Merval Pereira
Merval Pereira: Dificuldades na reforma
Caiu de 68,8% para 55,96% o percentual dos deputados que afirmam ser favoráveis à PEC da Previdência
Duas pesquisas divulgadas ontem sobre a receptividade na Câmara da reforma da Previdência mostram um ambiente volátil, em que a ênfase é uma posição ambígua dos parlamentares quando se trata de apoiar a reforma: a maioria apóia em tese, mas há muitos questionamentos que precisam ser dirimidos pelo governo, até mesmo sobre a idade mínima.
A pesquisa da consultoria Arko Advice, feita com 109 deputados federais de 25 partidos políticos entre os dias 26 e 28 de março, mostra uma piora na avaliação do governo. Aumentou 50% o número de deputados que consideram o governo de Jair Bolsonaro ruim ou péssimo, de 22,95% em fevereiro para 33,95% dos entrevistados hoje.
Para se ter uma idéia da relação conturbada entre Executivo e Legislativo, nada menos que 60,55% a classificam como ruim ou péssima, um aumento considerável de três vezes e meia em relação à última pesquisa, quando esse índice estava em 17,4%.
Embora a reforma da Previdência continue tendo o apoio da maioria, caiu de 68,8% para 55,96% o percentual dos deputados que afirmam ser favoráveis a ela. Aumentou também de 39,5% para 52,29% de fevereiro para março o percentual contrário à idade mínima de aposentadoria de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens.
Esse é um dos pontos mais delicados da reforma, que hoje já tem uma maioria contrária nesse universo que representa 20% da Câmara. Como se esperava, 76,14% são contra as mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC), que dá um salário mínimo para os idosos a partir de 65 anos em condição de miserabilidade, com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo, e inválidos, sem limite de idade. O governo quer passar a idade mínima para o recebimento desse beneficio para 70 anos.
Uma compensação seria que entre 60 e 69 anos os que se enquadram na categoria receberiam R$ 400. Outro ponto de discórdia é a aposentadoria rural, que tira dos sindicatos a comprovação do tempo trabalhado no campo, criando um Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) para segurados rurais, que seria alimentado pelas prefeituras. O objetivo é coibir as fraudes.
Além de apenas 3% dos agricultores estarem cadastrados, há desconfiança de que esse cadastramento dará margem a manipulação política por parte dos políticos regionais, notadamente os prefeitos.
O projeto de aposentadoria para os militares é considerado por 59,64% ruim ou péssimo, sendo que 59,63% discordam também da reestruturação da carreira da categoria.
Já o site jurídico JOTA ouviu 200 deputados, cerca de 40% da Câmara, e 53,2% acham que a reforma da Previdência a ser aprovada pelo Congresso resultará em economia menor do que o trilhão de reais nos próximos 10 anos, definido como a meta mínima pelo ministro da Economia Paulo Guedes. Só 14,9% dizem que a economia será maior, e outros 31,9% que será igual.
O prazo dado pelo governo, aprovar a reforma ainda no primeiro semestre, é considerado viável apenas por 6% dos entrevistados. Outros 32% dizem que ela pode ser aprovada no primeiro semestre, mas no final de junho. 45% dos deputados ouvidos acreditam que a reforma da Previdência será aprovada no Congresso entre julho e setembro deste ano, e outros 13% somente no quarto trimestre, entre outubro e dezembro. Os 4% mais pessimistas dizem que a reforma da Previdência só será aprovada a partir de 2020.
Com o ambiente político ainda conturbado, apesar dos sinais de que tanto o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quanto o presidente Jair Bolsonaro estão dispostos ao diálogo, o presidente passará a conversar com as bancadas estaduais em busca de votos, e mandou um recado de Israel: a reforma não pode ser desidratada, termo usado pelos os políticos para se referir a uma desfiguração da proposta.
Há muito tempo o presidente Bolsonaro não emitia opinião tão afirmativa sobre a reforma da Previdência, que já admitiu que o incomoda, embora a entenda imprescindível, ao contrário do tempo em que votava, como deputado federal, contra as iniciativas de todos os governos.
Até mesmo um esdrúxulo pacto entre os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário está sendo negociado, em apoio à reforma da Previdência. Estranhável que o Judiciário, através do presidente do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, faça parte desse pacto, já que o STF certamente receberá várias contestações, seja qual for a reforma aprovada.
Merval Pereira: O dissenso necessário
Mais do que ser o presidente de todos, Bolsonaro parece pretender ser o representante de nicho da direita radicalizada
Aproximando-se o ciclo dos cem primeiros dias do governo Bolsonaro, já é possível constatar uma maneira de governar no mínimo heterodoxa, estimulada por embates permanentes com o uso das novas mídias sociais e baseada fundamentalmente em questões morais. Os pontos centrais, na Economia as reformas e as privatizações, na Justiça, a lei anticrime, têm atitudes dúbias por parte do presidente, cujo passado interfere nas supostas ideias atuais.
Mais do que ser o presidente de todos, Bolsonaro parece pretender ser o representante de um nicho da direita radicalizada, o que já lhe valeu uma queda acentuada de popularidade, principalmente entre a classe média, que foi fundamental para sua eleição.
O analista Fabio Lacombe, do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (Ebep), diz que a hipervalorização da animação ou reanimação dos “seguidores” estabelece limites muito estreitos para o exercício da convivência política, que requer muito mais do que um agrupamento em torno de determinadas ideias, pois prevê exatamente questioná-las. A desconvocação da cientista política Ilona Szabó de um conselho sobre segurança pública é exemplo disso.
Como Freud mostrou, diz Fabio Lacombe, as exigências morais, uma vez se impondo, se tornam cada vez mais rígidas, em vez de abrirem espaço para possibilidades que ainda não se revelaram. E a realidade política, diferente da postura moralista, está sempre promovendo essas aberturas.
“A questão do agendamento, se não estiver submetida ao propriamente político, é porque se presta mais, por suas dimensões exíguas, a colocar os cidadãos numa marcha onde o pensamento se recolhe às dimensões de reprodução das ordens agendadas”, analisa Lacombe, que lembra que Clausewitz, grande teórico da guerra, avaliou que ela se impõe quando os recursos políticos se esgotaram.
