Merval Pereira
Merval Pereira: Narrativa política
Governo abre mão de receita com objetivos sociais, cobrando mais de quem ganha mais, e menos de quem ganha menos
A proposta da equipe econômica, comandada por Paulo Guedes, está sendo acompanhada de uma narrativa política que fez falta nas últimas tentativas de reformar a Previdência. O único segmento em que haverá uma queda da arrecadação é o setor privado, porque o governo está reduzindo a alíquota daqueles que ganham menos, de 8% para 7,5%.
Como são muito mais numerosos, o governo está abrindo mão de receita com objetivos sociais, cobrando mais de quem ganha mais, e menos de quem ganha menos, como será o mote da propaganda de convencimento da opinião pública.
Essa queda de arrecadação é compensada pelo setor público, cujos servidores vão perder privilégios, e reajustes nos benefícios. A reforma é um avanço na equiparação das aposentadorias de servidores às dos demais trabalhadores.
Mesmo servidores que entraram no serviço público antes de 2003, protegidos por outras reformas, vão ter que trabalhar mais para garantir a integralidade do salário ao se aposentar. Outro setor delicado atingido é o dos próprios parlamentares que vão se debruçar sobre as mudanças.
Hoje, deputados se aposentam com 60 anos e 35 de contribuição. A idade mínima vai passar para 65 anos, como todos os brasileiros, limitado ao teto do INSS.
O governo, através de seus membros políticos envolvidos na apresentação das medidas, especialmente o secretário Rogério Marinho, que na quarta-feira deu uma entrevista esclarecedora ao “J10” da GloboNews, bate em uma tecla: investimentos represados em segurança pública, educação, saúde pública, infraestrutura, detonadores das manifestações de 2013 contra a má qualidade dos serviços públicos oferecidos, poderão ser realizados em beneficio do conjunto da sociedade brasileira.
Porque haverá um acréscimo de cerca de R$ 40 bilhões a cada ano, depois da reforma, para gastos do governo em setores que hoje estão à míngua. Além do próprio dinheiro público, o governo conta com efeitos colaterais positivos da reforma, como o incentivo ao investimento privado, brasileiro e internacional.
O governo enviará na próxima semana um projeto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional que endurece o jogo contra os grandes devedores da Previdência pública, principalmente aqueles que devem acima de R$ 15 bilhões —quatro mil devedores espalhados pelo Brasil — e que o fazem de forma reiterada, há mais de um ano sem sequer dar satisfação.
A questão dos militares, outro tema sensível que permitiria uma sensação de desigualdade, será tratada em legislação própria, a ser enviada ao Congresso nos próximos 30 dias. É um avanço o anunciado aumento no tempo mínimo de atividade, e o aumento da contribuição, respeitadas as especificidades, assim como se deu com outras profissões, como os professores. Mas enquanto ela não se concretizar, as negociações não andarão no Congresso.
O projeto corrige uma distorção histórica, segundo Rogério Marinho, e pretende enfrentar uma guerra de narrativas em que se defende a tese de que 65 anos de idade mínima é excessivo. Tanto os técnicos, de maneira mais fria, quanto o secretário da Previdência, com tom mais politicamente adequado a essa “guerra”, mostram que quem esgrime contra essa tese está, na verdade, defendendo interesses próprios, se aposenta com 50 anos.
As estatísticas demonstram que os mais pobres, os que ganham até dois salários mínimos, se aposentam hoje já com 65 anos e meio. Outra polêmica que vai dar muita munição aos contrários à reforma é o caso dos trabalhadores rurais e dos que recebem a Prestação de Benefício Continuado (PBC).
O governo considera, na definição de Marinho, que a sociedade brasileira tem um pacto moral, uma obrigação social de amparar aqueles menos favorecidos, os que não têm a capacidade ou condição de se inserir na sociedade de forma mais produtiva.
No caso dos pobres que ganham menos de um salário mínimo de renda familiar, que hoje aos 65 anos têm direito de receber um salário mínimo, o governo interpreta que este rendimento, na verdade, vai ser antecipado para os 60 anos, só que no valor de R$ 400 corrigidos pela inflação. E o salário mínimo passará a ser dado aos 70 anos.
Segundo o governo, 1,1 milhão de famílias que, entre 60 e 65 anos, recebem do Bolsa Família uma média de R$ 129, passarão a ganhar quase 2,5 vezes mais. A diferença é para estimular quem contribui durante 20 anos, para receber aos 65 anos um salário mínimo.
Merval Pereira: Jogando conversa fora
Crise é consequência, sobretudo, da falta de lideranças capazes de apaziguar os ânimos
Oque mais impressiona nos áudios das conversas entre o presidente Jair Bolsonaro e seu ex-ministro Gustavo Bebianno é sua irrelevância. Nada de importante foi tratado, e mesmo as queixas do presidente são desimportantes. Não que não pudesse demitir seu ministro da Secretaria-Geral da Presidência, mas não precisava arranjar desculpas esfarrapadas para fazê-lo.
Nem usar o filho Carlos para criar o clima propício. Como disse o vice-presidente Hamilton Mourão, alguma coisa amais deve ter acontecido. Porque, se o bate boca não tem nada por trás, estamos diante de um presidente que trata questões pessoais como se fossem crises de Estado. E acaba criando mesmo uma crise do nada.
Essa crise política, completamente desnecessária, é consequência da precariedade do apoio parlamentar do governo e, sobretudo, da falta de lideranças capazes de apaziguar os ânimos quando necessário. Os articuladores políticos são do baixo clero do Congresso, assim como Bolsonaro, que nunca teve uma atividade parlamentar importante nos quase 30 anos de deputado federal.
Era um político de nicho corporativista, que se lançou como defensor dos direitos dos militares, seus companheiros de farda, e acabou ampliando sua ação para o campo da extrema direita, levado a defender extemporaneamente a ditadura militar, inclusive torturas.
Quando a maioria dos militares já havia deixado para trás os anos de chumbo e cuidava de seus deveres profissionais dentro dos quartéis. A visão democrática dos militares, aliás, é um dos pontos altos da atual administração, até prova em contrário.
Mesmo claramente contrários a governos petistas, nunca houve registro de reações a ordens recebidas ou descontentamento com as nomeações de ministros da Defesa pelos governos petistas. Tanto que Jaques Wagner, com o tato político que lhe é natural, conseguiu até mesmo indicar para seu vice uma militante do MST.
