, manchado pelas denúncias do mensalão. Na ocasião, o então prefeito Cesar Maia o chamou de “o gospel do crioulo doido”, tal a disparidade de seus fundadores.
A Universal tem em São Paulo sua maior igreja, uma cópia do Templo de Salomão, cujo altar tem o formato da Arca da Aliança, onde, segundo relato bíblico, o rei Davi guardou os Dez Mandamentos no primeiro Templo de Salomão, construído no século XI a.C., em Jerusalém.
O projeto político continua sendo o controle da chamada “nova classe média”. A preocupação do PT com a ascendência da Universal sobre o eleitorado, que ainda tem a TV Record, quase a emissora oficial de Bolsonaro, foi explicitada pelo ministro Gilberto Carvalho, então secretário-geral da Presidência, que alertou que as esquerdas deveriam disputar ideologicamente a massa dos emergentes.
O mesmo Carvalho, revelou a revista Época, foi disfarçado à Praça dos Três Poderes no dia da posse para ver de perto o povo que abandonou o PT por Bolsonaro. Quem identificou pioneiramente essa classe emergente como base política fundamental foi o sociólogo professor de Harvard Mangabeira Unger, que participou da fundação do PRB, mas apoiou Ciro Gomes.
Ele não considera que a vitória de Bolsonaro seja uma regressão autoritária, mas “a afirmação do agente mais fundamental do país, que são os emergentes”. Nessa categoria ele inclui “a pequena burguesia em grande parte evangélica”, e “uma multidão de trabalhadores mais pobres, que assimilaram essa cultura de auto-ajuda e iniciativa. Eles são a vanguarda do povo brasileiro, agentes decisivos”.
Mangabeira Unger considera que os evangélicos brasileiros têm semelhança com pioneiros que fundaram os EUA e tinham o espírito empreendedor que faria a diferença para o desenvolvimento do Brasil.
As pesquisas durante a eleição presidencial mostraram que a sociedade exaltava o “autoritarismo” de Bolsonaro, provavelmente confundindo com “autoridade”, para trazer ordem aos serviços públicos, proteção à família, (instituição mais valorizada pelos brasileiros segundo o Datafolha), e meritocracia no trabalho. “Tudo sob a proteção divina”.
Bolsonaro foi identificado como o que mais ajuda os ricos, primeira vez que um candidato à Presidência da República liderou a disputa com essa definição, que era depreciativa e hoje parece ser uma qualidade almejada pela maioria, com sonhos de ascensão social.
Esse desejo já havia sido detectado, logo após a eleição municipal que o PT perdeu em São Paulo em 2016, por uma pesquisa do Instituto Perseu Abramo, do próprio partido. Bolsonaro entendeu o que se passava.
Merval Pereira: Alianças internacionais
Metade da América do Sul tem governos de centro ou centro-direita, dominando a maioria do PIB e da população
O governo Bolsonaro que ora se inicia tem proximidades ideológicas com dois movimentos internacionais que se unem em torno de ideias políticas de direita com pensamento liberal na economia. A emergência de uma direita politicamente forte no mundo, culminando em nossa região com a de Bolsonaro, leva a esquerda a perder força na América do Sul, com metade dos países sendo governados por partidos de direita, revertendo uma situação geopolítica. Há cinco anos, dos 12 países da região, só três eram governados por partidos de centro ou à direita: o Chile, de Sebastián Piñera, o Paraguai, de Federico Franco, e a Colômbia, de Juan Manuel Santos. Hoje, metade da região tem governos de centro ou centro-direita, dominando a vasta maioria da população e do PIB.
Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump e ideólogo de uma direita internacional, projeta um grupo para reunir os partidos de direita ou extrema direita da Europa em torno de discussões políticas comuns. Eduardo Bolsonaro, eleito o deputado federal mais votado da história do país, pretende ser o líder intelectual da direita na região, e está em sintonia com Bannon.
Na América Latina, a Fundação Índigo, ligada ao PSL, fez recentemente uma reunião em Foz do Iguaçu com diversos representantes de partidos de direita ou centro-direita, que pretendem ser um contraponto ao Foro de São Paulo, que reúne a esquerda de vários países, criado em parceria entre Lula e Fidel Castro, e chegou a eleger a maioria dos presidentes de países vizinhos.
Ao mesmo tempo, a adesão do novo governo brasileiro a uma política externa alinhada aos Estados Unidos leva a uma maior aproximação com Israel. A anunciada decisão de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, acompanhando a decisão de Trump, tem a ver com o apoio que evangélicos fundamentalistas lá e cá dão aos governos Trump e Bolsonaro.
O pastor Silas Malafaia chegou a afirmar que os evangélicos apoiaram Bolsonaro sobretudo porque ele se comprometeu com o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, o que foi reafirmado por Bolsonaro ao próprio primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que permaneceu no Brasil por cinco dias.
O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, muito ligado a Netanyahu, foi das autoridades presentes à posse de Bolsonaro. A luta contra a elite globalista abarca desde a posição de Trump contra a ONU e demais organismos internacionais, a movimentação na Inglaterra para o Brexit, assim como os ataques do presidente da Turquia, Recep Erdogan, e do próprio Orbán contra a União Europeia.
A emergência política da direita no mundo está merecendo análises em diversos centros de estudos, e um dos especialistas na área, o professor Jonathan Weiler, da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, vê paralelos entre a vitória de Bolsonaro e a ascensão de líderes populistas de direita que defendem as virtudes do nacionalismo e os perigos do globalismo, entre outras causas não diretamente ligadas aos problemas brasileiros, como o controle da imigração.
Governos autoritários de direita surgem em países tão diversos quanto Dinamarca, Áustria, Hungria, Polônia, Guatemala e Peru. O que todos esses líderes têm em comum, diz Weiler, é a habilidade de convencer muitas pessoas de que o mundo é um lugar perigoso, e que eles são os únicos que podem protegê-las. O apelo à lei e à ordem e o nacionalismo são traços comuns a eles. Weiler divide os cidadãos em três campos de temperamento: os fixos, que têm medo de mudanças; os fluidos, mais abertos a elas, e os mistos, ambivalentes. É nesse ambiente que trabalham os líderes políticos.