“Apoio político deve ser a adesão a um conjunto de ideias que manifestam a expectativa de que sua aplicação vai promover um estado de coisas que visam ao bem comum”, afirma o analista do Ebep. Delas não emerge nada parecido com um conjunto de regras que devem ser obedecidas sem serem questionadas.
Se, diante da desilusão de certos setores de eleitores que votaram em Bolsonaro mais para se livrar do PT do que propriamente em favor de suas propostas, surge um desapontamento com algo que emergiu, só se pode valorizar esse “desapontamento”, pois gera uma possibilidade de reflexão.
Não basta se encolher numa aparente recompensa, analisa Lacombe. “Mesmo porque ficar livre de algo não garante que essa ‘liberdade’ conquistada deixe em seu lugar algo melhor”, adverte. Se a grande questão era a condução da política submetida a uma rígida postura ideológica, o que tem sido apontado por alguns é que só teria sido invertido o sentido da seta que indicava a direção da ideologia.
Ideologia, lembra Fabio Lacombe, segundo Destutt de Tracy, o criador do termo, trata-se de uma “ciência das ideias”, portanto, nada que possa ser entendido como um conjunto de postulados norteadores de uma conduta política. “A ideologia supõe a necessidade de uma permanente reflexão a respeito da própria conduta”.
O que estaria acontecendo no mundo ocidental que possa estar servindo de sustentáculo para a disseminação do conservadorismo, e não apenas no Brasil? Para Fabio Lacombe, o conservadorismo, no seu manifesto aprisionamento a uma tentativa de evitar as mudanças, encontra nas questões ligadas aos costumes seu alimento maior.
Mas, ao mesmo tempo, destaca que nunca foi tão manifesta a dimensão da ganância, evidenciada no crescente recurso à corrupção, por exemplo. Por que o acento nos costumes, nas regras morais? Qual o lugar da busca pelo dinheiro, nas avaliações do comportamento político?
Na verdade, analisa Lacombe, estamos sendo envolvidos por uma “estimulação” informacional que assumiu proporções assustadoras. “Se pensarmos que os meios atuais colocaram o contato “a dois” numa escala de possibilidades inauditas, certamente criou-se a impressão de uma proximidade entre estamentos antes impossível”, ressalta.
“Se posso acessar um Twitter emitido por meu presidente, figura sempre tão distante em sua altitude, sinto-me numa proximidade que me distingue. Essa dimensão fantasiosa, certamente me preenche em minhas aspirações infantis de estar participando de um mundo ‘adulto’, antes inacessível”.
Fabio Lacombe admite que é “um pouco leviano” elaborar uma conceituação muito requintada do que estamos de fato vivenciando de transformação, “mas não pode passar desapercebido o fato de a relação presencial parecer menos importante da que o celular, por exemplo, propicia. E isso certamente tem uma dimensão política”, acentua Fabio Lacombe.
Merval Pereira: Quase confissão
Todo político quer ser acusado de caixa 2, e não de corrupção e lavagem de dinheiro, que valeram a Lula a condenação
O pedido da defesa para que o processo que resultou na condenação do ex-presidente Lula pelo tríplex do Guarujá vá para a Justiça Eleitoral, além de uma tentativa patética de chicana, é quase uma confissão de culpa.
Ele não foi condenado por caixa 2, mas sua defesa alega que o processo acusa Lula de ter liderado um esquema de arrecadação de dinheiro para custear campanhas eleitorais do PT e de partidos aliados.
Todo político quer ser acusado de caixa 2, e não de corrupção e lavagem de dinheiro, que valeram a Lula uma condenação de 12 anos e um mês. Querer se beneficiar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que mandou para a Justiça Eleitoral os crimes conexos ao caixa 2 é também admitir, o que nega até hoje, a existência de um fundo formado pelo dinheiro de propina em obras públicas para financiar as campanhas eleitorais de seu partido.
Ganhar de empreiteiras um tríplex na praia ou melhorias no sítio em Atibaia que usava como se fosse seu, dificilmente, pode ser considerado um crime eleitoral. No limite, o ex-presidente terá desviado dinheiro da propina para a campanha eleitoral para uso próprio, o que descaracteriza a finalidade política. E, como os desvios foram de dinheiro público, através da Petrobras e de outras estatais, não existe caixa 2, mas sim peculato, como ficou decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do mensalão.
Lula volta, quase 14 anos depois, a utilizar-se de uma estratégia de defesa montada pelo então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos para amenizar as acusações contra o PT, pois naquela época o crime eleitoral quase nunca levava políticos para a cadeia. Ainda hoje pelo menos a percepção continua a mesma.
Em 2005, no auge das acusações sobre o mensalão, o então presidente em duas oportunidades jogou para o caixa 2 o esquema de corrupção que montou em seu governo. Em julho, em entrevista no “Fantástico”, da Rede Globo, gravada em Paris, Lula disse que “o que o PT fez, do ponto de vista eleitoral, é o que é feito no Brasil sistematicamente”.
Em novembro, em entrevista no “Roda Viva” da TV Cultura, Lula disse que a denúncia do deputado cassado Roberto Jefferson revelou o caixa 2 nas campanhas eleitorais do PT, o que o então presidente da República classificou como uma ação “contra a história do próprio partido”.
Agora, Lula, depois de tantos anos de revelações terríveis sobre a corrupção institucionalizada que patrocinou nos governos do PT, comprovadamente não contra a história do partido, quer através de sua defesa que essa corrupção, que de fato foi geradora das benesses de que ele e sua família usufruíram, seja transformada em ações de cunho político-eleitoral.
É como se o ex-governador Sérgio Cabral, que depois de anos preso confessou afinal seu esquema de corrupção, alegasse que tudo o que ganhou de propina — joias, helicópteros, roupas de grife, bebidas caras —tinha um objetivo político-eleitoral.
A única maneira de essa chicana dar certo seria os juízes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que vão julgar nos próximos dias os recursos a favor de Lula, aceitarem a tese de que o ex-presidente, por ser o chefe da organização criminosa que atuou durante os anos petistas, usou o caixa 2 do partido para obter o tríplex e, por extensão, também o sítio de Atibaia.
