Merval Pereira
Merval Pereira: Em busca do centro
O ronco das ruas, que já serviu para alavancar a candidatura de Bolsonaro, se voltou contra ele quarta-feira de forma expressiva
Duas declarações fundamentais para a política brasileira vieram ontem dos Estados Unidos. Ao afirmar, do Texas, que manterá a nova postura no relacionamento com os demais poderes da República, por exigência da maioria da população, o presidente Bolsonaro escalou mais um degrau no seu embate com o Congresso. O que ele está querendo explicitar é que o Congresso só age na base do toma lá dá cá.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se contrapondo em declaração em Nova York, durante reunião com investidores, garantiu que o Congresso fará a reforma da Previdência “com ou sem governo”, abrindo caminho para uma ação parlamentar autônoma, descolada do Palácio do Planalto.
Maia se mostra disposto a assumir um papel crucial neste momento, o de um líder de centro liberal fiador dos compromissos de reformas, que passariam a questões de Estado.
Ele sabe que se o Congresso não aprovar uma reforma que permita o início de uma retomada econômica, vai ser acusado por Bolsonaro de agir na base do fisiologismo, de não aprovarem a reforma por não ter dado os cargos que pediram. Sairá dessa crise como uma vítima da velha política.
O ronco das ruas, que já serviu para alavancar a candidatura de Bolsonaro, na quarta-feira se voltou contra ele de maneira expressiva. O enfrentamento rasteiro escolhido pelo governo para responder às pessoas que, aos milhares, protestaram em todas as capitais e em mais de cem cidades pelo país, demonstra uma avaliação equivocada do que está acontecendo.
Bolsonaro quer fazer crer que apenas os “idiotas inúteis” esquerdistas estavam nas ruas. É mais provável, porém, que estivessem nelas boa parte dos eleitores que o escolheram para se livrar do PT. Se os petistas e apoiadores da esquerda tivessem essa capacidade de mobilização, teriam saído às ruas para defender o “Lula livre”, ou a candidatura de Haddad.
Quem foi para as ruas quarta-feira demonstrou o descontentamento com o governo disfuncional de Bolsonaro, que se perde em picuinhas ideológicas e esquece os verdadeiros problemas do país, sendo a educação o maior deles.
Se é verdade que a performance dos nossos alunos nos exames internacionais como o Pisa teve uma queda assustadora nos anos petistas, indicando que o PT deu mais importância às medidas paliativas ou ideológicas do que à qualidade, também não se vê nos primeiros passos do governo Bolsonaro nada que indique um projeto educacional promissor.
Os radicais continuarão com Bolsonaro, mas ele já vem perdendo o apoio dos eleitores de centro, que temiam a volta do PT e, por falta de opções, votaram nele. Em uma campanha sem radicalismo, Bolsonaro disputaria com Cabo Daciolo a rabeira da eleição.
Os adversários que podem fazer frente a ele de verdade, como o governador de São Paulo, João Doria, o próprio Rodrigo Maia, especialmente se juntos em um novo partido de centro direita que unisse o PSDB ao DEM, ainda estão perdidos, entre apoiá-lo, atrás dos cliques da internet, ou abrir novos caminhos.
Bolsonaro precisa de um PT com discurso radicalizado para construir o seu projeto de poder. Só com a esquerda forte se manterá como a opção dos não radicais de direita ou de centro. Por isso, vive advertindo sobre “a volta do PT”.
Bolsonaro está em seu ambiente. No embate com o PT. Assim como na campanha o centro foi esmagado pelo radicalismo, também hoje não há uma liderança de centro, vigorosa, respeitada, que apresente uma saída fora dessa radicalização.
O país é de centro, circunstancialmente a radicalização política está dominando o debate. Lula só chegou à presidência porque se aproximou do centro, e assim governou durante seu primeiro mandato. Fernando Henrique levou o PSDB para o centro, chamou o PFL para governar.
A característica do centro é a moderação, mas os extremos continuam em combate, o ambiente político pede radicalização. O que agrada a ambos os lados. Há um espaço político importante a ser ocupado por uma liderança de centro que galvanize as ideias sensatas, um centro liberal, democrático.
Merval Pereira: Claro enigma
Má relação com os parlamentares é alimentada pelas decisões voluntariosas de Bolsonaro, impróprias para um presidente
O guru dos Bolsonaro, através de quem a parte obscura do poder age no terreno das intrigas, das informações incompletas, quase clandestinas, com mensagens propositadamente enigmáticas, continua dando as cartas.
O vereador Carlos, o filho 02, o de maior ascendência aparente sobre o pai, mais uma vez deixou no Twitter uma intrigante mensagem, advertindo que “o que está por vir, pode derrubar o Capitão eleito. O que querem é claro!”.
O que mais preocupa é que tanto o presidente quanto os filhos adoram espalhar boatos, criando um clima de insegurança terrível, para quem está dentro ou fora do governo.
A mensagem do 02 foi precedida por outro enigma lançado pelo próprio Bolsonaro, que comentara que esta semana acontecerá “um tsunami”. O que estaria sendo armado para que um tsunami derrube o capitão eleito?
Ontem Carlos avalizou o vídeo de outro seguidor de Olavo de Carvalho, indicando que se referia à possível derrota da reforma administrativa na Câmara. De fato, a relação do capitão com os parlamentares vai de mal a pior, a ponto de haver entre os deputados os que desejam mostrar força política de maneira extravagante.
Não apenas tirando do Ministério da Justiça o Coaf, mas impedindo, por exemplo, que o ministro Sergio Moro sonhe com uma cadeira no Supremo Tribunal Federal (STF).
Quando houve um movimento dos bolsonaristas para reduzir a idade de aposentadoria dos ministros para 70 anos, abrindo logo três ou quatro vagas para Bolsonaro preencher, a disposição da ala que trava uma queda de braço com o governo era aprovar a idade limite para 80 anos. Agora pensa-se o mesmo, inviabilizando, pelo menos temporariamente, a nomeação de Moro.
É claro que a não aprovação da medida provisória da reforma administrativa será uma derrota política significativa para Bolsonaro, mas será também uma demonstração de irresponsabilidade da Câmara, que terá reduzida sua já parca autoridade.
Se for derrotado nessa votação, o governo poderá ter de recriar até dez ministérios, mas deixará claro que foi obrigado a isso pelo Congresso. Não foi por outra razão que o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, desistiu de indicar o ocupante de um dos novos ministérios a serem criados.