O professor da Universidade da Carolina do Norte diz que classificar esses políticos simplesmente de autoritários reduz a questão a fenômeno marginal, quando o comportamento em relação à raça e imigração é central na formação da opinião pública dos países. Aqui no Brasil, poderíamos fazer uma relação com os valores morais, enfrentamento da violência ou questões de gênero. E com a adesão do novo chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, ao movimento antiglobalista.
Quando as pessoas consideram que o caos está tomando conta da sociedade e as ameaças são onipresentes, pondera o professor Jonathan Weiler, tendem a fazer vista grossa ao autoritarismo no interesse de impor mais ordem. Sem levar em conta que a democracia é intrinsecamente conturbada. (Amanhã, o movimento evangélico)
Merval Pereira: Bolsonaro e os militares
Presidente ecoa um sentimento arraigado nas Forças Armadas de que o PT tentou levar o país para o socialismo
O que o general Villas Bôas, então comandante do Exército, conversou com o candidato Jair Bolsonaro não saberemos tão cedo, ou nunca. Mas sabemos que Bolsonaro atribui a ele ter chegado à Presidência da República e, juntando pedaços de narrativas, desenha-se uma versão muito próxima do que ocorreu nos bastidores militares nos últimos anos.
O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), deu informações preciosas na entrevista ao “J10” da Globonews quarta-feira. Disse, por exemplo, que os militares perceberam que o que chamou de “efeito Bolsonaro” poderia ajudar a que participassem da vida política num momento em que a situação no país era de “grande calamidade”.
Ficou-se sabendo também que quando Bolsonaro fala em “livrar o país do socialismo”, não está falando à toa. Ecoa um sentimento arraigado nas Forças Armadas de que o PT tentou levar o país para o socialismo, num esquema regional montado pelo Foro de São Paulo, agrupamento de esquerda coordenado por Lula e Fidel Castro que chegou a ter quase o monopólio político dos governos da América Latina.
Essa desconfiança em relação ao PT se deve a fatos concretos. A então presidente Dilma chegou a consultar as Forças Armadas sobre a decretação do estado de emergência para evitar a votação de seu impeachment, e foi rechaçada.
Consumada a derrota política, uma análise do Diretório Nacional do PT lamentou que o partido tenha sido descuidado na reforma do Estado, citando, entre outras ações, a não interferência nos currículos das academias militares. Este “sincericídio” petista confirmou a intenção de controlar a formação militar, o que estava implícito em um decreto assinado pela presidente Dilma em setembro de 2015, transferindo para o Ministério da Defesa, ocupado pelo PT, poderes aparentemente burocráticos, mas que dariam margem justamente à interferência nos currículos das escolas militares, um sistema definido pelo general Heleno como “primoroso”.
O decreto foi neutralizado por outro, mas a nota do Diretório Nacional do PT mostrou que realmente o partido tinha entre suas prioridades o aparelhamento do ensino nas escolas e centros de formação militares.
A possibilidade de Lula, através de uma manobra jurídica, poder disputar a eleição presidencial mesmo depois de ter sido condenado em segunda instância inquietava os militares próximos ao general Villas Bôas.
Na véspera do julgamento de um habeas corpus de Lula no Supremo Tribunal Federal (STF), o general Villas Bôas divulgou um tuíte advertindo: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”.
A mensagem foi vista como uma pressão sobre o Supremo, e o próprio general Villas Bôas admite que ali “nós conscientemente trabalhamos sabendo que estávamos no limite. Mas sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle se eu não me expressasse. Porque outras pessoas, militares da reserva e civis identificados conosco, estavam se pronunciando de maneira mais enfática”.
Um deles era o general quatro estrelas Hamilton Mourão, íntimo de Villas Bôas, a quem chama de VB, que o considera “uma figura fantástica, um grande soldado”. Ainda na ativa, defendeu a intervenção militar caso as crises por que o país passa não fossem resolvidas pelos poderes constitucionais. E permitiu uma homenagem a favor do torturador Brilhante Ustra, a quem chamou, em entrevista à Globonews, de “meu herói”.
Foi transferido para um cargo burocrático e advertido, mas continuou próximo de VB e do general Heleno, que o defendeu na ocasião em nota no Facebook. Hoje, Mourão é o vice-presidente da República.
Outra prova da influência do general Heleno: a maioria dos militares do primeiro e segundo escalões do novo governo, assim como ele, chefiou missões de Paz da ONU, no Haiti ou em outras áreas. Chefes militares que se destacaram em ações de combate. Não é por coincidência, portanto, que o general Fernando Azevedo e Silva, hoje ministro da Defesa do governo Bolsonaro, foi colocado anteriormente como assessor do presidente Dias Toffoli no Supremo Tribunal Federal (STF).
Merval Pereira: Dois projetos
Moro e Guedes fizeram questão de destacar a importância das equipes que montaram, recusando rótulo de superministros
Nas posses dos dois superministros do novo governo, ficou claro que o Congresso será chamado a colaborar com questões fundamentais da economia e segurança pública, setores básicos para o sucesso do programa de Jair Bolsonaro.
Os dois fizeram questão de destacar a importância das equipes que montaram, recusando, cada um a seu momento, o rótulo de superministros. Além de acenar com “10 anos de crescimento sustentável pela frente”, o ministro da Economia Paulo Guedes aprofundou a tese já abordada no discurso de posse do próprio Bolsonaro: o caminho da reabilitação da classe política é ajudar nas reformas, sobretudo a da Previdência, que classificou de uma “fábrica de desigualdades”.
Sinalizando qual será a postura do governo para a aprovação das reformas, Guedes criticou os privilégios: “Quem legisla e julga tem as maiores aposentadorias e a população, as menores”. Ajudando a acabar com as injustiças, o Congresso estará não apenas se reabilitando diante da opinião pública, mas se habilitando a assumir o papel de definir as escolhas do Orçamento.
O ministro Paulo Guedes reafirmou que “vamos na direção da liberal democracia, abrir a economia, simplificar impostos, privatizar, descentralizar recursos para Estados e municípios”. Classificou o descontrole dos gastos públicos de “o mal maior”, e reforçou que o teto de gastos é fundamental, mas é necessário fazer as reformas para que se sustente.