Mas o simples senso comum, além da delação premiada do ex-ministro da Fazenda Antonio Palloci e de outros, impede que essa tramoia dê certo.
Mais confissões
Outro que acabou confessando seus crimes foi o terrorista Cesare Battisti, que admitiu a participação direta e o envolvimento em quatro assassinatos durante interrogatório feito na prisão pelo procurador Alberto Nobili, responsável pelo grupo antiterrorista da cidade italiana de Milão.
Na confissão, Battisti disse que alegava inocência para obter apoio político da esquerda do México, da França e do Brasil, principalmente do ex-presidente Lula, que proibiu sua extradição, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O ex-ministro da Justiça Tarso Genro, que pediu a Lula que não extraditasse o terrorista agora confesso, e o ex-senador Eduardo Suplicy ainda alimentam dúvidas sobre sua culpabilidade. Querem saber por que Battisti confessou. Muito simples: perdeu a proteção dos governos de esquerda.
Merval Pereira: Volúvel
Sexta-feira, desembargador se disse desconfortável em decidir monocraticamente. Ontem, liberou presos
O desembargador Antonio Ivan Athié, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), revelou-se estranhamente volúvel: mudou de idéia num fim de semana em relação à própria decisão de enviar para a Primeira Turma os pedidos de habeas-corpus para o ex-presidente Michel Temer, o ex-ministro Moreira Franco e outros acusados pelo Ministério Público Federal do Rio que estavam em prisão preventiva decretada pelo juiz Marcelo Bretas.
Na sexta-feira ele se disse desconfortável em decidir monocraticamente uma questão tão delicada. Ontem, anunciou a liberação de todos os presos. Athiê não precisava tomar a decisão na sexta-feira, muito menos transferir o julgamento para sua Turma.
Mudança tão repentina pode ter sido influenciada pelos habeas corpus dados no sábado e domingo para outros envolvidos no caso pela desembargadora Simone Schreiber, da Segunda Turma do TRF-2. E também pela reação de parte da opinião pública, refletida em editoriais de jornais e comentários, contra prisões preventivas consideradas tecnicamente injustificáveis.
Há quem diga, no entanto, que o desembargador temeu ser derrotado na Primeira Turma, formada ainda pelos desembargadores Abel Gomes e Vlamir Costa, juiz de primeira instância convocado no Tribunal para substituir o desembargador Paulo Espírito Santo. São dois magistrados duríssimos.
Mesmo que tenha afirmado que é a favor da Lava-Jato em sua decisão, o voto do desembargador Ivan Athiê era considerado praticamente certo a favor dos acusados. Afinal, ele em 2017, durante uma sessão da Primeira Turma, comparou pagamentos de propinas a meras gorjetas.
“Nós temos que começar a rever essas investigações. Agora, tudo é propina. Será que não é hora de admitirmos que parte desse dinheiro foi apenas uma gratificação, uma gorjeta? A palavra propina vem do espanhol. Significa gorjeta. Será que não passou de uma gratificação dada a um servidor que nos serviu bem, como se paga a um garçom que nos atendeu bem? Essas investigações estão criminalizando a vida”.
Além de escolher o sentido do termo mais brando e inusual no português do Brasil, o desembargador considera normal um servidor público receber gorjeta.
Um dos pontos mais evidentes na investigação do Ministério Público para indicar que a “organização criminosa” continuava atuando não foi utilizado no pedido de prisão preventiva pelo juiz Marcelo Bretas: a tentativa de um depósito de R$ 20 milhões em dinheiro vivo detectado pelo Coaf na conta o Coronel Lima na Argeplan.
Esse fato, juntamente com a patética tentativa do mesmo coronel de esconder debaixo da almofada de um sofá dois aparelhos celulares, depois de dizer que não tinha nenhum, serve de demonstração de que os acusados têm o que esconder. Além de o ex-presidente Temer ter em sua casa um telefone fixo registrado na empresa Argeplan.
Mais para frente o mérito desse habeas corpus vai ser julgado, e a Primeira Turma pode confirmar a decisão liminar, ou revogá-la e mandar prendê-los de novo, o que é pouco provável. Eles podem ser presos preventivamente de novo pelo juiz Bretas ao longo do processo, se fatos novos que justifiquem a prisão preventiva forem alegados.
Do contrário, só podem ser presos se condenados em segunda instância pelo TRF-2. Como o Supremo Tribunal Federal (STF) vai julgar no dia 10 de abril, no mérito, a permissão para prisão em segunda instância, com tendência de mudar a jurisprudência para a prisão após decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou do trânsito em julgado, é provável que uma nova prisão demore a ser decretada, se não forem absolvidos no decorrer desses recursos prolongados.
Correção
O procurador de Justiça aposentado e advogado criminalista Cosmo Ferreira lembra que o crime de “lavagem” de dinheiro não é imprescritível como escrevi aqui, mas permanente, cuja consumação se prolonga no tempo. O termo inicial da prescrição ocorre quando cessar o crime, e não na sua consumação.
Os delitos imprescritíveis estão no artigo quinto da Constituição da República: racismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado democrático, e os de competência do Tribunal Penal Internacional: genocídio, crimes contra a humanidade, crime de guerra.
Merval Pereira: Sobre o Supremo
A decisão de considerar a lavagem de dinheiro crime imprescritível tornou possível a prisão de Paulo Maluf
A disputa de interpretações de teorias jurídicas vem dando a tônica nos debates do Supremo Tribunal Federal. A denominação informal de cada um dos grupos mostra bem os parâmetros desta disputa. Os “garantistas” sustentam que qualquer decisão a ser tomada deve levar em conta a literalidade da lei para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos.
Os “iluministas” ou “progressistas” buscam contornar eventuais obstáculos impostos pela literalidade com interpretações do texto legal, em busca da intenção do legislador para ter uma Justiça mais célere e eficiente. Assim, a jurisprudência atual é permitir a prisão em segunda instância, mesmo que a Constituição diga que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado de seu processo.