Percebeu a tempo que caíra em uma armadilha, pois Bolsonaro poderá alegar que os deputados e senadores (outro ministério estava reservado para uma indicação do presidente do Senado, David Alcolumbre) impediram a redução da estrutura governamental por interesse em nomeações fisiológicas.
Se é esse tsunami a que se referem os Bolsonaro, o caminho para debelá-lo é mais uma vez equivocado. A capacidade do presidente e seus filhos de produzir crises através dos novos meios digitais está acima do normal. A maneira com que sabem negociar é na base da ameaça.
O que deveria preocupá-los, na verdade, é a investigação sobre o senador Flávio Bolsonaro, o 01, que pode vir a ser o verdadeiro tsunami ao qual o presidente Jair Bolsonaro se referiu no início da semana, fato político a trazer graves consequências. A investigação abrange pessoas com quem o próprio presidente Bolsonaro convivia, podendo transbordar para a família.
A má relação com os parlamentares também é alimentada pelas decisões voluntariosas de Bolsonaro, impróprias para um presidente da República. Como o telefonema, na frente de deputados, ao ministro da Educação mandando sustar os cortes no orçamento.
Com o presidente sendo desmentido pela realidade com que têm que lidar ministros e assessores, até mesmo deputados que apoiam o governo perdem a credibilidade. Para negar informação do próprio presidente, é preciso dizer que os deputados entenderam mal. Ou que o presidente da Petrobras entendeu como uma ordem uma curiosidade do presidente sobre o preço do diesel.
Tanto as intrigas veiculadas pelo Twitter quanto as ordens impossíveis de serem cumpridas contribuem para o clima de insegurança acerca do que quer ou vai fazer o governo. Situação que complica ainda mais a formação da maioria para aprovar uma reforma da Previdência robusta. E dá gás para manifestações como as de ontem por todo o país.
Merval Pereira: Crise em gestação
Recusa de Bolsonaro à negociação parlamentar baseada em programa se parece com início do governo Lula
Estamos assistindo, já há algum tempo, a um embate entre o Congresso e o governo Bolsonaro potencialmente gerador de crise institucional. O governo vem sofrendo seguidas derrotas parlamentares, e não parece equipado para essa disputa. Há um clima de desconfiança mútua difícil de ser desanuviado.
O sentimento generalizado entre os congressistas é de que, uma vez aprovada a reforma da Previdência, o governo Bolsonaro voltará a seus ataques ao Congresso. Eleito em nome de uma suposta “nova política”, Bolsonaro procura alardear distância do fisiologismo, logo ele, que durante 27 anos frequentou o baixo clero, a parte mais sem credibilidade de uma Câmara que veio se desgastando ao longo do tempo.
Parecia ir no caminho certo quando montou seu ministério alegadamente com base técnica, sem levar em conta pressões políticas. Logo se viu que as escolhas não tinham nada de técnicas, baseavam-se majoritariamente na ideologia radical por que parte de seu eleitorado ansiava, inclusive os filhos e ele próprio.
Sua recusa a uma negociação parlamentar baseada em programa de governo se parece muito com o começo do governo Lula. José Dirceu organizou as negociações com os partidos para formar o ministério, e foi desautorizado por Lula, que não queria a participação do PMDB.
Lula, que havia sido deputado constituinte, denunciava que o Congresso tinha pelo menos 300 picaretas, ou seja, mais da metade de seus integrantes.
O que parecia ser uma medida saneadora foi, na verdade, o embrião do mensalão, que desaguaria no petrolão. Lula, assim como Collor, assim como Dilma, queria o controle do Congresso, sem ter que dividir o poder. Collor e Dilma não tinham apoio partidário, nem sabiam lidar com os políticos.
Não por serem contra a barganha por baixo do pano, mas porque eram ambiciosos, Collor com ganância pelo dinheiro, Dilma pelo poder. Lula, pragmático, quando viu que não governaria sem o apoio do PMDB, e que os “picaretas” desejavam carne fresca, decidiu dar-lhes o que queriam, e montou um governo fisiológico pluripartidário.
Comprando o apoio parlamentar com a divisão do butim, Lula corrompeu o sistema partidário que estava pronto para ser corrompido, deixando a melhor parte para si e os seus, como ficou comprovado.
O mesmo acontece agora com Bolsonaro. Sua bandeira eleitoral, ao encontro do desejo de uma ampla gama de cidadãos, foi a renovação política, compreendida de diversas maneiras pelo eleitorado. Uma boa parte entendeu que derrotar o PT favoreceria uma nova política parlamentar, e acreditou na renovação do Congresso para alcançar um governo de centro-direita que a eleição negara.
Outros quiseram renovação em direção oposta, levando uma direita raivosa ao poder, com gosto de sangue na boca, literal e metaforicamente. Bolsonaro teve a habilidade política de circular por esses dois mundos, diametralmente opostos, prometendo-lhes o que aspiravam.
Por isso, sua aparente incoerência, ora defendendo a liberdade de expressão, ora a intervenção governamental nas escolas e universidades. Há vezes em que parece um liberal na economia, mas logo dá passos atrás, lembrando-se de sua história parlamentar estatista.
A retórica da violência que dominou sua atividade parlamentar, e a dos filhos, continua presente, encoberta às vezes por medidas sensatas. A presença dos militares no governo, num primeiro momento, pareceu a montagem de um esquema paralelo.
Viu-se, no entanto, que aqueles militares não estão ali para referendar movimentos golpistas, pretendem aproveitar a oportunidade para consolidar uma imagem democrática das Forças Armadas.
Foi assim, por exemplo, com a crise na Venezuela. A ala que defendia uma invasão, tendo os Estados Unidos como líder, foi controlada pelos generais. Mas não era isso que a ala radicalizada dos bolsonaristas queria.
Desde o início do governo a relação de Bolsonaro com o Congresso, especialmente a Câmara, tem sido errática, com o presidente atribuindo aos deputados interesses puramente fisiológicos, para em seguida aceitar criar mais dois ministérios, ou retirar a Coaf de Moro.
Qual o interesse dos políticos em tirar o Coaf do Ministério da Justiça? Por que políticos querem indicar outros políticos para novos ministérios? Qualquer resposta cheira a fisiologismo, e dá boas razões para que Bolsonaro jogue no Congresso a culpa por um fracasso.