"O teto, sem parede de sustentação, cai. Temos que aprofundar as reformas que são as paredes". Para Guedes, a melhor forma de enfrentar a desigualdade social é com o fortalecimento da economia de mercado. “Implementar reformas causa ciclo virtuoso de emprego e renda e arrecadação”, diagnosticou, para afirmar: “Podemos contar com futuro brilhante”.
Já o discurso do outro superministro, Sérgio Moro, da Justiça e Segurança Pública, foi direto e com propostas objetivas. Destaque para a colocação da prisão em segunda instância na legislação, o projeto de lei anticrime e a cooperação internacional para combate aos refúgios físicos e financeiros de criminosos. A promessa do desmantelamento econômico das organizações criminosas preconiza uma nova etapa no combate ao crime organizado.
Para justificar a necessidade de alterações na legislação, o ministro Sérgio Moro disse que, apesar da operação Lava-Jato, o Brasil continua mal colocado no índice internacional de percepção da corrupção. O que confirma para ele “uma verdade conhecida: não se combate a corrupção somente com investigações e condenações eficazes”.
Além disso, disse Moro, são necessárias políticas gerais contra a corrupção, com “leis que tornem o sistema de Justiça mais eficaz e diminuam incentivos e oportunidades contra a corrupção”. Outro grande desafio destacado por Moro é o combate ao crime organizado.
“Grupos criminosos organizados, alguns que dominam nossas prisões, estão cada vez mais poderosos. É preciso enfrentá-los com leis mais eficazes, com inteligência e operações coordenadas entre as diversas agencias policiais, federais e estaduais”.
Moro abordou o problema do crime violento, que “aterroriza a população brasileira”, gerando “uma atmosfera de insegurança que deve ser combatida com estratégia, inteligência e políticas públicas eficazes”.
Porque afetam a credibilidade das instituições e a própria qualidade da democracia e da vida cotidiana, os crimes violentos e as organizações criminosas têm que ser enfrentados.
Assim como Paulo Guedes, Moro também acenou com a necessidade de colaboração de Estados e Municípios, “dentro de um ambiente de respeito às instituições e ao Estado de Direito”. Moro citou a intervenção federal do Rio de Janeiro, “que reestruturou a Segurança Pública” no Estado, como exemplo de cooperação a ser seguido.
Moro prometeu os meios necessários para reestruturar e fortalecer as diversas Forças Tarefas e equipes policiais encarregadas de investigar a grande corrupção, “seja nos inquéritos em Curitiba, São Paulo e no Rio de Janeiro, seja nas investigações perante as Cortes Superiores de Brasília”, indicando que a Operação Lava-Jato ganhará mais fôlego.
A missão que recebeu de Bolsonaro, salientou Moro, foi “o fim da impunidade da grande corrupção, o combate ao crime organizado e a redução dos crimes violentos, tudo isso com respeito ao Estado de Direito e para servir e proteger o cidadão brasileiro, seja qual for a sua renda”.
Merval Pereira: Duas vozes
Bolsonaro foi eleito pelo núcleo duro de cidadãos claramente radicalizados, a quem ele dedica sua retórica de guerra política
Entre repetições de clichês que não surpreenderam, o presidente Bolsonaro colocou algumas questões no meio de seu discurso no Congresso que representam avanços na configuração do que imagina deva ser a relação do Executivo com os parlamentares, ponto fundamental para a aprovação de reformas estruturantes que precisa aprovar.
A formação do ministério sem consultas aos partidos políticos foi um choque positivo na relação promíscua já naturalizada no nosso presidencialismo de coalizão, que se transformara em uma mera troca de favores.
Pela primeira vez Bolsonaro levou a discussão para o campo das ideias, tentando advertir seus antigos pares de que prosseguir nessa relação espúria é desmoralizar a política e colocar em risco a credibilidade parlamentar, já bastante abalada.
Foi nesse discurso que ele entrou no debate das reformas, sem explicita-las, mas ressaltando sua importância na retomada do crescimento econômico. Outra questão insinuada no seu discurso é a saída para o desemprego. Bolsonaro sempre defendeu a tese de que é preciso abrir mão de alguns direitos para criar mais empregos.
Está sendo construída uma estratégia para defender, não apenas essa flexibilização de direitos e deveres trabalhistas, como também para convencer a população de que a reforma da Previdência será feita para acabar com privilégios, não para tirar direitos adquiridos para a aposentadoria.
Terá que conseguir isso para continuar merecendo a confiança de seu eleitorado, fazendo mudanças que podem significar mais tempo de trabalho antes da aposentadoria. A melhoria dos serviços públicos seria uma contrapartida a esses cidadãos.
A valorização da atividade parlamentar é uma derivação positiva da retórica de Bolsonaro, que ainda está muito dominada pela radicalização politica. Ficou evidente no esquema de segurança opressivo e nas referências do próprio Bolsonaro o abalo que o atentado que sofreu provocou na sua alma, reverberado nas ações de governo que acabaram esvaziando a presença popular na posse. O presidente agradeceu a Deus por estar vivo, e citou que “inimigos da pátria e da ordem” tentaram por fim à sua vida.
Para ele, o atentado transformou a campanha em um resgate de valores nacionais. Não foi a primeira vez que Bolsonaro se referiu ao atentado como razão para sua eleição, o que esvazia a significação de sua vitória, que em outras vezes classificou de mudança de rumo provocada pela maioria dos eleitores, o que me parece muito mais próximo da verdade.
Bolsonaro foi eleito pelo núcleo duro de cidadãos claramente radicalizados, a quem ele dedica sua retórica de guerra política. Mas só venceu a eleição porque muitos cidadãos resolveram que ele era o mal menor, o erro novo, contra a possibilidade de o PT, o erro antigo, voltar ao governo.
O tom do presidente Bolsonaro no parlatório pode ser explicitado pelos gestos e expressões quase agressivas da tradutora de Libras que fez a tradução para os deficientes auditivos. Foi uma retórica de campanha para os populares, repetindo clichês que provocaram reações de euforia do publico: o direito de defesa, que se traduz na flexibilização do posse de armas, a necessidade de proteger e valorizar os policiais, e a ameaça do socialismo, que transformaria nossa bandeira em vermelha.