Para tanto, considera-se que o processo se encerra na segunda instância, e os recursos aos tribunais superiores (STJ e STF) podem continuar sendo feitos depois da prisão, pois são de caráter extraordinário. A decisão de considerar a lavagem de dinheiro crime imprescritível tornou possível a prisão de Paulo Maluf. Até hoje há a discussão sobre se lavagem de dinheiro é um crime instantâneo, que se encerra na sua consumação, ou se é permanente, como decidiu a Primeira Turma do STF.
O relator foi o ministro Edson Fachin, que levantou a tese, e não o ministro Luís Roberto Barroso, como escrevi aqui. Barroso votou a favor do relator juntamente com a ministra Rosa Weber e o ministro Fux, formando a maioria. O ministro Marco Aurélio, mesmo tendo votado a favor da prescrição, acompanhou a maioria no mérito.
Barroso é tido como expoente da ala “iluminista” do Supremo, mas ele recusa esse rótulo. “Sou a favor de um direito penal moderado. Porém, sério e igualitário. A queixa que existe é dos advogados criminalistas —que têm que fazê-la, por dever de ofício —e dos parceiros da corrupção, que não se conformam que o Direito Penal que valia para menino pego com maconha ou para o sem-teto que furtava desodorante no supermercado se aplique também a corruptos e criminosos de colarinho branco”. O ministro Luís Roberto Barroso afirma que “o Direito não ficou mais duro; ficou mais igualitário”. Para ele, “o garantismo”, em Direito, significa que o acusado tem o direito de saber do que está sendo acusado, o direito de se defender, de produzir provas, de ser julgado por um juiz imparcial e de ter acesso a um segundo grau de jurisdição”. Ele considera que está havendo uma distorção do conceito, “um garantismo à brasileira”, que seria um direito adquirido à impunidade, a um processo que não funciona, que tem recursos infindáveis, não acaba e sempre gera prescrição”.
No voto no caso Maluf, após concluir a parte técnica da argumentação, Barroso afirmou: “(...) considero que o rotineiro desvio de dinheiro público, seja para fins eleitorais, seja para o próprio bolso, é uma das maldições da República. (...) Este é um dos fatores que têm nos mantido atrasados e aquém do nosso destino, porque dinheiro público que é desviado é dinheiro que não vai para a educação, não vai para a saúde, não vai para melhorar estradas”. Ele acha que “a histórica condescendência que se tem tido no Brasil em relação a esse tipo de delinquência, aparentemente, está chegando ao fim. Punir a apropriação privada de recursos públicos é um marco na refundação do país”.
Merval Pereira: Bolsonaro sem noção
Movem-se as placas tectônicas da política brasileira, e pode vir daí um terremoto de vastas proporções. A reforma da Previdência está com problemas pela desarticulação do governo, e o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, que é (ou era) o grande aliado para dar andamento à sua aprovação, acha que essa desarticulação faz parte de uma estratégia do próprio Bolsonaro, que só sabe governar na base da confrontação.
Para o presidente da Câmara, o presidente Jair Bolsonaro “não tem noção, nem da gravidade da situação, nem da importância de governar com o Congresso numa democracia”. Há uma diferença entre governar como o PT fazia, e como a Angela Merkel (chanceler alemã) faz, destaca o Rodrigo Maia. “Eu vou continuar atuando a favor da reforma da Previdência, mas não em nome do governo”. Maia diz que quem tem que atuar dentro do Congresso é o articulador político do governo, o Onix Lorenzoni. E, especialmente, o próprio presidente Bolsonaro.
“Eu não tenho capacidade para conseguir os votos necessários para aprovar a reforma. Posso até, pelo meu convencimento, arranjar uns 50, 60 votos. Mas faltarão mais cerca de 250, que o governo vai ter que buscar”. Para tanto, ressalta Maia, tem que fazer política, e isso eles não querem fazer.
“Querem ficar com o bônus de serem os protetores do povo, e o Congresso assumirá o ônus de ter aprovado uma matéria impopular, embora necessária”. O governo Bolsonaro, desde o início, tenta se desvencilhar da dependência do Congresso, o que é um contrasenso num regime necessariamente de coalizão em que o presidente nunca tem a maioria parlamentar, mesmo que tenha a maioria popular.
Nos Estados Unidos, o candidato, como Trump, pode ser eleito pelo Colégio Eleitoral e perder na votação popular. Em regimes como o nosso, nem sempre acontece que um presidente popular tenha o apoio da maioria no Congresso, mas não consegue governar sem ele. Aconteceu com Collor, com Dilma e está acontecendo com Bolsonaro.
Com a agravante para Bolsonaro de que sua popularidade está em decadência muito antes de terminar do período de graça dos governos. Nos 100 primeiros dias, o presidente eleito historicamente conseguia tudo no Congresso. Não mais. Além disso, o governo, em campanha permanente, queima suas pontes com potenciais aliados porque só se interessa em cultivar a parte do eleitorado que o elegeu, a que fala mais diretamente a seus valores conservadores.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, que se dispunha a ajudar na aprovação da reforma da Previdência, está recuando sua defesa para fazer frente a uma série de ataques, uns provocados por inexperiência, como o do ministro Sérgio Moro; outros, propositais para incensar os radicais bolsominions nas redes sociais.
O vereador Carlos, o filho 02, que se distrai fazendo política no twitter, publicou no Instragam, no dia da prisão de Moreira Franco, sogro de Rodrigo Maia: “Por que o presidente da Câmara está tão nervoso?”, numa clara insinuação irônica. E retuitou uma mensagem do ministro Sérgio Moro com críticas indiretas a Maia.
Moro enviara de Washington uma mensagem pelo WhatsUpp reclamando que Rodrigo Maia havia criado uma comissão para analisar o projeto anticrime do governo juntamente com outros projetos já em tramitação na Câmara, inclusive um que foi coordenado pelo atual ministro do Supremo Alexandre de Moraes. Considerou isso o descumprimento de um suposto acordo.
Rodrigo Maia, de fato, deixou o projeto para entrar na pauta no segundo semestre, pois acha que discutir os dois, esse e o da Previdência, ao mesmo tempo vai dispersar os votos. E combinou a estratégia com Bolsonaro. O presidente da Câmara mandou a resposta, exigindo que Moro o respeitasse como presidente do Poder Legislativo.