Merval Pereira: O ‘mito’ acima de todos
Guedes, Moro e militares do governo precisam ser contidos, para que se destaque a liderança pessoal de Bolsonaro
O tripé de credibilidade do governo está sob fogo cerrado da ala radicalizada do bolsonarismo, com o aval, quase sempre indireto, do próprio presidente, convencido pelo filho tuiteiro Carlos e por seu guru esotérico Olavo de Carvalho de que enfraquecê-lo é fortalecer um governo populista de comunicação direta com os cidadãos através das novas mídias sociais.
É através delas que guru e seguidores desencadeiam sua guerra particular contra quem possa ameaçar o “mito”. Em recente tuíte, Carlos explicita esse temor ao dizer que os elogios ao “ótimo” Paulo Guedes visam a enfraquecer seu pai. Foi assim também com o vice-presidente Hamilton Mourão, uma reserva de bom senso em meio ao caos do governo, identificado pelos radicalizados como querendo se transformar em um contraponto a Bolsonaro.
Tudo é feito premeditadamente, uma loucura aparente, com muito método. Os superministros Paulo Guedes, da Economia, e Sergio Moro, da Justiça, e os militares que fazem parte do governo precisam ser contidos como forças políticas, para que se destaque a liderança pessoal de Bolsonaro.
O governo foi montado sobre um projeto populista que pretende transferir ao presidente, e a mais ninguém, os êxitos alcançados, desde o combate ao crime e à corrupção até uma eventual melhoria da economia. E a visão do presidente e sua turma geralmente não combina com as de seus principais assessores, pois objetivam fazer um governo sem limitações institucionais, com resultados imediatos.
Não é por acaso, portanto, que, sempre que pode, Bolsonaro lamenta ter que fazer a reforma da Previdência, defende os velhinhos e os pobres, que supostamente estariam sendo prejudicados pelos estudos da equipe econômica, promete ações que não se coadunam com a economia restritiva, quase de guerra, defendida pelo ministro Paulo Guedes, como reajustar a tabela de Imposto de Renda pela inflação. Ou interferir no preço do diesel.
Também no combate ao crime organizado e à corrupção, fundamento para o então juiz Sergio Moro estar em seu Ministério, o presidente tem uma visão simplista, que não leva à estruturação de um programa efetivo como o que pretende Moro. Quem imaginava que a presença de Moro no governo seria uma garantia de que excessos seriam contidos já teve, ele inclusive, demonstrações de que há situações em que a ideologia fala mais alto.
Permitir que cada cidadão possa ter quatro armas em casa, e não duas, como sugeria Moro, é exemplar dessa postura. Ampliar as possibilidades de porte de arma, também. Quando foi divulgado o decreto sobre posse de armas, Moro fez questão de frisar que não se tratava de porte.
Agora, teve que engolir o decreto, de que tomou conhecimento pouco antes de ser divulgado. A falta de empenho do governo para manter o Coaf no ministério de Moro é também indicativa de que Bolsonaro é capaz de abrir mão de propostas coerentes, mas secundárias para o projeto político populista.
Da mesma maneira, sua dubiedade em relação aos ataques aos militares mostra que, ao contrário do que se imaginava, estava interessado apenas na aura de credibilidade que dão ao seu ministério, não nas suas ponderações ou posturas democráticas, garantidoras da estabilidade.
Houve quem temesse que tantos militares juntos favorecessem uma situação institucional precária, que levasse ao famoso “autogolpe”. O que se vê é, ao contrário, os militares se transformando em garantidores das liberdades democráticas, enquanto os bolsonaristas radicalizados os atacam.
Moro, de candidato natural à Presidência da República na sucessão de Bolsonaro, passou a ter que engolir sapos enquanto faz hora para ir para o Supremo Tribunal Federal. Foi essa a mensagem implícita da fala de Bolsonaro, ao dizer que a primeira vaga que abrir no STF será dele. Transformou-o em um subalterno sem grandeza, substituível, o que até agora parecia impensável.
Moro está sendo vítima de ataques de dentro do Congresso, porque é visto como perseguidor de político, e, no governo, de pessoas que não gostam da ideia de que, sem ele e sem o ministro da Economia, Paulo Guedes, o governo Bolsonaro acabaria. A ala radicalizada do bolsonarismo joga com outra hipótese, a de que a liderança política do “mito” dispensa avalistas. O único “super” é ele mesmo, cujo aval vem das ruas. O “mito” acima de todos.
Merval Pereira: A atualidade dos clássicos
Luiz Davidovich sustenta que as Ciências Humanas ensinam a pensar, condição para a construção de uma sociedade ilustrada, democrática e produtiva
A atualidade dos pensadores, brasileiros e estrangeiros, diante de nossa realidade política e social demonstra que os problemas que enfrentamos no momento são questões há muito debatidas. E que retrocedemos nesse debate, que pareciam estar superados pelos avanços de nossa sociedade.
O presidente da Academia Brasileira de Ciências, professor Luis Davidovicht, enviou uma carta ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro da Educação Abraham Weintraub, protestando contra a decisão anunciada de reduzir as verbas públicas para o ensino de Humanas, tendo sido citadas especialmente a Sociologia e a Filosofia.
Davidovich começa lembrando, em contraposição à afirmação do ministro de que o Estado só deve financiar profissões que gerem retorno de fato, como veterinária, engenharia, medicina, que é preciso “formar profissionais preparados para os desafios de um mundo em que as profissões tradicionais têm dado lugar a outras inexistentes no século passado”.
Esse rápido desenvolvimento exigiria “conhecimento amplo não só de seus campos estritamente profissionais, mas também do país e da sociedade onde atuarão”. Davidovicht lembrou então que Benjamim Constant, um dos fundadores da República brasileira, já no século XIX tinha a percepção da importância das humanidades e das ciências sociais na formação profissional: incluiu a sociologia no curso da Escola Militar.
Muito além de um retorno imediato, elas ensinam a pensar, condição necessária para a construção de uma sociedade ilustrada, democrática e produtiva, ressalta o presidente da Academia Brasileira de Ciências na carta ao presidente.
Recentemente, em palestra na Academia Brasileira de Letras, da qual é membro, sobre a presença fundamental de Ruy Barbosa na vida brasileira, o ex-ministro Celso Lafer lembrou que ele exprimiu na trajetória da sua vida e obra a trama dos problemas políticos da sociedade brasileira, “não só do seu tempo, mas as dos nossos dias, com destaque para os desafios da consolidação e vigência das instituições democráticas”.
