Merval Pereira
Merval Pereira: Conflitos republicanos
Se houver um evangélico com competência, que seja indicado para o Supremo, mas não por sua religião
O presidente Jair Bolsonaro provocou mais uma polêmica ao insinuar que estaria na hora de nomear um ministro evangélico para o Supremo Tribunal Federal (STF). Mais uma vez ele confunde seu pensamento pessoal com as decisões de Estado.
Precisa se acostumar com o fato de que a opinião dele tem que refletir os anseios da sociedade e o interesse do Estado, e não há interesse em ter um evangélico no STF – nem evangélico, nem católico, nem de qualquer outra religião.
Se houver um evangélico com competência, que seja indicado, mas não por sua religião.
Já houve um ministro militante católico, Carlos Alberto Direito, nomeado por Lula. Que não foi nomeado por ser católico, mas por ser um brilhante jurista.
Lula também nomeou o primeiro ministro negro, Joaquim Barbosa, que tinha todas as qualidades acadêmicas para estar no Supremo e, com razão rejeitava a permanente insinuação do ex-presidente de que o nomeara por ser negro.
Barbosa transformou-se, depois de se aposentar, numa figura central nos embates políticos, por suas posições e seu comportamento como relator do mensalão. E só não foi candidato à presidência em 2018 porque não quis, convidado que foi por vários partidos.
Bolsonaro se referiu à possibilidade de indicar um evangélico para criticar a decisão do Supremo de transformar a homofobia em crime inafiançavel, como o racismo. O julgamento foi suspenso, mas existe uma maioria fixada, pois seis ministros já votaram a favor da criminalização. Bolsonaro reclamou: “Estão legislando”.
O ex-presidente do Supremo Ayres Brito, discorda. Diz que, a rigor, o Supremo não está legislando. Ele lembra que há decisões que, por autorização constitucional, têm efeitos que se aplicam a todos.
Ayres Brito explica, nesse caso: o inciso 41 do artigo 5 da Constituição define: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. O que fez o legislador diante desse comando?, pergunta Ayres Brito. “Nada, ficou silente durante 30 anos, desobedecendo ao comando constitucional”.
Para esses casos, lembra o ministro do STF aposentado, a Constituição tem a figura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) por omissão. Quando houver omissão legislativa, falta da norma regulamentadora, as partes podem entrar no Supremo com uma ADI.
O STF, constatando a omissão, preenche a lacuna, explica Ayres Brito. “Não fazendo uma lei, mas exarando uma decisão que vale enquanto o legislador não cumprir com o seu dever”.
Para tal, o STF, ressalta Brito, não criou uma nova legislação, mas utilizou-se de uma lei preexistente, decidindo aplicar o regime penal do racismo à homofobia, porque os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Também o ministro Luis Roberto Barroso considera que é tarefa do Supremo proteger os direitos fundamentais. Em entrevista à Central da Globonews esta semana ele definiu o que considera ser o papel de uma Corte Constitucional: proteger os direitos fundamentais e a democracia.
“No exercício dessas duas funções, acho que os tribunais devem ser proativos”, afirmou Barroso, para acrescentar: “Em tudo o mais ele deve ser auto-contido. Em outros temas, o legislador deve definir”.
Ele, portanto, rejeita que o Supremo Tribunal Federal legisle substituindo o Congresso, e justifica a decisão de ampliar a possibilidade de aborto, tomada pelo STF com sua relatoria, alegando que o habeas corpus pedido por uma mulher que fora presa por estar numa clinica de aborto tinha que ser dado para proteger o direito da mulher de não continuar a gravidez quando decidir, “ uma profunda convicção pessoal” disse.
Antes de ser ministro, Barroso foi também o advogado da causa que permitiu o aborto de fetos anencéfalos por decisão do mesmo STF. Ele tem a convicção de que cabe aos ministros iluministas “empurrar a história”, nesse caso para atingir avanços comportamentais.
O que Barroso considera avanço, no entanto, desagrada aos evangélicos, e por isso Bolsonaro fez a crítica à decisão, insinuando colocar no STF um ministro sintonizado com esse pensamento conservador.
Mas não é preciso ser evangélico para ser contra o aborto. O ministro aposentado do STF Eros Grau, de esquerda, se posiciona contra com clareza: “Não há nenhuma dúvida, pois, a respeito do fato de que há, no aborto destruição da vida”.
É a tal ponto contra que já chamou de Herodes um colega seu que defendia o aborto.
O astro de "Cantando na chuva" é Gene Kelly, e não Fred Astaire como escrevi.
