Merval Pereira
Merval Pereira: Em busca da coalizão
Maiorias eventuais são incertas e podem sair mais caro para o governo na negociação das reformas
O presidente Bolsonaro está em busca de um modelo de negociação com os partidos que pressupõe o fim do chamado de “tomada-lá-dá-cá”, mas não tem proposta para viabilizar uma relação que permita ao governo ter uma base política sólida. Por isso até agora não conseguiu grandes avanços nas negociações da reforma da Providência.
Ele tem a intenção de fazer maiorias eventuais, dependendo de cada projeto que o governo apresente. Mas o que parece uma boa ideia pode sair muito mais caro, e não apenas na barganha de votos por vantagens indevidas. Pode sair mais caro do que negociar um programa de governo que inclua todos os projetos importantes.
Sabe-se, por exemplo, que o superministro da Economia Paulo Guedes tem uma série de reformas engatilhadas: tributária, pacto federativo, e por aí vai. Por que não reunir os partidos que podem compor a base, além dos que eventualmente o apoiarão pontualmente, como DEM ou o PSDB, e não negociar um programa de governo, pelo menos na área econômica?
Maiorias eventuais são incertas e obrigarão o governo a negociar a cada reforma, e por isso pode sair mais caro, mesmo quando exista uma negociação republicana. Governar com minoria é possível, mas não quando se precisa mudar a Constituição, o que exige maioria qualificada, ou seja, 60% dos votos de cada Casa do Congresso, em duas votações.
O presidente Bolsonaro iniciou seu governo pensando em negociar com o que definiu como “bancadas temáticas”: segurança, saúde, evangélica, corporativas, do agro-negócio, e assim por diante. Não deu certo.
Sem perceber, estava formalizando o lobby parlamentar ilegal, pois ele hoje não está regulamentado. E estimulando reivindicações especificas de cada setor, sem que uns se adequem aos interesses dos outros, e muito menos aos do país.
As “bancadas temáticas”, que perpassam os diversos partidos com representação no Congresso, não influem no seu funcionamento cotidiano, que está subordinado às hierarquias partidárias. São as direções dos partidos que disputam o comando das comissões mais importantes, como a de Constituição e Justiça que está analisando agora a reforma da Previdência, e escolhem seus representantes nelas.
São também os líderes partidários que negociam com os governadores a nível regional, com reflexos na atuação das bancadas estaduais no Congresso. Dessa troca de apoios e interesses é que nascem a aprovação a este ou àquele projeto, e de maneira mais ampla, o apoio ao governo federal, indispensável para governar.
Por isso é importante que o presidente da República receba os líderes e, sobretudo, tenha uma relação de confiança com eles. Ou isso, ou a base será formada a partir de trocas não confiáveis. Imaginar que esta última é a única fórmula de lidar com o Congresso é negar a política como instrumento de ação pública.
Não há dúvida de que foi esse o sistema em vigor nos governos petistas, e Bolsonaro conhece bem as entranhas do Congresso, embora fosse do baixo clero. O presidencialismo de coalizão foi se deteriorando com a adoção desse atalho, e a cada governo foi piorando, até que chegássemos à situação atual.
Para retomarmos a boa pratica política, é preciso que ambos os lados tenham confiança mútua, e isso ainda está para ser provado neste governo. Bolsonaro age com desconfiança e passa esse sentimento para os políticos com quem negocia.
Os políticos sérios, e os há, por sua vez, não aceitam que os interesses regionais que defendem sejam confundidos com barganhas inconfessáveis.
Vitória da democracia
A revogação da censura decretada pelo ministro Alexandre de Moraes ao site O Antagonista e sua revista Crusoé é a vitória da democracia no que ela tem de mais representativo: a pressão da opinião pública, apoiada em sua legítima representante, a imprensa livre.
Nunca é demais repetir que, no sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende muito da informação. Os jornais nasceram no começo do século XIX, com a Revolução Industrial e a democracia representativa.
Formam parte das instituições da democracia moderna. A “opinião pública” surgiu através principalmente da difusão da imprensa, como maneira de a sociedade civil nascente se contrapor à força do Estado absolutista e legitimar suas reivindicações.
Não é à toa, portanto, que o surgimento da “opinião pública” está ligado à formação do Estado moderno.
Merval Pereira: Tragédia política
O suicídio do ex-presidente do Peru Alan Garcia, ao receber um mandado de prisão em casa, é a explicitação trágica do esquema de corrupção que a empreiteira Odebrecht espalhou pela América Latina e África ao replicar naquelas regiões o modelo de negócios que implantou no Brasil durante os anos petistas.
Foi graças à interferência do próprio presidente Lula, hoje preso em Curitiba, e com o apoio do BNDES, que a empreiteira brasileira se espalhou por todos os países governados por uma esquerda que tinha como pretexto a integração latino-americana, e objetivo dominar politicamente a região.
A Odebrecht, no entanto, não escolhia posição política. O Peru é um exemplo: Pablo Kuczynski, ex-presidente de direita, está preso devido a delações premiadas da empreiteira, no Brasil e nos Estados Unidos, e outros dois ex-presidentes enfrentam investigações judiciais: Alejandro Toledo (2001-2006), de direita, e Ollanta Humala (2011-2016), de esquerda. Fujimori esteve preso por outro caso de corrupção.
Na Lava-Jato peruana, a conexão brasileira surgiu na delação premiada do advogado brasileiro José Américo Spinola, que afirmou ter pago a Alan Garcia US$ 100 mil a pedido da Odebrecht. O ex-presidente alegava que o dinheiro era pagamento por uma palestra.
Ao investigar as contas internacionais, secretas ou declaradas, do marqueteiro João Santana, a operação Lava Jato descobriu um grande esquema ilegal de financiamento de projetos políticos de esquerda pela América Latina e a África.
Em diversos desses países, o marqueteiro João Santana recebeu pagamentos ilegais através de empresas offshores alimentadas pela Odebrecht, que tinha interesses na eleição de políticos do esquema devido a financiamentos de grandes obras de infraestrutura.
A atuação internacional da empresa de João Santana começou em 2003, mesmo ano em que Lula chegou ao poder no Brasil. Na Argentina, coordenou campanhas legislativas, municipais e governamentais até 2007 na região de Córdoba, para depois chegar à campanha presidencial dos Kirchner. Em El Salvador, fez a campanha na eleição do presidente Maurício Funes, em 2009, da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN), grupo guerrilheiro formado nos anos 1980 que se transformou em partido em 1992.
