Merval Pereira
Merval Pereira: Curitiba deve perder
A disputa entre o sistema judiciário e o que o ministro do Supremo Gilmar Mendes chama de “Justiça de Curitiba” parece caminhar para um fim no julgamento que começou ontem do Supremo Tribunal Federal (STF), cuja maioria tende a aprovar que os crimes conexos aos de caixa 2, como corrupção ou lavagem de dinheiro, devem ser encaminhados à Justiça Eleitoral, que definirá se tem competência para julgá-los, ou se os encaminha para a justiça comum.
Prevaleceu a interpretação fixada em jurisprudência de mais de 30 anos, como frisou o ministro Alexandre de Moraes. Os promotores de Curitiba, que vinham forçando uma interpretação alargada da legislação em nome do combate à corrupção, tiveram a primeira grande derrota, que pode se transformar em golpe mortal nas investigações da Lava Jato contra políticos que não têm foro privilegiado, como no caso que começou a ser julgado ontem, o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes.
Nesses cinco anos de existência da Operação Lava Jato, interpretações legais ajudaram a levar adiante as investigações e condenações de políticos corruptos, na continuidade do comportamento pioneiro do STF no julgamento do mensalão.
O ministro Luis Roberto Barroso, do STF, encarna esse espírito quando diz que “tudo o que é certo e justo tem que encontrar lugar no Direito”. Condenações de políticos por crimes de corrupção e assemelhados não era um fato normal na Justiça brasileira, seja no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), seja no Supremo Tribunal Federal (STF), e a razão para essa dificuldade é que não são tribunais estruturados para tratar de fatos criminais.
Os procuradores de Curitiba sugerem que a dificuldade seja a relação promíscua entre políticos e membros dos tribunais superiores. No caso do TSE, muitos deles foram ou são também advogados de partidos e políticos.
O julgamento foi influenciado por um erro de estratégia dos procuradores de Curitiba, que nos últimos dias fizeram uma ação intensiva para defender a competência da Justiça federal nos crimes conexos aos eleitorais. Essa inabilidade ficou patente num artigo do procurador Diogo Castor no blog O Antagonista, com críticas tanto ao TSE quanto ao STF.
O advogado de defesa aproveitou o previsível repúdio dos ministros, inclusive porque a ministra Rosa Weber preside o TSE e vários deles já o presidiram, para levantar a tese de que estava havendo uma disputa ideológica de Curitiba contra os tribunais superiores.
O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, demonstrou sua indignação anunciando que faria uma representação no Conselho Nacional do Ministério Público. Para completar o quadro contra os procuradores, Castor fazia parte da fundação privada que os procuradores de Curitiba idealizaram, em conjunto com o governo dos Estados Unidos, para gerir parte da multa bilionária que a Petrobras teve que pagar pelos prejuízos causados aos investidores americanos.
Diante da reação negativa, os procuradores desistiram dele, mas o estrago na imagem estava feito. Fortaleceu-se a impressão, que já era grande entre os ministros do Supremo, de que a “Justiça de Curitiba” queria atuar autonomamente, emparedando os tribunais superiores.
As reações ao que chamava de “abusos” começaram mais nitidamente há tempos nas declarações e decisões do ministro Gilmar Mendes, que ontem parece ter alcançado a maioria do plenário. O ministro Alexandre de Moraes chegou a dizer que os procuradores queriam se transformar em uma “Liga da Justiça sagrada representando o bem contra a Justiça do mal”.
Tanto no STF quanto no STJ, ministros vinham, em algumas de suas turmas, interpretando a legislação a favor de Curitiba. No final do ano passado a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de suas turmas decidindo que prevalece a Justiça Eleitoral nos casos de crimes conexos.
O Supremo caminha para decidir a favor dos membros da Segunda Turma, que já vinham enviando à Justiça Eleitoral os casos de políticos acusados de corrupção e de caixa 2, sem separá-los.
A maioria da Segunda Turma é formada pelos ministros Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. Ontem os ministros Marco Aurélio de Mello, relator, e Alexandre de Moraes aderiram à tese, e pelo menos um ministro mais, o presidente Dias Toffoli, deve acompanhar o relator, formando a maioria.
Nota
O Ministério Público do Rio de Janeiro enviou uma nota dizendo que "é incorreta a informação de que o MPRJ buscou impedir a atuação da Polícia Federal ou teria recusado a colaboração do órgão em apoio às investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. A instituição, por meio da Procuradoria-Geral de Justiça, adotou, desde o primeiro dia de instauração do inquérito, a postura de abertura e declarou publicamente a importância da colaboração da PF no caso, o que não deveria ser confundido com o deslocamento de competência pretendido na tentativa de federalização das investigações".
Reafirmo as informações publicadas na coluna de quarta-feira, com base em informações do então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann.
Merval Pereira: Difícil de engolir
Tudo indica que a relação do crime organizado com a política foi exacerbada no Rio nos últimos tempos
Atese improvável de a execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes não ter tido motivação política nem mandante, apenas pelo ódio de um miliciano à atuação da vereadora, faz a apresentação de novos dois suspeitos parecer uma peça de ficção. Uma versão difícil de engolir.
O delegado Giniton Lages, da Delegacia de Homicídios da Capital, que deu a coletiva de imprensa em que as investigações foram apresentadas, disse que não tem “a mínima ideia” se houve mandante, e qual sua motivação. É o mesmo que o miliciano Orlando de Curicica acusou de tê-lo coagido a confessar o crime em troca de proteção à sua família.
O governador Wilson Witzel, que liderou a entrevista, é o mesmo que, em comício em Petrópolis durante a campanha, aparece em um vídeo comemorando a destruição de uma placa com o nome da vereadora.
O mesmo também que, ao assumir o governo em janeiro, retomou velhas práticas políticas. Ao mesmo tempo em que colocava a segurança pública como prioridade, apoiando uma legislação que permita o abate de bandidos armados, atendia a pedidos políticos para nomear delegados e comandantes de batalhões, sistema que havia sido abolido pela intervenção militar na segurança pública do Rio, que se encerrou em dezembro.
Tanto o general Braga Netto, interventor federal, quanto o general Richard Nunes, então secretário de Segurança do Rio, criticaram o fim da Secretaria de Segurança, decisão que foi de encontro à reestruturação das forças policiais que estava sendo feita.
O general Richard, que hoje é chefe de gabinete do comandante do Exército, foi espionado por um dos milicianos presos, segundo a investigação da polícia.
Apenas a hipótese de que o crime não teve mandante, ou tenha sido um crime de ódio, sem implicações políticas, levaria à conclusão de que o crime organizado que domina comunidades pobres, subjugando cerca de 1,7 milhão de pessoas, passou a um estágio mais descontrolado de crime desorganizado, o que piora em muito a situação.