Sem dúvida são temas populares, tanto que o público respondeu com refrões e gestos. Os governos socialistas em países da região, todos ligados e até mesmo financiados pelo governo brasileiro, indicam que o projeto estava sendo montado.
Mas a ameaça socialista nunca passou da retórica petista, pois não encontrou em nenhum momento dos 13 anos de governo espaços para uma ação mais efetiva.
Exacerbar essa possibilidade é o mesmo que faz agora a esquerda, ligando a vitória de Bolsonaro a uma ameaça fascista à democracia brasileira.
A dosagem das palavras, diferentes no Congresso e no parlatório do Palácio do Planalto, leva a crer que o presidente Jair Bolsonaro não pretende abrir mão da retórica de guerra, que tanto agrada a certo eleitor seu. Vamos aguardar que atenda aos demais eleitores, que esperam resultados positivos na construção de uma sociedade sem discriminações, como também prometeu.
Quando tratou das ideias e propostas, Bolsonaro saiu-se melhor.
Pagador de promessas: Merval Pereira
Os EUA, liberal em relação à venda e ao porte de armas, são um país violento, com a maior população carcerária do mundo
O anúncio do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que editará um decreto facilitando a posse de armas no país é daquelas medidas suscetíveis de causar polêmica, mas muito pouco tem a ver com uma política de segurança pública, que deve ir muito além de uma visão pessoal ou de grupos.
O futuro ministro da Justiça, Sergio Moro, sugeriu, na reunião de primeiro escalão do futuro governo para tratar dos 100 primeiros dias, que essa fosse uma das primeiras medidas a serem anunciadas, pagamento de promessas de campanha para um nicho importante do eleitorado que fez Bolsonaro presidente.
Tem a ver também com um conceito de segurança pessoal que é muito caro a um grupo de cidadãos da classe média, especialmente os das regiões Sul e Centro-Oeste do país, e dos moradores das grandes cidades.
Mas dar posse de arma não é a mesma coisa de liberar o porte de arma. O porte obedece a uma série de exigências que inclui o treinamento em clubes de tiro. A prioridade à posse de arma tem um simbolismo, em busca um efeito dissuasório, mas a medida liberalizadora permitirá apenas guardar armas em casa, não as portar em público.
Os defensores da medida, como o general Augusto Heleno, futuro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, consideram que seu efeito dissuasório pode ser efetivo, reduzindo os roubos em residências. Ele alega que a política de desarmamento não tem tido efeito na redução de crimes, pois o país bate o recorde de mortes violentas anuais.
A medida tem a ver também com reivindicações de certos grupos, como colecionadores, de obter com menos problemas burocráticos a permissão para ter uma arma. Mas a lei continuará a exigir antecedentes negativos, aptidão técnica e higidez mental, nisso não se pretende mexer, e também a demonstração da efetiva necessidade. O decreto apenas esclarecerá melhor o que seria isso, não deixando a decisão ao arbítrio do agente público.
Moradores de regiões violentas das cidades poderão ser autorizados a possuir uma arma em casa, por exemplo, assim como os que vivem em áreas rurais, mas o decreto ainda está em elaboração.
O propósito é flexibilizar as normas, sem ter que mudar a legislação, ampliando o acesso à posse de armas aos cidadãos comuns, sem antecedentes criminais.
Um dos objetivos é desburocratizar as exigências legais, tornando definitiva, por exemplo, a permissão para ter uma arma em casa, sem que seja preciso renovar a licença a cada cinco anos. Um dos argumentos dos que defendem a liberalização da posse de armas é que os crimes em abundância que ocorrem no país, em sua maioria, são cometidos com armas roubadas, às vezes com armamentos exclusivos das Forças Armadas.
Não seria, portanto, a liberalização das armas que provocaria maior número de crimes. Ao contrário, a medida, além de dar uma sensação de maior segurança aos cidadãos que vivem em áreas perigosas, teria o efeito de dificultar a ação dos bandidos, que passariam a saber que alguém armado pode reagir ao assalto de sua residência.
Bolsonaro costuma dar o exemplo dos Estados Unidos que, muito liberal com relação à venda e ao porte de armas, têm índices de criminalidade baixos se comparados com os do Brasil. No entanto, os números são enganosos, pois os EUA são um país violento, com a maior população carcerária do mundo. E os assassinatos em massa que vemos frequentemente certamente são decorrentes dessa liberalização.
Em Nova York, por exemplo, onde a legislação local não permite portar armas em público, o índice de criminalidade tem sido reduzido. O baixo índice de criminalidade é fruto de uma política nacional de repressão severa, o que não indica que o país não seja violento.
Os índices de criminalidade nos Estados Unidos são maiores que os dos países ocidentais mais avançados, como na Europa e no Japão. Na América Latina estão 18 dos 20 países com maiores índices de homicídios, e 43 das 50 cidades mais violentas do mundo. Por volta de 75% de todos os homicídios na região são relacionados a arma de fogo, enquanto o índice mundial é de 40%.
Merval Pereira: Democratas de fancaria
A recusa do PT a comparecer à posse está acoplada a um movimento político anterior à disputa do segundo turno
O PT mais uma vez dá uma demonstração clara de que é democrático só quando a maioria está a seu favor. Ao anunciar que boicotará a posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, repete comportamento antidemocrático que já virou rotina na sua atuação parlamentar.
Recusou participar do governo de união nacional de Itamar Franco, depois de ter liderado a derrubada de Collor; não homologou a Constituição de 1988; não apoiou o Plano Real, chamando-o de estelionato eleitoral; não apoiou a Lei de Responsabilidade Fiscal, e por aí vai, numa posição egoísta que só aceita alianças politicas quando as controla, à base de escambos e corrupção.
A recusa em comparecer à posse está acoplada a um movimento politico anterior à disputa do segundo turno da eleição presidencial. Já àquela altura o partido entrou com uma ação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo a impugnação da chapa de Bolsonaro, por abuso de poder econômico.
Mesma atitude que o PSDB tomou contra a eleição de Dilma Rousseff, que o PT tratou como sendo um golpe antidemocrático. Desta vez, fez pior. Tentou impedir que seu adversário disputasse o segundo turno. O processo ainda está em andamento, e o terceiro turno foi aberto mesmo antes de o segundo se realizar, o que é espantoso mesmo para padrões petistas.
