Merval Pereira

Merval Pereira: Boas indicações

Bolsonaro assumiu compromissos importantes, que independem do quanto utilizou dos 45 minutos que tinha

Criticar o discurso do presidente Jair Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial em Davos pelo tamanho não é uma medida correta. Melhor seria dizer que o presidente brasileiro perdeu a oportunidade para se aprofundar nos temas que realmente importam ali, mas assumiu compromissos importantes, que independem de quanto tempo utilizou dos 45 minutos que tinha.

O discurso de oito minutos foi montado para incentivar os investidores estrangeiros. Falou em reformas, Previdência incluída, em abertura da economia, simplificação da burocracia para melhorar ambiente de negócios, diminuição da carga tributária, abertura para o mundo e ainda se comprometeu com preservação do meio ambiente.

A emoção revelada no início foi indevida, mas Bolsonaro é um estreante em eventos internacionais, não tem nem o carisma nem a popularidade entre os estrangeiros que tinham Fernando Henrique ou Lula. E nem é um orador-ator como seu ídolo Trump. Ao contrário, pelo escândalo de corrupção do governo Lula, e por causa de suas opiniões emitidas durante toda a vida parlamentar, como a defesa da tortura, a imagem do Brasil no exterior nunca esteve tão ruim.

Por isso, fez bem o presidente em assumir compromissos com a redução da emissão de CO2, e a preservação do meio ambiente, depois de ter mantido o Brasil, talvez a contragosto, no Acordo de Paris sobre o clima.

Bolsonaro também defendeu a agropecuária brasileira, o principal fator a impulsionar nossa economia, explicando que, no seu modo de ver, agricultura e meio ambiente devem estar juntos. Caberá ao presidente Bolsonaro mostrar na prática que sua tese é viável. Mas os ambientalistas temem que o agronegócio seja prioritário para o governo.

Ao se referir às reformas que pretende promover, Bolsonaro citou a da Previdência, mas foi convencido por parte de sua assessoria de que os investidores não se preocupam com os detalhes, por isso não os deu.

O presidente do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab, também não pediu mais detalhes. Fez perguntas genéricas e generosas, como anfitrião do encontro. Coube a Paulo Guedes tratar do assunto em outros debates.

O presidente citou os dois ministros que são os sustentáculos de seu governo, Sergio Moro e Paulo Guedes, os que realmente contam para os investidores, um que promete garantir as relações econômicas livres de corrupção e lavagem de dinheiro, dando segurança jurídica aos investidores, e o outro com a bandeira de liberalizar a economia.

O fato de Bolsonaro ter admitido que o Brasil ainda é um país fechado economicamente valoriza esses compromissos da equipe econômica. Um discurso rápido, mas com compromissos importantes.

Ao reafirmar que não montou seu Ministério por pressões políticas, e que o método anterior só causou ineficiência e corrupção, o presidente Bolsonaro pode ter comprado uma briga com setores importantes do Congresso, que terá que dar a autorização para as reformas prometidas.

Bolsonaro parece se basear em sua popularidade para pressionar os congressistas, o que é arriscado. Ele pode vir a ser um líder de direita tão popular quanto Lula, mas não será nunca um formulador de projetos. E, pelo que apresentou em Davos, precisa de um ghost writer que dê aos seus discursos oficiais uma lustrada, retirando deles a excessiva carga de simplicidade, boa para campanhas eleitorais, ruim para mensagens internacionais.

Lula também não era um formulador, mas captava a mensagem com rapidez, e tinha quem no PT formulasse por ele. José Dirceu foi o grande estrategista político, Celso Amorim inventou o líder mundial capaz até de mediar a crise do Oriente Médio. Lula, como já definiu o cineasta Fernando Meirelles, é um grande ator.

Deu certo por muitos anos, e até hoje engana setores da intelectualidade brasileira e mundial. Bolsonaro, se pretende ter um papel na direita mundial, como sonha seu filho Eduardo, que o acompanhou a Davos, precisaria de um mentor com ideias menos retrógradas e rocambolescas que as do chanceler Ernesto Araújo.

Ao confirmar que o Brasil seguirá as normas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as maiores economias do mundo, está também abrindo mão de combater a globalização, que seu chanceler chama depreciativamente de globalismo. Seria uma boa indicação. Como foi seu discurso de Davos.


Merval Pereira: O impasse como saída

É preciso que as ações parlamentares obedeçam a uma lógica que não seja a da troca de favores

No momento em que temos exemplos pelo mundo de impasses entre Executivo e Legislativo, como os casos dos Estados Unidos com o muro da discórdia na fronteira do México, ou da Inglaterra com o Brexit, é bom revisitar a palestra de Antonin Scalia, um dos mais conservadores e respeitados juízes da Corte Suprema dos Estados Unidos, morto há dois anos, sobre a importância da separação dos Poderes.

No Brasil também estamos às voltas com a disputa na definição dos presidentes da Câmara e do Senado, como sempre desejosos de que o Legislativo tenha à frente algum político que apoie as reformas que o Executivo pretende enviar ao Congresso, especialmente a da Previdência. Pois Scalia considerava que a força da democracia americana está justamente na contraposição do Legislativo e do Executivo, a política do “check and balances”, peso e contrapeso.

Scalia achava que quando havia, como agora, um shut down do governo devido a um impasse, os cidadãos deviam vibrar, pois era a democracia agindo. Nessa palestra no Congresso, Scalia contou que quando se reunia com estudantes de Direito, perguntava sempre: Qual a razão da América ser um país tão livre? O que existe em nossa Constituição que nos torna o que somos?

A resposta mais frequente, ele garantiu, será “liberdade de expressão” ou “liberdade de imprensa”. “E eu lhes digo: se vocês acham que a Carta de Direitos é o que nos diferencia, vocês estão malucos. Qualquer República de Bananas tem uma Carta de Direitos. Todo ditador tem”.

Ele citou, com ironia, a Carta de Direitos da antiga União Soviética, “que era até melhor que a nossa. Estava dito lá literalmente que qualquer um que for apanhado tentando restringir as liberdades individuais será processado por isso”. Mas eram apenas palavras no papel, ressaltou Scalia, porque a Constituição da União Soviética não evitava a centralização do poder em uma pessoa ou em um partido. “Eram garantias de papel”.