Em 2012, a Pólis, sua empresa de marketing, atuou em Angola, na campanha do presidente José Eduardo dos Santos pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), financiada em parte com dinheiro depositado em conta offshore de Santana na Suíça. No mesmo ano, ajudou a reeleger na Venezuela o ex-presidente Hugo Chávez.
Na República Dominicana, também em 2012, Santana coordenou a campanha de Danilo Medina, que disputou contra o ex-presidente Hipólito Mejía, sendo reeleito em 2016. Com a queda do bolivarianismo em vários países da América Latina, o ambiente político mudou muito, e as negociatas começaram a surgir, sempre tendo como centro as empreiteiras brasileiras, em especial a Odebrecht.
A emergência de uma direita politicamente forte no mundo, culminando com a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, leva a esquerda a perder força na América Latina, com a maioria dos países governados por partidos de direita, revertendo uma situação geopolítica.
Há cinco anos, dos 12 países da região, (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), só três eram governados por partidos de centro ou à direita: o Chile, de Sebastián Piñera, o Paraguai, de Federico Franco, e a Colômbia, de Juan Manuel Santos.
Dos governantes de esquerda de então, vários estão presos ou sendo acusados ou processados por corrupção, como Rafael Correa, do Equador, Cristina Kirchner, da Argentina, Lula, do Brasil, Maduro, da Venezuela, entre outros. E o escândalo da Odebrecht foi exportado para diversos países: Argentina, Colômbia, República Dominicana, Equador, Guatemala, México, Panamá, Peru, Venezuela. A atuação da Odebrecht na construção de hidrelétricas, aqui e em países da América Latina e da África, elevou o volume de corrupção.
É da disputa para a construção de hidrelétricas no norte do país que trata a mensagem de Marcelo Odebrecht que se referia ao então Advogado-Geral da União Dias Toffoli como “o amigo do amigo de meu pai”. Toffoli fazia parte de uma força-tarefa do governo petista para dirimir dúvidas jurídicas nas licitações dessas grandes obras.
Merval Pereira: Por linhas tortas
O agravante é que todos os movimentos dos ministros envolvidos são relacionados com o interesse deles próprios de se protegerem
Uma sucessão de erros levou o Supremo Tribunal Federal (STF), o guardião da Constituição e defensor dos direitos dos cidadãos, a provocar uma potencial crise institucional. Essa história está sendo escrita por linhas tortas, mas dificilmente chegará a um final feliz num país que carece de lideranças e excede em desregramentos.
O STF decidiu censurar o site de notícias O Antagonista e sua revista “Crusoé”, impensável em uma democracia. Expediu diversos mandados de busca e apreensão na casa de supostos agressores do STF nas redes sociais, entre eles um general da reserva, que está sendo defendido por seus companheiros de farda, alguns membros do governo Bolsonaro.
Abriu também uma guerra com o Ministério Público e boa parte do Legislativo e representantes da sociedade civil. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, saiu em defesa do Supremo, avaliando que seria preciso aguardar as investigações para tomar uma posição. Mas deputados e senadores se manifestaram com críticas, e vários partidos entraram com ações no próprio Supremo para anular o inquérito, que está em andamento mas, segundo a procuradora-geral Raquel Dodge, produzirá provas imprestáveis para uma futura ação penal.
O ministro Alexandre de Moraes, nomeado relator do inquérito sobre notícias falsas e ataques contra membros do STF e parentes pelo próprio presidente do STF Dias Toffoli, rejeitou seu arquivamento decidido pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge.
Dias Toffoli não poderia ter aberto o inquérito, mas requisitado a ação do Ministério Público, que é o detentor da acusação no Estado. Não poderia ter indicado o relator sem uma escolha aleatória, por sorteio eletrônico. Mas a procuradora-geral da República não poderia também determinar o arquivamento do inquérito, o que é atributo de órgão judicial, segundo o Código de Processo Penal.
Inclusive o CPP prevê que o juiz pode discordar do pedido de arquivamento. A questão é que quando o juiz discorda do pedido feito pelo MP, tem que mandar o inquérito para o procurador-geral (dos estados ou da República), para que ele analise se é o caso de oferecer denúncia (no lugar do promotor ou procurador que requereu o arquivamento).
Como esse caso tramita no Supremo e o pedido de arquivamento veio já da procuradora-geral, o juiz (o ministro Alexandre de Moraes) não pode mandar de volta para a PGR, mas pode negar o pedido de arquivamento, como fez agora.
O agravante é que todos os movimentos dos ministros envolvidos são relacionados com o interesse deles próprios de se protegerem. O STF, de acordo com a maioria dos especialistas, não pode conduzir investigações sem o Ministério Público, muito menos sobre uma questão que o envolve diretamente.
Mas o ministro Alexandre de Moraes considerou que pode conduzi-las com a Polícia Federal, independentemente da participação do Ministério Público, segundo já decidiu a Segunda Turma em julgamento de caso semelhante.
A convocação para depoimentos de críticos nas redes sociais às atuações de ministros, assim como já aconteceu com o editor do site O Antagonista, jornalista Mario Sabino, representa um abuso de poder do Supremo, que não pode considerar críticas individuais como críticas à instituição, como deu a entender o presidente Dias Toffoli em relação à reportagem censurada.
Nela revelou-se que Marcelo Odebrecht identificou Toffoli como sendo o “amigo do amigo do meu pai”, quando ele estava na Advocacia-Geral da União tratando oficialmente de questões relacionadas à construção de hidrelétricas no Norte do país.
Não há insinuações, e se as houvesse, bastaria que o presidente do Supremo esclarecesse o caso e exigisse uma eventual retratação, como fazem os comuns mortais. Outra coisa é vandalismo digital, ameaças físicas a ministros e seus parentes.
A apreensão de computadores nas casas dos supostos detratores do Supremo leva à desconfiança, já disseminada nas redes sociais, de que a intenção da operação é descobrir as fontes de informação do site, que muitas vezes podem ser de dentro do governo, da PF, MP, PGR. Assim como a fonte dos repórteres de Watergate era um vice-diretor da CIA.
Se a lei é igual para todos, Toffoli está sendo tratado como mais igual que os demais cidadãos, parafraseando George Orwell no livro “A Revolução dos Bichos”.