Tudo indica, porém, que a relação do crime organizado com a política foi exacerbada no Rio nos últimos tempos. Em decorrência natural da dominação de territórios, controla votos em certas regiões do estado e ganha condições de fazer indicações para cargos, inclusive os responsáveis por delegacias policiais ou comandantes de batalhões da Polícia Militar.
O trabalho de reorganização das polícias corre o risco de se perder pela adoção das antigas práticas clientelistas, que dão sinais de retornar. O caso da investigação do assassinato da vereadora Marielle é exemplar.
Quando o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, combinou com Raquel Dodge que a Polícia Federal entraria no caso, o Ministério Público estadual foi ao Conselho Nacional do Ministério Público contra a decisão, e conseguiu apoio para impedir a atuação da PF.
Jungmann deu orientação para que a Polícia Federal passasse informações que tivessem sobre o caso para a polícia do Rio de Janeiro, o que aconteceu. Mas a PF nunca recebeu informações sobre as investigações, nem foi chamada a participar das reuniões da força-tarefa do Rio.
Depois de seis meses sem resultados, Jungmann, como todos achavam que o Ministério da Segurança Pública, através da Polícia Federal, estava à frente das investigações, resolveu dizer publicamente que a Polícia Federal tinha condições de assumir as investigações. Novamente, o Ministério Público do Rio recusou a colaboração.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, interessada em que as investigações prosperassem, diante da reiterada recusa do Ministério Público do Rio, propôs que a Polícia Federal entrasse no caso para “investigar a investigação”.
Houve muita reação, mas hoje existe uma força tarefa da Polícia Federal trabalhando no caso, que já pediu quebra de sigilo telefônico de 30 pessoas, e de sigilo bancário de outras 80. É desse trabalho que pode vir o esclarecimento mais importante: quem mandou matar Marielle, e por quê.
Merval Pereira: Julgamento decisivo
STJ vinha entendendo que, com conexão entre o crime federal e o eleitoral, processos seriam separados
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decide amanhã uma discórdia fundamental para o combate à corrupção no Brasil. Trata-se de decidir, num inquérito sobre o deputado federal Pedro Paulo, do MDB do Rio, se as suspeitas de caixa 2, corrupção e evasão de divisas em 2012, na campanha que elegeu Eduardo Paes prefeito do Rio de Janeiro, devem ser julgadas pela Justiça Eleitoral.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vinha entendendo há tempos que, havendo conexão entre crime federal e crime eleitoral, os processos deveriam ser separados, ficando com a Justiça Eleitoral apenas o crime eleitoral. O crime de corrupção, por exemplo, continuaria com a Justiça Federal.
A Segunda Turma do STF, formada pelos ministros Ricardo Lewandowski, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia e Edson Fachin, passou a decidir que tudo fica com a Justiça Eleitoral, o que, no entender dos procuradores de Curitiba e do próprio ministro Sergio Moro, prejudica o combate à corrupção, pois a Justiça Eleitoral não teria estrutura para julgar crimes complexos como, por exemplo, os descobertos na Lava-Jato.
Alegam que a Justiça Eleitoral não tem especialização nesse tipo de investigação; tem juízes e promotores que rodam a cada dois anos, mal daria para conhecer os processos complexos da Lava-Jato, fora a insegurança jurídica da mudança de juiz ou promotor; tem juízes que são advogados, não revestidos das mesmas garantias; tem de dar prioridade para feitos eleitorais por força de lei, especialmente em ano de eleições, o que poderia deixar casos de corrupção de lado.
Uma saída que preservaria a eficácia da atuação da Justiça Federal seria manter a separação, deixando com a Justiça Eleitoral somente o crime eleitoral. Outra saída, falando especificamente de corrupção e caixa 2, seria reconhecer que, se há corrupção, isto é, contrapartida da autoridade pública, não se configura caixa 2.
No julgamento do mensalão já ficou estabelecido, através de um voto do então ministro Ayres Britto, aprovado pelo plenário, que não há caixa 2 quando se trata de dinheiro público, mas sim peculato. A ideia por trás dessa decisão é que a corrupção é um crime mais grave, e envolveria o recebimento de vantagem indevida com contrapartida, ainda que na forma de doação eleitoral não registrada, ou não contabilizada, conforme a definição do tesoureiro do PT, Delúbio Soares.
Já no caixa 2, haveria doação eleitoral sem contrapartida, que é o que alega o ex-prefeito Eduardo Paes, que tem sido isentado por todos os delatores de ter oferecido contrapartida em troca de doações. Reconhecer só a corrupção já seria suficiente para afastar a competência da Justiça Eleitoral.
No projeto anticrime, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, propôs alteração da legislação para deixar claro que a competência da Justiça Eleitoral se limita aos crimes eleitorais.
Propôs também, baseado em sugestão da Transparência Internacional, o que considera ser “uma melhor criminalização do caixa 2 eleitoral”, com pena maior do que a atual, e o crime mais bem descrito, através da introdução de um artigo no Código Eleitoral (art. 350-a).
E se o fato constituir crime mais grave, como a corrupção, configura-se só o crime mais grave. Não há anistia, como muitos inferem, pois não será revogado o atual art. 350 do Código Eleitoral que criminaliza o caixa 2 como falsidade ideológica de prestação de contas eleitoral. Condutas posteriores à nova lei, se aprovada, seriam enquadradas no novo artigo 350-a.
A separação dos projetos foi feita, como Moro já disse publicamente, para atender a solicitações do mundo político, para não tratar o crime de caixa 2 no mesmo projeto sobre corrupção, crime organizado e crimes violentos.
Se o STF entender que não existe a separação entre crimes, indo o processo para a Justiça Eleitoral, será o fim de grandes investigações de corrupção política, alegam os procuradores. A questão é que, na Lava-Jato, o dinheiro da venda do serviço público, caracterizada como corrupção, ia em parte para as campanhas, através do caixa 2, e até mesmo através do caixa 1, utilizando-se assim a Justiça Eleitoral para lavar o dinheiro da corrupção.
Na investigação política, uma vez existindo provas inarredáveis, o candidato sempre dirá que o dinheiro era caixa 2 de campanha.
Merval Pereira: Governar pelo Twitter
O importante é distinguir os interesses eleitoreiros imediatos daqueles do Estado brasileiro
O presidente Jair Bolsonaro no cotidiano do governo padece de uma paradoxal dificuldade institucional de comunicação, que não existia no candidato Bolsonaro, que teve justamente na capacidade de interação direta com o cidadão um dos trunfos para ser eleito. Deixar a campanha eleitoral para governar parece ser uma impossibilidade para políticos populistas.