Lafer citou alguns exemplos bem atuais. Sobre as relações do Brasil com os EUA, Ruy Barbosa, na Conferência "A Imprensa e o dever da verdade": escreveu “Não quero, nem quererá nenhum de vós, que o Brasil viesse a ser o símio, o servo ou a sombra dos Estados Unidos. Não acho que devemos nos entregar de olhos fechados à sua política internacional, se bem haja entre ela e a nossa, interesses comuns bastante graves e legítimos, para nos ligarem na mais inalterável amizade, e nos juntarem intimamente em uma colaboração leal na política do mundo. Tal é o meu sentir de ontem, e amanhã.”
Celso Lafer destacou também que Ruy Barbosa promoveu, desde o governo provisório (Decreto nº 119-A, de 7/01 de 1890) a separação da Igreja e do Estado, e a laicidade do Estado, consagrada na Constituição de 1891 e nas constituições subsequentes.
Implantou-se deste modo, ressaltou Lafer, uma nítida distinção entre, de um lado, instituições, motivações e autoridades religiosas e, de outro, instituições estatais e autoridades políticas, “de tal forma que não haja predomínio de religião sobre a política”.
A laicidade significa que “o Estado se dessolidariza e se afasta de toda e qualquer religião, em função de um muro de separação entre Estado e Igreja, na linha da primeira emenda da Constituição norte-americana”.
Em um Estado laico como Ruy Barbosa institucionalizou no Brasil, esclareceu Lafer, “as normas religiosas das diversas confissões são conselhos e orientações dirigidas aos fiéis, e não comandos para toda a sociedade’.
Esta contribuição de Ruy para a consolidação e vigência do espaço público e das instituições democráticas em nosso país é da maior atualidade, lembrou Celso Lafer, pois “contém o muito presente risco do indevido transbordamento da religião para o espaço público”.
O filósofo britânico Berrando Russell, na História da Filosofia Ocidental, trata de um tema muito atual no Brasil: a influência dos filósofos, relativizando-a: “Quando vêem algum partido político dizer-se inspirado pelos ensinamentos de Fulano de Tal, pensam que as ações desse partido são atribuíveis a esse fulano de tal, enquanto não raro o filósofo só é aclamado porque recomenda o que o partido teria feito de qualquer modo”.
Dou um descanso aos leitores e retomo a coluna no dia 14.
Merval Pereira: BID colabora com o Censo
A presidente do IBGE, Susana Guerra, pretende aproveitar a oportunidade para fazer a transição do censo tradicional para um modelo misto
Diante da necessidade de adaptar o Censo de 2020 às restrições financeiras do país, a nova direção do IBGE está em conversas iniciais com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para uma assistência técnica no Censo de 2020, que visa a potencializar o trabalho da equipe do IBGE, de qualidade reconhecida internacionalmente.
Tentando fazer do limão uma limonada, a presidente do IBGE, economista Susana Cordeiro Guerra, pretende aproveitar a oportunidade para fazer a transição do censo tradicional para um modelo de Censo Misto, cada vez mais utilizado no mundo, devido a avanços tecnológicos e melhora em registros administrativos.
O Censo Misto coleta as informações básicas através da operação tradicional, e as complementa com outras pesquisas e registros administrativos. A direção do IBGE garante que não haverá perda de informação, pois há outros meios de conseguir a mesma informação ao longo do tempo, através da otimização de pesquisas existentes e avanços tecnológicos.
Isso envolve dar mais potência às pesquisas do IBGE já existentes, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), usando tecnologia e ferramentas para se buscar a mesma informação de forma mais eficiente, melhorar a qualidade, acesso e integração de registros administrativos, e em certas áreas, desenvolver suplementos para se coletar esses dados com uma amostra menor.
Já há o convencimento dos técnicos do IBGE de que o questionário precisa ser simplificado. O IBGE faz muitas pesquisas amostrais ao longo das décadas, e elas poderiam ser utilizadas. Nossos registros administrativos ainda são falhos, mas estão melhorando. Temos um censo escolar todo ano, por que precisamos voltar ao assunto no censo geral?
Por que precisamos ter informações de fluxo no Censo, taxa de desemprego no Censo? Um bloco imenso de imigração internacional?, perguntam os técnicos, como Ricardo Paes de Barros, que está colaborando pro bono com o censo, e o ex-presidente do IBGE Sérgio Besserman. A ideia central é que variáveis não estruturais que se modificam no curto prazo, relacionadas, por exemplo, ao mercado de trabalho, ao emprego e desemprego, às características de consumo da população, não deveriam ser levantadas a cada dez anos no Censo Demográfico.
Tais variáveis são de natureza dinâmica, e os dados decenais deixam de ser úteis e de bem representar a realidade, perdendo a validade muito rapidamente. Tais quesitos seriam mais bem investigados em pesquisas de menor periodicidade, por amostragem.
Uma pesquisa amostral como a PNAD Contínua, que fornece informações mensais, trimestrais, anuais ou periódicas para temas especiais, se potencializada, passando por aperfeiçoamento do desenho e dos métodos amostrais, poderia ser muito mais útil nesses casos, para a tomada de decisão mais dinâmica, com base em evidências atualizadas, mesmo que realizada com amostras menores.
Em um extremo, a Dinamarca, há quatro décadas, realiza o recenseamento de sua população com base em registros. Neste formato, não há coleta direta de dados da população, e a enumeração tradicional é substituída pela utilização de dados administrativos, o que permite a produção de dados censitários a um custo bastante reduzido e com força de trabalho significativamente menor.
Desde 1990, vários outros países pertencentes à UNECE, órgão econômico das Nações Unidas que engloba países da Europa, América do Norte, Ásia Central, além de Turquia e Israel, vêm ampliando a qualidade de seus registros, que passam a ser usados para a condução dos Censos, mesmo que, inicialmente, adotando um modelo combinado de transição.
No Censo de 2000, apenas três países pertencentes à UNECE realizaram um Censo baseado em registros administrativos e outros cinco adotaram o Censo de transição. Nesta ocasião, o Censo tradicional ainda era a abordagem mais popular, adotada por 40 países.