Só quando ela, assumindo interinamente o ministério, publicou um decreto transferindo para o Ministério da Defesa a capacidade de intervir no currículo dos colégios militares é que houve uma reação, mesmo assim sem alardes.
E quando a presidente Dilma tentou decretar o estado de emergência que, na prática, paralisava o processo de seu impeachment e alargava seus poderes, o comandante do Exército, general Villas Bôas, fez-lhe saber que não teria o apoio das Forças Armadas.
Mesmo que, até agora, tenham demonstrado uma tendência democrática e conciliadora, aponto de até parte da esquerda preferir o vice general Mourão a Bolsonaro —que já abordou esse fato em entrevista —, os militares não são o melhor caminho para negociações políticas.
Por escassez de talentos políticos conciliadores, Gustavo Bebianno estava preenchendo essa lacuna. Seu gabinete estrategicamente plantado no Palácio do Planalto lhe dava a aparência de poder necessária para negociar com o Congresso.
Agora, será preciso encontrar outro homem ou mulher capaz de fazer essa ponte, dentro de um PSL que é um bando de neófitos desequipados para a missão, ou membros da velha política tentando encontrar um espaço novo para continuar suas práticas deletérias. Isso num momento crítico em que chegam ao Congresso os dois principais projetos do governo, a reforma da Previdência e o combate à corrupção e ao crime organizado.
Não é à toa que os ministros Paulo Guedes e Sergio Moro estão eles mesmos negociando pessoalmente com os parlamentares. O motivo de “foro íntimo” dado oficialmente como razão para a demissão de Gustavo Bebianno envolve, em bom português, questões morais.
Se for isso, é preciso que o Palácio do Planalto revele esses motivos, camuflados por uma discussão pública ridícula. Vários ministros, em diferentes governos, foram demitidos por estarem envolvidos em investigações de corrupção, e o governo seguiu em frente.
Não há razão para que, agora, num governo que teoricamente defende a transparência como forma de combatera corrupção, fique no ar a desconfiança de que existe algo escondido nessa demissão ministerial.
Ontem, o Congresso derrubou uma decisão estapafúrdia adotada logo no início do governo, que ampliava para servidores de segundo escalão a possibilidade de classificar documentos como sigilosos ou confidenciais, o que os deixaria secretos por dezenas de anos.
Um estímulo à burocracia estatal para esconder malfeitos. A tentativa de acobertara verdade através de decretos ou mensagens oficiais nebulosas vai de encontroa oque seria a transparência do novo governo.
Merval Pereira: Uma questão pessoal
Presidente Bolsonaro demonstra uma maneira de lidar com as crises políticas que não o ajuda a governar
Ao definir como “de foro íntimo” os motivos para a demissão do ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, seu ex-amigo Gustavo Bebianno, o presidente Bolsonaro revela muito mais do que parece, não se sabe se intencionalmente. Pelo depoimento gravado divulgado no final da noite, onde diz que continua acreditando na seriedade de Bebianno, o uso da expressão “foro íntimo” pode ter sido apenas um vício de linguagem.
Colocando a demissão no campo pessoal (“julgamento da consciência acerca de coisas morais”), Bolsonaro confirma, porém, que não houve razão funcional para descartar Bebianno com 50 dias de governo. O presidente Bolsonaro demonstra, assim, uma maneira de lidar com as crises políticas que não o ajuda a governar. A decisão de ir pessoalmente ao Congresso para entregar a reforma da Previdência, porém, mostra que o presidente procura reconstruir a confiança abalada entre os políticos.
Dizia-se, e Fernando Henrique assumiu essa definição, que as crises saíam menores de seu gabinete. Com Bolsonaro, é o contrário até o momento. Embora tenha dado sinais, esta semana, de que não pretende atear mais álcool na fogueira de vaidades que sempre cerca um presidente, Bolsonaro saiu menor desse episódio, seja pelo bate-boca com seu ministro, humilhando-o publicamente, seja pela demora de uma decisão.
Temos exemplos ultimamente de presidentes que demitiram ministros sem dó nem piedade, desde Dilma, que bateu recorde em quantidade, mas não em rapidez, marca que fica com Bolsonaro, passando por Lula e Fernando Henrique. Lula demitiu José Dirceu e Palocci, quando estes passaram a ser um fardo político. Fernando Henrique não hesitou em demitir seu amigo Clóvis Carvalho, para avalizar posições do ministro da Fazenda, Pedro Malan.
O ex-ministro Bebianno em si não tem importância, não tinha passado político nem mandato popular, e só ganhou importância devido ao bate-boca com Carlos, o filho de Bolsonaro vereador que se coloca como defensor do pai em várias situações.
Carlos, aliás, foi quem anunciou praticamente todos os ministros pelo Twitter, mas se recusou a anunciar a nomeação de Bebianno. Os dois disputavam, desde a campanha presidencial, o controle da comunicação digital de Bolsonaro, um instrumento básico para sua atuação política.
Bebianno levou para a campanha, e depois para o grupo de transição, o empresário Marcos Aurélio Carvalho, dono da agência AM4, identificado como o responsável pela campanha digital do presidente eleito, o que irritava Carlos. Como de hábito, essa irritação transbordava para o Twitter e tinha acolhida pelo pai. No caso da dispensa de Carvalho, que não ficou nem mesmo um dia no grupo de transição, a nota oficial do Palácio do Planalto o identificava como “o autointitulado marqueteiro digital da campanha”. Justamente o que Carlos postara mais cedo em sua conta pessoal.
A demissão de Bebianno, um dos primeiros a aderir à candidatura de Bolsonaro, afeta muito a confiança dos políticos no presidente, e está preocupando militares e assessores mais próximos, que alegam que não terão mais confiança nas conversas com ele sem saber o que os filhos pensam. Ou já colocaram no risco a possibilidade de ver um WhatsApp para o presidente vazar para o público. O Twitter dos filhos é um fator sem controle e pode alvejar qualquer um.
A Secretaria-Geral da Presidência, que agora será ocupada pelo general Floriano Peixoto, sempre teve papel importante na estrutura palaciana, pois seu titular é quem lida diretamente com o presidente da República, entra sem bater no gabinete presidencial e cuida da sua agenda — é uma espécie de secretário particular com todo o poder que secretários particulares sempre tiveram.
Exemplos claros desse poder são José Aparecido, com Jânio; Heitor Ferreira, com Geisel e Figueiredo; e Gilberto Carvalho, com Lula, já sob o nome de Secretaria-Geral da Presidência. É um lugar que pode ser estratégico, a depender da confiança do presidente em seu secretário particular.