A historia da Constituição de 1988 é interessante. Os petistas dizem que a acusação de que não assinaram a nova Carta é mentirosa, e tecnicamente têm razão. Mas a negativa é um truque banal, assinaram porque eram obrigados regimentalmente, já que participaram de sua confecção. Mas quando tiveram a opção de não participar da cerimônia de homologação, assim o fizeram, para demonstrar repúdio ao que classificavam de uma Constituição feita pela direita.
Logo a Constituição-cidadã, vista pela Centrão como inviabilizadora do governo brasileiro, como definiu o então presidente José Sarney. Muitas promessas, poucas obrigações, uma Constituição populista de cunho esquerdista, como criticavam à época os do Centrão.
Agora, mais uma vez, se escoram em uma muleta linguística para justificar o boicote antidemocrático. Dizem que acatam o resultado das eleições, embora alcançado por meios ilegais, e não comparecem à posse para demonstrar que a resistência já começou.
Ora, a democracia pressupõe o revezamento de poder, e não aceitá-lo corresponde a colocar em questão essa possibilidade, transformá-la não em uma opção legítima da maioria do eleitorado, mas consequência de abusos ilegais que a desacreditam.
Além do mais, se o processo no TSE está em andamento, há demonstração clara de que consideram que a eleição de Bolsonaro foi fraudada, e buscam na Justiça Eleitoral a reparação do dano. Alegar que o boicote é contra o pensamento retrógrado de Bolsonaro, suas declarações misóginas e preconceituosas, é tentar uma justificativa que mascare a decisão antidemocrática.
Comparecessem à cerimonia com cartazes de protesto, marcassem suas posições - o PT e o PSOL, que também aderiu - na luta politica, não na negação da alternância no poder. Instalado o novo governo, a oposição terá todas as condições de tentar até mesmo obstruir as votações que interessem ao governo, se mantiverem a postura de ser contra tudo o que o governo que o derrotou propõe, e não por convicção.
Lembro bem quando o deputado João Paulo Cunha virou presidente da Câmara, no início do primeiro governo Lula, e coordenou a aprovação da continuidade da reforma da Previdência iniciada no governo Fernando Henrique, contra o que o PT sempre lutou. Perguntei qual a razão da mudança, e ele foi curto e direto: “Luta política”.
Quando o presidente do PSDB e candidato derrotado na eleição de 2014, senador Aécio Neves, entrou com uma ação no TSE para impugnar a chapa vencedora por abuso de poder econômico, o PT gritou que era golpe. Ainda mais depois que o próprio Aécio disse que tomou essa atitude “só para encher o saco”.
Sem explicitar, é o que o PT está fazendo agora. Se era golpe antes, é golpe agora também. Em circunstâncias muito piores, pois Fernando Haddad foi derrotado por larga margem de votos, enquanto o PSDB perdeu por diferença ínfima. E a ação do PT foi feita ainda no primeiro turno, o que introduziu na disputa do segundo um elemento desestabilizador.
Merval Pereira: Cadê o Queiroz?
Tecnicamente, caso Queiroz não é questão de governo, no entanto, politicamente é que a porca torce o rabo
A pergunta, sonora e incômoda, vem atropelando a transição do governo Bolsonaro há mais de 20 dias, quando foi descoberta uma “movimentação atípica” do motorista Fabrício Queiroz, que trabalhava no gabinete do senador eleito Flavio Bolsonaro. É a maneira técnica que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) encontra para definir movimentações financeiras incompatíveis com os ganhos oficiais de um cidadão.
Por ser motorista de um dos filhos do presidente eleito Jair Bolsonaro, de quem é amigo há 40 anos, e ter depositado dinheiro na conta da futura primeira-dama, o caso ganhou dimensões políticas naturalmente escandalosas.
O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, futuro ministro-chefe da Secretaria de Governo, definiu ontem que o caso de Fabrício Queiroz “não é uma questão de governo”, protegendo assim a figura do presidente da República, delimitando o alcance do escândalo.
Tecnicamente, o General está certo. Se não é possível processar um presidente da República por fatos alheios ao seu mandato, muito menos um futuro presidente que nem mesmo assumiu o posto. Tecnicamente, no entanto, não quer dizer politicamente, e é aí que a porca torce o rabo.
Bolsonaro deu uma explicação plausível para os depósitos na conta de sua mulher. Seriam pagamentos de empréstimo particular que dera ao amigo. O filho 01 do futuro presidente, que gosta de numerá-los por ordem cronológica de antiguidade como acontece entre os militares (quem não se lembra de “pede pra sair 01”, famosa frase do Capitão Nascimento em “Tropa de Elite?”), disse desde o início do caso que a explicação deveria ser dada por Queiroz, deixando claro que não temia ser apontado como político que usava o motorista como laranja para ficar com parte do salário dos funcionários de seu gabinete, como parece ser comum na atividade parlamentar.
Jogando a bola para Queiroz, Bolsonaro e família passaram a imagem de que nada temiam da investigação. Aceitando que Queiroz desaparecesse por quase um mês, desgastaram-se, permitindo que os opositores incutissem em parte da opinião pública pelo menos a suspeita de que alguma coisa errada a família Bolsonaro fizera.
De tanto perguntarem, Queiroz afinal apareceu, para dar uma explicação marota sobre o dinheiro que circulou em sua conta. “Sou um homem de negócios, vendo carros usados”, disse ele singelamente, sem, no entanto, indicar para quem vendeu os carros, de quem os comprou e, sobretudo, porque os funcionários do gabinete de Flavio Bolsonaro depositavam todo início de mês dinheiro em sua conta. Será preciso provar que todos eles compraram carros de Queiroz.
Há um precedente famoso de explicações bizarras como essa. Durante a ditadura militar, um chefe de gabinete de um dos generais presidentes foi acusado de enriquecimento ilícito. Perguntado como explicava a súbita fortuna, o major explicou ao presidente que vendia cavalos de raça, e ainda recebeu elogios pelo “empreendedorismo”.