O ministro da Justiça, Sérgio Moro, retrucou no twitter, que foi replicado por Carlos Bolsonaro: "Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais.".
Maia desabafa: “Se o filho do presidente me ataca publicamente, e ele não faz nada, quer dizer que pensa como o filho”. O governo não quer a reforma da Previdência, especula Rodrigo Maia. “Ou melhor, quer, mas jogando a responsabilidade para o Congresso. Bolsonaro posa de bonzinho, e nós somos os contra o povo”.
Merval Pereira: Sem caixa 2
Sempre que sofrem uma derrota, os procuradores da Lava-Jato encontram um jeito de mostrar a resiliência da operação de combate à corrupção
A Operação Lava-Jato, com a prisão do ex-presidente Temer, repete um método de atuação para mostrar que não se intimida diante de retrocessos provocados por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) ou do Congresso. A operação de ontem foi uma clara resposta à decisão do Supremo da semana passada de enviar para a Justiça Eleitoral os crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e assemelhados conexos ao de caixa 2.
Sempre que sofrem uma derrota, os procuradores encontram um jeito de mostrar a resiliência da operação de combate à corrupção. Foi assim com a prisão do então governador Luiz Fernando Pezão, logo depois da decisão do Supremo de permitir que o presidente Temer utilizasse a prerrogativa do indulto de fim de ano para anistiar presos de maneira quase irrestrita, o que ameaçava a atuação da Lava-Jato.
Desta vez, a prisão de um ex-presidente da República, e de um ex-ministro de Estado, o ex-governador do Rio Moreira Franco, subiu o sarrafo. E a acusação passa longe do caixa 2 e de financiamentos eleitorais. Para escapar da decisão do Supremo. Temer é o segundo ex-presidente preso, e Moreira Franco é o quinto ex-governador do Rio na cadeia.
Pode ser que a irritação de Maia, genro de Moreira, na noite anterior, quando foi bastante agressivo com o ministro Sergio Moro, já se devesse a informações vazadas de que a prisão poderia acontecer. Mas a operação já estava marcada com antecedência, o que descarta a possibilidade de ter sido uma contrapartida da Lava Jato para se solidarizar com o ex-juiz Moro.
Moro havia reclamado de seu pacote anticrime ter sido jogado para análise no segundo semestre, e Maia reagiu com três pedras na mão. Preso no meio da rua, assim como Moreira Franco, com um aparato policial digno de filme, o ex-presidente Temer considerou sua prisão uma “barbaridade”, classificação que deu como constitucionalista que sabe perfeitamente o que a lei pode permitir ou não. Mas os tempos são outros, e a nova geração de juízes e procuradores têm uma visão do Direito muito diferente da que prevalecia antes do mensalão. Nosso sistema jurídico permite recursos infindáveis que acabam beneficiando o infrator, pela prescrição das penas, ou pela demora no cumprimento dela.
A ação protelatória da defesa dos acusados é o que marcava os processos, tanto que se dizia que quem tivesse dinheiro para pagar a bons advogados nunca seria preso. A partir do mensalão, essa situação mudou. Um exemplo disso é o ex-deputado Paulo Maluf, que só foi preso aos 90 anos de idade.
Passou a vida toda sendo acusado de corrupto, encontraram uma conta sua na Suíça, e ele negava tudo. Até que o ministro do STF Luís Roberto Barroso interpretou que a lavagem de dinheiro é imprescritível. Hoje está em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. Os crimes de que era acusado provavelmente já prescreveram, mas a nova interpretação encerrou a impunidade.
Por isso, o julgamento do dia 10 de abril no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a legalidade da prisão em segunda instância tem suma importância. Se o STF mudar sua jurisprudência, voltando a entender que a prisão só pode acontecer depois do trânsito em julgado, a maioria dos presos deve ser libertada.
Os advogados do ex-presidente Lula, atentos aos movimentos subterrâneos da Justiça, estão tentando adiar o julgamento do recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) porque, se a condenação for confirmada, Lula ficará mais próximo da cadeia em definitivo.
O plenário do Supremo tem uma proposta do presidente do Tribunal, ministro Dias Toffoli, de substituir a prisão depois de condenação em segunda instância pela condenação do STJ. Será difícil mudar o rumo da discussão, pois já está claro para a maioria que permitir a prisão apenas no final de todos os recursos implica a volta ao passado, quando ninguém, poderoso ou rico, ou as duas coisas, ia preso.
Merval Pereira: Caminho perigoso
Ambiente político não comporta distensão nas duas pontas, e o embate ideológico abrange poderes da República
O ataque do senador Jorge Kajuru ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, que viralizou nas redes sociais e foi tema de amplo debate no Senado, é exemplo da disputa de poder que está em curso entre o Legislativo, o Ministério Público e o Supremo, criando uma potencial crise institucional.
O ministro Gilmar Mendes, acusado por Kajuru de vender sentenças e ser sócio de políticos que manda soltar, pediu as providências cabíveis ao presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli. Mas o próprio Gilmar, em seu voto no julgamento que acabou enviando para a Justiça Eleitoral os processos sobre corrupção política, insinuou aos brados que os procuradores de Curitiba estão atrás do “ouro”, devido à fundação privada que pretendiam criar para gerir a multa bilionária em dólares que a Petrobras pagou para se livrar de processos nos Estados Unidos devido ao escândalo do petrolão.
Disse ainda que eles adotam “métodos de gangaster”, chamou-os de “gentalha despreparada”, “cretinos”. Poderia ser processado, assim como o senador Kajuru também. Mas os procuradores do Ministério Público se consideram doniscda verdade, e invitam a opinião pública contra os que lhes fazem críticas.
Fez bem o ministro Gilmar Mendes de não ampliar o escopo da tal investigação secreta mandada instaurar sobre “fake news” e insultos contra o STF e seus membros.
O próprio Gilmar já processou, e ganhou, blogueiros sujos que o caluniaram, e esse deveria ser o comportamento normal de um ministro ou de qualquer outra autoridade quando confrontada com um comportamento incivilizado de cidadãos.