A de Bolsonaro em Bebianno, que parecia grande, se deteriorou já na campanha, tanto que a estrutura do cargo foi esvaziada, e o general Floriano Peixoto foi colocado logo abaixo dele. Dizia-se que fora Bebianno quem o escolhera, para ter acesso aos militares que trabalham diretamente no Palácio do Planalto e adjacências. Com sua nomeação para substituí-lo, é mais provável o contrário.
Merval Pereira: Nas redes da intriga
O novo ativismo é individualista, isolado, orientado para questões de estilo de vida e crescentemente apolítico
A crise que culminou com a queda do ministro da Secretaria-Geral da Presidência guarda dentro de si uma crise maior, alimentada pelo próprio Governo, a crise da democracia representativa. Esse é um fenômeno contemporâneo globalizado que vai se alastrando à medida que os novos meios de comunicação vão abrindo espaço cada vez maior para a participação direta dos cidadãos nas decisões politicas.
Esse empoderamento do cidadão tem seu lado negativo quando os políticos passam a se guiar pelas redes sociais, em vez de liderar ações necessárias ao país, mesmo quando impopulares. O atual Congresso é exemplo concreto desse momento conturbado que vive a democracia. Parlamentares montam estúdios em seus gabinetes para lançar mensagens permanentes, e votam de acordo com as redes sociais.
Um governo eleito fundamentalmente pela ação nas redes sociais, beneficiado pelo poder de expor suas ideias sem ser confrontado, devido à possibilidade de não comparecer a debates de televisão, sente-se dono da comunicação politica. E reputa de “inimigos” aqueles que contestam suas decisões. Um governo desse tipo fica exposto a intrigas e manipulações várias.
O caso em questão é exemplar dessa situação. Se o ministro Gustavo Bebianno foi demitido devido às acusações de manipulação ilegal de dinheiro na campanha eleitoral, a mesma decisão deveria ter atingido o ministro do Turismo, acusado também de desviar recursos partidários utilizando-se de “laranjas”.
Na verdade, independente de Bebianno ser ou não culpado, o que determinou sua derrubada foi uma disputa de poder com o filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro. Especialista em usar as mídias sociais para defender seus pontos de vista, ele teve atuação permanente durante a campanha, mesmo que apartado do aparato formal.
Foi um trabalho solitário, ao lado do pai, sem características profissionais, o que permite a ele até hoje o papel de portador da voz do presidente, fora do circuito oficial que assume posições com base na intermediação com o Congresso, nas pressões da sociedade, na representatividade das corporações, todos representantes da opinião pública.
Carlos, não. É do tipo Twittero que pretende formar a opinião pública, com o uso das novas tecnologias que permitem inclusive a potencialização do alcance das mensagens com o uso de robôs e técnicas de disparos em massa de mensagens que desequilibram a disputa de ideias no espaço público.
A democracia representativa está sendo desvirtuada pelas mídias sociais, transforma-se em uma nova espécie de democracia direta. A ética da responsabilidade que Max Weber definiu para a atuação política não pode submeter-se à irresponsabilidade das redes sociais. O político, como ressaltava o próprio Weber, tem sua ética peculiar, mas quando ela se confronta com a ética da consciência, não pode prevalecer.
O homem moderno, de posse da tecnologia, dispensa intermediários e pretende assumir as rédeas do próprio futuro, interferindo nos governos, na política nacional. A contrapartida deveria ser uma classe política capaz de cumprir seus deveres, de assumir o papel contra-majoritário justamente para guiar, e não ser guiado.
A democracia representativa se apresenta em contraposição à democracia direta, que com o uso de plebiscitos e consultas populares, torna mais fácil assumir decisões difíceis. O prefeito do Rio, Marcelo Crivela, que anuncia pretender fazer um plebiscito para decidir se derruba a ciclovia Tim Maia é exemplar desse comportamento.
O surgimento de governos populistas seria, para alguns estudiosos, sintoma de uma época cujos fracassos só superaremos se nos engajarmos na defesa da política contra a democracia despolitizada. O novo ativismo, é individualista, isolado, orientado para questões de estilo de vida e crescentemente apolítico. A democracia representativa sofre, segundo esses especialistas, com a ambivalência de cidadãos cujas demandas desarticuladas são frequentemente contraditórias.
O cidadão empoderado não tem responsabilidade por suas opiniões nas redes sociais, e os políticos e governantes não podem resolver que a solução é seguir a maioria que se expressa nas redes sociais, que certamente não representa a maioria dos cidadãos e pode muito bem estar sendo manipulada.
Merval Pereira: Uma demissão desnecessária
O caso Bebianno não poderia se encerrar com a aparente derrota de Carlos Bolsonaro, o filho 02, ou a do próprio presidente, obrigado a suspender, pelo menos temporariamente, a demissão do chefe da Secretaria-Geral da Presidência. Mágoas certamente ficariam, de todos os lados, e dificilmente seriam superadas.
O vereador Carlos, ao retomar suas funções, assinou uma petição na Câmara do Rio para homenagear o vice-presidente da República Hamilton Mourão. De quem insinuou certa vez ter interesse na morte de seu pai. É um recuo e tanto para um pitbull como Carlos que, ao contrário de seu poodle Pituka, não é de amansar a troco de nada. Vê-se agora que sabia que venceria essa queda de braço.
O caso fora resolvido com a desistência temporária de demitir seu ministro porque Bolsonaro fora confrontado com a gravidade da situação por ministros militares do nível do Chefe do Gabinete Institucional (GSI) Augusto Heleno, e políticos, como o Chefe do Gabinete Civil Ônix Lorenzoni.
O primeiro, dando a dimensão da crise institucional que a demissão intempestiva acarretará, o outro mostrando a importância politica de manter-se o governo fora de turbulências desnecessárias, especialmente agora que a maioria potencial do governo precisa ser organizada para aprovar a reforma da Presidência.
Essa dimensão do cargo que ocupa, de que não é mais um deputado, como salientou o presidente da Câmara, é o que parece estar faltando a Bolsonaro. A foto dele despachando com ministros e assessores vestindo a camisa falsificada do Palmeiras é exemplo de que não respeita a liturgia do cargo, de que não tem nem quer ter a compostura que a presidência da República exige.
Bolsonaro precisa descer do palanque imediatamente. As sandálias de plástico que usava na foto oficial são da mesma origem das caspas que Jânio Quadros jogava sobre os ombros, para compor um personagem “gente como a gente”. Mas Jânio deixava o populismo para o palanque, era até excessivamente formal no cotidiano presidencial.