Merval Pereira: Reféns do senso comum
A decisão do presidente Jair Bolsonaro de intervir na Petrobras, proibindo o aumento do óleo diesel programado pela estatal, está gerando apreensão não apenas no campo econômico do governo, liderado por Paulo Guedes, mas também nos setores militares que cuidam das questões de segurança.
A certeza é de que o governo não pode ficar refém dos caminhoneiros, mesmo que avaliações políticas do Chefe do Gabinete Civil, Onyx Lorenzoni, tenham pesado mais na decisão presidencial do que a política de preços que vem sendo adotada pela Petrobras desde o governo Temer.
A estatal só se recuperou da crise em que foi jogada pelas ações populistas dos governos petistas, principalmente no mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, porque adotou uma política de preços alinhada ao mercado internacional.
As reuniões que começaram ontem e vão até hoje, em que estão presentes o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e o ministro da Economia, Paulo Guedes, buscam compatibilizar o senso comum do presidente com as necessidades técnicas da Petrobras de se manter competitiva no mercado internacional.
Um busca otimizar a performance econômica do governo, outra procura se alinhar com seu eleitorado, que se sente explorado pelos preços da gasolina e do óleo diesel cobrados nas bombas. Uma atenção especial, no entanto, precisa ser dada à questão do ICMS, que encarece o preço do óleo diesel e da gasolina para o consumidor.
No diesel, as alíquotas mais altas são as do Amapá (25%) e Maranhão (20%). Sete estados utilizam a tarifa de 12%, a menor permitida por lei: Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. O Rio a reduziu de 16% para 12% depois da greve dos caminhoneiros.
O presidente Jair Bolsonaro colocou em seu Twitter ontem uma comparação com a média dos preços da gasolina cobrados em vários países do mundo e os do Brasil, para demonstrar que cobramos muito acima: R$ 0,84 contra R$ 4,00 por litro.
Esse é um raciocínio que reflete o senso comum que se espalha pelo Twitter e outras mídias sociais. Só que Bolsonaro se esqueceu do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias), que eleva os preços nas bombas, pois a gasolina e o diesel são vendidos pela Petrobras por um preço abaixo, que chega às bombas muito mais caro.
O Rio sempre foi o estado com maior ICMS sobre a gasolina, atualmente de 34%. O querosene de aviação também é muito mais taxado no Rio do que em São Paulo, por exemplo.
Somente uma reforma tributária, que está prevista como desdobramento da reforma da Previdência, poderá resolver esse problema, dentro de um novo pacto federativo que distribua melhor os impostos entre estados e municípios.
Censura
A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes de mandar retirar do site O Antagonista e de sua revista “Crusoé” uma reportagem sobre o presidente do STF, ministro Dias Tofolli, é de uma gravidade sem precedentes em tempos democráticos.
Ele alega que não houve censura prévia, como se houvesse diferença entre censuras. A reportagem informava que Marcelo Odebrecht revelou em depoimento a que os sites tiveram acesso, que era Tofolli o “amigo do amigo de meu pai”, como se referia ao então advogado-geral da União, amigo de Lula.
A Procuradoria-Geral da República negou que a informação fosse verdadeira, e baseado na declaração formal da PGR, Moraes mandou que a reportagem fosse suprimida. Os sites reafirmam a veracidade da informação.
Se o objeto da denúncia fosse um cidadão comum, iria à Justiça pedir reparação. Mas o ministro Dias Tofolli parece que não é uma pessoa comum.
Merval Pereira: Conflitos de alma
A revogação do aumento do preço do óleo diesel pelo presidente Bolsonaro revela seu desconforto com o liberalismo econômico
O episódio da intervenção do presidente Bolsonaro revogando o aumento do preço do óleo diesel determinado pela Petrobras é apenas um dos vários que revelam o desconforto do presidente com o perfil liberal na economia com que se travestiu para ganhar a eleição.
Não há dúvida de que a presença do economista Paulo Guedes na sua equipe, com plenos poderes para decidir qualquer coisa na área que o presidente declaradamente ignora, deu a um grupo importante de eleitores a certeza de que, elegendo Bolsonaro, não estavam elegendo apenas aquele deputado tosco e radical do baixo clero que surgiu do nada para galvanizar a disputa eleitoral.
Foi Guedes quem garantiu a Bolsonaro deixar de ser um tipo de candidato como o Cabo Daciolo para reunir em torno de si não apenas seus seguidores radicais de direita, mas também uma classe média que aspira a uma ascensão social e empresários e investidores que sentiam firmeza na presumível influência do economista liberal sobre o capitão.
A conversão do Bolsonaro estatizante em um liberal na economia nunca foi bem explicada, mas o fato é que ele se deixou convencer por Paulo Guedes da necessidade das reformas estruturais sem as quais o país não vai sair do buraco. E sem cuja defesa ele não seria eleito.
Paulo Guedes procurara Luciano Huck para convencê-lo a se candidatar à Presidência da República baseado na sua enorme popularidade e na sua visão liberal da economia. Assim como Bolsonaro viu que havia uma brecha para disputar a Presidência da República no vácuo que a radicalização e a corrupção petista deixaram para trás, também Paulo Guedes entendia que depois do fracasso do que chama de fase esquerdista do país, representada pela social-democracia em que iguala os oito anos de Fernando Henrique aos 13 anos petistas de Lula e Dilma, havia espaço para uma política liberal na economia e um programa direitista nos costumes.
Foi Guedes quem quase convenceu Luciano Huck a candidatar-se (“ele tem mais seguidores na mídia social do que Trump”, espanta-se), mas foi Bolsonaro quem o procurou. Já com uma grande penetração em setores da população que ansiavam há anos por um governo rigoroso com os desmandos, especialmente no combate ao crime organizado, que desse uma sensação de segurança ao cidadão, e ávido por políticas públicas que transformassem seu cotidiano em menos sofrido, Bolsonaro foi buscar Paulo Guedes.
O que deu a certeza a empresários e investidores de que quem mandaria seria o “posto Ipiranga”.
Ledo engano. No fundo da alma, Bolsonaro não mudou a maneira de pensar, apenas adaptou-se às necessidades eleitorais do momento. E também ao pragmatismo, que indica que, se não forem feitas as mudanças, abrindo o país e modernizando as relações de trabalho e o sistema previdenciário, não teremos condições mínimas de crescimento econômico.