A diferença entre uma situação e outra é o que tem gerado muitas das crises políticas que parecem se suceder nesses primeiros 60 dias de gestão. Os mais recentes, relativos à divulgação de um vídeo pornográfico durante o Carnaval e à afirmação de que a democracia só existe porque as Forças Armadas querem, são faces da mesma situação.
Na primeira, utilizando as novas mídias, Bolsonaro, segundo Manoel Fernandes, diretor da revista digital BITES, reanimou parte da sua audiência digital pouco entusiasmada com debates sobre economia, como a reforma da Previdência, e que se ressentia de debates mais inflamados em torno de uma agenda de costumes.
No outro caso, quando se referiu ao papel dos militares na democracia, tudo indica que cometeu no mínimo um ato falho, quando o inconsciente revela uma opinião reprimida. Ao dizer que a democracia só existe no Brasil porque os militares “querem”, Bolsonaro se expressou mal, conforme explicaram vários assessores, mas, diante de seu passado de defesa do golpe militar de 64, causou temor de que considere mesmo que a democracia é uma concessão dos militares aos civis.
O porta-voz do governo, General Rêgo Barros, citou o cientista político americano conservador Samuel Huntington para garantir que o sentido da fala do presidente foi o de enaltecer o trabalho das Forças Armadas na defesa da democracia:
— O controle civil objetivo, propugnado por Samuel Huntington, advoga que as Forças Armadas devem ser a fortaleza desse controle civil. Naturalmente, as Forças Armadas brasileiras já o são, por defenderem veementemente a democracia.
O mesmo Huntington fora citado pelo General Villas Bôas, então comandante do Exército, no Twitter, “Samuel Huntington nos instiga: ‘A lealdade e a obediência são as mais altas virtudes militares; mas quais serão os limites da obediência?’ O Estado, ao nos delegar poder para exercer a violência em seu nome, precisa saber que agiremos sempre em prol da sociedade da qual somos servos”, escreveu em novembro de 2017.
No episódio do vídeo pornográfico que divulgou em seu twitter, segundo análise da BITES divulgada pela consultoria Arko Advice, o presidente revelou que ainda tem forte apoio dos seus eleitores, e conta com o silêncio tático daqueles que votaram nele, mas que discordam dos seus posts no Twitter. O sentimento antipetista ainda não arrefeceu, o que o favorece.
Entre os 556 posts publicados pelo presidente no Twitter desde a sua posse, “O que é Golden shower” é aquele de maior dispersão digital, com 57.639 compartilhamentos, e o quarto de maior adesão desde janeiro.
Antonio Egidio Nardi, Professor Titular de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) considera que “o mundo informatizado, onde todos temos um computador na mão, exige um aprendizado de repassar dados, opiniões, filmes, fotos e sentimentos. As pessoas do poder estão a um toque de milhões de seguidores”.
Esta aproximação, ressalta Nardi, acaba se traduzindo em uma desmistificação de que os poderosos são perfeitos. “A educação e a ética nas mensagens e postagens devem fazer parte do aprendizado atual. Cenas violentas e obscenas, radicalismos e falta de educação podem chegar a qualquer um e nem sempre serão bem vindos”.
Um novo governo, qualquer que seja ele, tem que aprender a ser governo no mundo digital, e demonstrar seu poder de influenciar e criar opinião. “As opiniões pró e contra formarão o perfil do novo governo, moldando o seu estilo ao longo do tempo. A velocidade da informação e seu alcance positivo ou negativo muda a todos, e nós mudamos e moldamos a qualidade das informações que passamos ao mundo, para melhor ou pior”.
Segundo a revista BITES, os apoiadores de Bolsonaro foram capazes de reagir consistentemente nas redes sociais para defender o presidente no caso do vídeo, mas ainda não foram convencidos da real necessidade de uma mudança no atual sistema previdenciário. “Bem treinados, podem ajudar bastante na votação no Congresso, pressionando parlamentares contrários ou indecisos”.
As críticas que tem recebido, mesmo que não tenham a capacidade de abalar sua popularidade entre os aficionados, devem lembrar ao presidente que ele foi eleito por muitos cidadãos que não se engajam em suas cruzadas moralistas. O importante é distinguir os interesses eleitoreiros imediatos daqueles do Estado brasileiro.
Merval Pereira: Redução de partidos
Base do governo deve ser desidratada pelo agrupamento de partidos que hoje fazem parte dela sem grandes convicções
As negociações sobre a reforma constitucional da Previdência, que exige um quorum qualificado de 308 votos na Câmara para ser aprovada, embute uma reformulação partidária que deve acontecer no final do ano, com os partidos preparando-se para a eleição municipal de 2020, quando pela primeira vez serão proibidas as coligações proporcionais.
Haverá um enxugamento do número de partidos políticos, exatamente a intenção da reforma constitucional que impôs também cláusulas de desempenho. A não ser que o Tribunal Superior Eleitoral continue sendo complacente com a criação de novas siglas.
Exatamente 14 dos 35 partidos existentes não cumpriram a cláusula de desempenho exigida pela nova legislação, na eleição de 2018. Patriota, PHS, PC do B, PRP, Rede, PRTB, PMN, PTC, PPL, DC, PMB, PCB, PSTU e PCO entrarão na eleição municipal em desvantagem, com mais dificuldade para continuar existindo. Podem continuar atuando no Congresso, mas sem grandes perspectivas.
Inclusive porque perderam o acesso ao fundo partidário e ao tempo gratuito de rádio e televisão. A cláusula de desempenho tem mais rigidez à medida que as eleições vão acontecendo, até 2030. Os partidos punidos com a perda do fundo partidário e propaganda eleitoral gratuita não tiveram ao menos 1,5% dos votos válidos nas eleições de 2018 para a Câmara dos Deputados, distribuídos em pelo menos 1/3 das unidades da federação (9 unidades), com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas.
Também não conseguiram eleger pelo menos 9 deputados federais, distribuídos em um mínimo de 9 unidades da federação, uma exigência alternativa que fez, por exemplo, com que o Partido Novo superasse a cláusula de desempenho.
Nas próximas eleições proporcionais, em 2022, a exigência será maior: só terão acesso ao fundo e ao tempo de TV os partidos que receberem 2% dos votos válidos obtidos nacionalmente para deputado federal em 1/3 das unidades da federação, sendo um mínimo de 1% em cada uma delas; ou tiverem elegido pelo menos 11 deputados federais distribuídos em 9 unidades.