O verdadeiro segredo é a estrutura de nosso governo, afirmava. Nessa estrutura ele destacava, além do óbvio sistema judiciário independente, o sistema bicameral no Legislativo, “que poucos países no mundo têm. Inglaterra tem a Câmara dos Lordes, mas ela não tem poder substancial, só pode fazer com que a Câmara dos Comuns vote uma segunda vez. França e Itália têm um Senado, mas são honoríficos. Poucos países têm duas câmaras legislativas igualmente poderosas” ressaltou Scalia. Nos países parlamentaristas, ele definiu o Poder Executivo como “uma criatura do Legislativo”, dizendo que não tentam separar os Poderes. “Então não há discordâncias entre Executivo e Legislativo, como vocês têm com o presidente. Se houver discordância, eles simplesmente tiram o primeiro-ministro e colocam outro no lugar”.

Scalia passou a ironizar a postura dos europeus diante da separação de Poderes: “Os europeus olham para o nosso sistema e dizem: um projeto passa em uma Casa e não passa na outra. E mesmo que passe nas duas, o presidente tem poder de veto. Isso gera um impasse”.

Pois Scalia achava que os “pais fundadores” diriam que era isso mesmo que queriam, que esses Poderes entrassem em contradição. Ele classificou o gridlock (impasse), como o que atinge o governo dos Estados Unidos no momento, com a administração pública praticamente parada porque o Legislativo se recusa a dar verba para a construção do muro na fronteira do México, como a maior proteção das minorias. “No dia em que os americanos valorizarem o impasse, compreenderão por que nosso sistema de governo é tão bom”. Transpondo esses comentários para o nosso caso, temos um sistema bicameral que funciona como equilíbrio da democracia, com o Legislativo podendo barrar iniciativas do Executivo ou cada uma das Casas com poder de obstruir os trabalhos, como proteção das minorias.

Nem Senado nem Câmara são Poderes honoríficos, e cada um entre si pode interferir na decisão do outro. Só o que precisamos é que as ações parlamentares obedeçam a uma lógica que não seja de troca de favores, e até mesmo a oposição, diante da evidência de que elas são imprescindíveis, deveria participar dos debates sobre as reformas com propostas alternativas às do governo, e não atuar na base do quanto pior, melhor.


Merval Pereira: A sombra de Queiroz

Do ponto de vista prático, nada acontecerá ao presidente, protegido pela temporária imunidade. Mas o desgaste político não cessa

Quando o já eleito presidente Jair Bolsonaro admitiu, em dezembro passado, que o dinheiro depositado na conta de sua mulher, Michelle, por Fabrício Queiroz, seu ex-assessor, na ocasião servindo ao filho Flávio Bolsonaro, então deputado estadual pelo Rio, era o pagamento de uma dívida pessoal, os integrantes do Ministério Público estadual que investigavam as movimentações financeiras atípicas de Queiroz discutiram se deveriam consultar o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o foro privilegiado, já que Jair Bolsonaro era deputado federal à época dos fatos.

A turma do Ministério Público Federal do Rio achava que era o melhor caminho, para resguardar a investigação e evitar uma anulação mais adiante. O MP estadual foi contra, porque Jair Bolsonaro não era investigado.

Agora, seu filho Flávio fez o que nem o MP estadual quis, correndo o risco de levar ao Supremo uma investigação sobre o presidente da República. Isso porque se a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, assumisse a investigação, poderia recomeçar todo trabalho, incluindo sobre o dinheiro depositado na conta da mulher do presidente.

Só não haverá problema maior porque o ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso, já deu a entender, como era esperado, que manterá o processo na primeira instância.

Tanto ele quanto o ministro Luiz Fux, que suspendeu temporariamente o processo alegando que ele poderia ser anulado caso Marco Aurélio concordasse com algum ponto da reclamação, votaram no Supremo pela forma mais rigorosa de restrição.

Essa decisão, tomada devido a uma proposta do ministro Luís Roberto Barroso, teve 7 votos favoráveis integralmente, contra 4 dos ministros que, favoráveis à restrição do foro, queriam que a prerrogativa valesse inclusive para crimes comuns, mesmo que não tivessem qualquer relação com o mandato.

Do grupo derrotado, Dias Toffoli e Gilmar Mendes queriam estender a redução do foro a todas as autoridades que têm esse direito. Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski concordaram em aplicar a nova regra apenas a deputados e senadores.

Seria improvável, portanto, que houvesse uma manifestação do Supremo em apoio ao pleito do filho do presidente, e muitos juristas consideram que Fux foi exageradamente cauteloso, pois a própria reclamação era indevida diante da decisão do plenário do Supremo.

O presidente Jair Bolsonaro deu uma explicação sobre o dinheiro na conta de sua mulher, alegando que se referia a um empréstimo que fizera a Queiroz. E esclareceu que, na verdade, não foram apenas R$ 24 mil depositados na conta de sua mulher, mas R$ 40 mil pagos em dez cheques de R$ 4 mil.

Tanto na ocasião da denúncia, quanto agora, Bolsonaro tratou de explicar o seu caso, mas não defendeu nem o filho Flávio, nem o assessor Queiroz. Ontem, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, disse que o presidente considera que esse assunto não lhe diz respeito.

A explicação do presidente para o seu caso parece plausível, inclusive porque terá que corrigir a declaração de imposto de renda para incluir o empréstimo. Mas Flávio Bolsonaro continua com atitudes que sugerem que não quer esclarecer os fatos. Ele disse, por exemplo, que Queiroz havia lhe dado “explicações razoáveis”, mas não revelou quais seriam elas. O próprio Queiroz deu uma entrevista ao SBT em que disse que seu dinheiro provinha de uma atividade paralela à assessoria parlamentar: vendedor de caros usados.

Mas não mostrou recibos nem explicou por que todos os assessores de Flávio Bolsonaro depositavam todo início do mês, quando recebiam salário, uma quantia em sua conta. Só se todos compraram carros usados com ele.

Queiroz prometeu apresentar as provas em seus depoimentos no Ministério Público, mas deixou de comparecer a duas audiências, e acabou se internando no hospital Albert Einstein para uma operação de retirada de um tumor maligno. Agora, Flávio Bolsonaro tenta parar as investigações e anular as provas obtidas até agora.

Do ponto de vista prático, nada acontecerá ao presidente Bolsonaro enquanto estiver na presidência da República, protegido pela temporária imunidade. Mas, a cada trapalhada do filho ou do assessor, o desgaste político não cessa.