O agora ex-ministro Gustavo Bebianno negociou sua permanência no cargo com políticos e militares, e surpreendeu o presidente Bolsonaro no primeiro momento com o apoio que recebeu. Agora o governo terá que dobrar esforços no Congresso para superar a falta de intermediários gabaritados durante as negociações sobre a reforma da Previdência. Um dos casos que tocou um nervo exposto da família Bolsonaro foi o contato de Bebianno com interlocutores considerados “inimigos”, na busca de ampliar apoios para a aprovação da reforma.
A demissão do ministro Gustavo Bebianno é a confirmação de que existem no governo três figuras mais importantes que ministros, ou qualquer outro assessor, ou mesmo aliado político: os filhos do presidente.
Para piorar, os três têm mandatos eleitorais, Flávio de senador, Eduardo de deputado federal e Carlos de vereador. Podem, portanto, defender suas ideias e projetos das respectivas tribunas, e cada palavra que proferirem será considerada uma mensagem do presidente à sua base política.
A saída de Bebianno gera uma crise política extemporânea, no momento em que o governo quer aprovar a reforma da Previdência. Bolsonaro tem apenas uma suposição de base majoritária na Câmara, que vai precisar ser organizada, e os coordenadores do PSL não têm experiencia.
Bebianno seria um interlocutor do governo com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que deverá comandar as negociações. Não foi por acaso que Maia deu uma declaração forte, afirmando que Bolsonaro não é presidente da associação dos militares.
A relação do presidente da Câmara com o ministro do Gabinete Civil nunca foi boa, apesar de os dois serem do mesmo partido, o DEM. A conexão entre Rodrigo Maia e Bebianno, assim como com o ministro da Economia Paulo Guedes, é que ajudaria a facilitar a tramitação da reforma da Previdência.
A impressão que ficou entre os políticos é que o presidente estava usando o filho para forçar a saída de Bebianno. E o sentimento generalizado é de preocupação, pois Bebianno era considerado um homem de confiança de Bolsonaro, e nessa qualidade ganhou a simpatia dos políticos como canal de comunicação com o Palácio do Planalto.
Se na primeira discussão com um dos seus filhos o presidente joga ao mar um aliado de primeira hora, o que dizer de outro qualquer? Os militares também se preocupam com a ingerência dos filhos, pois acham que nenhum ministro ousará discordar deles, o que causa imensa insegurança institucional.
Merval Pereira: O público e o privado
É gravíssimo, se confirmado, que um dos filhos de Bolsonaro tenha acesso à senha do Twitter e fique postando em nome do pai
A crise desencadeada pelo vereador Carlos Bolsonaro, desmentindo pelo Twitter o ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, tem um aspecto que a torna ainda mais perigosa em termos institucionais. Trata-se do uso indiscriminado das redes sociais para comunicação do seu pai, o presidente Jair Bolsonaro, sem distinção do público e do privado.
Durante a campanha presidencial, com muita frequência era Carlos quem usava as senhas do pai para postar mensagens políticas, e há quem diga que até hoje é ele o autor das mensagens do presidente. Nessa crise de agora, o que circula em Brasília é que o retuíte da conta pessoal de Jair Bolsonaro (@jairbolsonaro), como que avalizando a acusação de seu filho Carlos a Bebianno, foi postado pelo próprio, em nome do pai.
Oficialmente, em novembro, antes mesmo da posse, Carlos publicou um aviso aos amigos informando que não tinha mais, “por iniciativa própria”, qualquer ascensão (sic) às redes sociais de Jair Bolsonaro. Foi quando brigou com Gustavo Bebianno na equipe de transição e desistiu de permanecer em Brasília, retornando à sua atividade de vereador no Rio.
A utilização do Twitter para suas mensagens é um hábito que Bolsonaro copia do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, seu grande ídolo. Nos Estados Unidos, a utilização de meios particulares para atividade oficial já deu muita dor de cabeça a Hillary Clinton, que, quando secretária de Estado no governo Obama, dispensou o e-mail oficial (@state.gov) para usar seu e-mail privado mesmo para assuntos de Estado.
O caso provocou o temor de informações sigilosas do Departamento de Estado circularem em redes de caráter privado, ou estarem expostas a ataques de hackers. Em março de 2015, o “New York Times” informou que o e-mail utilizado por ela era @clintonemail.com durante o período. Diante da constatação, Hillary admitiu: “Seria melhor ter usado dois e-mails e dois endereços eletrônicos diferentes”.
Parte do conteúdo era classificado como supersecreto, ou o foi mais tarde. Durante as investigações, que ocorreram durante a campanha presidencial, prejudicando-a como candidata, o inspetor-geral do Departamento de Estado afirmou que ela não pediu permissão para adotar um servidor privado. Mas o FBI não recomendou seu indiciamento, embora a tenha acusado de ser “extremamente descuidada”.
Coube a Hillary um pedido de desculpas: “Foi um erro. Sinto e assumo a responsabilidade”. Legislações sobre esse tipo de utilização garantem nos Estados Unidos que não haja violação de normas de segurança institucional. O uso do Twitter oficial da Casa Branca (@POTUS) é feito sempre que Trump trata de questões de Estado. Foi inaugurado pelo seu antecessor Barack Obama, que usava mais o Facebook para seus comentários.
Isso garante a fidedignidade da informação, de que é o próprio presidente quem está dando uma mensagem à nação. É importante porque hoje em dia o que mais existe é perfil falso nesses novos meios. Quando usa seu Twitter pessoal, Trump se identifica como @realDonaldTrump.
Há também a intenção de garantir que as comunicações do governante sejam controláveis. Os filhos do presidente Bolsonaro não se limitam a querer defender ideias; eles tentam transformá-las em programas de governo, sem que sejam debatidas, e assumem posições contrárias a ministros dos quais não gostam.
É gravíssimo, se confirmado, que um dos filhos dele tenha acesso à senha do Twitter e fique postando em nome do pai. O Estado não pode ficar em mãos indiretas, seja de quem for. Caso o presidente aceite a pressão do seu filho vereador Carlos para demitir o ministro Bebianno, vai ficar cada vez mais nas mãos das redes sociais e dos filhos, que tentam aumentar o poder no governo.
Ou Bolsonaro tem controle de suas mensagens, ou instala-se uma crise muito grande de Estado. As declarações do presidente só são transferíveis ao seu porta-voz oficial, não podem ser terceirizadas informalmente, nem que seja a um filho.