Acontece que os pangarés que o major vendia eram comprados a preço de puros-sangues por empresários interessados em se aproximar do gabinete presidencial. Como era tempo de ditadura, não houve investigação e a criação de pangarés continuou prosperando.
Dessa vez, Queiroz, mesmo sendo ex-militar, não terá proteção além do que a lei lhe confere. O próprio General Santos Cruz, que relativizou o caso tirando-o da alçada do governo, admitiu que merece ser investigado, a imprensa naturalmente se interessa por ele, e por ter sido funcionário da família Bolsonaro, juntamente com vários parentes, precisa ser esclarecido.
Vários presidentes tiveram a seu lado subordinados que assumiam o “lado sujo” da política, com ou sem o conhecimento do chefe, mas certamente embalados pela certeza da impunidade.
O mais famoso foi Gregório Fortunato, chefe da segurança de Getulio Vargas que acabou criando uma milícia paralela responsável pela tentativa de assassinar Carlos Lacerda, o líder da oposição. Quem morreu foi o Major Rubem Vaz, que fazia a segurança de Lacerda. Foi o começo do fim de Getúlio.
Também Lula teve seu Gregório, sem graves consequências políticas, o segurança Freud Godoy por 20 anos, que acabou ocupando cargos de assessor especial do presidente da República e se envolveu em pelo menos dois grandes escândalos: o mensalão e o Dossiê dos Aloprados.
Merval Pereira: Gente como a gente
Atos de Bolsonaro o mostram como o espelho de Lula, e alimentam essa rivalidade de forma proposital
O governo que assume dentro de seis dias inspira esperança nunca antes neste país registrada em pesquisas, como constata o Datafolha. O otimismo do brasileiro coma economia está em níveis recordes. Segundo o instituto, cresceu de 23% para 65% o índice dos que acham que a situação econômica do Brasil vai melhorar nos próximos meses.
Este é também o primeiro governo de direita que assume o país desde 1994, quando nossa versão de social-democracia europeia chegou ao poder com Fernando Henrique Cardoso.
Foram 22 anos de governos de esquerda, responsáveis, para o superministro da economia Paulo Guedes, pelo nosso crescimento econômico medíocre. Anteriormente, houve a experiência malsucedida de Fernando Collor, um populista de direita assim como Bolsonaro, que derrotou a esquerda, assim como Bolsonaro.
O voluntarismo de ambos é característica que, antes como agora, define a maneira de governar e pode levara um isolamento político perigosos e quiser ser sustentado pelo amplo apoio popular que hoje detém.
Jânio Quadros renunciou achando que o povo o levaria de volta ao poder. Lula, com 80% de aprovação quando saiu do governo, pensava que o povo não o deixaria ser preso. Está na cadeia há quase um ano. Collor chamou o povo para defendê-lo nas ruas com as cores verde e amarelo, e foi derrotado por uma avalanche de pessoas de luto pelo país.
Governava através de mensagens em camisetas feitas especialmente para a ocasião. Exibia frases de impacto, como “Drogas, Independência ou Morte”, “Não fale em crise. Trabalhe ”, e amais famosa :“O tempo é o senhor da razão ”, para dizer-se inocente. Conseguiu não ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por falta de provas, muito antes do que os críticos chamam de “a teoria jurídica de Curitiba” entrar em vigor, mas está às voltas novamente com processos de corrupção.
Não havia os novos meios de comunicação que hoje empoderam os representados, o que, porém, pode voltar-se como bumerangue contra o populista da ocasião.
Mas não apenas os direitistas se utilizam da imagem de gente comum, que teve em Jânio Quadros uma referência: homem culto e refinado, que gostava de comer bem e de bons vinhos, tirava do bolso um sanduíche de mortadela que mastigava em atos públicos, o terno sempre infestado de caspa.
Atos de Bolsonaro o mostram como o espelho de Lula, e alimentam essa rivalidade propositadamente. Apolítica externa Sul-Sul, implantada pelos governos petistas para compensara dificuldade de instalar seu projeto socialista internamente, será substituída agora por outra, ligada umbilicalmente aos Estados Unidos, numa mistura explosiva de Bolsonaro e Trump que ninguém sabe no que vai dar.
Voltamos aos tempos da ditadura militar, quando o político Juracy Magalhães, então embaixador brasileiro, disse a célebre frase: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Acabou chanceler do General Castelo Branco.
A camiseta usada pela futura primeira-dama Michelle, com uma frase referente ao ex-presidente Lula, é mais um ponto de semelhança de ação populista, assim como as fotos casuais que Bolsonaro dispara pela internet em seu dia adia.
Bolsonaro se orgulha de ser militar, de usar roupas militares. Lula usava modelos militares com o brasão da República quando era necessário, e se vestia, à l a Doria, como uniforme laranjada Petrobras para comemorara autos suficiência que nunca veio.
Bolsonaro dia desses colocou um quepe da Marinha e comparou-se com Lula, se diferenciando ideologicamente: “Se o outro usava chapéu da CUT, eu boto esse ”. A foto icônica do então presidente Lula carregando uma caixa de isopor na cabeça numa reserva da Marinha na Bahia é do mesmo teor da de Bolsonaro pendurando roupa no varal na reserva de Marambaia.
A diferença é que a própria equipe do presidente eleito divulga suas fotos na internet, e naquela ocasião Lulas e deixava fotografar pelos jornalistas. Coma evolução das novas mídias, Lula passou ater um fotógrafo pessoal para divulgar suas andanças pelo país. Mas também sofreu com os smartphones, tendo sido fotografado fantasiado de caipira e nada sóbrio em uma festa de São João no Palácio da Alvorada.
Merval Pereira: O caminho das reformas
O Supremo já decidiu que ninguém tem direito adquirido a não ser tributado no futuro, inclusive os inativos
É quase certo que o Supremo Tribunal Federal (STF) seja acionado para impedir a reforma da Previdência, com argumentos já utilizados para questionar reformas anteriores: afronta a direitos adquiridos, configuração de confisco, violação de ato jurídico perfeito e desconsideração de expectativas legítimas dos contribuintes dos sistemas.
Segundo o constitucionalista Gustavo Binemboin, a jurisprudência do Supremo tem sido de que apenas os aposentados, ou os que já tenham preenchido os requisitos para a aposentadoria, têm direito adquirido.