Não foi o que fez o ministro Lewandowiski quando um passageiro abordou-o afirmando que tinha vergonha do Supremo. Mandou chamar a Polícia Federal e o cidadão, um advogado, teve que depor por exercer seu direito de crítica. No momento radicalizado que vivemos, passou a ser corriqueiro autoridades serem perseguidas nas ruas ou em restaurantes por cidadãos indignados.
Políticos ligados ao PT sofreram na pele, depois do impeachment da ex-presidente Dilma, o mesmo que causaram aos que lhe eram críticos durante o auge do governo Lula. Quando em maioria, achincalhavam os opositores e tentavam encurralá-los em uma definição ideológica rasa: eram direitistas. Até mesmo o PSDB, que hoje os bolsonaristas consideram perigosos esquerdistas, foi considerado de direita.
Hoje, os bolsonaristas atacam pelas redes sociais quem critica o governo ou discorda de decisões tomadas e de atitudes que consideram indecorosas. São todos comunistas. O ambiente político não comporta distensão nas duas pontas, e o embate ideológico abrange também os poderes da República.
É sinal de nossa decadência como sociedade a impossibilidade de políticos e autoridades andarem nas ruas, ou entrarem em aviões. As redes sociais mudaram o patamar da participação dos cidadãos no debate político, o que pode ser bom e mau ao mesmo tempo.
Bom porque amplia a capacidade de influir dos cidadãos, em nome de quem o poder é exercido. Mas mau, como acontece com mais frequência do que seria de se desejar num país civilizado, quando essas mesmas redes são utilizadas para vilipendiar políticos e autoridades de maneira geral.
Mas é também sinal de retrocesso a tentativa de controlar as investigações contra a corrupção, o que provoca a ira dos cidadãos. A reação de parte do Legislativo contra o Supremo leva a que o poder de legislar se transforme em instrumento para vinganças, como a ameaça de instalar uma CPI para investigar o STF. Ou a proposta de uma legislação que transforma o cargo vitalício de ministro do Supremo, com aposentadoria compulsória aos 75 anos, em cargo de mandato fixo.
Não que seja estranho os ministros dos tribunais superiores terem mandato, diversos países democráticos são assim. Nos tribunais europeus, de maneira geral, os mandatos podem ser de 8 a 14 anos, dispostos de tal forma que as vagas abram em períodos regulares.
Já nos EUA, o mandato é vitalício sem aposentadoria compulsória. Lá, quando vão chegando a uma idade muito avançada, ministros esperam a entrada no governo de um Presidente do seu grupo político para se aposentar.
Tanto o PT quanto os bolsonaristas alimentam essa rivalidade com esmero. Eduardo Bolsonaro já disse que para fechar o Supremo bastava mandar um cabo e um soldado. José Dirceu, condenado diversas vezes e prestes a voltar para a cadeia, disse que é preciso esvaziar ao máximo o Supremo.
Se os membros dos poderes não se dão ao respeito, nem se respeitam uns aos outros, por que o cidadão iria respeitá-los? Esse caminho leva a uma crise institucional.
Merval Pereira: Inquérito polêmico
A inclusão de famílias dos ministros indica que o inquérito do Supremo deverá atingir também a Receita Federal
A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, de abrir inquérito sigiloso para apurar manifestações caluniosas contra membros do Tribunal e suas famílias está gerando uma reação aberta por parte da opinião pública e contida de alguns ministros.
A inclusão de famílias dos ministros indica que o inquérito deverá atingir, além de procuradores e blogs militantes, que incitam seus leitores contra o STF, também a Receita Federal, que investigou, além do ministro Gilmar Mendes e sua mulher Guiomar, também a mulher do próprio Toffoli.
O único que se manifestou até agora formalmente foi o ministro Marco Aurélio Mello, mas há vários ministros falando informalmente sobre o assunto, sempre em tom de crítica. Marco Aurélio disse ontem ao “Jornal Nacional”, da Rede Globo, que, apesar de estar previsto na legislação o pedido de inquérito para apurar esse tipo de crime, atitude correta seria enviar o pedido para o Ministério Público, de acordo com o artigo 40 do Código de Processo Penal.
O presidente do Supremo valeu-se do regimento interno do STF que, em seu artigo 43, diz que ,“ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro”.
O ministro Marco Aurélio indaga: “onde foi?” (que isso aconteceu). A interpretação do regimento indica que Toffoli entende que cada ministro representa o STF, e uma afronta a qualquer deles é ofensa à instituição. O problema é que o regimento é claro ao tratar do crime “na sede ou dependência do tribunal”, não dando margem a dúvidas. E isso não aconteceu.
O ministro Marco Aurélio disse que não protestou na hora porque “ele não submeteu a matéria (ao plenário), nós só atuamos a partir de provocação. Se tivesse submetido a matéria, não tenho a menor dúvida, é só perceber o que eu venho fazendo nesses muitos anos, eu me pronunciaria contra a instalação do inquérito”.
Outra decisão questionável de Dias Toffoli foi designar o ministro Alexandre de Moraes para relator do inquérito, sem escolher o relator aleatoriamente pelo sistema eletrônico.
O ministro Marco Aurélio também lembrou que, num contexto de prática criminosa, “nós (o STF) oficiamos ao Estado acusador. Somos o Estado julgador, e devemos manter a necessária equidistância quanto a alguma coisa que surja em termos de persecução criminal”.
Foi exatamente isso que fez a então presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia em 2017, quando áudios de conversas de Joesley Batista revelaram que o empresário dizia que tinha ministros do Supremo “na mão”, entre outras intrigas conversadas entre eles e seus assessores.
Cármen Lúcia declarou em nota oficial que os áudios agridem “a dignidade institucional” do Supremo e “a honorabilidade de seus integrantes". E enviou ofícios à Polícia Federal e ao procurador-geral da República, exigindo uma investigação célere. Meses depois, ela anunciou em sessão plenária que determinaria o arquivamento de processo baseada em relatório da Polícia Federal.