Merval Pereira: Quem quer foro?

Jair Bolsonaro já sugeriu, em vídeo, ao lado do filho Flávio, que só quer foro privilegiado quem tem culpa no cartório

O grave nesse caso do senador eleito Flávio Bolsonaro é que atinge o combate à corrupção, base da candidatura vitoriosa de seu pai, o presidente Jair Bolsonaro. Além de estar envolvido de maneira direta na movimentação atípica do motorista Fabrício Queiroz, pois sua mulher recebeu depósitos dele em sua conta, Jair Bolsonaro vê um de seus filhos tentando escapar de uma investigação criminal que pode desvelar a raiz da corrupção política brasileira.

Há entendimento generalizado, que poderia ou não ser confirmado nessa investigação, de que parlamentares de maneira geral, seja em que nível for, com raras e honrosas exceções, financiam suas campanhas e suas vidas pessoais ficando com uma parte do salário de seus funcionários. Ou às vezes nomeando funcionários-fantasmas.

Cada deputado estadual tem direito a nomear até 15 assessores, e a investigação do Coaf analisa movimentações atípicas de assessores de diversos deputados na Assembléia Legislativa do Rio, entre eles Flavio.

Utilizando-se de uma prerrogativa parlamentar presumida, já que o foro privilegiado foi limitado pelo próprio Supremo a atos cometidos durante o mandato parlamentar e relativos a ele, Flavio Bolsonaro busca impedir a investigação, abrindo um flanco na atuação do clã Bolsonaro. Tanto que nenhum dos irmãos, nem mesmo o pai presidente, saiu em defesa dele.

A decisão do ministro Luis Fux de mandar suspender o processo enquanto o relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Marco Aurélio Mello, não decide, não poderia ser outra. Não havia atitude diferente a tomar, explica Fux, pois caso o relator venha a concordar com a tese de que as provas são inválidas, por exemplo, considerará a reclamação procedente, e as investigações feitas nesse intervalo seriam anuladas.

A atitude do filho de Bolsonaro de tentar impedir que a investigação prossiga desmente que ele seria o maior interessado em esclarecer todo o episódio, como alardeava. Desmente também declarações de seu pai, o hoje presidente Jair Bolsonaro, contra o foro privilegiado, uma delas, em vídeo, feita ao lado do próprio Flávio, que não abriu a boca, mas concordava com a cabeça.

Bolsonaro sugere nessa fala que só quer foro privilegiado quem tem culpa no cartório. Além disso, a atitude demonstra que seu filho Flavio quer proteger Queiroz, pois todos os envolvidos iriam para o STF por conexão. Há ainda em torno do caso diversas questões não esclarecidas, a última delas relativa à internação do motorista no Hospital Albert Einstein em São Paulo para operar um câncer. Quem custeou seu tratamento, já que ele não tem, em tese, dinheiro para isso?

O concreto é que Flavio Bolsonaro usou o foro privilegiado de senador, que ganhou ao ser diplomado em 18 de dezembro, para barrar as investigações, alegando que o Ministério Público do Rio utilizou-se de subterfúgios para evitar o controle do STF das investigações.

Ao conseguir dados da movimentação bancária de Flavio através do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o conhecido COAF, hoje nas mãos de Moro, mas na ocasião ligado ao Ministério da Fazenda, o Ministério Público do Rio teve acesso a dados referentes ao período em que ele já era senador, o que invalidaria as provas decorrentes.

Na decisão que suspendeu a investigação sobre Fabrício Queiroz, o ministro Luiz Fux considerou que somente o STF poderá avaliar em que medida o caso pode envolver Flávio Bolsonaro, que será empossado senador em fevereiro.

Os dois ministros do Supremo, Fux e Marco Aurélio, votaram da mesma maneira no julgamento do foro privilegiado, a favor da restrição mais ampla, o que indica que o relator do caso não vai acatar o pleito da defesa de Flavio. Mas o ministro Fux não pode tomar uma decisão baseado numa presunção.

O intrigante é que, ao levar o caso para o Supremo, Flavio Bolsonaro corre o risco de incluir seu pai na investigação, pois ele está envolvido diretamente. O presidente já deu uma explicação plausível, a de que a soma depositada na conta de sua mulher se trata de pagamento de uma dívida de Queiroz com ele. Como o caso aconteceu antes de Bolsonaro ser eleito presidente, não pode resultar em processo contra ele enquanto estiver no cargo. Mas investigações podem ser feitas.

Correção
A capital de Illinois é Springfield, não Chicago, como escrevi ontem. Chicago é a cidade mais populosa do Estado.


Merval Pereira: O ministro que virou suco

As milícias merecerão atenção especial no projeto de segurança que a equipe de Moro está preparando

“Toda experiência da humanidade mostra, sem nenhuma falha que negue essa evidência, que quanto mais armada a população, menor a violência.” A certeza histórica demonstrada na frase do ministro-chefe do Gabinete Civil Onyx Lorenzoni não bate com a realidade, embora não seja errado dizer que há estudos e estatísticas que apoiam a flexibilização do acesso às armas de fogo.

Como há também muitas outras pesquisas e constatações para o contrário. Mas Lorenzoni conseguiu superar essa empáfia com uma comparação mais excêntrica, a de armas com liquidificadores domésticos. Tentou igualar-se ao General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que havia feito outra comparação infeliz, a de armas com os carros, que podem matar também. A comparação do General é menos ruim porque carros podem servir de arma, mas liquidificadores não. O ministro Chefe do Gabinete Civil tentou ser coloquial e virou suco.

Atualmente, há pesquisas que contestam a fala do ministro-chefe da Casa Civil, tanto no Brasil quanto em outros países. Segundo pesquisa do Ipea de 2013, sobre a relação da quantidade de armas de fogo no Brasil com as taxas de homicídios, as maiores quedas nas taxas de homicídio ocorreram nas regiões onde houve mais desarmamento. Um levantamento de 2017 feito pela Stanford Law School demonstra que os estados em que os cidadãos têm maior acesso a armas de fogo nos Estados Unidos têm também maiores índices de roubos e assaltos.

Como disse na entrevista à Globonews o ministro da Justiça, Sérgio Moro, a questão é controversa e, para ele, a prova empírica de que o controle maior do acesso do cidadão às armas não leva a uma diminuição dos crimes está em que o Brasil bate recordes de homicídios desde 2016, com cerca de 30 por 100 mil habitantes.