A emenda constitucional em vigor não incluiu a criação das chamadas federações partidárias, que permitiriam que partidos atuassem unidos durante uma legislatura e pudessem disputar os votos conjuntamente. Já a chamada "janela" partidária continua em vigor, o que permitirá que os candidatos mudem de partido seis meses antes das eleições.
Sem tempo de televisão e fundo partidário, os partidos que não cumpriram as cláusulas de desempenho na eleição passada, mesmo com as coligações proporcionais vigorando, ficarão ameaçados de extinção já na eleição municipal de 2020. Por isso, é provável que mudanças de partidos e fusões sejam o tema principal já no final do próximo ano, quando idealmente a reforma da Previdência já tiver sido votada.
A atuação dos partidos durante a votação será um bom indicativo sobre os desdobramentos das negociações partidárias. Existem dois grandes blocos partidários hoje na Câmara, um teoricamente formado pela base governista, que tem 308 deputados, e outro da oposição, com 82 deputados.
Desses dois grupos sairão as prováveis fusões, que já começam a ser negociadas nos bastidores. A base do governo deve ser desidratada pelo agrupamento de alguns partidos que hoje fazem parte dela sem grandes convicções, como PSDB e DEM.
Esses dois partidos devem ser o centro das fusões, formando partidos de centro-direita e centro-esquerda para se confrontar com os atuais polos partidários de extremos representados pelo PSL e o PT. A ideia em circulação entre esses políticos é que é preciso criar alternativas de centro para se contrapor ao radicalismo dos dois partidos que disputaram o segundo turno da eleição de 2018.
Há conversas entre o DEM, o PSDB de João Dória, o PSD de Kassab, e outros para a criação de um partido de centro-direita que, pelas contas iniciais, poderia ter mais de 80 deputados. E o PSDB que não aceita a liderança do governador de São Paulo provavelmente se unirá ao PPS e a outros, como a Rede e o Partido Verde, para oferecer uma alternativa de centro-esquerda.
Se o governo conseguir êxito na sua atuação, é previsível que aumente sua bancada, hoje a maior da Câmara, fortalecendo o bloco da extrema direita. PT e o bloco formado por PDT, Solidariedade, Podemos, PCdoB, PROS, Avante, PV e DC podem se unir parcialmente, embora o PDT pretenda ser o líder da oposição em substituição ao PT. Há quem avalie também que o PSOL pode vir a ocupar esse lugar se tiver uma atuação independente do PT.
Merval Pereira: Momento deprimente
É deprimente ter que tratar de um assunto desses no momento em que o país tem em jogo tantos assuntos importantes para o seu futuro. Ser fiscal dos costumes não é, definitivamente, o papel de um presidente da República. Para isso, há leis e órgãos de fiscalização e repressão.
Não se trata de defender, muito menos de eximir de culpa os que praticaram os atos pornográficos exibidos pelo presidente em seu Twitter. Atentado ao pudor merece as penas da lei. Mas generalizar um comportamento pervertido como sendo o retrato de blocos de carnaval é uma atitude desprezível, sobretudo para o presidente de um país que tem no Carnaval a sua maior festa, que injeta dinheiro em uma economia paralisada, promove empregos, mesmo que temporários, e é o símbolo do povo brasileiro, que cativa os estrangeiros.
Bolsonaro, postando um vídeo daquele nível numa rede pública, está cometendo um atentado ao decoro, divulgando material pornográfico com a chancela da presidência da República. O presidente Jair Bolsonaro tem é que estar empenhado em aprovar as reformas importantes, sobretudo a da Previdência, sobre a qual são poucas suas manifestações na internet.
Além do mais, ao sugerir que esta é a imagem do Carnaval, está sendo injusto com a imensa maioria dos foliões, e prejudicando um dos ativos intangíveis mais valiosos que a cultura brasileira tem. Por que não publicar os milhares de vídeos mostrando uma comemoração saudável, com famílias inteiras nos blocos, inclusive crianças?
Não tem sentido, mesmo que tenha razão nas críticas, publicar um vídeo pornográfico em seu twitter pessoal. Se quer dar prioridades aos temas de costumes, poderia ter feito comentários, chamando a atenção para fatos como os que exibiu explicitamente. Fazer campanha contra o turismo sexual é, sim, papel do governo e saudável para o país.
É inacreditável, no entanto, que Bolsonaro não tenha noção do que seja uma impropriedade da função para a qual foi eleito. O perigo é que confunde suas convicções pessoais com as da Nação. Se quer que seu moralismo exacerbado seja o novo normal do país, tem que dar o exemplo. E postar pornografia não é certamente a melhor maneira de preservar sua autoridade, a nível nacional e internacional.
Bolsonaro já admitiu, entre gargalhadas, num programa CQC na Rede Bandeirantes, que, quando adolescente, fez sexo com diversos animais como “jumentinho” e “galinha”. A isso chama-se zoofilia, atração sexual de humanos por animais. Assim como a cena exibida por Bolsonaro é chamada de urofilia. Ambas são patologias classificadas como parafilia, “preferências sexuais anormais e doentias”.
Sua atitude, na melhor das hipóteses, está sendo atribuída a uma revanche contra os blocos de rua que o criticaram em diversas partes do país. Tomando a parte mínima pelo todo, Bolsonaro estaria desqualificando as críticas.
Mas há também a possibilidade de que tenha querido agradar uma parte importante de seu eleitorado, que vê no Carnaval uma festa profana que não deve ser estimulada. Seria a mesma atitude do prefeito Marcelo Crivella que nunca deu importância para o Carnaval, viajando para fora do país no momento que deveria ser mais importante, se recusando a entregar a chave da cidade para o Rei Momo, sem assistir ao desfile das escolas de samba.
Infelizmente houve vários presidentes brasileiros que protagonizaram cenas que os desmoralizaram, ferindo o decoro do cargo. Como Collor quando disse, num comício público, que tinha “aquilo roxo”. Ou Itamar, que recebeu no camarote presidencial no Carnaval uma mulher sem calcinha. Esses foram atos públicos, fora os privados, que chegaram ao público através de vídeos e gravações.
Como Lula, numa campanha, fazendo piada com os homossexuais. Ou chamando as mulheres de “grelo duro” a defendê-lo. Em todos esses casos, o machismo brasileiro se impôs, ajudando a esvaziar a repercussão da fala inapropriada.
Bolsonaro deveria entender que chegou ao Palácio do Planalto também com os votos daqueles que o consideravam o mal menor, que não queriam a volta do PT ao poder. Numa democracia, o eleito é presidente de todos os brasileiros, mesmo dos que não votaram nele.