Mas não é por acaso que ele volta e meia repete que gostaria de não ter que fazer a reforma da Previdência, mexendo no que considera “direitos adquiridos”, a favor dos quais sempre votou, contrário às reformas apresentadas pelos governo antecedentes. A intervenção no preço do óleo diesel aconteceu também por cálculo político.
Nunca é bom esquecer que Bolsonaro estava apoiando a greve dos caminhoneiros no governo Temer, ao lado dos manifestantes que pediam a volta dos militares ao poder. Era um grupo pequeno, mas que chamou a atenção e foi ganhando novas dimensões com o decorrer da paralisação.
Como não entende nada de economia, faz raciocínios simplistas que parecem corretos a setores da população que acham possível ter combustíveis baratos num mercado globalizado em que a competição é em dólar. Acaba acontecendo o que ocorreu na Venezuela, onde a estatal de petróleo (PDVSA) bancava gasolina e diesel baratos na bomba, num populismo vulgar, e perdeu as condições econômicas de continuar produzindo com competitividade.
Esses são movimentos que revelam uma mentalidade estatizante adormecida, mas não vencida, e não sinaliza um governo liberal, e sim um que aproxima os ares retrógrados que dominam áreas importantes como as Relações Exteriores, o Meio Ambiente e a Educação a um possível retrocesso também econômico.
Esqueceram-se de que quem tem voto é o capitão, e que um presidente da República tem poder incontrastável, pelo menos até perder o apoio da maioria do Congresso.
Merval Pereira: Passo adiante
A autonomia formal do Banco Central, anunciada ontem pelo presidente Bolsonaro como parte das comemorações dos cem dias do governo é assunto que provoca polêmicas sempre que abordado, e nenhum governo recente teve vontade de implementá-la, embora fossem todos favoráveis à independência de atuação. Ponto para Bolsonaro.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, que iniciou a fase de independência do Banco Central, nunca se empenhou em conceder a autonomia formal reivindicada, mas na prática tornou o órgão no mais poderoso do Executivo.
O ex-presidente Lula aceitou dar independência total a Henrique Meirelles, para demonstrar ao mercado que seu compromisso era para valer. Nos oito anos em que reinou no BC, Meirelles teve que enfrentar muitas crises políticas, pois sua independência contrariava grupos dentro do PT.
O presidente do Banco Central ganhou status de ministro para blindá-lo com o foro privilegiado devido à possibilidade de um processo. A condição foi mantida a partir de então, mas Bolsonaro prevê cancelar essa prerrogativa, mesmo porque o foro privilegiado hoje já não dá proteção a fatos ocorridos antes do exercício da função.
Lula chegou mesmo a sondar um substituto para Meirelles, que acabou sendo salvo pelo anúncio de que o país ganhara status de bom pagador recebendo da Standard&Pools o grau de investimento. Já a ex-presidente Dilma interferiu abertamente na atuação do Banco Central, a ponto de o mercado financeiro apelidar Alexandre Tombini de “Pombini”, em referência à sua submissão à presidente Dilma.
Os “pombos” são mais condescendentes, Tombini tornou-se “Pombini” nas mãos da presidente Dilma, durante o período em que ela resolveu levar os juros a taxas históricas mais baixas sem condiçções técnicas para isso.
A proposta do governo Bolsonaro prevê mandato de quatro anos para o presidente do Banco Central, não coincidente com o mandato de presidente da República, prorrogável por mais quatro anos. O projeto de lei já causa atrito com o Congresso, pois o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, negou que tivesse sido consultado pelo governo.
Bolsonaro explicou no twitter: "A exemplo das economias mais avançadas, (...) a autonomia do Banco Central (...) ajuda a fornecer estabilidade, eficiência e crescimento econômico".O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, depois da experiência que teve em seus oito anos de mandato, quando teve que trocar duas vezes o presidente do Banco Central, está convencido de que a autonomia formal tem que ter limites.
A adoção de mandato para os presidentes e diretores do BC tem que prever a possibilidade de serem revogados. "Durante o meu governo, o BC sempre teve autonomia, mas chega um momento em que o presidente diz: Oh, meu Deus. acho que essa política não pode continuar", afirmou, ponderando: "Então como é que faz? Deixa o Banco Central tomar a decisão?
Luis Gonzaga Belluzzo, da Universidade de Campinas, o economista sondado por Lula para substituir Meirelles, acha que "é perigoso manter a independência do banco durante tensões sociais que podem nascer da própria política monetária". Em 2002, na transição do governo de Fernando Henrique Cardoso para Lula, uma proposta de autonomia do BC foi apresentada por Armínio Fraga a Antonio Palocci, que viria a ser o ministro poderoso da economia do governo Lula.
Nos Estados Unidos, o Congresso Nacional fixa objetivos para o Fed, o Banco Central deles, como manter o pleno emprego e a inflação baixa, mas não fixa índices. O presidente tem mandato fixo. Já na União Européia, é o Banco Central Europeu (BCE) quem decide as prioridades e até a meta da inflação que precisa alcançar. No Brasil, é o governo que define as metas a serem alcançadas.
A independência formal seria uma maneira de proteger o Banco Central das pressões políticas, pois governos populistas preferem ser condescendentes coma inflação para tentar alcançar crescimento a curto prazo.
Merval Pereira: Governo e seita
Bolsonaro se dedicou muito mais nesses primeiros cem dias a defender sua pauta de costumes e valores
Nos cem primeiros dias do governo Bolsonaro, já dá para ver que temos dois governos, um que funciona, outro que parece uma seita religiosa sem um líder ou, pior, com líderes atrapalhados, que às vezes pode ser o próprio presidente, outras é o guru dele, o professor on-line Olavo de Carvalho, que vem acumulando poder na mesma proporção que provoca confusão.
Seus seguidores, especialmente os filhos de Bolsonaro, ouvem seus conselhos e nomeiam e desnomeiam ministros baseados neles, com facilidade assustadora. São uma fonte de incertezas, e muitos, entre eles membros do núcleo militar que Olavo vem inutilmente chamando para um bate-boca virtual, consideram que estão atrapalhando a recuperação da economia.
O balanço deste início de governo não é positivo, e essa constatação já aparece na queda da popularidade do presidente. Mas houve pontos relevantes. O governo andou no caminho certo em áreas importantes: economia e segurança pública, além da infraestrutura, que está dando consequência à decisão de privatizar setores básicos para o desenvolvimento.