Já na rodada de 2010, houve um aumento significativo do número de países que conduziram a operação com base em registros (nove países) ou fizeram o censo combinado (dez países), sendo expressiva a diminuição no número de países da UNECE que realizaram o Censo tradicional (34 países).
Com base em informações preliminares sobre o planejamento para a próxima rodada de 2020, a tendência é que dos 48 países da UNECE, 14 realizem o Censo com base exclusivamente em registros administrativos (29%), 12 países adotem o modelo de transição (25%) e apenas 22 ainda façam o Censo tradicional (46%).
Merval Pereira: A importância política do Censo
No mundo moderno, é possível dizer que o censo é o termômetro de uma gestão democrática. É a partir dele é que políticas públicas podem ser planejadas
Foi aprovado ontem o processo de contratação dos temporários para o Censo, tendo sido o ato publicado no Diário Oficial da União. Espera-se que um outro, referente aos recenseadores, seja publicado até sexta.
O perigo de não realizar o Censo ano que vem parece estar superado, o que nos colocaria em situação similar à Etiópia, que não fez o censo, mas está em guerra civil há duas décadas. Esse é o tipo de país que não consegue fazer um censo. Foi o nosso caso em 1990, no governo Collor, cuja desorganização acabou transferindo o censo, que se realiza de dez em dez anos, para o ano seguinte.
Não é à toa que se considera que a realização de um censo mostra a capacidade de gestão de uma sociedade. No mundo moderno, é possível dizer que o censo é o termômetro de uma gestão democrática, pois uma das suas funções básicas é medir a densidade populacional de um país e seu perfil econômico e social. A partir dele é que as políticas públicas podem ser planejadas.
Sendo o próximo ano de eleições municipais, não ter um censo, que alimenta diretamente o Fundo de Participação dos Estados e Municípios, provocaria mais crise nas políticas governamentais. Estimar esse denominador corretamente é o alicerce de todas as políticas públicas (FPE e FPM), e também serve para calcular a amostra de todas as pesquisas importantes, como a Pesquisa Nacional por Domicílios (PNAD).
O censo, por definição, tem que ir a todos os domicílios, pelo manual das Nações Unidas, para que seja possível comparar todos os países. O manual para os censos 2020 (Principles and Recommendations for Population and Housing Censuses) recomenda que os tópicos a serem cobertos num questionário censitário devem ser determinados buscando-se um equilíbrio entre as necessidades de informações dos usuários, a existência de outras fontes de dados para as mesmas informações e a disponibilidade de recursos do país para realizar a operação censitária.
Essa busca de equilíbrio deve levar em conta, para a ONU, as vantagens e limitações de se obterem as informações por método alternativo ao censo. Não ter censo no ano zero não só traz uma série de complicações domésticas, com a quebra das séries históricas, mas tem implicações internacionais importantíssimas. Nos critérios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as maiores economias do mundo, da qual o Brasil está empenhado em participar, está o fortalecimento dos institutos de estatísticas do país, e a condução de um censo de qualidade.
Comparado com dez anos atrás, nosso contexto de país, e o de mundo, é completamente diferente. Hoje, assim como o mundo, o país está totalmente conectado, e o fenômeno da subnumeração ganha relevância, não apenas pelos erros técnicos que dele decorrem mas, também, pelo que ele revela de nossa realidade, muito mais violenta. Além da perda de credibilidade das estatísticas oficiais.
Foi feita uma prova piloto do censo, dentro da amostra de 20 mil domicílios no Brasil inteiro, e houve nada menos que 54% de recusa, ou de registro de que o cidadão não estava em casa. O IBGE, diante das restrições orçamentárias, está se organizando para antecipar uma transição que seria feita naturalmente, do censo genérico para um Censo Misto, usando tecnologias que permitem a atualização dos registros com amostras menores.
Além de uma campanha para mostrar à população a importância do Censo, e pedir sua colaboração, uma sequência de ajustes será feita na operação, que precisa ser mais simples e ágil. Precisa focar no central, que é conseguir os dados para a realização de políticas públicas, sem perder as séries históricas.
Aliás, os estados e municípios, dado o Fundo de Participação, são os maiores interessados, e o IBGE espera que ajudem na operação de coleta de dados.
É preciso fazer o ensaio geral, que é o censo experimental, que será feito em Poços de Caldas, Minas, em setembro deste ano, um ano antes do censo real. É uma operação de guerra. São mais de 200 mil pessoas que entram nessa operação que vai a 71 milhões de domicílios. (Amanhã, as soluções)
Merval Pereira: O centro se arma
Lula e Bolsonaro alimentam-se um do outro, e o terceiro turno da eleição está em plena vigência. É nesse ambiente tóxico que a centro-direita tenta se organizar
A busca de alternativas à polarização política não terminou com as eleições, muito ao contrário. Esmagado pela disputa ideológica entre Bolsonaro e o PT, o centro político procura uma saída para o impasse instalado, já que o presidente e seus seguidores continuam a alimentar essa radicalização a fim de manter viva a chama do eleitorado de extrema-direita que forma o núcleo duro de apoio ao governo, cuja popularidade vem perdendo substância.
O PT, no outro extremo, continua empenhado na mesma luta ideológica de sempre, sem admitir seus erros nem fazer uma necessária, mas impossível, autocrítica. A única saída do PT parece ser “fugir para a frente”, fazer de Lula uma vítima de conspiração. Uma vitória do partido seria (será?) sua absolvição política.
As pesquisas atestam uma queda de popularidade de Bolsonaro justamente por dedicar-se mais a cevar seu nicho eleitoral do que a ampliar sua atuação para atender os demais cidadãos que votaram nele por diversas outras razões que não apenas a visão moralista tosca e a guerra ideológica incessante.
Lula e Bolsonaro alimentam-se um do outro, e o terceiro turno da eleição do ano passado está em plena vigência. É nesse ambiente tóxico que a centro-direita tenta se organizar, sem dar chance a que Lula ou Bolsonaro se aproveitem de seus erros para continuarem sua disputa particular. Dois populistas em busca da perpetuação no poder.
Os movimentos de aproximação do novo PSDB sob o comando do governador de São Paulo, João Doria, e o DEM se tornaram evidentes pela escolha do relator da reforma da Previdência, com os tucanos ganhando um posto-chave na questão mais central da política hoje, uma decisão que coube ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM.