Os defensores da flexibilização, por outro lado, apontam estatísticas que mostram que os países mais armados do mundo (armas por 100 habitantes) têm índices de homicídios menores por 100 mil habitantes. Os Estados Unidos vêm à frente com 90 armas e 4,88 homicídios.

Em seguida, tirando os países escandinavos como Finlândia e Suécia, vêm França e Canadá. O Brasil tem apenas 9 armas por 100 habitantes, mas o nível de 26,4 homicídios por 100 mil habitantes.

Illinois, com fortes restrições à aquisição de armas, tem a capital Chicago com um dos maiores índices de violência do país, enquanto o estado da Virginia, onde não somente a posse de arma é liberada, e também o porte, de maneira generalizada, exibe números muito baixos.

Com relação ao sistema penitenciário, o Brasil, que em números absolutos tem a quarta população carcerária do mundo, perdendo apenas para China, Estados Unidos e Rússia, tem também a 5ª maior população do mundo, atrás apenas de China, Índia, EUA e Indonésia, o que torna relevante os índices proporcionais, e não absolutos.

Pelas estatísticas sobre o índice de encarcerados por 100 mil habitantes, dizem os defensores da liberalização da posse de armas, a posição do Brasil cai para 36º lugar, de acordo com o Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS,na sigla em inglês).

O que importaria, na verdade, seria um sistema de controle das armas em circulação, especialmente as o Exército que, volta e meia, surgem nos crimes mais violentos cometidos por grupos armados e milícias. A investigação criminal também é falha, com uma percentagem ínfima dos crimes sendo investigados.

O ministro Sérgio Moro anunciou na mesma entrevista da Globonews que está criando uma secretaria apenas para tratar do sistema prisional como um todo, desde o controle disciplinar, impedindo que presos usem celulares à vontade e comandem seus grupos criminosos à distância, até o combate direto a grupos como o PCC e o Comando Vermelho, que disputam a liderança do crime organizado no país.

Uma das possibilidades que o ministro Moro estuda é considerar as ações de grupos crimimosos como terrorismo. Diante das explosões de pontes e torres de transmissão ocorridas no Ceará, essa possibilidade aumentou.

Entre as falhas graves de nosso sistema prisional, que o torna uma fábrica de bandidos, é o desperdício de verba pública específica que acaba não sendo usada, por questões políticas – ninguém quer um presídio perto de sua casa, embora queira maior segurança - ou ineficiência administrativa.

Também as milícias merecerão atenção especial no projeto de segurança que a equipe do ministério da Justiça está preparando. É possível que grupos de crimimosos como o PCC e o Comando Vermelho, e também milícias sejam citados nominalmente na legislação, assim como aconteceu na Itália, quando a Operação Mãos Limpas citou especificamente a Camorra como um de seus alvos.


Merval Pereira: Armas da discórdia

Promessa cumprida não quer dizer que a dívida maior, de um plano nacional de segurança, tenha sido apresentada

O anúncio do decreto ampliando o acesso dos cidadãos às armas de fogo é daqueles fadados a provocar polêmica, embora não possa ser atribuído a uma decisão arbitrária do presidente Jair Bolsonaro, que passou a campanha eleitoral defendendo o que ontem cumpriu.

Ele foi eleito por muitos devido a essas promessas, e muitos outros que votaram nele o fizeram apesar disso. Pesquisas mostram que a maioria da população hoje seria contra, mas o referendo realizado em 2005, que deu vitória aos que não queriam a proibição da venda de armas de fogo, é a base legal para o decreto, que só veio regulamentar a decisão referendada pela maioria naquela ocasião.

O resultado foi surpreendente à época, assim como a campanha presidencial de Bolsonaro foi surpreendente agora, com receptividade a promessas como a flexibilização da posse de armas. Mas essa promessa cumprida não quer dizer que a promessa maior, de um plano de segurança que abranja o território nacional como um todo para combater o crime organizado, tenha sido apresentada.

A liberação de armas de fogo é uma resposta a um nicho eleitoral de Bolsonaro, ligado à classe média urbana e às que vivem em áreas rurais desprotegidas, além do cidadão comum que considera que estará mais protegido agora.

Há estudos que mostram que as armas de fogo são as maiores responsáveis por mortes, e a legislação dos Estados Unidos, extremamente flexível quanto à compra de armas, mostra isso, de acordo com Robert Muggah, diretor do Instituto Igarapé, ONG dedicada ao estudo da violência.

As leis domésticas que regulam as armas fazem a diferença quando reduzem a possibilidade de compra por cidadãos que vão fazê-las parar nas mãos de terceiros. Um estudo de 2007 mostra que esse tipo de compra, permitido por lei em muitos estados, é mais comum naqueles que têm legislação mais branda, como Arizona, Flórida, Nevada e Texas.

Ao contrário, na Califórnia, cuja regulamentação limita o porte de arma em público e requer checagem para todas as transferências de armas de fogo, a ocorrência de crimes ligados a armas de fogo é menor.

Bolsonaro costuma dar o exemplo dos Estados Unidos que, muito liberais com relação à venda e porte de armas, têm índices de criminalidade baixos se comparados com o Brasil. No entanto, os números são enganosos, pois os EUA são um país violento, com a maior população carcerária do mundo.

E os assassinatos em massa que vemos frequentemente certamente são decorrentes dessa liberalização. Em Nova York, por exemplo, onde a legislação local não permite portar armas em público, o índice de criminalidade tem sido reduzido.

O baixo índice de criminalidade é fruto de uma política nacional de repressão severa, o que não indica que o país não seja violento. Os índices de criminalidade nos EUA são maiores que os dos países ocidentais mais avançados como na Europa e no Japão.

Na América Latina, estão os 18 dos 20 países com maiores índices de homicídios, e 43 das 50 cidades mais violentas do mundo. Por volta de 75% de todos os homicídios na região são relacionados a armas de fogo, enquanto o índice mundial é de 40%.

Por outro lado, um trabalho publicado no Harvard Law Journal and Public Policy em 2007 defende a tese de que países que têm mais armas tendem a ter menos crimes.

Segundo ele, ao longo dos últimos 20 anos, as vendas de armas dispararam nos EUA, mas os homicídios relacionados a armas de fogo caíram 39% durante esse mesmo período. Mais ainda: “outros crimes relacionados a armas de fogo” despencaram 69%.