‘Poema enjoadinho’
A transcrição correta do “Poema enjoadinho”, de Vinicius de Moraes, que usei ontem na coluna, é “Filhos... Filhos?/ melhor não tê-los/ Mas se não os temos/ como sabê-lo?”.
Merval Pereira: Autofagia
Mourão é considerado por um grupo de bolsonaristas como um potencial inimigo, um Cavalo de Troia
A família Bolsonaro parece gostar de um enfrentamento. Ontem à noite, o presidente avalizou pelo Twitter uma afirmação do filho Carlos, que desmentia o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, que dissera que mantivera contato com Bolsonaro no hospital. Queria desfazer assim os boatos de que estaria desgastado com o presidente devido a denúncias de uso indevido de verba propagandística durante a eleição. Pelo jeito, talvez não seja mais ministro hoje.
O PSL está debaixo de fogo cruzado devido à suspeita de ter desviado dinheiro da campanha eleitoral utilizando-se de candidatas “laranjas”. Gustavo Bebianno, que foi presidente do PSL e teve papel de relevo na campanha, está sendo acusado por um grupo de bolsonaristas, entre eles o próprio Carlos, de ter participado dessa tramoia que está sendo investigada pela Justiça.
Já na transição do governo houve uma briga entre os dois. Carlos atribuía a Bebianno o convite a Marcos Carvalho, dono da agência AM4, responsável pela campanha digital do presidente eleito, para participar da equipe.
Carlos considera-se o responsável pela comunicação de Bolsonaro nas mídias sociais, tem até mesmo as senhas do pai, e não admite concorrência. Acusou Marcos Carvalho de querer aparecer como “marqueteiro digital” vencedor, sem ter tido tal importância.
Certa vez, o vice-presidente Marco Maciel ouviu de Heitor Ferreira, ex-secretário particular dos presidentes Geisel e Figueiredo, a definição do posto que ocuparia no governo de Fernando Henrique Cardoso: “Vice-presidente é nada à véspera de tudo”.
Maciel soube equilibrar-se nessa linha quase etérea entre o “nada” e o “tudo”, e hoje é exemplo de comportamento para um vice-presidente, discreto e eficiente. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão recebeu com um sorriso o presidente Bolsonaro, que voltava a Brasília depois de 16 dias internado no Hospital Albert Einstein em São Paulo.
Sorriso que desfez qualquer desconforto que poderia ter causado uma ironia do presidente, ao telefone: “Quer me matar?”, perguntou a Mourão, que tratou de revelar a “brincadeira” para retirar dela qualquer conotação outra. Embora estivesse se referindo ao churrasco de confraternização de sua turma, de que Mourão participara enquanto ele estava no hospital, o presidente Bolsonaro refletia um estado de espírito inoculado pelo vereador do Rio Carlos Bolsonaro, o filho 02, que mantém a desconfiança de que existem pessoas interessadas na morte de seu pai.
Antes da posse, ele usou o Twitter para dizer que a morte de seu pai ajudaria “também aos que estão muito perto” (...) “Principalmente após sua posse”. Na posse, ele fez questão de aboletar-se no Rolls-Royce que conduzia seu pai. O 02 acordara com um mau pressentimento e, armado de uma Glock, pediu para ser o guarda-costas do pai.
Mourão é considerado por um grupo de bolsonaristas, que inclui até mesmo o guru Olavo de Carvalho e o estrategista americano Steve Bannon, como um potencial inimigo, um Cavalo de Troia que tenta se diferenciar de Bolsonaro recebendo líderes do MST ou defendendo a memória do ambientalista Chico Mendes.
“Filhos, melhor não tê-los”, já advertia ironicamente o poeta Vinicius de Moraes, para completar: “Mas sem tê-los, como sabê-los?” A relação do presidente com seus filhos é um dos fatores desestabilizadores deste governo que mal se iniciou.
As confusões envolvendo os três filhos políticos de Bolsonaro provocam intrigas dentro do próprio grupo de governo, especialmente os militares. O senador Flávio Bolsonaro, o 01, tenta se desvencilhar do caso de seu ex-assessor Fabrício Queiroz, apanhado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) em uma “movimentação atípica” de R$ 1,2 milhão.
O deputado federal reeleito Eduardo Bolsonaro, o 03, flagrado em uma palestra afirmando que para fechar o Supremo Tribunal Federal bastaria chamar “um soldado e um cabo”, considera-se um assessor presidencial especialíssimo, e trabalha para ligar o PSL ao conjunto de partidos de direita pelo mundo, que o estrategista americano Steve Bannon sonha reunir. Já admitiu se candidatar à sucessão do pai caso Bolsonaro acabe mesmo com a reeleição, como prometeu.
O 01 nunca recebeu apoio do 02. O 03 ontem se recusou a falar sobre a crise em que o 02 está metido.
Merval Pereira: As trapaças da sorte
DEM passou a presidir as duas Casas, mais uma vez por virtudes individuais do que por estratégias de sua direção
O DEM é o caso mais curioso de empoderamento político dos últimos tempos, pois aparentemente tem o controle das presidências da Câmara e do Senado, e a liderança do maior bloco na Câmara, mas, na prática, não teve interferência nessa composição. Vale-se, no entanto, dessas “trapaças da sorte” para posicionar-se no tabuleiro político como se forte fosse.
O partido que um dia o então presidente Lula desejou “extirpar” da vida política brasileira representa hoje, teoricamente, o mais forte grupo na arena política, sem ter, no entanto, a maior bancada, nem na Câmara nem no Senado.
Ocupa três ministérios importantes: Gabinete Civil, com Onyx Lorenzoni; Agricultura, com Tereza Cristina; e Saúde, com Luiz Mandetta. Nenhum dos três, no entanto, deve sua indicação ao partido. Lorenzoni foi escolha pessoal do presidente Jair Bolsonaro, e não tinha uma relação tranquila com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também do DEM.
Os outros dois foram indicados pelas bancadas temáticas: Tereza Cristina, pelo agronegócio, e Mandetta pela bancada da saúde. Elmar Nascimento, deputado baiano do DEM, é líder do maior bloco da Câmara, com 301 deputados, pertencentes a 11 partidos, entre os quais o PSL.
Fazem parte do bloco, além do partido do presidente Bolsonaro, o PP, PSD, MDB, PR, PRB, DEM, PSDB, PTB, PSC e PMN. Para demonstrar o que quer, ele organizou ontem um almoço com lideranças de partidos do bloco, mas nem o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, nem o do PSL, Delegado Waldir, foram convidados.