Ao mesmo tempo, na convenção do DEM em São Paulo, o governador Doria foi aclamado como candidato a presidente. As conversas entre PSDB e DEM têm a participação também do PSD de Kassab, para se fundirem num único partido, ou para trabalharem em conjunto na direção da centro-direita e se opor aos radicalismos de esquerda e de direita.
O Centrão ganhou a presidência da Comissão, e terá o poder de controlar o tempo da tramitação, mais rápida se seus pleitos forem atendidos pelo governo, mais lenta se houver resistência a eles. Ganhará importância política se seus membros entenderem que os pleitos não podem ser fisiológicos como geralmente foram no passado.
O cientista político Carlos Pereira, da Fundação Getúlio Vargas do Rio, especialista na análise do quadro partidário brasileiro e sua interação com o Executivo, já há algum tempo vem tentando identificar qual o papel que o PSDB poderia vir a ocupar em um governo Bolsonaro. Especialmente porque, com as derrotas sucessivas à presidência, vem perdendo paulatinamente a capacidade de exercer a função de protagonista no jogo majoritário.
A sua hipótese é que o PSDB poderia exercer o papel de legislador mediano, algo semelhante ao que o PMDB exerceu nos governos FHC, Lula e Dilma. Sem repetir os erros. A distribuição ideológica dos partidos na Câmara dos Deputados que emergiu das últimas eleições revela, segundo Carlos Pereira, que PSDB e PSD passaram a ocupar exatamente esse mediano.
Como os partidos maiores (PT e PSL) estão distantes do mediano, analisa Carlos Pereira, o PSDB teria o perfil ideal e mais confiável para os outros partidos para evitar um relatório extremado, tanto para a esquerda como para a direita.
Acho, diz ele, que faz completo sentido o PSDB, PSD e DEM tentarem se fundir em uma nova alternativa de centro-direita. São partidos ideologicamente hoje muito próximos, depois que as lideranças tucanas mais identificadas com a centro-esquerda perderam a influência, avalia Carlos Pereira.
Tudo, no entanto, parte da premissa de que os políticos entenderam que indicar nomes para a administração não pode significar mais querer “aquela diretoria da Petrobras que fura poço”. E que o Executivo entenda que governar num modelo de coalizão pressupõe repartir o poder com o Legislativo.
Merval Pereira: Condenação mantida
Apenas se a segunda condenação de Lula for confirmada no TRF-4 e no STJ, ele voltaria para a cadeia em regime fechado
Só existe uma possibilidade de Lula não passar a cumprir sua pena em regime semiaberto a partir de setembro, depois da decisão de ontem do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de reduzir sua pena para 8 anos e 10 meses: se, nesse período, ele for condenado em segunda instância pelo sítio de Atibaia, processo no qual já foi condenado em fevereiro pela juíza Gabriela Hardt, então na 13ª Vara Federal de Curitiba, a 12 anos e 11 meses de prisão também pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Mas, se o Supremo Tribunal Federal mudar a jurisprudência para acabar com a possibilidade de execução antecipada da pena, não permitindo a prisão em segunda instância, Lula poderá sair mesmo condenado no outro processo em segunda instância.
Apenas se a segunda condenação de Lula for confirmada no TRF-4 e no STJ ele voltará para a cadeia em regime fechado, pois, nesse caso, a Vara de Execuções Penais fará a unificação das penas, e aumentará o tempo necessário para que ele tenha direito à progressão.
Já há uma maioria teórica no STF para acabar com a possibilidade da prisão em segunda instância. O mais provável é que o tema seja colocado em pauta antes de setembro, e a tendência é de que se chegue a um acordo para que a prisão possa ser decretada após julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Mesmo condenado ontem em mais essa instância, Lula tem direito ao regime semiaberto por ter cumprido já 1/6 da primeira pena. A progressão de regime na execução penal, estabelecida na Lei de Execuções Penais, tem o objetivo de fazer com que o condenado retorne gradativamente ao convívio social.
No regime semiaberto, há Centros de Progressão de Pena (CPPs), que são presídios mais liberais, com menos seguranças. Desde que autorizado pela juíza de Execuções Penais, Carolina Lebbos, o condenado tem permissão para sair durante o dia, desde que tenha um trabalho fixo e atenda a algumas exigências básicas, como o cumprimento de horários e constatação, através da apresentação de cópias de livros-ponto, de que ele realmente exerce a função.
Nessa situação, pode também receber permissão para visitar a família ou estudar. Tudo sob a fiscalização de representantes do sistema prisional. A permissão para trabalhar fora é uma alternativa encontrada pela Justiça para substituir o trabalho em colônias penais, ou industriais, como exige a lei.
Como em muitos estados não há instituições como essas, a Justiça tem permitido o trabalho fora do sistema penal, mas o condenado tem que voltar para dormir na prisão. A redução da pena dá margem a comemorações de seus seguidores, mas a queixa principal, se houvesse motivo, deveria ser feita contra o Tribunal Regional Federal (TRF-4), que majorou para 12 anos e 1 mês a pena dada na primeira instância pelo então juiz Sergio Moro, que condenou Lula a 9 anos e seis meses, menos de um ano de diferença com a decisão de ontem do STJ.
Nesse intervalo, sua defesa tentará novos recursos, como insistir na prescrição do crime de corrupção passiva, já rejeitada novamente no julgamento de ontem do STJ. A defesa diz que o crime se consumou em 2009, prescrevendo, portanto, em 2016, pois, por Lula ter mais de 70 anos, seu tempo de prescrição cai para seis anos, a metade do que determina a lei. Prevalece, no entanto, a tese da acusação, de que o crime de lavagem de dinheiro é permanente, e também que o crime de corrupção se consumou bem depois que a construtora OAS assumiu a obra do prédio.
Outra possibilidade é que Lula possa cumprir a pena em prisão domiciliar, caso o STF entenda que, por ter mais de 70 anos, deva receber esse tratamento. Mas essa alternativa foi imaginada pelo ministro aposentado do STF Sepúlveda Pertence, quando era advogado de Lula, e não foi adiante por decisão do próprio, que se recusa a usar tornozeleira eletrônica.
Merval Pereira: Inimigos cordiais
Mesmo traçando rotas distintas, Zizek e Peterson terminaram o debate fazendo apelos à compreensão entre adversários de ideias
As posições ideológicas estão tão extremadas em nossos dias que o que era considerado “o debate do século”, entre o filósofo e cientista social esloveno Slavoj Zizek, ícone da esquerda mundial, e o psicólogo canadense Jordan Peterson, representante da direita radical, cujos programas na internet atraem milhares de seguidores pelo mundo digital, foi considerado frustrante.