Mas andou irremediavelmente errado em setores essenciais, como a Educação e as Relações Exteriores. O ministro Ernesto Araújo continua desmontando o que considera o aparelhamento no Itamaraty, desprezando o conhecimento de embaixadores experientes, como fez agora com Sérgio Amaral, removendo-o de Washington para tentar colocar no lugar um assessor também ligado ao autointitulado filósofo de Virgínia, que ajuda a governar pelo Skype.
Mas o da Educação não resistiu aos primeiros cem dias e já foi substituído. Parece ter sido uma troca de seis por meia dúzia, mas Abraham Weintraub tem sobre Vélez Rodríguez duas vantagens, que podem ser perigosas: fala português, e é mais inteligente para implementar no MEC a mesma agenda retrógrada, com ares de modernidade.
Abandonou, por exemplo, a linguagem vulgar que usava nas palestras sobre o combate ao pensamento de esquerda, como fez recentemente em Foz do Iguaçu, no Foro dos Conservadores organizado pelo filho 03 Eduardo Bolsonaro. “Quando ele (um comunista) chegar para você com o papo ‘nhoim nhoim’, xinga. Faz como o Olavo de Carvalho diz para fazer. E quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais”, disse na ocasião.
Ele também é o autor da seguinte pérola: “Os judeus controlam os bancos, os jornais e o sistema financeiro. São a raiz do comunismo internacional”. E isso porque Bolsonaro diz que “ama Israel”. Ao discursar na sua posse no ministério, parecia outro Weintraub. Listou como objetivos “acalmar os ânimos” e respeitar “diferentes opiniões”. Só que não. Logo em seguida esclareceu o que entende por “pacificar”: “A gente está decretando agora que o MEC tem um rumo, uma direção, e quem não estiver satisfeito com ela vai ser tirado.”
Mas, pelo menos, arrolou entre as prioridades melhorar o ensino, admitindo que o desempenho dos alunos brasileiros nos exames internacionais é equivalente aos de países pobres, quando o gasto com a educação é de país rico.
Weintraub tem razão ao dizer que quem não está de acordo deve deixar o governo. Mas o que mais acontece hoje não são divergências conceituais, pois todos sabem onde se meteram ao aceitar trabalhar neste governo. O que existe é briga de grupos pelo poder.
O caso mais evidente de divergência ideológica foi o da cientista política Ilona Szabó, desconvidada por Moro a pedido do próprio presidente. É o típico caso de erro essencial de pessoa. Ou de ingenuidade. Para não criar mais problema, convidou para o lugar um delegado acusado de misoginia.
Bolsonaro se dedicou muito mais nesses primeiros cem dias a defender sua pauta de costumes e valores, para incentivar o núcleo de eleitores mais radicalizados que o apoiaram na eleição.
A reforma da Previdência, por exemplo, é francamente contrária ao que pensa. Cada vez que diz que não gostaria de fazer a reforma, mas sabe que ela é essencial, o presidente estimula que o Congresso a desidrate.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem então que redobrar seus esforços para convencer deputados e senadores que terão ganho político com a aprovação da reforma ainda no primeiro semestre, ganhando tempo para que as medidas deem resultado para deixá-los fortes nas campanhas de 2020 e 2022.
Merval Pereira: Para além do emprego
Para José Roberto Afonso, a reforma da Previdência é insuficiente para futuro em que trabalho não passará por emprego e salário
No momento em que se discutem reformas estruturais na economia, um artigo do economista José Roberto Afonso, um dos maiores especialistas em finanças públicas do país, publicado na Revista do BNDES que circula a partir de hoje trata de uma questão colateral à reforma da Previdência que se tornará crucial para nosso desenvolvimento.
Afonso considera a reforma da Previdência necessária, mas insuficiente para lidar com um futuro em que cada vez mais o trabalho não passará por emprego e salário. Ele ressalta que financiar e manter a seguridade social que tinha essas premissas – emprego e salário - é um debate crescente no mundo, que o Brasil ignora e do qual não participa.
Até Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial já alertaram que será preciso um novo pacto social, lembra José Roberto Afonso. No artigo, ele volta ao economista John Maynard Keynes, que foi a base de seu doutorado na Unicamp, mas analisando aspecto que poucos conhecem: ele ajudou a estruturar o chamado estado do Bem-Estar Social, na década de 30 e 40 na Inglaterra, depois copiado pelo resto do mundo, inclusive o Brasil.
José Roberto Afonso lembra que a rede de proteção social adotada em meados do século passado girava em torno do emprego, formalizado no Brasil pela contratação com carteira de trabalho assinada. Empregadores e empregados contribuem sobre o valor de seus salários, que também passa a balizar os benefícios pagos no futuro (aposentadoria), ou antes, em caso de alguma intempérie (uma delas é o seguro-desemprego).
Afonso adverte que “esse paradigma está sendo quebrado pela revolução em curso, na indústria, na economia e na sociedade, que compreende, entre outros fatores, uma intensa automação do processo de trabalho, substituindo trabalhadores por robôs, a economia compartilhada e a do “bico”, com trabalhadores exercendo suas funções sem vínculo contratual, físico e temporal.
Cada vez mais, escreve ele, trabalho não representará, necessariamente, emprego. Os países precisarão construir um novo pacto ou contrato, social e também econômico, para lidar com essa realidade. Keynes já alertava que exagerar na tributação de salários desestimularia os empregadores a contratar trabalhadores formalmente. “Qualquer semelhança com a situação no Brasil não é mera coincidência”, ressalta José Roberto Afonso.
Para ele, “é preciso outro arranjo. A única certeza que se têm é que como se está, não mais ficará”. O economista afirma que, na contramão do que os últimos governos têm feito, é fundamental fortalecer arranjos como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que tem sido desidratado, “não apenas porque o desemprego vai explodir, mas porque é urgente retreinar e requalificar mão-de-obra”.
José Roberto Afonso diz que até mesmo o lado SENAI/SENAC deveria ser prestigiado. Para ele, “não é a educação que resolverá o desafio, mas habilidades”. A Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países mais desenvolvidos do mundo, que o Brasil almeja integrar, tem batido muito nessa tecla, lembra Affonso.