O trabalho é assinado por Don B. Kates and Gary Mauser, o primeiro um dos mais proeminentes criminologistas americanos, defensor da Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos que baseia o “direito fundamental à autodefesa e o direito individual de possuir uma arma para tal fim”.

Já Mauser conduziu pesquisas sobre a efetividade de políticas de controle de armas. O estudo dos dois, que serve como base em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, para os defensores da liberação da posse de armas, foi contestado por David Hemenway, diretor do centro de pesquisas de controle de ferimentos de Harvard, que o acusa de ter ignorado a maioria da literatura científica e fazer “muitas incorretas e ilógicas ilações”.


Merval Pereira: O labirinto da esquerda

Há cinco anos, dos 12 países da América do Sul, só três eram governados por partidos de centro ou à direita

Dois fatos políticos registrados na América do Sul nos últimos dias mostram com clareza como o ambiente político mudou na região, confirmando uma guinada à direita que vem se processando desde 2015. E também como a esquerda brasileira está atônita diante dessas mudanças.

Dez anos antes, a maioria dos países da América do Sul era governada pela esquerda. À posse contestada pela ampla maioria dos países ocidentais de Nicolas Maduro, compareceram apenas quatro presidentes da América Latina: da Bolívia, Evo Morales; da Nicarágua, Daniel Ortega; de Cuba, Miguel Díaz-Canel; e de El Salvador, Salvador Sánchez Cerén.

Isolado na região, Maduro pode contar com o PT, que enviou sua presidente, Gleisi Hoffman. Segundo ela, a presença era um aval de que as eleições venezuelanas foram legítimas. A decisão de enviar a presidente do partido a Caracas para prestigiar a posse de Maduro mostra que o PT não aprendeu nada com a derrota de 2018, e está completamente fora da realidade.

O partido respeita a eleição na Venezuela, mas diz que a eleição no Brasil não deveria ser validada, e nem participou da posse do Bolsonaro, porque não o reconhece como presidente eleito legitimamente. Considera, depois de ter participado de todos os atos da campanha presidencial, que a eleição sem Lula é um golpe.

Porém, dois adversários de Maduro foram presos sem julgamento durante a campanha, e a eleição foi considerada fraudulenta por diversos organismos internacionais que a acompanharam.

A fuga e a captura do italiano Cesare Battisti na Bolívia por forças policiais da Interpol e da Itália explicitaram falhas da Polícia Federal brasileira, que não acompanhou o terrorista depois que o então presidente Temer determinou a extradição, e não conseguiram encontrá-lo.

Mas o fato concreto é que ele foi expulso da Bolívia e já está preso em Roma. Caso passasse pelo Brasil antes de ir para a Itália, estaria valendo a extradição, e a pena dele seria de 30 anos no máximo; saindo direto da Bolívia, pegará prisão perpétua por quatro assassinatos, conforme condenação da Justiça italiana.

O presidente Evo Morales está usando uma nova tática, não cedeu a pressões ideológicas e expulsou Battisti, claramente para agradar o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que estava muito empenhado na extradição do italiano.

Já os partidos de esquerda brasileiros lamentaram a prisão do terrorista, que foi comemorada na Itália por partidos políticos de vários espectros políticos, da direita à esquerda. O PSOL considerou uma “covardia” de Morales ter expulsado Battisti. O ex-ministro da Justiça José Eduardo Cardoso disse que a extradição pelo Brasil, no governo Lula, deveria prevalecer.

Com a queda do bolivarianismo em vários países da América do Sul, o ambiente político mudou muito, e Morales, que depende da compra do seu gás pelo Brasil, precisa mudar também, para não ficar isolado.

A emergência de uma direita politicamente forte no mundo, culminando em nossa região com a eleição de Jair Bolsonaro, leva a esquerda a perder força na América do Sul, com a maioria dos países sendo governados por partidos de direita, revertendo uma situação geopolítica. Há cinco anos, dos 12 países da região, (Argentina, Bolívia Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), só três eram governados por partidos de centro ou à direita: o Chile, de Sebastián Piñera, o Paraguai, de Federico Franco, e a Colômbia, de Juan Manuel Santos.

Dos governantes de esquerda de então, vários estão presos ou sendo processados por corrupção, como Rafael Correa, do Equador, Cristina Kirchner, da Argentina, Lula, do Brasil, Maduro da Venezuela, entre outros. E o escândalo da Odebrecht foi exportado pelo governo Lula para diversos países da América Latina: Argentina, Brasil, Colômbia, República Dominicana, Equador, Guatemala, México, Panamá, Peru, Venezuela.

Quando os novos presidentes da Colômbia, Ivan Duque, e do Paraguai, Mário Abdo Benitez, tomaram posse em agosto do ano passado, e Temer governava o Brasil, mais da metade dos países da região estava sendo governada por políticos de centro ou à direita. Desde 2015, aconteceram vitórias na Argentina (Mauricio Macri), Peru (Pedro Pablo Kuczynski, que caiu por corrupção e foi substituído por Martín Vizcarra, da mesma tendência política), Chile (Sebastián Piñera), Paraguai (Mario Abdo Benítez). Isto é, dos dez países politicamente relevantes na América do Sul, apenas Maduro e Morales são da esquerda.


Merval Pereira: Cenários para Bolsonaro

Um ambiente de negócios previsível e seguro estimula a concorrência e atrai capital externo de qualidade

Com citações da análise do historiador Jorge Caldeira e de um estudo do Ipea, além de sua experiência no campo da gestão pública, o economista Claudio Porto, fundador da consultoria Macroplan, especializada em planejamento e gestão, montou três cenários para o governo de Jair Bolsonaro que ora se inicia.

Para tanto, considerou o jogo de interesses de três grandes grupos de atores no país: os agentes econômicos, que demandam equilíbrio fiscal, crescimento sustentável e competitividade; as corporações, que reivindicam a manutenção de direitos especiais, privilégios e proteções; e a população, que hoje exige segurança, integridade, políticas e serviços públicos de qualidade e oportunidades de trabalho.

Porto alerta que não é possível superar o enorme passivo de problemas e desafios estruturais do Brasil em apenas quatro anos. Lembra que, como destaca o historiador Jorge Caldeira, na década de 1970, Brasil e China adotaram estratégias opostas de crescimento econômico.