Nas urnas, a composição da Câmara já tinha dado ao PSL uma votação correspondente ao que a candidatura de Jair Bolsonaro representou de mudança política. O PT encolheu de 69 para 56, e o PSL passou de 1 para 52 deputados.
O PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro, aumentou de 52 para 55 o número de parlamentares na Câmara dos Deputados, empatando com o PT, cada um com 55 parlamentares. Nas urnas, o PT havia conseguido 56 deputados federais, se tornando a maior bancada na Casa. Mas perdeu uma vaga na Bahia por cassação do mandato de Luiz Caetano.
O PSL, por seu turno, elegeu a segunda maior bancada, com 52 cadeiras, mas passou para 55 com a filiação dos deputados Bia Kicis, que era do PRP, e Pastor Gildenemyr, do PMN. A terceira vaga foi preenchida pelo suplente do ministro-chefe do Gabinete Civil Onyx Lorenzoni, do DEM. Na correlação de forças dentro do Congresso, o DEM passou a presidir as duas Casas, mais uma vez por virtudes individuais do que por estratégias de sua direção. O deputado Rodrigo Maia foi reeleito para presidir a Câmara numa negociação política que envolveu praticamente todas as correntes políticas relevantes, inclusive o PT.
Já no Senado, a derrota de Renan Calheiros deveu-se a um sentimento generalizado de mudança, bem captado pelo ministro Onyx Lorenzoni, que montou uma estratégia pessoal para eleger Davi Alcolumbre.
Num Congresso tão fragmentado quanto este, que abriga nada menos que 30 partidos políticos, montar blocos de apoio exige uma sutileza maior das lideranças, coisa que nem o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, nem o do PSL, Delegado Waldir, têm. Talvez por isso o deputado Elmar Nascimento, do DEM, tenha conseguido se destacar para presidir o bloco governista, que, como admitiu com um sincericídio que revela sua inexperiência, o líder do governo na Câmara ainda não representa uma base de apoio sólida.
Já o deputado Elmar Nascimento mostrou todo o seu pragmatismo político ainda durante a eleição. No primeiro turno, apoiou o candidato do PT e disse que Jair Bolsonaro era “um louco”. Em entrevista à Rádio Metrópole, disse que não poderia exigir do “cidadão brasileiro desinteligência para deixar de votar numa pessoa equilibrada, por mais que a gente discorde do ponto de vista ideológico do partido, para votar em um louco”.
Desenhada a vitória de Bolsonaro, Elmar mudou de lado com desenvoltura no segundo turno: “Estamos aqui externando apoio ao futuro presidente que vai nos ajudar a exterminar o PT na Bahia, que está fazendo muito mal ao nosso estado”.
Merval Pereira: Reformas ganham peso
Medidas contra a corrupção e o crime organizado serão usadas para compensar a impopularidade da reforma da Previdência
Há um consenso no Congresso sobre a necessidade de fazer a reforma da Previdência, o que já é meio caminho andado. Anteriormente, ainda havia quem discutisse se existe mesmo o déficit do sistema. Hoje, alguém que ainda insista nessa discussão bizantina está isolado, como se vivesse em outro mundo.
Há também um consenso no governo, que inclui até mesmo o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, de que a prioridade é da reforma da Previdência. O pacote de medidas contra a corrupção e o crime organizado, que está sendo apresentado por Moro aos parlamentares, vai ser usado para compensar a impopularidade da necessária reforma da Previdência.
Nesse ponto, as duas reformas se interligam, na estratégia do governo, tendo como norte a opinião pública. É o avesso da opinião do senador Renan Calheiros, de capitanear a imposição de parâmetros e limitações para as reformas, como maneira de evidenciar uma suposta independência do Congresso diante do Palácio do Planalto.
Equilibrando-se entre o “novo” e o “velho” Renan, criando um falso conflito entre personalidades contrárias, uma substituindo a outra sempre em benefício do país, o senador propunha-se a ser o resgatador da força do Senado, mas acabou apenas revelando um comportamento cínico, com traços esquizoides, na interpretação do psicanalista Joel Birman.
Perdeu uma eleição a que não deveria ter concorrido, para o senador Davi Alcolumbre, que o derrotou não por méritos próprios, ainda a serem provados, mas por representar justamente uma proximidade conceitual do novo Senado com os projetos do governo Bolsonaro, sem que essa posição signifique uma subalternidade em relação ao Planalto.
Quem parece estar chamando a si a responsabilidade da aprovação da reforma da Previdência é o reeleito presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que se movimenta para assumir papel determinante nas negociações.
Ao tentar sair na frente e intensificar as conversas sobre o tema com governadores e até mesmo com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, com quem se encontrou ontem, o presidente da Câmara evidencia a precariedade dos articuladores políticos do governo, sem, no entanto, afrontá-los, assumindo o protagonismo em uma matéria de fundamental importância para a retomada do crescimento.
Faz isso com naturalidade, já que é reconhecidamente adepto da mesma visão econômica defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O ministro-chefe do Gabinete Civil, Onyx Lorenzoni, marcou posição na articulação da derrota de Renan Calheiros no Senado, ganhando uma dimensão política que o credencia a participar dessa ação, ao contrário do Major Vitor Hugo, líder do governo na Câmara.
Rodrigo Maia ganhou uma eleição demonstrando grande capacidade de apoio, e está muito empenhado na reforma econômica. No Senado, Davi Alcolumbre só ganhou porque o governo e a maioria do Senado queriam derrotar Renan. Não ganhou por conta própria, e ainda precisará provar que conseguirá substituir a liderança de Renan, que até mesmo o ministro Paulo Guedes pensava que viria a ser reeleito.
O ministro Moro corre em paralelo com seu pacote anticorrupção, e está muito satisfeito com as conversas que tem tido com parlamentares. Mas sabe que há um caminho difícil para que a receptividade se transforme em votos. Ele não vê motivos para que a simultaneidade dos projetos prejudique a aprovação, mas já admite que é preciso entender melhor a posição das lideranças, sinalizando uma flexibilidade nas negociações.
O treino está sendo realizado em ritmo de jogo, que só começará para valer com a volta do presidente Bolsonaro ao Planalto, quando os pontos sensíveis da reforma da Previdência, como idade mínima e prazo de transição de um modelo para o outro, serão definidos. O uso contínuo das redes sociais, até mesmo do hospital, e o hábito dos novos parlamentares de também usá-las para balizar seus votos indicam que Bolsonaro e seu governo apostam suas fichas na mobilização da opinião pública.