Dos seguidores de todas as religiões, de todas as pessoas que brincam Carnaval, e das que não brincam também. Por isso não tem o direito de querer impor suas convicções pessoais ou politicas. O exemplo do veto à indicação de Ilona Szabó para a suplência de um Conselho do ministério da Justiça mostra que ele não entende que no governo, e especialmente num conselho consultivo, é preciso ter quem pense diferente para ajustar as decisões do governo aos anseios da sociedade, que não se expressa pelas redes sociais. Ou pelo menos não só através delas.
O conteúdo explicito da pornografia acontecida em público, e sua divulgação, sob o pretexto de defender a moralidade, foram momentos deprimentes do triste cotidiano de um país que não consegue construir seu futuro.
Merval Pereira: Venezuela e Cuba
Agentes cubanos vigiam os militares, suas famílias, e ameaçam os dispostos a abandonar Maduro
O vice-presidente Hamilton Mourão atribui a resistência da cúpula das Forças Armadas venezuelanas, entre outros motivos, a uma ação de agentes cubanos que vigiam os militares, suas famílias, e ameaçam os que pareçam dispostos a abandonar o ditador Nicolás Maduro para aderir ao governo de transição de Guaidó. A revelação foi feita em entrevista para a GloboNews na noite de quarta-feira, e dá uma nova dimensão ao apoio que o governo Bolsonaro vem dando ao governo que se anuncia como o substituto legal de Maduro.
Mourão foi o representante brasileiro na reunião do Grupo de Lima que reiterou seu apoio ao governo de transição e rechaçou a possibilidade de uma intervenção militar com o apoio dos Estados Unidos. Mas a negativa de que o território nacional pudesse servir de ponte para uma invasão militar não significa que os militares brasileiros se recusam a ser parceiros dos americanos nessa luta política para derrubar Maduro.
O vice-presidente reafirmou a parceria com os Estados Unidos na defesa da democracia e descartou que o petróleo seja a razão por trás da ação dos americanos na Venezuela. Ele chegou a avaliar que o petróleo já não seja um ativo tão poderoso quanto já foi, estando com os dias contados como principal força de energia do planeta. Mourão relacionou questões ambientais e novas energias alternativas como indicadores de que o petróleo já não vale uma guerra. Ainda mais o petróleo venezuelano, que é muito pesado e necessita ser trabalhado por refinarias especiais.
O general Mourão conhece bem a região amazônica, pois, além de ser filho de um natural da região —ele chega a se identificar como índio—, comandou a região militar do Amazonas. Por isso, sua opinião sobre a obra da linha de transmissão de energia de Tucuruí para Roraima teve peso especial.
Pela segunda vez em dois meses de governo, o presidente Bolsonaro convocou o Conselho Nacional de Defesa, formado pelos presidentes dos três Poderes e mais vários ministros, desta vez para conseguir a autorização de construir o linhão que levará energia de Tucuruí para Roraima sem que os índios waimiriatroari, que ocupam uma reserva no traçado da linha, possam impedir a obra, como vem acontecendo desde 2011. A primeira vez foi para decidir a participação do Brasil na ajuda humanitária aos venezuelanos. Os dois temas são conexos.
A ligação entre Manaus e Boa Vista foi considerada como alternativa energética estratégica. Com isso, o governo pode usar uma salvaguarda decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) que define que o usufruto dos índios não se sobrepõe, entre outros casos, ao interesse da política de defesa nacional e à exploração de alternativa energética de cunho estratégico.
Essa decisão foi tomada no julgamento da reserva indígena Raposa Serra do Sol. O relator, ministro Ayres Brito, hoje aposentado do STF, definiu condições para que a reserva fosse mantida. Mas, preocupado com os interesses nacionais, deixou claro no acórdão que não existem povos indígenas, e sim etnias. Também não existe “território indígena”, uma definição política que não deve ser usada para o usufruto dos indígenas. Ayres Brito insiste também em que não existe “nação indígena”. “Nação, só a brasileira.”
Roraima depende da energia que vem da Venezuela para seu abastecimento, e sofre constantemente de apagões. Quando acontecem, as termelétricas são acionadas, o que transforma a energia de Roraima na mais cara para os brasileiros. Só este ano está previsto um gasto de R$ 600 milhões, que é repartido pelos consumidores de todo o país. Os índios que vivem naquela região consideram que o território em que passará parte do linhão é sagrado, e não se chega a um acordo sobre o tema há oito anos.
Há ainda um componente político curioso nessa manobra que permite uma obra importante que se arrasta há muito tempo: um dos maiores interessados na manutenção da termelétrica que abastece Roraima em caso de apagão é o ex-senador Romero Jucá, que teria o controle político e econômico da empresa que ganhou a concessão. Jucá diz que são intrigas regionais, mas o fato é que o assunto foi levantado na reunião do Conselho de Defesa Nacional no Palácio do Planalto.
A coluna volta a ser publicada no dia 7. Bom carnaval a todos.
Merval Pereira: A realidade bate à porta
Apoios partidários a projetos, como a reforma da Previdência, deveriam ser parte do cotidiano
A realidade política finalmente entrou em campo na negociação da reforma da Previdência. O presidente Jair Bolsonaro, ao mesmo tempo em que prometeu usar sua influência nas redes sociais para explicar a reforma e defendê-la, abriu as portas para as mudanças que os parlamentares fizerem: “a reforma boa é a de vocês”, repetiu.
Mas a dose de transigência parece ter sido alta demais, e ontem se viram ministros e líderes governistas correndo para apagar o fogo. A palavra de ordem foi admitir mudanças, desde que a economia de R$ 1 trilhão prevista para dez anos pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, seja mantida.
Ele próprio conversou com os presidentes da Câmara e do Senado para reafirmar a disposição de negociar hoje, mas mantida o que o chefe do Gabinete Civil, Onyx Lorenzoni, chamou de a “cláusula pétrea” da reforma.
O governo Bolsonaro parece estar se curvando a esta realidade. Como advertira o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, Bolsonaro estava refém da campanha eleitoral e constrangido pela própria criminalização da política, para aceitar uma negociação no Congresso que viabilize a aprovação da emenda constitucional da Previdência.
O cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getulio Vargas do Rio, no programa “Entre aspas”, de Monica Waldvogel, na GloboNews, deu uma institucionalizada nas negociações do Congresso, lembrando que, em qualquer país do mundo, o governo tem que ceder para obter a maioria no Congresso, sem o que não se governa.
O governo Jair Bolsonaro começou bem a montagem do Ministério — sem que essa afirmação represente uma análise da qualidade dos ministros — ao não delegar aos partidos políticos a escolha, e seguir seus próprios critérios. Mas a radicalização das posições partidárias travou uma relação que poderia se dar de outra maneira que não a fisiológica, que prevaleceu no nosso presidencialismo de coalizão.