O Brasil “mirou a economia interna e (...) previu construir, ao mesmo tempo, tudo o que faltava para o país virar uma grande potência (...) apostou no (mercado interno) e no Estado como o centro da economia (...) Já a China, país milenarmente isolado, anunciou que se atiraria aos negócios globais”. A história é conhecida: em dezembro passado, a China celebrou os 40 anos das reformas econômicas que transformaram o país na segunda maior economia do planeta, com uma extraordinária redução de pobreza.

O Brasil, desde os anos de 1980, cresce menos que a média mundial (Brasil 2,4% x mundo 2,9%). A China criou um setor privado exuberante, que aproveitou as oportunidades da globalização. Citando Caldeira, Claudio Porto ressalta que as empresas globais chinesas compram empresas brasileiras empenca.

Agora, Porto vê o otimismo brasileiro ressurgindo, prenunciando que uma mudança disruptiva pode estar em curso no país. Os gargalos fiscais e financeiros destruíram as margens de manobra, e será necessário, segundo sua análise, ao menos o triplo deste tempo para construir uma saída para o crescimento sustentável.

Por isso, a Macroplan projeta três cenários para o país para o horizonte 20192030: (1) globalização econômica inclusiva; (2) crescimento com desigualdade; ou (3) pacto da mediocridade.

Este jogo leva a um trilema que envolve um conflito distributivo: o país terá de fazer uma escolha entre as três opções, das quais apenas duas podem ser conciliadas simultaneamente, pois, na visão de Porto, não há margem de manobra para acomodações no curto e médio prazos.

O melhor cenário antecipa uma mudança radical do Brasil: uma aposta firme e continuada na globalização econômica inclusiva. Quarenta anos depois da China, as principais forças políticas, econômicas e sociais brasileiras escolhem apostar na inserção global de nossa economia e conjugar o atendimento das demandas dos agentes econômicos competitivos comas da população, em detrimento das corporações.

Nesse ambiente, o país empreende sucessivos ciclos de reformas macro e microeconômicas com uma abertura progressiva e expressiva da economia. Forte ajuste fiscal estrutural, redução e focalização do gasto público, desregulamentação, desestatização e parcerias público-privadas.

Um ambiente de negócios previsível e seguro estimula a concorrência e atrai capital externo de qualidade. Estado compacto, com função empresarial reduzida e mais intenso como regulador e provedor de segurança nacional e jurídica. Além da segurança pública, a agenda social privilegia educação básica, proteção social aos mais vulneráveis e política trabalhista que estimula o emprego.

Com essas medidas, a economia acelera o crescimento. Mas são previsíveis fortes resistências e pressões contrárias, especialmente nos anos iniciais. O rendimento médio de servidores públicos e aposentados sofre perdas significativas. E vários segmentos da indústria, comércio e serviços desaparecem ou são absorvidos por cadeias globais.

Do ponto de vista econômico, este cenário se aproxima do “cenário transformador” de Cavalcanti & Souza Júnior, publicado na Nota Técnica 41 do Ipea (4º trimestre de 2018), que estima taxas de crescimento médias do PIB e do PIB per capita de 4% e 3,4% ao ano, respectivamente. (Amanhã, o perigo da mediocridade)


Merval Pereira: Crianças e política

A maneira como você cria seus filhos é indicativa de sua tendência política. Essa foi a conclusão de dois grupos de pesquisadores que estudam o crescimento do populismo de direita no mundo, reunidos para analisar os resultados de pesquisas nos Estados Unidos, Europa e América Latina. Tudo a ver com a discussão atual entre nós sobre escola sem partido e a influência de esquerda nos currículos escolares. O estudo foi publicado no site de notícias americano Vox, identificado como de tendência liberal, o que nos Estados Unidos quer dizer de esquerda.

Coordenados por Marc J. Hetherington professor de ciência política na Universidade de Carolina do Norte Chapel Hill; Jonathan Weiler, professor de estudos globais na mesma Universidade e Amy Erica Smith professora-adjunta de ciência política na Universidade do Estado de Iowa, que lançou um livro sobre a influência da religião nas eleições no Brasil, chegaram à mesma conclusão: as qualidades que cidadãos consideram mais importantes nas crianças explicam por que eles votaram ou não nos populistas de direita.

Aqueles que favorecem características tradicionais como respeito aos mais velhos, obediência e boas maneiras os apoiam. Os que são a favor da independência, auto-confiança e curiosidade os rejeitam. Porque essas preferências ajudam a revelar a maneira que esses cidadãos vêem o mundo, se o consideram um lugar seguro para explorar, ou perigoso.

Ao longo dos últimos anos os pesquisadores ouviram milhares de pessoas na idade de votar, perguntando sobre um amplo espectro de assuntos ligados à política. Entre esses, havia perguntas que, aparentemente, não tinham nada com política, mas com os cuidados que se deve ter quando criamos nossas crianças.

As perguntas foram feitas da mesma maneira em todos os países, e quando questionados a definir as características que valorizam, apenas 10% dos brasileiros que preferem a independência, auto-confiança e curiosidade votaram por Bolsonaro no primeiro turno.

Entre os brasileiros que priorizam respeito, obediência e boas-maneiras, cerca de quatro vezes mais escolheram Bolsonaro. Pela América Latina, as pessoas que valorizam esses comportamentos votaram em candidatos da direita, como Porfirio Lobo em Honduras e Otto Perez Molina na Guatemala.

Na Alemanha, na França, na Inglaterra, os pesquisadores encontraram o mesmo padrão. Aqueles que valorizam as qualidades tradicionais nas crianças tendem mais a votar em candidatos de direita numa proporção de 30 pontos percentuais.

A diferença é similar entre os que querem permanecer na União Européia e os a favor do Brexit na Inglaterra. Nos Estados Unidos a diferença é ainda maior. Cerca de 50 pontos percentuais quando a escolha foi entre Donald Trump e Hillary Clinton.

A visão dos que valorizam as qualidades tradicionais é de que o mundo é um lugar perigoso e, portanto, é melhor manter as crianças, e por extensão a sociedade, em segurança. Para eles, as rápidas mudanças políticas e sociais que ocorrem em seu redor, inclusive o aumento da diversidade demográfica e de expressões sexuais são uma ameaça.

Eles anseiam por uma época mais simples, talvez imaginando o passado, quando a vida era mais segura. A resposta é tentar manter a ordem em seus sistemas políticos, assim como pais que querem manter a ordem em casa valorizando comportamentos tradicionais. Esses tendem a ser menos preocupados sobre cláusulas pétreas da democracia, como liberdade de expressão e liberdade de imprensa, que podem produzir desentendimentos.