Merval Pereira: O vento do Poder
Escândalos envolvendo o filho indicam que talvez Bolsonaro não chegue ao dia 1º de fevereiro com essa bola toda
A impressionante deterioração do prestígio do presidente Jair Bolsonaro, a menos de um mês de ter sido empossado, está provocando um rebuliço no Congresso, onde lideranças que negociam a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado recuam e avançam, na tentativa de entender para que lado o vento do poder está soprando.
Já houve momento em que ser o candidato do governo valia ponto, e o senador Renan Calheiros se apressou a anunciar que “o novo Renan” queria negociar com o governo Bolsonaro. Também Rodrigo Maia, tentando a reeleição, foi visto ao lado do presidente, todo sorridente, depois de ter sua recandidatura não rejeitada pela cúpula do novo governo.
Em poucos dias, porém, o vento mudou de rumo. Os escândalos envolvendo o filho do presidente, o senador eleito Flávio Bolsonaro, estão indicando que talvez Bolsonaro não chegue ao dia 1º de fevereiro, dia da eleição, com essa bola toda.
É hora de demonstrar independência, de vender a idéia de que, nesta hora, o Congresso pode tomar as rédeas da política e tem, pela primeira vez, desde o governo Fernando Henrique a bordo do Plano Real, a chance de ser o protagonista da História, conduzindo o governo em vez de ser conduzido por ele.
A partir do Plano Real, o Congresso, na análise de lideranças partidárias que buscam equilibrar-se na corda bamba em que se transformou o momento político, o Executivo, que sempre teve muitos poderes, emparedou o Congresso devido à popularidade de seus eleitos.
Antes, Collor conseguiu passar até mesmo o bloqueio generalizado das contas bancárias e investimentos, Lula até conseguiu eleger Dilma. Nos dois casos, os presidentes que tinham, por razões diversas, chegado ao poder com prestígio que fazia o Congresso se dobrar à sua vontade, acabaram impedidos em processos político-administrativos por terem se isolado nas relações com o Congresso.
Collor considerava-se acima dos partidos, pois chegara ao poder sem necessidade deles. E Dilma tinha em Lula sua garantia política, e por isso não dava bola para o Congresso, que se vingou dos dois, quando perderam a popularidade.
Collor mais rapidamente, cerca de três anos depois de ser eleito. Dilma depois do primeiro mandato, num processo que teve início em dezembro de 2015 e se encerrou em agosto do ano seguinte.
A eleição de Jair Bolsonaro, provocando uma verdadeira revolução política no país, fazia prever que sua popularidade, juntamente com o uso eficiente das redes sociais, legalmente ou ilegalmente, o tornaria um daqueles líderes a que o Congresso tem que se curvar.
Alguns membros do governo expressaram essa certeza, como o todo-poderoso ministro da Economia Paulo Guedes, que chegou a dizer que era preciso “dar uma prensa” no Congresso. O governo que não negociou com os partidos a formação do ministério tem sinais de que confia na capacidade de pressão da opinião pública para fazer aprovar reformas, mesmo as impopulares, como a da Previdência.
Essa situação não estava fora da realidade, até que o filho 01 levou para dentro do Palácio do Planalto escândalos que insinuam uso de dinheiro público ilegalmente, lavagem de dinheiro, corrupção e, o mais grave, ligações perigosas da família Bolsonaro com milicianos.
Não é apenas a proximidade de idéias e comportamento, mas há dinheiro envolvido nessa relação. O presidente, eleito principalmente para combater a corrupção, que demonizava a velha política e se propunha a renovar os métodos de negociação parlamentar, de repente vê-se em meio a uma rede de intrigas e ilegalidades que só faz corroer sua credibilidade junto à parte do eleitorado que acreditou que ele seria o salvador da pátria.
Esse desgaste está apenas começando, e as lideranças políticas no Congresso já começam a se convencer de que o enfraquecimento precoce do presidente favorece uma reação política. É de se prever que a agenda do ministro Sérgio Moro de combate à corrupção na política sofrerá abalos, tendo dificuldades para aprová-la.
A reforma da Previdência, uma necessidade, pode ser aprovada, mas os congressistas estão dispostos a fazer bondades para amenizar a impopularidade que ela trará.
Os políticos que sobreviveram ao tsunami Bolsonaro disseminam a tese de que quem enfraqueceu a classe parlamentar foi a Operação Lava-Jato, que demonizou a atividade política, e não seus próprios atos. E estão dispostos a dar o troco.
*Saio de férias por duas semanas. A coluna voltará a ser publicada no dia 12 de fevereiro
Merval Pereira: O risco militar
A presença de militares, da ativa e da reserva, em postos eminentemente civis chama a atenção no primeiro ministério do presidente Jair Bolsonaro, ele próprio um capitão da reserva do Exército. O cientista político Octavio Amorim Neto, professor da EBAPE/FGV, em artigo intitulado “O Governo Bolsonaro e a Questão Militar”, analisa essa “ampla fatia de poder” dos militares com cautela, advertindo para as consequências que podem afetar tanto a democracia brasileira quanto a própria corporação militar.
Estejam ou não exercendo funções, os militares têm, quase sempre, visões de mundo e preferências semelhantes, comenta Octavio Amorim Neto. Além disso, a população e as elites civis percebem e tratam os militares como um grupo coeso, usem ou não farda.
A ressalva que faz lembrando que os oficiais de alta patente hoje em dia diferem muito dos que lideraram o regime de 1964-1985, sendo mais liberais em temas econômicos e mais comprometidos com a democracia e os ditames constitucionais, não o impede de levantar duas questões relevantes: o grau de controle dos militares pelos civis (ou o grau de subordinação dos militares à autoridade política dos civis) e a elaboração e orientação da política de defesa.
“Não há democracia quando as Forças Armadas vetam decisões governamentais que não digam respeito à defesa nacional”, ressalta o cientista político da Fundação Getúlio Vargas do Rio. Ele admite que, até o momento, não se pode dizer que o Brasil esteja sob tutela militar, mas acha que o risco existe, sobretudo “se a corporação castrense contribuir decisivamente para a derrota da reforma da Previdência”.
A partir do final do século passado, muita coisa começou a mudar nas relações civis-militares em geral e no papel dos civis na política de defesa em particular, e Octavio Amorim Neto ressalta (1) a criação do Ministério da Defesa em 1999; (2) a publicação da Estratégia Nacional de Defesa em 2008, redigida tanto por civis como por militares; (3) o início, em 2009, de um amplo e ambicioso programa de reaparelhamento das Forças Armadas; (4) a promulgação da Lei da Nova Defesa em 2010; e (5) a publicação do primeiro Livro Branco da Defesa Nacional em 2012, escrito com considerável participação de civis.