A ampliação de tempo de contribuição, e a imposição de idade mínima, podem, portanto, alcançar todos os que ainda não tenham preenchido os requisitos do regime atualmente em vigor. A majoração de alíquotas de contribuições tende a ser admitida, pois o Supremo já decidiu que ninguém tem direito adquirido a não ser tributado no futuro, inclusive os inativos.
Quanto às privatizações, Binemboin lembra que a jurisprudência do STF se limita a controlar aspectos formais da venda do controle acionário de empresas estatais. A Reforma Tributária também deve ser feita por emenda constitucional, e o desafio será superar alegação de afronta ao pacto federativo, e as garantias dos contribuintes, que o Supremo já entendeu serem também cláusulas pétreas.
O governo, segundo o constitucionalista, deverá ter êxito se o Supremo adotar uma concepção minimalista em relação às cláusulas pétreas, como, por exemplo, admitindo um novo arranjo tributário para a Federação – se for criado um IVA que junte o IPI, o ICMS e outras contribuições –, desde que a reforma não esvazie a autonomia de estados, municípios e Distrito Federal.
No que se refere às garantias dos contribuintes, Gustavo Binemboin lembra que apenas uma vez a Corte pronunciou a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, na criação do IPMF, que não respeitava o princípio da anterioridade tributária. Na Reforma Orçamentária, parece ser intenção do novo governo conceder maior liberdade ao Congresso Nacional na elaboração do orçamento anual.
A proposta do então candidato Bolsonaro falava em “orçamento de base zero”, que seria a possibilidade de total liberdade de alocação de receitas na lei orçamentária, a cada ano. Não há, segundo Gustavo Binemboin, em nenhum país civilizado, nem mesmo nos de desenvolvimento semelhante ao do Brasil, esse tipo de amarras na Constituição.
Como a maioria dessas normas é proveniente de emendas constitucionais, não haverá problemas, avalia Binemboin, em se aprovar uma PEC para desamarrar o orçamento e permitir que o governo e o Congresso legislem mais democraticamente sobre como as receitas públicas devam ser alocadas, sempre observando o teto geral de gastos, também previsto na Constituição.
A maior mobilidade na alocação dos recursos é condição prioritária para que esse objetivo seja alcançado. Caso o Supremo seja provocado, a tendência é no sentido da aprovação da medida.
Em matéria de direitos e garantias individuais, os desafios devem surgir quanto à alteração da maioridade penal, por exemplo. Segundo Gustavo Binemboin, não parece ofender nenhuma cláusula pétrea a alteração da idade de 18 para 17 anos, que não chega a configurar uma medida “tendente a abolir” direito ou garantia individual.
O mais correto, na opinião do constitucionalista, seria, como sugeriu o futuro ministro Sérgio Moro, que a redução da maioridade penal alcance apenas crimes graves, como homicídio e latrocínio, por exemplo, em que a consciência da ilicitude pode facilmente ser presumida em jovens de 16 ou 17 anos.
Gravidade
Se analisado em suas diversas facetas, o caso do motorista de Flavio Bolsonaro é mais grave do que o provável desvio de parte do salário dos seus funcionários.
O STF proíbe a contratação de parente de servidor comissionado. No caso, há o motorista, a esposa dele, as duas filhas, o ex-marido da esposa e a filha dele. Muitos sem prestarem qualquer serviço.
E se completa com a indisfarçável cumplicidade do futuro presidente, ao contratar uma das filhas, exonerada ao mesmo tempo que o motorista, quando o escândalo veio à tona, numa provável tentativa de encobrimento.
*A coluna entra em recesso e volta a ser publicada no dia 27. Feliz Natal a todos.
Merval Pereira: A batalha previsível
Na fundamental reforma da Previdência haverá disputa sobre diversos aspectos, pois todos os temas são polêmicos
É previsível que o futuro governo Bolsonaro tenha dificuldades políticas e jurídicas para a aprovação das reformas estruturais de que o país necessita, na maioria impopulares pelo menos para setores da sociedade. O sucesso da manifesta vontade do presidente eleito de tratar diretamente desses temas espinhosos com o cidadão, através dos novos meios de comunicação em rede, dependerá da capacidade de convencimento de que privilégios estarão sendo cortados, e não “direitos adquiridos” subtraídos.
Com recente pesquisa confirmando que o futuro governo tem aprovação inicial mais avantajada que a votação obtida por Bolsonaro no segundo turno, é provável que tenha tempo para trabalhar, com a oposição sem espaço para grandes mobilizações.
Os problemas do clã Bolsonaro com as verbas de representação de seus mandatos legislativos ainda não deram gás suficiente para uma oposição mais aguerrida, mas já tivemos recentes exemplos dos problemas que a equipe econômica subordinada a Paulo Guedes encontrará pela frente para aprovar as reformas, inclusive o necessário programa de privatizações para reduzir parte da nossa dívida interna.
Bom exemplo foi a tentativa de barrar a associação da Embraer com a Boeing, que encontrou um juiz para conceder liminar, logo depois revogada, impedindo o negócio.
Também na fundamental reforma da Previdência haverá disputa sobre diversos aspectos, pois todos os temas são polêmicos.
A reorganização dos servidores públicos, com planos de carreira que privilegiem o mérito sobre a antiguidade, será outro ponto a ser disputado no Congresso e também no Judiciário, especialmente se tocar em mudanças de mentalidade, como a proposta de acabar com a estabilidade do funcionário público, que muitos consideram cláusula pétrea da Constituição, mas que, segundo alguns juristas, pode ser alterada até mesmo por projeto de lei.
Também o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, encontrará problemas tanto no Congresso quanto no Judiciário. Moro, por exemplo, quer que condenados por corrupção ou peculato cumpram prisão em regime fechado, não importando o tamanho da pena. Mas já existe resistência de alguns ministros do STF. Também há temores no Congresso com a ida para a Justiça do controle de transações financeiras (Coaf), que identificou a movimentação bancaria “atípica” do motorista de Flavio Bolsonaro e de diversos outros deputados.