Apoios partidários a programas e projetos, como agora no caso da reforma da Previdência, deveriam fazer parte do cotidiano dos governos, especialmente em um sistema partidário tão fragmentado quanto o nosso. Ele cita o governo de Fernando Henrique como o que melhor se comportou nessa relação com o Congresso, e admite que a situação se deteriorou nos governos petistas, diante da evidência de corrupção generalizada na relação com o Legislativo.
Mas considera perfeitamente aceitável a troca de nomeações para cargos e aprovação de emendas parlamentares por apoio parlamentar. O que não pode acontecer, como vinha se tornando praxe, são nomeações de pessoas desqualificadas para os cargos técnicos a serem preenchidos, avaliou no mesmo programa o empresário Eduardo Mufarrej, líder do movimento RenovaBR, que prepara novas lideranças políticas no país.
Este governo tem alguns exemplos de como uma seleção criteriosa pode evitar nomeações pelo critério puramente político ou pessoal. Um amigo do presidente Bolsonaro foi vetado na Petrobras por não preencher as qualidades exigidas pelo cargo.
Mas, como toda transição é penosa, ainda há nomeações na cota pessoal de governistas, e do próprio presidente. O ambiente econômico, porém, parece ajudar uma negociação dentro de parâmetros civilizados, pois há um consenso de que a reforma da Previdência é inevitável. E também sobre os pontos a serem alterados na proposta de governo.
As alterações do Congresso na proposta da nova Previdência sobre aposentadoria rural e Benefício de Prestação Continuada a idosos parecem inevitáveis. São alterações, sem dúvida, que corrigem distorções no sistema previdenciário, mas, do ponto de vista social, não podem ser as prioridades. Enquanto não se acabar realmente com os privilégios dos mais favorecidos, é difícil defender o corte de “privilégios” dos mais necessitados.
A maior batalha, e esta sim afeta o centro da reforma da Previdência, será a negociação sobre o período de transição das novas medidas. Há quem queira aumentá-lo de dez para 15 anos, e essa mudança afetaria gravemente o resultado final da reforma.
Será preciso fazer muita conta, e estabelecer as prioridades, para que a reforma de Bolsonaro não seja tão desidratada quanto a de Temer. O Congresso não pode usar seu poder para obstruir uma reforma tão fundamental para o país, sem oferecer sua quota de sacrifícios.
A perda momentânea de popularidade é uma ameaça a quem vive de votos, inclusive o próprio Bolsonaro, mas precisam estar convencidos de que, a médio prazo, a reforma ajudará a retomada da economia brasileira.
Merval Pereira: Escolas com (outro) partido
E as escolas públicas? Terão seus diretores segurança para recusar a proposta do ministro de cantar o Hino?
Está tudo errado na “sugestão” do ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, para que as escolas coloquem seus alunos cantando o Hino Nacional, o que foi mantido ontem, apesar da polêmica que provocou. E indica que o governo que denuncia a partidarização das escolas no governo petista quer apenas trocar de partido.
Retirar o slogan político da campanha de Bolsonaro é o de menos, mas colocá-lo na mensagem oficial indica que o novo ministro da Educação tentou infiltrar nas escolas do país uma propaganda política do governo a que serve. Só não conseguiu porque seu abuso de poder foi denunciado.
Mandar pedir autorização dos pais para que seus filhos sejam filmados, também, é só uma questão de cumprir a legislação em vigor. Mas indica que o governo estava se preparando —e pelo visto continua com a ideia — para promover campanhas “educativas” utilizando-se dos alunos e professores. O problema maior é o subterfúgio usado para implementar uma promessa de campanha do presidente eleito.
Durante a campanha eleitoral, tanto Jair Bolsonaro quanto seus filhos prometeram que o Hino Nacional voltaria a ser cantado nas escolas brasileiras.
O Ministério da Educação (MEC) afirma que se trata de um “pedido de cumprimento voluntário” e que os diretores que quiserem seguir a recomendação do ministro devem ler a carta aos alunos no primeiro dia letivo deste ano.
Ora, para as escolas particulares, não haverá muito problema em recusar a “sugestão” do ministro. Mas, e as escolas públicas? Terão seus diretores segurança para recusar a proposta do ministro? Outra questão grave é a permissão dos pais para que seus filhos sejam filmados.
Não me parece uma solução, pois também nas escolas públicas do país a maioria dos pais se sentirá constrangida diante de um pedido da diretoria da escola. Especialmente nas regiões menos desenvolvidas.
Quem se recusar, qual garantia terá de que não será perseguido, do ponto de vista institucional, no caso dos diretores discordantes, ou do pessoal, no caso de constrangimento para assinar a autorização? E os alunos que se recusarem, que ambiente passarão a ter nas suas escolas?
O ministro Vélez Rodríguez diz, com razão, que cantar o Hino Nacional “não é constrangimento, é patriotismo”. Mas patriotismo só é imposto em governos autoritários. É um sentimento de pertencimento que move muitos cidadãos espontaneamente. Ninguém precisa mandar a torcida brasileira cantar o Hino Nacional, às vezes à capela. Estímulos oficiais pelo patriotismo podem levar a frases como a de Samuel Johnson, que dizia que “o patriotismo é o último refúgio do canalha”.
Uma sugestão dessas só poderia ser feita pelo MEC depois de ouvidas as entidades ligadas à educação, num ambiente institucional adequado, certamente o Conselho Nacional de Educação (CNE).
Não se trata de concordar ou não com cantar o Hino, mas de uma orientação oficial que muda o cotidiano das escolas. A recomendação lembra o governo Vargas, que estimulava esse tipo de “patriotada”, ou a implantação das matérias Estudo de Moral e Cívica (EMC) e a Organização Social e Política do Brasil (OSPB), que se tornaram obrigatórias no currículo das séries dos hoje ensinos fundamental e médio em 1969, em substituição a Sociologia e Filosofia. Aliás, a volta dessas duas matérias está nos planos do novo governo. O Hino Nacional seria apenas o começo.
Mas, mesmo na ditadura, essas mudanças no currículo seguiram os trâmites legais, sendo aprovadas no Conselho Nacional de Educação. No governo Temer, em 2017, o Ministério da Educação decidiu promulgar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio, com alcance para todos os alunos da educação básica no Brasil, depois de amplo debate no Conselho Nacional de Educação e também no Congresso Nacional.
É uma norma de Estado e, como disse na ocasião da sua aprovação o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), “deve ser implementado independentemente de quem esteja no governo federal ou estadual”. O mesmo Consed protestou contra a “sugestão” do ministro da Educação.