Melhorar o sistema de ensino, para conseguir colocação aos futuros trabalhadores, é fundamental, analisa José Roberto Afonso. Mas, para ele, “será premente também mudar as qualificações de quem já está dentro do mercado de trabalho”. A rede de proteção social aos trabalhadores gira em torno do emprego, e os salários são o referencial, seja para cobrança de contribuições sociais, seja para pagamento de benefícios, como seguro-desemprego e aposentadoria.
José Roberto Afonso assegura que “essa construção será abalada pela revolução econômica e social, que passará pela automação do processo de trabalho e a expansão do trabalho independente”. A realidade nova forçará a renovação do pacto social brasileiro, de modo que o amparo ao trabalhador deverá assumir outras formas que não apenas a carteira assinada, e revisitar o esquema de financiamento aos investimentos.
Para fomentar esse debate, o artigo de José Roberto Afonso resgata as lições de John Maynard Keynes “para iluminar as reformas necessárias para enfrentar o futuro”. Ele chama a atenção para o fato de que quando se examinam as atividades de Keynes entre as vésperas da Segunda Guerra Mundial e os primeiros anos seguintes, “constata-se que deu grande atenção aos gastos sociais e ao orçamento público, em especial, no âmbito de suas atividades como conselheiro governamental”.
Keynes classificou como ficção o caráter contributivo do sistema, pois seria preciso custear mais do que benefícios ligados diretamente ao trabalhador. Os serviços de caráter geral (como os de saúde) e os eventuais déficits do sistema precisariam ser cobertos pelo Estado – ou, melhor, pelos contribuintes em geral e com recursos oriundos de impostos. Como acontece hoje entre nós.
Um fundo composto pela arrecadação das contribuições (fixadas a cada quinquênio) custearia os serviços médicos, os benefícios de assistência (exceto para crianças) e as pensões (exceto dos ex-combatentes de guerra). Como não conseguiu aprovar um projeto de reforma tributária para aumentar a arrecadação, Keynes contentou-se com mudanças que reduziram a despesa pública futura, como poderá fazer o ministro da Economia Paulo Guedes.
Merval Pereira: Choque de acomodação
Guedes está convencido de que se forma no país uma compreensão da urgência de mudança da Previdência
O ministro Paulo Guedes considera que as desavenças entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o presidente Bolsonaro são consequências de um “choque de acomodação” resultante da nova composição de forças políticas vitoriosas nas eleições de outubro, com a centro-direita tomando o lugar da centro-esquerda que governou o país nos últimos 30 anos.
O que se viu ontem, no debate promovido pelo GLOBO e “Valor Econômico” dentro do projeto “E agora, Brasil?”, foi um ministro da Economia utilizando-se de uma veia política que ele nega existir, e um presidente da Câmara mostrando-se preocupado com a viabilização de aspectos econômicos dos projetos do governo.
Para Maia, uma visão do conjunto das reformas deve ser a prioridade na análise dos parlamentares, que poderão ser beneficiados com os avanços da economia, mas o governo tem que focar também na discussão do pacto federativo, uma consequência natural da aprovação da Nova Previdência.
A campanha pela Nova Previdência, apresentada como combate aos privilégios, “com o guarda da esquina ganhando tanto quanto um general na aposentadoria”, parece estar dando certo, pois o nome do ministro Guedes foi aclamado em passeata neste fim de semana em São Paulo por grupos de apoiadores de Bolsonaro.
Paulo Guedes está convencido de que se forma no país uma compreensão da urgência de mudança do sistema, e ele não acredita que o Congresso vá decidir contrariamente à posição majoritária da população.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, rejeita a ideia de que muitos deputados, mesmo convencidos de que a reforma da Previdência é necessária, não darão tudo o que o governo pede apenas para não fortalecer politicamente o presidente Jair Bolsonaro, que se tornaria um candidato imbatível à reeleição se a economia deslanchar.
Seria um contrassenso, argumentou, já que se a reforma trouxer o crescimento econômico, os que a apoiaram tirarão benefícios disso juntamente com o presidente Bolsonaro. Já Paulo Guedes ressaltou em mais de uma ocasião que o Legislativo sairá ganhando com as reformas, que darão ao Congresso o controle do Orçamento.
Ele disse que a aprovação de uma reforma parcial, aquém da redução de despesas de 1 trilhão de reais em dez anos que considera necessária para o equilíbrio do sistema, terá como consequência natural a necessidade de uma nova reforma mais adiante. E o abandono do projeto de capitalização, que considera a grande chance de as novas gerações prepararem um futuro por conta própria.
Os que não tiverem condições de, ao final do tempo mínimo exigido para a aposentadoria, obter uma renda igual ao salário mínimo, terão a garantia do governo de complementação. Fazer uma reforma desidratada a esta altura pode dar um fôlego para o governo, mas aumenta a médio prazo a crise fiscal e o risco de uma crise institucional grave, ressaltou.
Guedes admitiu que está sendo difícil para o presidente Bolsonaro abraçar a reforma da Previdência, pois ele sempre votou contra quando era deputado. Mas garante que ele tem uma visão muito clara de que agora, presidente do país, precisa olhar para o conjunto do povo brasileiro, e não a defesa de corporações, como fazia quando as representava como deputado.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, admitiu que as diversas corporações pressionam os deputados e senadores em defesa de seus interesses, mesmo quando eles vão de encontro às necessidades do país. Mas acredita que já existe uma compreensão maior da importância da reforma.
Rodrigo disse que, no entanto, desistiu de ajudar na coordenação política para angariar os votos necessários para a aprovação da emenda constitucional depois que o presidente Bolsonaro decidiu que seu governo não seria um presidencialismo de coalizão, em que o governo atuava em conjunto com o Parlamento.
Ele reafirmou que é favorável à reforma, mas não tem mais a responsabilidade de ajudar a formar a maioria. Apesar de dizer que aceita e compreende a escolha do presidente, Maia revelou descontentamento com o que chamou de mal-entendido provocado pela discussão que teve com Bolsonaro recentemente, o que provocou uma reação dos bolsonaristas pelas redes sociais. “Não tenho vocação para mulher de malandro”, afirmou.
Merval Pereira: O bardo e nossa realidade
Para Gustavo Franco, Shakespeare dá a sensação de que enredos políticos do noticiário são variações empobrecidas
O economista Gustavo Franco, figura de relevo na execução do Plano Real, ex-presidente do Banco Central, é, e não apenas nas horas vagas, um shakespeariano reconhecido por seus trabalhos que ligam o bardo à economia, e gosta de fazer paralelos das situações que retrata com os tempos atuais, e dos seus personagens com os nossos da política.