São mais abertos a líderes poderosos que podem não respeitar o Legislativo ou o Judiciário, mas prometem uma sociedade mais ordeira. Não é à toa, dizem os pesquisadores, que líderes populistas de direita usam estratégias que apelam a uma visão de ordem e previsibilidade.

Menosprezam temas como mulheres, minorias étnicas e raciais, e a comunidade LGBT. Os movimentos sociais que podem colocar em risco o status quo são vistos como casos de polícia, e a imigração como potencialmente perigosa.


Merval Pereira: Identidade nacional

Governo reflete uma visão anacrônica do mundo que não as ideologias, mas a tecnologia levou a não ter fronteiras

No momento em que a construção de um muro na fronteira do México tornou-se responsável por uma crise institucional que se agrava nos Estados Unidos de Trump, a retirada do Brasil do Pacto Global para a Migração, da Organização das Nações Unidas (ONU), é mais um passo simbólico do governo Bolsonaro no reforço da ideia de nação, em contraponto ao globalismo que critica, seguindo os passos de seu colega dos Estados Unidos.

As leis sobre migração e refugiados continuam valendo, pelo menos por enquanto, e são consideradas das mais avançadas existentes. Os refugiados venezuelanos que o digam. A ideia de que “não é qualquer um que entra em nossa casa” parece razoável, mas a insistência em romper os compromissos com organismos internacionais pode nos levar a um isolamento que não afeta os Estados Unidos por ser a maior potência global, econômica e militarmente.

Não é estapafúrdia a definição de que “quem porventura vier para cá deverá estar sujeito às nossas leis, regras e costumes, bem como deverá cantar nosso hino e respeitar nossa cultura”, como disse o presidente Bolsonaro no Twitter.

Mas reflete uma visão anacrônica do mundo que não as ideologias, mas a tecnologia, levou a não ter fronteiras, tudo está “nas nuvens”, sem passar pelas fronteiras físicas, que se transformaram em proteções do território, não da identidade nacional, culturas e hábitos inevitavelmente influenciados por movimentos globais.

Essa discussão sobre identidade nacional traz de volta as teses do cientista político Samuel Huntington, falecido há dez anos, para quem a identidade da América anglo-protestante estava sendo ameaçada pela onda de imigrantes hispânicos, que, ao invés de assimilar a cultura americana, estariam criando uma sociedade bilíngue, multicultural, erodindo e colocando em perigo, segundo ele, a identidade nacional.

Para o cientista político, a imigração mexicana está baseada na “reconquista demográfica” das áreas que a América tomou à força do México entre 1830 e 1840. Ele via o multiculturalismo como ameaça à identidade americana, e definia com uma frase cruel o que entendia por identidade americana: “You can’t dream the american dream in spanish”. (“Não é possível sonhar o sonho americano em espanhol”, em tradução livre).

Samuel Huntington considerava que as corporações globais são responsáveis por esta falta de identidade nacional, já que seus responsáveis têm que se adaptar a conceitos e modelos globalizados para progredirem na carreira. O chanceler brasileiro Ernesto Araújo assume esse pensamento, que Donald Trump recuperou na política externa dos Estados Unidos.

Em pronunciamentos e escritos no Facebook, ele se coloca ao lado de uma visão de Ocidente “baseada na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais”. Seu desejo confesso é “ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista”, que vê como um instrumento do “marxismo cultural” que promove ao mesmo tempo “a diluição do gênero e a diluição do sentimento nacional: querem um mundo de pessoas ‘de gênero fluido’ e cosmopolitas sem pátria, negando o fato biológico do nascimento de cada pessoa em determinado gênero e em determinada comunidade histórica”.

Araújo também acha que hoje “é muito mais fácil encontrar um ocidentalista convicto no Kansas ou em Idaho do que em Paris ou Berlim”. A questão da imigração é tratada pelo novo chanceler como uma causa infiltrada pela esquerda, destruindo, com a defesa da imigração ilimitada, as sociedades europeias e norte-americanas.

O presidente Bolsonaro comprou essa tese, e afirma em seu Twitter que o Brasil não se sujeitará a “pactos feitos por terceiros”, numa referência à ONU e, por extensão, aos organismos internacionais.

Seria mais produtivo se a política externa desse mais atenção ao nosso soft power, com o apoio à divulgação de nossos ativos culturais, do que à confrontação militar ou econômica, seguindo os Estados Unidos numa tarefa impossível para nós.

A mudança da embaixada brasileira para Jerusalém e uma base militar dos Estados Unidos em nosso território, projetos aparentemente descartados ou adiados, trariam para o país disputas geopolíticas que não nos dizem respeito diretamente, seja no Oriente Médio, ou no confronto dos Estados Unidos com a Rússia na América do Sul.


Merval Pereira: Bons e maus sinais

Tudo indica que o deputado Rodrigo Maia será reeleito presidente da Câmara, uma boa notícia para a reforma da Previdência, pois ele sabe a importância dela e vai tentar ajudar na tramitação. A notícia ruim é que Renan Calheiros aparentemente tem chance de se reeleger à presidência da Senado se a eleição for fechada, em vez de aberta, como está decidido.

A reforma da Previdência apresentada pelo antigo governo Temer provavelmente vai ser aproveitada para que se ganhe tempo na tramitação, mas as modificações que serão feitas precisarão ser aprovadas no Senado, a Casa revisora.

O senador Renan Calheiros está mais ligado à oposição, especialmente ao PT, e é provável que atue para impedir a reforma, o que será prejudicial não apenas ao governo, mas ao país.

Políticos de partidos como PT, PDT e PP estão se armando contra a reforma da Previdência, como também contra as propostas do ministro Sérgio Moro para endurecer o combate à corrupção. Boa parte dos que apoiam Rodrigo Maia tende a ficar contra as medidas.

O projeto de reforma da Previdência está amadurecendo, e tudo indica que será enviado no início de fevereiro ao Congresso juntando o aumento na idade mínima com a criação do novo sistema de capitalização, destinado a quem estiver entrando no mercado de trabalho.

Um erro político
O caso da promoção do filho do vice-presidente Hamilton Mourão a assessor direto do novo presidente do Banco do Brasil, o economista Rubem Novaes, é daqueles que devem ser colocados na conta do ônus do poder. Funcionário há 19 anos do banco, onde entrou por concurso, Antonio Rossel Mourão trabalhou no grupo de transição do governo, onde conheceram-se.