Segundo especialistas, é a autonomia e a liberdade do ensino que estão em jogo, e, sem isso, não existe aprendizado, existe controle mental, o que é bem grave do ponto de vista, inclusive, legal.
Merval Pereira: Política de defesa
Há muitos militares e civis com autoridade sobre o problema, sem possibilidade de efetiva coordenação entre eles
Embora remota e improvável, a possibilidade de um confronto militar na nossa vizinhança, trazida à tona pela crise da Venezuela, levanta questões importantes sobre o nosso sistema de defesa. Eduardo Brick, professor da Universidade Federal Fluminense, no momento atuando na Escola Superior de Guerra como docente do programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa (PPGSID) e na criação do Centro de Capacitação em Aquisição de Defesa (CCAD), considera que a situação imediata não apresenta ameaça, mas, a longo prazo, precisamos mudar a visão do Estado sobre a política de defesa.
Brick considera que o potencial econômico, tecnológico, industrial e militar do Brasil no seu conjunto é muito maior do que o da Venezuela. “O que está realmente em questão é o preparo da nossa defesa em médio e longo prazos, tendo em vista a evolução das tecnologias e da guerra”.
O professor considera que nossa estrutura atual é muito ineficiente, pois existem muitos militares e civis com autoridade sobre este problema, sem possibilidade de efetiva coordenação entre eles, e multiplicação de estruturas para tratar dos mesmos assuntos.
Falta também capacitação profissional para tratar deste assunto, pois “a qualificação dos militares é precipuamente voltada para o combate, e não para a logística de defesa”. Como a capacidade militar demanda décadas de planejamento bem feito e detalhado, a situação já estava crítica muito antes da crise econômica.
Capacidade militar, lembra ele, é a soma de capacidades operacional de combate, de inovação (CT&I), industrial e de gestão estratégica. “O cenário geopolítico para o Brasil, pelo menos depois do desmantelamento da União Soviética e do acordo Brasil-Argentina para dirimir os atritos entre os dois países, tem sido indubitavelmente benéfico”. Portanto, ressalta Brick, são cerca de 30 anos (o período dos governos civis), que deveríamos ter aproveitado para fortalecer o que ele chama de Base Logística de Defesa (BLD), e não o fizemos.
Brick diz que um bom indicador é o percentual do orçamento de defesa usado para aquisições de bens de capital e investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e ciência, tecnologia e informação (CT&I). “O ideal teria sido de 30% a 40 %, mas em raras ocasiões passamos dos 10%”.
No Brasil, ressalta Eduardo Brick, a BLD está desmembrada e, em grande parte, subordinada às três Forças Armadas, com grande redundância de órgãos para cuidar dos mesmos problemas, que em grande parte não estão associados a uma Força apenas. Para o especialista, “bastaria uma única organização no âmbito do Ministério da Defesa”.
Esta é a solução adotada pela maioria dos países, inclusive pela necessidade de maior eficiência em função das restrições orçamentárias. Nesses países (França, Reino Unido, Suécia, Austrália, Alemanha, Holanda, Canadá, Espanha, Índia entre outros), as funções de logística de defesa foram retiradas da subordinação das Forças Armadas e centralizadas em uma a duas instituições independentes, subordinadas ou não ao Ministério da Defesa.
Adicionalmente, diz Eduardo Bricks, esse fatiamento das atividades de logística de defesa pelas três Forças Armadas (e também por outros ministérios, como Indústria e Comércio e Ciência e Tecnologia) impede que se tenha uma política industrial e tecnológica para a defesa.
Outro grave problema é a falta de massa crítica em termos de recursos humanos qualificados para setores cruciais como profissionais de aquisição, gestão de programas e projetos, análise de capacidades operacionais, planejamento, controle, auditoria, elaboração de requisitos e especificações de meios e tecnologias de defesa. “Seria preciso que houvesse carreiras de Estado para cuidar do desenvolvimento e sustentação de capacidade industrial e tecnológica específica para defesa”, sonha Eduardo Brick.
Num país em que a necessidade premente de corte de gastos obriga a uma reforma da Previdência para sinalizar uma atividade econômica sustentável a longo prazo, dificilmente haverá espaço orçamentário para a montagem de uma política de defesa como a sonhada por Brick. Mas ele insiste em que “o país precisa muito que este assunto entre na agenda do Congresso e da sociedade. É o nosso futuro como país moderno, desenvolvido e competitivo no cenário internacional que está em jogo”.
Merval Pereira: Ação compartilhada
Um confronto na Venezuela que saísse da retórica seria uma situação desastrosa geopoliticamente para o Brasil
“As posições de todos os integrantes (da reunião) foram colocadas na mesa. Nem sempre congruentes, mas ao final a decisão tomada foi compartilhada”. Assim o porta-voz do Palácio do Planalto, general Rêgo Barros, me confirmou a informação, publicada na coluna “Painel” da “Folha de S.Paulo”, de que o presidente Jair Bolsonaro consultou os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, do Senado, Davi Alcolumbre, e do Supremo Tribunal Federal, Dias Tofolli, antes de confirmar a participação do Brasil no envio de ajuda humanitária à fronteira com a Venezuela.
O melhor é que as opiniões “nem sempre foram congruentes”, o que indica que o voluntarismo não teve lugar nessa discussão. O grande temor era de que Bolsonaro, tendo entrado em confronto pessoal e público com o ditador Nicolás Maduro, inclusive com ofensas de lado a lado, pudesse se deixar dominar pela paixão. Ao contrário, tomou uma decisão debatida amplamente.
O deputado Rodrigo Maia e os generais Santos Cruz, da Secretaria de Governo, e Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), temiam que uma participação do Brasil em tal tipo de “ação humanitária” pudesse ser interpretada como se o país estivesse endossando uma ação dos Estados Unidos no conflito venezuelano. A participação brasileira teve o apoio apenas de um dos ministros militares, o da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, mas também dos presidentes do Supremo e do Senado, além do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. O presidente Bolsonaro tratou de tranquilizar os que estavam contra a medida, garantindo que tropas brasileiras não entrariam em território venezuelano para entregar os mantimentos, e nem as dos Estados Unidos seriam autorizadas por ele a entrar na Venezuela pela fronteira brasileira, caso eventualmente o conflito se agrave.
As análises do Itamaraty e dos órgãos de informação do governo indicam que dificilmente Maduro teria condições de impedir a entrada desses mantimentos, e politicamente foi considerada uma vitória dos apoiadores do presidente interino a confirmação da chegada deles nas fronteiras tanto de Brasil quanto da Colômbia, tendo entrado na Venezuela.