“Aqueles fatos e eventos indicavam claramente o fortalecimento do controle dos militares pelos civis, um maior envolvimento destes na elaboração da política de defesa e uma maior saliência desta na agenda política nacional”, comenta Octavio Amorim Neto.
Além de evitar golpes de Estado, Octavio Amorim Neto diz que as elites democráticas têm “a obrigação de remover os militares da política, privando-lhes de qualquer veto às decisões de governo que não digam respeito à defesa nacional e reduzindo drasticamente sua autonomia”, estabelecendo assim a supremacia civil.
A eleição de Bolsonaro tem, como primeira consequência, a suspensão dessa etapa da transição para a democracia que os militares estavam aceitando até o momento. Octavio Amorim Neto pergunta: como ficará a participação dos civis na gestão do Ministério da Defesa e na elaboração da política de defesa, já que, desde fevereiro de 2018, o MD tem sido chefiado por um general?
Ele está convencido de que essas duas áreas ficarão sob total controle dos militares. “O Congresso e os partidos aceitarão passivamente isso?”. Outra questão que inquieta Octavio Amorim Neto: as Forças Armadas se concentrarão quase que exclusivamente em missões internas ao território nacional, sobretudo nas frequentes operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)?
Os comandantes do Exército sempre afirmam que GLO é desvio de função e que gostariam de concentrar-se em suas tarefas precípuas. Contudo, lembra Octavio Amorim Neto, será que realmente crêem que, com tal presença de militares no governo em atividades eminentemente civis, haverá fortes incentivos para que as Forças Armadas se dediquem prioritariamente às suas missões fundamentais, nomeadamente a defesa das fronteiras nacionais, a manutenção da paz na América do Sul, o apoio à política externa e a prontidão para guerras interestatais?
Para Octavio Amorim Neto, “a história é farta em exemplos que mostram que, quando as Forças Armadas de um país passam a exercer excessivamente atividades políticas, o aprestamento (efetividade) militar é a primeira baixa”.
Correção:
O encontro do General Vladimir Padrino Lopez, ministro da Defesa da Venezuela, com então ministro da Defesa brasileiro, General Joaquim Silva e Luna, aconteceu em Caracas, e não em Brasília como escrevi ontem.
Merval Pereira: Situação agravada
Se fosse possível, o 01 já teria explicado, com documentos, todas as dúvidas sobre suas movimentações flagradas pelo Coaf
O caso que começou com uma suspeita de que o motorista Queiroz fosse seu “laranja” para receber parte do salário de seus funcionários da Assembleia Legislativa do Rio chega a um ponto de maior gravidade com o envolvimento de Flávio Bolsonaro com milicianos.
Deu medalhas a dois policiais acusados de serem milicianos, um dos quais preso terça-feira, e, para ajudar um deles, deu emprego à mãe e à filha no seu gabinete, a pedido de seu assessor Fabrício Queiroz. Já fizera, por sinal, vários discursos a favor de milícias, que definiu como organizações que atuam com base em técnicas militares e “ajudam a combater” o crime, como se não fossem criminosos.
O pai, hoje presidente, Jair Bolsonaro, também já fizera discurso na Câmara dos Deputados defendendo o papel das milícias. O motorista Queiroz, que deu início a todo esse imbróglio, foi quem pediu o emprego para os parentes do miliciano, justificando como uma ação humanitária.
Sabe-se agora, graças a Ancelmo Gois, que a família de Queiroz tem vans ilegais em Rio das Pedras, comunidade controlada pelas milícias onde, aliás, como informou Lauro Jardim, ele se escondeu no período inicial dessa confusão, quando deixou de comparecer duas vezes a audiências marcadas para ouvir oficialmente suas explicações.
Se fosse possível, o 01 já teria explicado, com documentos, todas as dúvidas sobre suas movimentações atípicas flagradas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ). Recusou-se a comparecer às audiências do Ministério Público, que investiga o caso, e, quando foi forçado a pronunciar-se, deu meias verdades como verdades inteiras fossem, misturando fatos reais com os criados por sua defesa, mas deixando sempre mais dúvidas no ar.
Atribuiu o dinheiro fracionado que recebeu em sua conta, indício de lavagem para o Coaf, à venda de um imóvel, no que foi confirmado pelo comprador. Mas os depósitos foram feitos muito depois que o negócio foi fechado.
Disse que ganha mais com a franquia de venda de chocolate do que como deputado estadual, mas donos de franquias como da Kopenhagen estranham que ele consiga tirar R$ 35 mil por mês. E os apartamentos que comprou são anteriores a essa franquia, quando Flávio era apenas um político estadual.
Finalmente, ao falar a uma televisão amiga, Queiroz disse que fazia muitos negócios de venda de automóveis usados. Mas os depósitos mensais em sua conta bancária feitos todo início de mês por funcionários do gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro não têm explicação, a não ser que todos tenham comprado carros com ele.
Um dos milicianos homenageados por Flávio está preso pela recente operação do Ministério Público contra milícias de Rio das Pedras e adjacências, suspeito de ter participação no assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.
Esse é o momento em que uma ilegalidade comum a muitos parlamentares, em todos os níveis de representação, se transforma em um ponto de inflexão. Pode passar a ser uma ligação direta com milicianos do Estado do Rio.
Evidentemente, a situação é constrangedora para o ex-juiz, hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, mas seu alcance é limitado por suas novas funções. Ele já não é o juiz da Operação Lava-Jato. Cabe ao Ministério Público do Rio de Janeiro investigar e, se for o caso, denunciar os culpados. Ele já demonstrou que é eficiente e ágil no combate à corrupção, e tem atuado com firmeza na investigação do caso Marielle, que pode acabar se imbricando com esse caso do senador eleito Flávio Bolsonaro.
O que está na sua alçada, Sérgio Moro está fazendo: anunciou que tratará as milícias na legislação que proporá ao Congresso como organizações criminosas, como o PCC ou o Comando Vermelho. E o Coaf, agora sob sua gestão, não parou de trabalhar no caso.
O presidente Bolsonaro já disse em Davos: se ficar provado que o filho errou, terá que pagar pelo que fez. Afinal, é sabido que o presidente, equivocadamente, acha que esse assunto não lhe diz respeito.