Escreveu diversos textos nessa linha e, engajado no projeto do Partido Novo, liderado pelo também economista João Amoêdo, Franco fez, na recente campanha presidencial, palestras para os novos candidatos do partido intuindo conexões entre a política brasileira, seus protagonistas, situações e personagens encontradas nas peças de Shakespeare.
Quase sempre irônico, pela certeza de que a “progênie da humanidade”, como Samuel Johnson se referiu aos 987 personagens que habitam as 38 peças do cânone, está presente nelas, “nenhum tipo humano relevante, ou sentimento, ausente desta extraordinária população”. Muito menos de nossa historia política, sobretudo a recente, marcada tanto pela tragédia quanto pela comédia.
Para Gustavo Franco, a obra de Shakespeare, chamado de “o bardo de Avon”, repleta de intrigas, maquinações e também virtudes dos homens públicos, nos dá a sensação de que os enredos políticos do nosso noticiário não passam de variações empobrecidas sobre um vernáculo catalogado há cerca de 400 anos”.
Preocupado com “associações que possam levar intelectos perversos a enxergar calúnia ou injúria”, Franco adverte em um de seus textos que “o derramamento de sangue tem natureza apenas metafórica, e os assassinatos e outros crimes de personagens de ficção não devem ser tomados como homicídios literais, mas apenas simbólicos, exageros próprios do instinto, ou do subconsciente”.
Compara Fernando Henrique Cardoso a Hamlet, cuja “dúvida insolúvel” ( ser ou não ser, eis a questão) considera “uma bela alegoria para os que precisam decidir”, imersos em hesitações caracteristicamente humanas, ou tucanas, ou petistas, diante das escolhas difíceis que se nos oferecem”.
O senador José Serra, “um homem reconhecido pela sua ambição e pelos atropelamentos”, é comparado ao rei Ricardo III, lembrando que muitos acreditam que Shakespeare não faz justiça ao verdadeiro monarca. “Se ficássemos apenas com as olheiras e a calva, mantendo a vontade férrea, o intelecto penetrante, o olhar sereno e (nem sempre) condescendente, e também a extraordinária ambição que chamou a atenção de Tancredo Neves em 1989, teríamos José Serra como o Duque de Gloster (Gloucester), futuro Ricardo III”.
Gustavo Franco relembra a primeira aparição na terceira parte de Henrique VI (que, à distância, lembra a ele José Sarney ou Itamar Franco, homens em torno dos quais todos queriam governar), “ainda jovem e imaturo, quem sabe presidente da UNE, ou já deputado constituinte”. Presença já marcante, ele pergunta: “Mas como hei de chegar até a coroa?/ Há muitas vidas entre o alvo e eu”.
Gloster era o sétimo na linha de sucessão, e Serra passou a carreira lutando pela primazia de disputar o trono, o que conseguiu por duas vezes. O hoje deputado Aécio Neves, sem dúvida, é do ramo, ratifica Franco, “não se discute sua nobre linhagem, mas não está pronto como Ricardo III”, analisa. Para Gustavo Franco, Aécio se parece com o Príncipe Hal, herdeiro indiscutível, destinado a se tornar o heroico Henrique V, vencer os franceses em Agincourt.
Aqui, um parênteses. Gustavo Franco não esconde sua admiração por João Amoêdo, o criador do Partido Novo, que disputou a eleição presidencial em 2018, teve uma votação surpreendente e conseguiu fazer com que seu partido atingisse a cláusula de desempenho que permite que funcione plenamente no Congresso. Dá-lhe um tom heroico, comparando-o a Henrique V ao fazer a conclamação a seus seguidores na Batalha de Agincourt.
Voltando a Aécio, ou Príncipe Hal, Gustavo Franco lembra que, aborrecido com a demora, com os imperativos do tempo, e com a obrigação de atingir uma maioridade ainda distante”, Hal, à espera de um destino glorioso, descreve Franco, passa seu tempo em farras intermináveis, pois é jovem, simpático e bem-sucedido com o sexo oposto. (Amanhã, Lula, Bolsonaro e outros menos votados)
Merval Pereira: Moro radical
Ministro parece cada vez mais afinado com Bolsonaro nessa parte da política de segurança, que é o que faz sua popularidade
Não foi por acaso que o presidente Bolsonaro levou para o live que faz todas as quintas-feiras o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro. Passados quase cem dias no governo, Bolsonaro está em queda de popularidade, e Moro, em alta, o que coloca o combate à corrupção e ao crime de colarinho branco como o projeto mais passível de apoio popular do que a Previdência, por exemplo, que é o centro das atenções do debate político e tem medidas claramente impopulares, mesmo que necessárias.
O ministro parece cada vez mais afinado com Bolsonaro nessa parte da política de segurança pública, que é o que faz a popularidade de Moro e ajudou Bolsonaro a se eleger. Segundo os especialistas, porém, a política tem menos a ver com a segurança pública e mais com combate ao crime, ponto que afeta diretamente o dia a dia do cidadão, mas que, se tratado como um fim em si mesmo, não trará resultados a longo prazo.
A visão de especialistas quase sempre colide com as decisões que estão sendo anunciadas, como a flexibilização do chamado “excludente de ilicitude”, uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro, possibilitando redução ou mesmo isenção de pena de policiais que provocarem morte durante sua atividade.
O projeto permite que o policial que aja para prevenir agressão ou risco de agressão a reféns seja considerado como atuando em legítima defesa. Essa medida é considerada por Moro uma maneira de reforçar a segurança pública, e certamente tem o apoio da população.
Já técnicos em segurança pública consideram que o melhor seria trabalhar a redução da violência policial, priorizando a prevenção e a investigação. O controle de armas de fogo, restringindo sua disponibilidade, vai de encontro à decisão já anunciada de ampliar as possibilidades de porte de armas. Moro sugeriu duas armas por pessoa, e o presidente mandou ampliar esse número para quatro.
A redução do encarceramento não entra nos projetos do governo, embora o Ministério da Justiça sob Moro tenha criado uma secretaria para tratar do sistema penitenciário, o que é um avanço. Mas, mais uma vez, a ideia não é reduzir, mas tornar mais eficiente o sistema penitenciário.