Merval Pereira: O mal menor
Após a volta de democracia, apenas dois presidentes foram eleitos por projetos políticos: Fernando Henrique e Lula
O país vive há anos em busca do “salvador da pátria” e só consegue encontrar o “mal menor”, o “erro novo”. Assim Jair Bolsonaro foi eleito em 2018, Collor em 1989. Apenas dois presidentes depois da redemocratização foram eleitos por projetos políticos: Fernando Henrique em 1994, com o Plano Real, e Lula em 2002, apresentando-se como alternativa ao que chamava de projeto neoliberal. Os dois foram reeleito sem 1998 e 2006 esgotando as últimas reservas dos projetos vitoriosos. A reeleição, cada um a seu tempo, pareceu à maioria o “mal menor”. Fernando Henrique reeleito no primeiro turno, temendo ser derrotado se disputasse o segundo. Lula ficou deprimido ao não conseguir vencer no primeiro turno, quando o então governador tucano Geraldo Alckmin teve uma votação espantosa de 41% dos votos. Depois, graças a erros banais e à campanha medíocre, o paulista teve menos votos que no primeiro turno.
Lula chegou ao poder em 2003 depois de perder três eleições porque se reinventou criando o personagem Lulinha Paz e Amor. Elançou a Carta aos Brasileiros. Mas também porque o segundo governo de Fernando Henrique, que teve méritos evidentes como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Rede de Proteção Social, origem do Bolsa Família, dos genéricos e do combate à Aids, ficou marcado pela desvalorização do real logo nos primeiros dias, o apagão de energia e a economia em situação difícil.
Paradoxalmente, para acalmar o mercado financeiro, Lula escreveu a Carta aos Brasileiros, em que se comprometia a manter o chamado tripé econômico: câmbio flutuante, meta de inflação e equilíbrio fiscal. Foi isso que garantiu o bom desempenho no primeiro mandato de Lula, e o tripé é a base da economia brasileira até hoje.
Em 2006, Lula, atingido em cheio pelas denúncias do mensalão, foi o “mal menor”. Sua reeleição pareceu à maioria a continuidade de um projeto político, solução menos traumática, apesar de tudo. Os demais presidentes foram escolhidos para derrotar alguém. Com um crescimento de 7,5% no ano de 2010, Lula conseguiu eleger Dilma Rousseff, mas deu início à crise econômica que resultou na recessão mais grave já havida no país.
A desastrada nova matriz econômica, comandada pelo ministro da Fazenda Guido Mantega, e a absoluta incapacidade da presidente fizeram com que seu primeiro mandato presidencial terminasse em crise generalizada, inclusive com as primeiras denúncias de corrupção endêmica no petrolão, que dominou a campanha de reeleição. Apesar de Dilma, Lula ainda tinha força suficiente para reelegê-la, mas à custa de uma campanha milionária financiada pelo dinheiro da corrupção. Dilma derrotou Aécio Neves, o candidato tucano, por uma diferença de 3% dos votos.
Mas, assim como em 1989, quando disputaram o primeiro turno Collor e Lula, também não havia escolha boa em 2014. Soube-se depois que Aécio Neves estava enredado na mesma teia de corrupção que denunciara durante a campanha.
Em 1989, qualquer resultado seria desastroso para o país, como foi a vitoria de Collor, que acabou impichado. Lula depois admitiu que seria uma tragédia se vencesse aquela eleição, pois não estava preparado para o cargo.
As crises econômica e moral levaram a um ambiente de rejeição ao governo Dilma, que acabou impichada, também porque o vice Michel Temer acabou aparecendo como “o mal menor”.
O governo substituto superou a inflação e deu início ao fim da recessão, que durou três anos. Mas também se enredou em denúncias de corrupção que o paralisaram, impedindo que aprovasse a reforma da Previdência. Foi o governo mais impopular que o país já teve.
A rejeição à volta do PT acabou levando ao poder Jair Bolsonaro, que pareceu à maioria dos eleitores o “mal menor”, o “erro novo”. Só uma parcela deles, a mais barulhenta e atuante, o considera uma alternativa programática.
Com o país dividido, o centro político sumiu do embate eleitoral, e vivemos, após quase três meses de mandato, um ambiente político radicalizado incentivado pelo próprio presidente da República. As crises se sucedem, com fatos novos diários a corroera institucionalidade de Bolsonaro. A ponto de já se falar abertamente na possibilidade de o vice, general Hamilton Mourão, vira assumir o governo caso a reforma da Previdência não seja aprovada e a economia continue em crise, com o país ladeira abaixo.
Mais uma vez, busca-se o “mal menor”. Até quando?
Merval Pereira: E a luta continua
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de enviar para a Justiça Eleitoral os crimes comuns que tenham conexão com o caixa 2 está provocando reações em diversos níveis, assim como a abertura de inquérito, anunciada pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, sobre mensagens e publicações que ofendam ou caluniem os membros do Supremo e suas famílias.
Além das reações quanto a essa investigação, há também um movimento no Ministério Público para tentar superar as barreiras impostas pelo Supremo à investigação de corrupção de políticos.
Para o caso específico que originou o julgamento, uma acusação de Caixa 2 e corrupção contra o deputado federal Pedro Paulo e o ex-prefeito do Rio Eduardo Paes, é possível que os procuradores refaçam o inquérito, restringindo-o aos crimes comuns, retirando o de caixa 2.
Isso é possível porque o Ministério Público tem a titularidade sobre a formação do crime. O ministro Luis Fux chamou a atenção durante o julgamento de que o Poder Judiciário só pode analisar a competência quando a denúncia for oferecida, e não na fase de inquérito. Considerou que estava havendo uma antecipação em o STF definir agora a competência no inquérito.
É provável também que os procuradores passem a fazer, a partir de agora, as denúncias retirando a acusação de caixa 2 e focando nos crimes comuns como corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, e outros, que são julgados pela Justiça Federal.
Seria uma atitude similar ao que fizeram quando o Supremo Tribunal Federal proibiu a condução coercitiva de suspeitos. Os procuradores passaram então a usar a prisão temporária, de duração de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco. O Supremo também reagiu a isso, alegando que os procuradores estavam usando uma “condução coercitiva” disfarçada.
O ministro Gilmar Mendes atuou também para que o STF acabasse com o que chamou de "farra das prisões preventivas". Há muito tempo ele dizia que o Supremo tinha um encontro marcado com “as prisões alongadas” sem justificativa. Comparava o uso da prisão preventiva, que não tem limite de tempo, às torturas para que os presos confessassem seus crimes, e no caso da Lava Jato, fizessem a delação premiada.