O evento, denominado “Felicidade: marxismo vs capitalismo”, foi realizado sexta-feira em Toronto, no Canadá, no Sony Centre, o maior teatro do país, o que fez o mediador festejar que um debate intelectual juntasse tanta gente.
Os ingressos foram vendidos até no câmbio negro, a preços mais caros do que os de um jogo de hóquei que acontecia na mesma noite. Mesmo traçando rotas distintas, os dois terminaram o debate fazendo apelos à compreensão entre os adversários de ideias.
Chegaram até a concordar, embora por caminhos diferentes. Zizek acha que os movimentos que defendem as minorias são superficiais, políticas moralistas que não mudam estruturalmente as sociedades. Ele está mais interessado na grande política.
Já Peterson também critica esses movimentos, mas por considerá-los a repetição da luta de classes marxista. Os dois defenderam seus pontos de vista sem radicalizações ou acusações pessoais, Zizek apontando os defeitos e limitações do capitalismo, Peterson afirmando que, mesmo com defeitos, é o melhor sistema para criar riqueza, mesmo para os mais pobres.
Peterson demorou alguns segundos para responder o que esperava que o debate entre ele e Zizek poderia trazer de proveitoso, e sua indecisão provocou gargalhadas na plateia. Mas, quando falou, disse, com solenidade, provocando aplausos maiores que as gargalhadas, que gostaria que entendessem que é possível pessoas com posições opostas se comunicarem.
Segundo ele, há uma ideia crescente de que não existe liberdade de expressão porque as pessoas são apenas avatares de seu grupo identitário. E que não há pontos de contato entre pessoas que pensam diferente. Isso é terrivelmente perigoso e pernicioso, alertou.
Zizek, que evitou defender o Manifesto Comunista, e é crítico do que chama de esquerda liberal, disse que esperava que as pessoas não tivessem medo de pensar. Se você é de esquerda, não se sinta obrigado a seguir o politicamente correto, aconselhou.
Se alguém pensa diferente de você, imediatamente essa pessoa é rotulada como fascista. As coisas não são tão simples assim, advertiu Zizek, para dar um exemplo polêmico, mas que mostra a amplitude de seu pensamento: Trump é uma catástrofe a longo prazo, mas não é um fascista.
Nada parecido com outro “debate do século”, acontecido em 1968, nos Estados Unidos, num momento conturbado depois dos assassinatos de Martin Luther King, líder dos direitos civis dos negros, e do candidato democrata à presidência Bob Kennedy, e manifestações contra a Guerra do Vietnã em todo o país. A eleição daquele ano acabou vencida por Richard Nixon, que derrotou o democrata Hubert Humphrey.
A rede de televisão ABC resolveu inovar a cobertura das eleições e convidou dois grandes intelectuais para debaterem por uma semana, durante quinze minutos, um pela direita republicana, William F. Buckley, considerado o intelectual público mais importante do movimento conservador americano e editor da revista “National Review”.
Crítico do “establishment” universitário, enfrentou pelos democratas o escritor Gore Vidal (19252012), amigo dos Kennedys, ativista político e homossexual. O debate rendeu um documentário chamado “The Best of Enemies” (O melhor dos inimigos), filme de Morgan Neville e Robert Gordon, que demonstra que esses debates são o ponto inicial de uma disputa cultural entre liberais e conservadores nos Estados Unidos.
Para se ter uma ideia da agressividade dos dois, que tinham a língua afiada, a certa altura Gore Vidal manda Buckley calar a boca, e o chama de “criptonazista”. A resposta foi violenta. Irado, Buckley chama Vidal de “bicha” e ameaça “socar essa sua maldita cara”. O debate de Zizek com Peterson pode ser visto no YouTube. O documentário “Best of Enemies” está na Apple TV e na Netflix.
Merval Pereira: O peso da imagem
Bolsonaro terá nova chance, ao receber nos EUA o prêmio Pessoa do Ano, de melhorar sua própria reputação e a do Brasil no exterior
Os ecos de um passado polêmico, não poucas vezes ultrajante, que ainda se fez presente na campanha eleitoral de Bolsonaro e marcou diversos momentos dos primeiros cem dias de seu governo, promoveram desgastes na imagem do Brasil no exterior. Desde que foi eleito, o presidente sofre com essa péssima imagem, o que ficou evidenciado na recusa do Museu de História Natural de Nova York de servir de palco para a homenagem que lhe será feita pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos como a Pessoa do Ano.
Esse retrocesso deve-se muito também à campanha petista de acusar as eleições de 2018 de terem sido fraudadas, pelo fato de o ex-presidente Lula, condenado em segunda instância pela Justiça brasileira, ter sido impedido de se candidatar.
Está preso há um ano, condenado a mais de 12 anos, mas os petistas tentam vender ao mundo, às vezes com sucesso, a ideia de que é um preso político, e não mais um político latino-americano preso por corrupção.
A festa da Pessoa do Ano é um evento tradicional que escolhe um brasileiro e um americano para homenagear, com o objetivo de incrementar a relação comercial entre os dois países. Ex-presidentes como Fernando Henrique e Bill Clinton já foram homenageados, assim como figuras como o ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg e o então juiz Sergio Moro, hoje ministro da Justiça.
Bloomberg, por sinal, protagonizou anteriormente uma situação inusitada, pois alegou falta de agenda para não aceitar o prêmio junto com o atual governador de São Paulo João Doria. Quem foi homenageado na ocasião foi o ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil Thomas Shannon.
Mas o prefeito de Nova York aparentemente arrependeu-se, pois, além de ter aceitado receber o prêmio no ano seguinte, mandou uma mensagem de congratulações a Doria, e passou a elogiá-lo em público, tendo vindo a São Paulo para visitá-lo.
Este ano, quem vai receber o prêmio do lado americano será o Secretário de Estado Mike Pompeo, o que reforça o lado político da disputa atual, devido à proximidade de Bolsonaro com o presidente Trump. O prefeito de Nova York Bill de Blasio, da ala esquerda dos Democratas, considera Bolsonaro “um homem perigoso”, e pode ser creditada a ele uma pressão política para que o Museu de História Natural não sediasse a festa, como fez nos últimos anos.