Um ponto de inflexão claro está na escolha do polêmico delegado federal Wilson Salles Damázio para suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciário, em lugar da cientista política Ilona Szabó, uma especialista em segurança pública que discorda das posições mais punitivas, desconvidada por decisão do próprio Bolsonaro. Moro continua sendo uma referência de uma geração de juízes, como mostra pesquisa recente da Associação de Magistrados do Brasil com abrangência nacional. Representa a média do pensamento de uma geração de juízes que prioriza o combate à corrupção, e entende que a legislação penal pode ser interpretada e flexibilizada para permitir um combate mais efetivo ao crime.
O presidente Bolsonaro continua se atrelando à Operação Lava-Jato, o que leva o ministro Moro a dar-lhe credibilidade no combate ao crime. A popularidade que Bolsonaro vem perdendo devido às trapalhadas de seu governo e a uma pauta de valores morais retrógrada, que não combina com as classes médias dos grandes centros urbanos, pode ser revertida com o combate ao crime.
Mas o combate à corrupção, que tem o apoio da população, pode ser afetado em setores importantes da população pelo reacionarismo do governo de Bolsonaro e por algumas medidas arbitrárias.
Como o fundo bilionário que o Ministério Público de Curitiba queria gerir, com base na multa que a Petrobras teve que pagar nos Estados Unidos devido à corrupção que afetou a performance de suas ações no exterior. O propósito seria financiar projetos educacionais e sociais que ajudassem a reduzir a criminalidade.
Moro também tem projeto para dar mais rapidez ao repasse dos recursos confiscados do crime, direcionando-os para projetos de prevenção de drogas, aperfeiçoamento das polícias e programas de reinserção social de dependentes, objetivos que são reivindicados pelos especialistas em segurança pública.
Ao contrário dos procuradores, no entanto, Moro enviou um projeto ao Congresso. Mas agora resolveu entrar no Twitter, incentivado, disse, pelo presidente Bolsonaro. O que pode levá-lo a gostar mais de medidas populares do que das eficazes a longo prazo.
Merval Pereira: Votar ou não votar
STF teme que ganhe a posição contrária à prisão em segunda instância, o que levaria Lula a ser solto
Mais do que uma solenidade autoelogiativa, o que aconteceu ontem no Supremo Tribunal Federal (STF) foi uma demonstração do estado de ânimo que domina seus membros, e também os políticos, diante da divisão do plenário que joga a opinião pública ora para um lado, ora para o outro, sempre com críticas agressivas, quando não criminosas.
Acontece também com os políticos, especialmente aqueles que têm cargo de liderança nas duas Casas do Congresso. O ambiente no Congresso é tão ebuliente que a promessa dos bolsonaristas de apresentar uma proposta de emenda constitucional (PEC) revogando a que aumentou para 75 anos a idade compulsória dos ministros pode provocar a reação de ampliá-la para 80 anos.
Isso porque a redução da idade permitiria ao presidente Bolsonaro nomear quatro ministros imediatamente. Como está, ele escolherá no final do próximo ano substitutos para os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio Mello. Ao contrário, a ampliação da idade para 80 anos impediria que nomeasse ministros durante sua gestão.
A continuar esse ambiente de confrontação, é provável que as sabatinas dos futuros ministros no Senado sejam mais rigorosas do que o costume, e aumenta a chance de um indicado pelo Palácio do Planalto ser rejeitado. Tudo para evitar que o plenário do Supremo seja formado majoritariamente por ministros que criminalizem a política, como veem a ação do presidente Bolsonaro.
O caso acontecido na semana passada na Sala São Paulo, durante um concerto da Orquestra Sinfônica do Estado (Osesp), é exemplar dessa radicalização. Um homem parou a música aos gritos, criticando o Supremo, nomeadamente os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Os relatos são de que o presidente do Supremo está abalado com os ataques.
Seria por isso que ele tende a adiar o julgamento do mérito da legalidade da prisão em segunda instância, marcado para o dia 10. O pedido foi feito pelo novo presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que admitiu ontem que não há clima para julgar processo tão delicado, que provoca ações de milícias digitais de ambos os lados, pois atinge não só um número ainda não calculado de presos, que seriam soltos, mas, especialmente, Lula. E fragiliza a Operação Lava-Jato.
O estranho é que o adiamento prejudica Lula, e o presidente da OAB sempre foi um crítico da Operação Lava-Jato e defensor da liberdade do ex-presidente. À primeira vista, houve a interpretação de que o grupo favorável ao ex-presidente estaria temendo perder a votação, que da última vez registrou o placar de 6 a 5 pela prisão em segunda instância.
Não era o que estava previsto, pois o ministro Gilmar Mendes mudou de posição publicamente, reduzindo a 5 os votos favoráveis à legalidade da medida, dando, portanto, maioria ao lado contrário.
Há, no entanto, dúvidas sobre a posição dos ministros Alexandre de Moraes e Rosa Weber. Moraes vota no lugar do falecido ministro Teori Zavascki, que era a favor da medida, e já se pronunciou, inclusive em um voto na sua Turma, também favorável. Mas estaria em dúvida. A situação mais delicada é a da ministra Rosa Weber.
Tendo votado contra a prisão em segunda instância, a ministra tem tido uma atuação impecável. Mesmo contrariando seu pensamento, ela vem votando de acordo com a posição da maioria. Considerou no ano passado que não havia razão para voltar ao assunto tão cedo, mas neste momento ninguém sabe como agirá.
Se votar a favor, o resultado continuaria sendo 6 a 5 pela prisão em segunda instância, mantendo a divisão do plenário, que reflete a do país. O resultado, porém, pode ser de 7 a 4 se tanto Rosa Weber quanto Moraes votarem contra prisão em segunda instância. A tendência, apesar das dúvidas, é que o plenário do STF mude a jurisprudência, favorecendo quem já está preso e impedindo que outros vão para a cadeia.
Tudo indica que o pedido de adiamento foi feito porque o STF está com receio de que ganhe a posição contrária à prisão em segunda instância, o que levaria Lula a ser solto. Os ministros que defendem essa posição estariam temerosos de provocar manifestações políticas contra o Supremo, agravando ainda mais a situação.
Quer dizer, o receio existe, de ganhar ou de perder. O que é ruim para a independência do Supremo e para a democracia.