Segundo Novaes, “o Antonio me impressionou pela inteligência, competência e conhecimento do Banco”. Para ele, a pergunta que deve ser feita é “por que não tinha cargos ainda mais altos entre os executivos do Banco”.

O presidente do Banco do Brasil lembra que tem três cargos de livre provimento em sua assessoria “para indicar pessoas de minha confiança e não consigo entender a estranheza da imprensa sobre o assunto, já que o critério de mérito foi rigorosamente atendido”.

Além do fato de que Antonio Rossell Mourão foi promovido ganhando três vezes o salário que tinha, não há nada de tecnicamente errado na sua ascensão, embora a insinuação de que foi prejudicado na carreira nas gestões petistas por ser filho de General, como o próprio vice-presidente reforçou ao dizer que, naquele período, competência e mérito não eram valorizados, não seja justificativa para compensações.

Nem mesmo a indicação pode ser classificada como nepotismo, pois segundo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), ele só se caracterizaria se o filho do vice tivesse sido nomeado pelo próprio, para cargo na mesma instituição pública. Foi o caso, por exemplo, do filho do prefeito do Rio Marcelo Crivella, impedido de assessorar o pai.

Embora o governo seja seu sócio majoritário, o Banco do Brasil é uma empresa de economia mista, tem ações na Bolsa de Valores, e pessoa jurídica própria, sem conexão com a União. A questão do ônus do poder é que continua de pé.

Mesmo que tenha competência para tal função, o critério de meritocracia inspirará dúvidas. Só o tempo dirá. Não seria justo que Antonio Mourão fosse prejudicado por ser filho de quem é, mas é evidente que o anúncio da nomeação foi negativo para o governo, dando margem a todo tipo de especulação.

Um erro político, em suma, não um pecado mortal. Todo governo, de qualquer tendência política, sente-se incomodado com o acompanhamento implacável da imprensa, e seus membros consideram-se atingidos por críticas e denúncias.

A relação entre a imprensa e os governos foi conturbada pelos novos meios de comunicação de massa, inicialmente pela possibilidade de seus apoiadores usarem esses meios para pressionar jornalistas críticos. Sem falar nas fake news.

Mais recentemente, com a ação direta do presidente Donald Trump, que resolveu enfrentar a imprensa através do twitter, e utilizar seus poderes para cercear o trabalho de quem não gosta. O presidente Bolsonaro segue o mesmo caminho.

Em vez de acusar a imprensa profissional de distorcer fatos com má intenção, seria melhor que desse entrevistas com possibilidades de contraponto, e não apenas através do twitter ou a quem está disposto a ouvi-lo sem contestação.

Sempre que houver indícios de distorção maliciosa, que se processe o (ir)responsável.


Merval Pereira: O papel da imprensa

No sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende muito da informação

É interessante notar que a importância da imprensa para a democracia vem sendo destacada nos primeiros dias do novo governo Bolsonaro por ministros e autoridades militares, que demonstram publicamente compreender melhor o papel dos meios de comunicação do que o candidato vencedor durante sua campanha vitoriosa.

O próprio agora presidente Bolsonaro vem reajustando seu discurso, e ontem admitiu que a imprensa livre é fundamental para a democracia. Mas continua misturando verba publicitária com isenção jornalística. Em seu discurso de posse, o novo ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi objetivo: “A presença da mídia nos importa e nos conforta. Mais do que reproduzir notícia, ela nos avisa, nos cobra quando é necessário e sempre ajuda a dar transparência a nossas atividades.”

O ministro Santos Cruz, da Secretaria de Governo, também defendeu o papel da imprensa no combate à corrupção: “A maneira mais eficaz de se combater a corrupção, além das medidas de gestão, além do uso da tecnologia no controle dos gastos públicos, é a divulgação, é a publicidade. Tem que divulgar tudo o máximo que puder. Tem que estar aberto para a imprensa, tem que fornecer todos os dados possíveis.”

O ministro disse ainda que o governo está exposto a todo tipo de avaliação e informações que deveriam ser divulgadas. “Nós vamos estar completamente expostos. Eu não tenho medo dessa exposição, todo mundo aqui vai estar exposto a todas as avaliações e informações que devem ser divulgadas”, concluiu.

Também o tenente-brigadeiro do ar Antonio Carlos Moretti Bermudez, o novo comandante da Força Aérea Brasileira (FAB), foi assertivo em seu discurso de posse:

“Quanto maior for o zelo com a higidez e a intelectualidade de nosso efetivo, maior será o retorno para a sociedade que por ele é protegida”, começou Bermudez, destacando a importância da inteligência na atuação da Força.

“Haveremos de continuar incentivando a perfeita relação com a mídia, que tanto contribuiu para a construção da reputação de nossa Força nesses 78 anos de existência, criando conteúdos relevantes, pois relevante é nossa missão, assim como é determinante o papel da imprensa”, que ele definiu como o canal de conexão com a sociedade.

É justamente essa a atribuição da imprensa, fazer com que o Estado conheça os desejos e intenções da Nação, e com que esta saiba os projetos e desígnios do Estado, como ressaltei no meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. “Um bom jornal é uma nação conversando consigo mesma”, na definição do teatrólogo americano Arthur Miller.

Para Rui Barbosa, a imprensa é a vista da nação. “Através dela, acompanha o que se passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe onde lhe alvejam ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que ameaça”.

O presidente americano Thomas Jefferson entendeu que a imprensa, tal como um cão de guarda, deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar. “Se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última solução”, escreveu ele.

No sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende muito da informação. Os jornais nasceram no começo do século XIX, com a Revolução Industrial e a democracia representativa. Formam parte das instituições da democracia moderna.

A “opinião pública” surgiu através principalmente da difusão da imprensa, como maneira de a sociedade civil nascente se contrapor à força do Estado absolutista e legitimar suas reivindicações no campo político. Não é à toa, portanto, que o surgimento da “opinião pública” está ligado ao surgimento do Estado moderno.

Com o advento das novas mídias sociais, os jornais perderam a exclusividade da formação da opinião pública, mas continuam sendo um “contrapoder”, importantes para a institucionalização democrática dos países. É o jornalismo, seja em que plataforma se apresente, que continua sendo o espaço público para a formação de um consenso em torno do projeto democrático.