Houve também manifestação de ambientalistas, que acusam Bolsonaro de ser contrário às políticas de preservação do meio-ambiente. Essa posição, aliás, também é destacada negativamente pela revista Time, que colocou Bolsonaro entre as 100 pessoas mais influentes do mundo, sem dúvida uma compensação para as críticas que vem recebendo no exterior. Poucos brasileiros entraram na lista antes: o expresidente Lula apareceu apenas em 2010, seu último ano de governo. Dilma Rousseff ficou dois anos na lista. Moro, Jorge Paulo Lemann e Gabriel Medina foram outros agraciados.
Bolsonaro é o único brasileiro desta vez, está na categoria “líderes” ao lado do presidente americano, Donald Trump, do líder da oposição e autodeclarado presidente da Venezuela, Juan Guaidó, e dos premiês Matteo Salvini (Itália), Jacinda Ardern (Nova Zelândia) e Benjamin Netanyahu (Israel).
Ele representa para a Time “uma ruptura brusca com uma década de corrupção de alto nível e a melhor chance do Brasil de implementar reformas econômicas que possam domar a dívida crescente”.
Mas a revista o caracteriza também como “um garoto-propaganda da masculinidade tóxica, um homofóbico ultraconservador que pretende travar uma guerra cultural e, talvez, reverter o progresso do Brasil no combate às mudanças climáticas”.
A Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos já tem outro lugar em Manhattan para a festa, como anunciou o ministro Paulo Guedes na entrevista à Globonews. Vários hotéis e locais de eventos se ofereceram para sediá-la, como o Hilton New York; Sheraton New York & Towers Hotel; Former City Opera House e o Jacob K. Javits Convention Center, entre outros. A escolha está sendo feita pelo tamanho dos salões, pois já estão vendidos mais de mil convites e há uma lista de espera grande.
Bolsonaro já havia anunciado a troca de vários embaixadores, nas principais capitais do mundo, alegando que não ajudavam a melhorar sua imagem. Como se fosse esse o problema. Terá mais uma chance no discurso de aceitação do prêmio Pessoa do Ano. O que fez em Davos foi um desperdício.
Merval Pereira: O tom social
Paulo Guedes deseja que a classe política entenda que está em marcha uma transformação em favor dela
O governo ainda não encontrou um caminho para organizar sua base parlamentar, mas já resolveu um problema de comunicação que atrapalhou muito a aprovação da reforma da Previdência no governo Temer. Está colando nela a imagem de que é um instrumento para acabar injustiças sociais do sistema atual e promover uma melhor distribuição de renda.
Além da crise institucional gerada pela revelação da conversa do então presidente com o empresário Joesley Batista, seu governo tinha uma base mais homogênea, o que falta a Bolsonaro, mas não tinha argumentos críveis para aprová-la.
Temer teria aprovado uma reforma meia bomba, mesmo assim devido a compromissos fisiológicos de uma meia dúzia de partidos acostumados a esse tipo de relacionamento com ele e seu grupo.
Ninguém é presidente da Câmara por três vezes, e presidente do MDB por quase 20 anos, à toa. Bolsonaro, que não morre de amores pela reforma da Previdência, permitiu que o ministro da Economia, Paulo Guedes, reunisse em torno de si uma equipe que tem experiência de governo, que falta a ele e ao próprio presidente. Além da excelência técnica. A equipe econômica, que tem secretários reconhecidos como ministros de suas áreas, encontrou o tom correto para vender a importância social da reforma, não apenas a econômica.
O próprio Paulo Guedes, com seu jeito enfático de defender pontos de vista, sempre afirma que o atual regime previdenciário é “uma fábrica de desigualdades”. Essa ênfase no aspecto social de uma nova Previdência tem dado argumentos para se contraporem à oposição, que mantém uma posição radicalmente contrária à reforma, alegando que ela ataca os mais pobres.
Não é à toa que o ministro Paulo Guedes está encantado com a atuação do Partido Novo. Seu líder na Câmara, deputado Marcel Van Hatten, fez uma defesa impactante da proposta na Comissão de Constituição e Justiça, com a utilização de copos de diversos tamanhos para mostrar que o maior deles, que representaria os privilégios concedidos a corporações, onde incluiu os deputados e senadores, recebe cerca de 40% da arrecadação da Previdência nacional, e os mais pobres apenas 3%. Do Orçamento da União, 50% vão para a Previdência, ficando apenas 15% para Saúde e Educação, restando 31% para os demais gastos, em setores que afetam o dia a dia da população — como infraestrutura, mobilidade urbana, segurança .
O ministro Paulo Guedes sintetiza a situação em uma frase de efeito: “O Brasil não envelheceu, e já quebrou a Previdência”. Ele tem uma visão dura sobre a situação: “O excesso de gastos corrompeu a democracia”. O secretário da Previdência, ex-deputado Rogério Marinho, tem outra imagem forte. Compara o sistema atual de repartição a uma pirâmide financeira, dessas que levaram o financista americano Madoff para a cadeia, mesmo sistema que já fraudou investidores em diversas partes do mundo.
A situação teria chegado a um tal ponto que está prestes o momento de ter mais gente retirando dinheiro do sistema do que contribuindo para mantê-lo de pé. Já o secretário da Receita Federal, também ex-deputado Marcos Cintra, está colocando de pé uma reforma tributária, fundamental para a transformação da economia brasileira planejada por Guedes, que considera que o do trabalho é “o mais perverso tributo de todos”, gerador de injustiça social.
Barateando a contratação de empregados pelas empresas, Guedes pretende estimular o mercado de trabalho, que hoje tem 13 milhões de desempregados, fora os com ocupações informais ou precárias, devido à crise econômica, uns 50 milhões de pessoas na sua avaliação. O imposto sobre todos os pagamentos, que está sendo montado, tributaria igualmente todos, mesmo na economia informal, sendo mais justo socialmente que a antiga CPMF. Outro desdobramento das reformas estruturais planejadas pelo ministro da Economia é a do pacto federativo, que objetiva fazer com que Estados e Municípios tenham mais relevância no orçamento da União.
Essa é uma reforma que tem um cunho político relevante, alterando a relação de poder entre os componentes da Federação. Assim como prometeu antecipar recursos do pré-sal a estados e municípios em troca da aprovação da reforma da Previdência, o ministro Paulo Guedes anseia que a classe política entenda que está em marcha uma transformação do Estado brasileiro em favor dela.