No Congresso também houve reações contra o Supremo, como a colheita de assinaturas para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre o Judiciário, e o ressurgimento do projeto para reverter a PEC da bengala, que aumentou de 70 para 75 anos a idade para a aposentadoria compulsória.
Com a medida, Bolsonaro poderia nomear imediatamente quatro dos 11 ministros. Os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio terão que deixar o Supremo em 2020 e 2021, respectivamente. Se a idade limite voltar a ser de 70 anos, os dois, mais Ricardo Lewandowski e Rosa Weber, seriam aposentados este ano.
Se o STF, diante disso, mantivesse a aposentadoria aos 75 anos pelo princípio do direito adquirido, mesmo assim Bolsonaro terá condições de reverter decisões recentes do Supremo, como a do caixa 2 ou da prisão em segunda instância que vai ser julgada em abril, com uma provável maioria de 6 a 5 que permitiria a saída de Lula da cadeia.
Ao nomear no final 2020 o substituto de Celso de Mello, que talvez seja o próprio Sérgio Moro, Bolsonaro poderá reverter novamente essa tendência do plenário do Supremo.
O inquérito anunciado pelo presidente do STF foi considerado, além de inconstitucional, uma tentativa de acuar o Ministério Público. Inconstitucional porque a investigação não é competência do Judiciário, já que a Constituição separa os atos de julgar, acusar e defender.
A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, pediu explicações ao STF, considerando que, ao comandar a investigação que resolveu por conta própria, a decisão do Supremo “tem potencial de afetar sua necessária imparcialidade para decidir sobre a materialidade e a autoria das infrações que investigou, comprometendo requisitos básicos do Estado Democrático de Direito”.
Além de incompetente para investigar, o Supremo teria cometido outro erro ao, através de seu presidente ministro Dias Toffoli ter designado o relator do caso, o ministro Alexandre de Moraes, sem que a definição tivesse sido feita por sorteio eletrônico.
Merval Pereira: Disputa de poder
Agora existe a possibilidade de que todos os julgamentos da Justiça Federal venham a ser revistos
Confirmada a tendência da maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) de mandar para a Justiça Eleitoral todos os crimes conexos ao de caixa 2, como corrupção, lavagem de dinheiro e peculato, as críticas ao Supremo tomarão conta dos meios digitais.
Paralelamente, o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, anunciou que abriu processo, em caráter sigiloso, contra o que chamou de “notícias falsas (fake news)”, ações caluniosas, ameaças e infrações “que atinjam a honra de membros do STF e seus familiares”.
Como o ministro, ao mesmo tempo, ressaltou que o Supremo sempre defendeu a liberdade de imprensa e a livre expressão, é previsível que o inquérito se refira aos blogs militantes que estão espalhando falsas informações sobre ministros do STF e incentivando seus seguidores a atacá-los.
A guerra entre os procuradores e membros do STF também continuou, e será difícil, como veremos adiante, distinguir quem caluniou quem. O procurador da República Bruno Calabrich foi ao Twitter para afirmar que a decisão de Toffoli é inconstitucional, pois “foro por prerrogativa de função é definido pelo agente, não pela vítima; investigação pelo Judiciário é inconstitucional (violação ao princípio acusatório)”.
De fato, esta decisão de ontem representa uma redução do âmbito da Operação Lava-Jato, já que será difícil que políticos caiam na Justiça Federal, pois todos vão alegar caixa 2 e irão para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que historicamente tem tido uma interpretação condescendente com crimes eleitorais, e demora muito nas decisões porque não está equipado tecnicamente para apurar tantos crimes.
Um exemplo claro da condescendência com os crimes eleitorais está no julgamento da chapa vencedora de 2014. Dilma Rousseff e Michel Temer foram absolvidos por “excesso de provas”, conforme ironicamente denunciou o relator do caso, ministro Herman Benjamin, do STJ.
Júlio Marcelo de Oliveira, procurador do Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), também no Twitter, discordou da afirmação de que o TSE é capacitado o bastante para lidar com os crimes comuns: “A Justiça Eleitoral é célere para processos relativos ao registro de candidaturas, mas não tem agilidade para julgar prestações de contas das campanhas. Até o início de 2018, apenas as contas dos dois candidatos que foram ao segundo turno em 2014 tinham sido julgadas”.
O resultado de 6 a 5 demonstra mais uma vez a divisão do plenário do STF, e que a decisão não é simples como querem fazer crer os que acompanharam o relator, ministro Marco Aurélio Mello.
O ministro do STF Luiz Fux lembrou que a Justiça Eleitoral costuma supervisionar apenas crimes menos graves ligados à eleição, como desacato a autoridades, agressões físicas, falsificação de documento, coação e transporte de eleitores, por exemplo. “Nunca se levou para a Justiça Eleitoral corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa.”
Como lembrou o ministro Luís Roberto Barroso, dizer que o TSE não está aparelhado para tal função não quer dizer que seu valor esteja sendo negado, ou sua ação caluniada.
O ministro Gilmar Mendes, que lidera a disputa com os procuradores de Curitiba, disse em seu voto que eles adotam “métodos de gângster”, chamou-os de “gentalha despreparada, não têm condições de integrar o Ministério Público. São uns cretinos.”
Mendes atacou também a criação de uma fundação privada para administrar parte da indenização bilionária que a Petrobras teve que pagar para parar processos nos Estados Unidos: “Essa fundação seria a mais poderosa do Brasil, com recursos públicos”, e tinha como objetivo financiar eleições futuras. “Sabese lá o que podem estar fazendo com esse dinheiro.”
O projeto do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, que está no Congresso pode reformar esta decisão, pois separa o caixa 2 da corrupção. No entanto, dificilmente será aprovado. Os políticos com mandato conseguirão uma proteção com a decisão do STF.
Mas os que não têm foro privilegiado, como Lula, e os empresários corruptores, continuarão na mira de Curitiba. Previsivelmente, abre-se uma nova etapa na luta jurídica, com a possibilidade de que todos os julgamentos da Justiça Federal possam ser revistos.
A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, não acredita nessa hipótese, mas diz que é preciso ficar atenta aos acontecimentos.