Para prospectar problemas e soluções para essa previsível batalha, pedi ao professor da UERJ e constitucionalista Gustavo Binemboin uma análise do que pode vir pela frente. Para ele, “os que defendem no Supremo Tribunal Federal maior ativismo judicial invocam o sistema de freios e contrapesos (“checks and balances”) para sustentar a postura mais intrusiva do Judiciário na definição de políticas públicas e na imposição de uma agenda a partir da leitura criativa do texto constitucional”.
De outro lado, pondera Binemboin, “os defensores de maior autocontenção invocam a repartição de funções estatais para justificar que ao Judiciário caiba apenas a preservação das regras do jogo democrático e a defesa de direitos fundamentais, deixando as escolhas políticas a cargos dos agentes eleitos para o Parlamento e para a Chefia do Executivo”.
Acho que no Brasil, nos últimos anos, o ativismo judicial atingiu nível elevado, e, diante das questões graves que terá que enfrentar, o melhor seria que o conselho do presidente do STF, ministro Dias Tofolli, fosse seguido: o Judiciário deixar de ser protagonista, a bem da segurança jurídica e do respeito às escolhas políticas legítimas feitas por agentes públicos eleitos.
Na análise de Gustavo Binemboin, de modo geral os tribunais constitucionais adotam postura de deferência em relação a políticas públicas nas áreas econômica, fiscal, orçamentária e de relações internacionais, consideradas próprias do campo da política majoritária.
Já em relação à defesa de direitos individuais e à preservação das regras democráticas, comenta, as cortes constitucionais se permitem maior ativismo, sobretudo no que se refere à proteção de minorias subrepresentadas politicamente.
É possível antever algumas questões que certamente serão submetidas ao Supremo Tribunal Federal (STF) levadas à Corte por partidos da oposição, pela Procuradoria-Geral da República ou entidades de classe de âmbito nacional. ( Amanhã, as principais disputas)
Merval Pereira: 50 anos depois
Tinha 19 anos, era o mais novo da redação, que ouviu em silêncio aquele ato que ficaria conhecido como ‘o golpe dentro do golpe’
Entrei na redação do GLOBO pela primeira vez em 1968 e, no dia 13 de dezembro, era um estagiário indignado com a decretação do AI-5, e assustado com o futuro do país. Tinha 19 anos, era o mais novo da redação, que ouviu em silêncio aquele ato que ficaria conhecido como “o golpe dentro do golpe”.
Em 13 de outubro de 1978, quando foi promulgada a emenda constitucional nº 11, cujo artigo 3º revogava todos os atos institucionais e complementares que fossem contrários à Constituição Federal, “ressalvados os efeitos dos atos praticados com bases neles, os quais estão excluídos de apreciação judicial”, eu chefiava a sucursal de Brasília.
A emenda constitucional entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1979, restabelecendo o habeas corpus e dando fim ao Ato Institucional nº 5 (AI-5). Acompanhei, portanto, nossa história recente, às vezes de muito perto, como quando era repórter credenciado no Palácio do Planalto acompanhando o governo Geisel.
Concordo com o Ascânio quando diz que a data a ser comemorada é a do fim do AI-5, mas nunca é demais lembrar o que aconteceu, para não repetir os mesmos erros. Outro fato a ficar marcado, na história do país e na do GLOBO, foi a decretação da anistia, em 1979.
Quando comemorou 90 anos, em 2015, O GLOBO publicou relatos sobre os bastidores de suas grandes reportagens, entre elas a publicação antecipada da Lei de Anistia, que resumo a seguir. Os dias que antecederam sua decretação foram agitados em Brasília, que já vivia um clima cada vez maior de abertura política iniciada no governo Geisel.
O então ministro da Justiça, Petrônio Portela, um dos principais articuladores no campo civil da anistia, reunia em seu gabinete diversos líderes políticos, de todas as tendências, para negociar, e depois exibir, vitorioso, o texto final. O ambiente naqueles dias era de festa, e não havia rigidez no controle da circulação de jornalistas pelo gabinete ministerial.
Foi assim que, na véspera da divulgação oficial, dois repórteres da sucursal de Brasília que eu chefiava (Etevaldo Dias e Orlando Brito), aproveitando-se de uma distração de Petrônio, que se levantara para se despedir de alguém deixando o documento em cima do sofá, roubaram o texto original. Quando Petrônio deu por falta, mandou fechar a porta do gabinete e revistar os jornalistas.
Como havia muitos políticos na sala, e outras autoridades, os jornalistas exigiram: ou todos seriam revistados, ou ninguém. Estávamos, afinal, numa abertura política rumo à redemocratização, e os jornalistas já podiam exigir algumas coisas. Dado o impasse, todos foram liberados, e a Polícia Federal pôs-se no encalço dos ladrões.
No primeiro contato telefônico com Etevaldo, infindáveis minutos depois da notícia, tive a certeza de que ele estava com o texto. Como a Polícia Federal já montara um esquema especial, e os telefones das redações estavam grampeados, montamos nosso esquema para burlar a vigilância.
Alugamos um apartamento no Hotel Nacional, e transmitimos para a sede no Rio o texto original. Não havia celular, nem computador, nem Facebook, e Brito improvisou: fotografou página por página e as transmitiu pela máquina de telefoto, que também não existe mais.
Por orientação expressa de Roberto Marinho, que acompanhou toda a operação informado por Evandro Carlos de Andrade, o diretor de redação, telefonei de madrugada para Petrônio para lhe dizer que o jornal recebera um envelope com o texto do decreto e o estava publicando na primeira página daquele dia.
Embora irritadíssimo com a desculpa esfarrapada, o ministro da Justiça teve que engoli-la, e O GLOBO circulou naquele dia com um de seus grandes furos jornalísticos tomando toda a primeira página.
O leitor estará se perguntando se é ético um jornalista roubar documentos de ministros. Mas é preciso lembrar o ambiente em que vivíamos: uma ditadura nos seus estertores, mas ainda poderosa, com presos políticos em suas cadeias, e uma discussão que angustiava o país e muito mais de perto as famílias daqueles presos.
Nessas circunstâncias, antecipar o texto, tornando-o praticamente um fato consumado, pondo-o talvez a salvo de retrocessos de última hora, foi um serviço à democracia.