O próprio Juan Guaidó anunciou em sua conta no Twitter os dois fatos, comemorando a passagem do caminhão brasileiro entregue na fronteira, e denunciando que o da fronteira da Colômbia estava enfrentando resistência armada da Guarda Nacional.
O clima de “guerra fria” revivido pela crise venezuelana, colocando o Brasil entre os Estados Unidos e China e Rússia, que dão apoio a Maduro, é o que preocupa setores das Forças Armadas e está por trás da resistência dos ministros militares brasileiros de participar da “ajuda humanitária” organizada pelos Estados Unidos.
O próprio ministro da Defesa, que foi a favor da ação, deu entrevistas ontem afirmando que não há a menor possibilidade de haver confrontos na fronteira com a Venezuela. Há, no meio militar, quem considere que o Brasil está fragilizado em sua liderança de fato na região, deixando que a crise trouxesse para cá disputas como essa.
Hoje haverá outra reunião, desta vez no Palácio da Alvorada, de avaliação da situação para que o vice-presidente Hamilton Mourão, outro militar que apoiou a ajuda humanitária, leve à reunião do Grupo de Lima, em Bogotá, a posição brasileira, que deve ser reiterada no sentido de apoiar uma solução negociada.
O Grupo de Lima reúne 14 países das Américas (Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru e Santa Lúcia) com o objetivo de tratar da crise na Venezuela. Além dos Estados Unidos, que fazem parte como observador e mandarão o vice-presidente Mike Pence.
Um confronto que saísse da retórica levaria o Brasil a ter que tomar posição, uma situação desastrosa geopoliticamente, na região onde somos hegemônicos e deveríamos impor nossa liderança através da negociação, em vez de bravatas bélicas. Que, aliás, seriam extemporâneas, pois o país, devido à crise econômica aguda que nos levou a anos de recessão e atraso tecnológico, não dispõe de condições de poder econômico e militar. Uma ação mais agressiva exigiria de nós esforço excessivo para mantermos nossa liderança natural, que seria confrontada.
Merval Pereira: Sem intervenção
Resistência truculenta da ditadura de Maduro pode provocar confronto de dimensões imprevisíveis
O governo brasileiro, até o momento, tem dado prioridade às informações sobre as repercussões no dia a dia de nossa fronteira com a Venezuela, e não às questões militares, que são apenas laterais, pois a decisão é não participar de eventuais tentativas de golpe contra a ditadura de Nicolás Maduro, a despeito de o governo bolivariano acreditar que a “ajuda humanitária” coordenada pelos Estados Unidos não passa de um pretexto para uma invasão.
Não para as autoridades brasileiras. A preocupação, ao contrário, é em relação ao deslocamento de membros da Guarda Nacional Bolivariana para a fronteira brasileira, pois são soldados que não conhecem a região, ao contrário dos venezuelanos que lá estão, já bastante entrosados com os brasileiros. Tanto que, apesar da gravidade da situação, oficialmente o governo brasileiro não considera uma hostilidade o fechamento da fronteira pela Venezuela
O vice-presidente, general Hamilton Mourão, fala em nome do governo quando diz que a Venezuela pode fazer o que quiser dentro de seu território para tentar impedir que a ajuda humanitária chegue a seus cidadãos, o que seria um erro político, mas não uma agressão ao Brasil. Para ele, pensar em intervenção dos Estados Unidos na Venezuela não faz sentido, sendo “prematuras” as preocupações, pois uma ação dessas “não faria sentido”.
Para Mourão, “os Estados Unidos estão mais na retórica do que na ação. A Venezuela tem que ser resolvida pelos venezuelanos”. O governo brasileiro admite que a ajuda humanitária tanto na fronteira do Brasil quanto da Colômbia, e na Guiana, sob a coordenação da União Europeia, é mais simbólica, pois a quantidade necessária de alimentos para equilibrar a situação é muito maior, diante do quadro trágico do momento.
A situação do lado brasileiro tem alguns pontos de atenção, como, por exemplo, o desabastecimento, pois muitos venezuelanos estão fazendo estoques de mantimentos em compras do lado brasileiro. Há também o perigo de falta de energia, pois aquela região é dependente da Venezuela e, em caso de racionamento, temos combustível para o funcionamento de uma termoelétrica por cerca de dez a 15 dias.
Ontem mesmo, nas diversas reuniões que foram feitas, o governador de Roraima, Antonio Denarium, conseguiu a aceleração dos estudos, inclusive de impactos ambientais, para a obra do linhão que trará energia de Tucuruí para a região, que deixaria de ser dependente de fornecimento do exterior. Todos os órgãos de informação do governo estão dedicados a detectar o que acontecerá hoje, quando estão marcadas pelo governo interino de Guaidó manifestações na fronteira para forçar o recebimento dos mantimentos. O Brasil, porém, continuará na posição de levar a ajuda humanitária até a fronteira e exigir que os venezuelanos venham pegar os mantimentos.
Não se sabe qual será a reação da Guarda Nacional Bolivariana, nem a da população local, que sofre com a crise e se revolta com a proximidade do que lhes faz falta vital, sem conseguir usufruir. Ontem, os conflitos já provocaram duas mortes na fronteira, e Maduro estimulou as forças militares a se manterem na repressão a todo custo. A resistência truculenta e sanguinária da ditadura de Maduro pode provocar um confronto de dimensões imprevisíveis. Se, no entanto, as demonstrações marcadas para hoje em todo o país em favor do governo provisório fracassarem, é previsível que a ditadura de Maduro, mesmo à custa de uma repressão brutal, ganhe nova força. Na segunda-feira, haverá a reunião do grupo de Lima em Bogotá, e o vice-presidente Hamilton Mourão representará o Brasil, que também terá a presença do vice dos Estados Unidos, e manterá a posição de não intervenção.
Como já contei em outra coluna, o então ministro da Defesa da Venezuela, general Vladimir Padrino López, teve em Caracas uma reunião com seu correspondente brasileiro à época no governo Temer, general Joaquim Silva e Luna, na qual pediu que o Brasil não participasse de uma eventual força multinacional de “ação humanitária”, pois ela seria só início de uma intervenção, estimulada pelos Estados Unidos.
Embora participe da ação coordenada pelos Estados Unidos e União Europeia, tudo indica que o Brasil não endossará uma ação militar para derrubar o governo de Maduro, e a estratégia continua sendo pressioná-lo através de declarações e apoio ao interino Guaidó.
O fato de que no governo Bolsonaro há diversos generais que chefiaram a força de paz da ONU no Haiti e no Congo, considerados combatentes treinados em situações desse tipo, leva à interpretação de que apoiariam uma ação nesses moldes na Venezuela, mas por enquanto não há clima para isso.