Merval Pereira: Água na fervura
Bolsonaro foi cândido num encontro recente com políticos ao prometer mudar de comportamento
As manifestações de ontem, convocadas por lideranças estudantis e de partidos de esquerda para protestar mais uma vez contra os cortes de verba na educação, foram menores que as anteriores, assim como seriam menores as de apoio ao presidente Bolsonaro, se convocadas em tão curto espaço de tempo.
Não tem sentido essa disputa permanente pelo espaço público entre oposição e bolsonaristas, enquanto o país sofre com o aumento do desemprego, a queda da economia e a absoluta falta de confiança dos investidores na segurança jurídica das decisões que forem eventualmente tomadas.
Nenhum dos dois lados em disputa é hegemônico no momento, e será preciso um grande acordo nacional para sairmos do buraco em que governos petistas nos colocaram. O presidente Bolsonaro parece ter entendido a situação calamitosa, diante da realidade do dinheiro público encurtando a cada momento.
Mesmo tendo sido vitorioso o suficiente no domingo, ele chamou os presidentes dos dois outros poderes para um encontro em que combinou um pacto de líderes em torno de objetivos comuns, como a reforma da Previdência, a melhoria da educação, a atuação mais eficiente da Justiça.
Fora o fato de que o Judiciário não tem o que fazer na parte do pacto em que o apoio às reformas é o objetivo, a união de todos é bem-vinda, e seria bom que se comportassem como adultos nessa disputa de poder em que se envolveram Legislativo e Executivo.
A eleição de figuras políticas heterodoxas como Bolsonaro aqui e Trump nos Estados Unidos, com todas as diferenças entre os dois líderes e os dois países, leva a uma polarização política que deságua na vontade de lutar pelo impeachment do incumbente. Como os democratas estão fazendo abertamente nos Estados Unidos, e como já começa a tatear a oposição por aqui.
Cabe ao presidente jogar água na fervura, e o estilo belicoso de fazer política tanto de Bolsonaro quanto de Trump não ajuda nada. Bolsonaro parece ter entendido, e está empenhado no momento em uma aproximação política.
Disse que é muito bom ter o Judiciário junto aos esforços para o apaziguamento político do país, e o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, pediu que não se visse maldade onde não houve, referindo-se à graça desastrada feita por Bolsonaro ao dizer que sua caneta Bic tem mais tinta que a de Maia.
De engraçado na frase, apenas a despretensiosa caneta Bic, que ganhou uma propaganda de graça, e dá um toque popular ao presidente. Um homem comum, que sai do Palácio, e atravessa a rua para abraçar um comediante.
Tudo indica que, para além das ruas, os Poderes estão se compondo. Bolsonaro foi cândido num encontro recente com políticos ao prometer mudar de comportamento. Descobriu, confessou, que não pode falar tudo o que quer, nem fazer o que lhe passa na cabeça em termos políticos.
Parece ter entendido que, assim como venceu as eleições calado, sem ir aos debates, devido ao atentado que sofreu, pode governar calado. Calado no caso não significa amordaçado, pois mesmo fora do combate direto nos palanques e nos debates, Bolsonaro fez discursos e pronunciamentos à distância que ajudaram a consolidar sua vitória. E governar calado não significa voto de silêncio obsequioso, mas evitar polêmicas inúteis e, portanto, desnecessárias.
Seus ministros mais ideologicamente mobilizados se inspiram no espírito bélico que Bolsonaro insuflava até agora. Foi o que aconteceu ontem com o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que, a pretexto de terçar armas com os estudantes, ameaçou professores e alunos que foram às passeatas.
E gravou um vídeo ridículo, tentando imitar Fred Astaire no filme “Cantando na chuva” para contestar o que classificou de “chuva de fake news”. Se as redes sociais pararem de ser alimentadas pelas intrigas do filho vereador, e do filósofo at large, entraremos em um ambiente político favorável ao entendimento, que no momento significa a aprovação da reforma da Previdência.
Bernardo Mello Franco: Ato pró-Bolsonaro produziu um instantâneo do nosso tempo
Ao estimular os atos de domingo, Bolsonaro quis demonstrar força e emparedar o Congresso e o STF. A primeira meta foi cumprida. A segunda é mais questionável
A economia está parada, a popularidade do presidente despencou e o desemprego continua a subir. Um governo com estes resultados ainda é capaz de mobilizar eleitores para defendê-lo? É, pelo que se viu nas manifestações de domingo.
O estímulo aos protestos a favor foi uma aposta arriscada. Jair Bolsonaro quis demonstrar força e emparedar o Congresso e o Supremo, que ele enxerga como obstáculos ao poder presidencial.
A primeira meta foi cumprida. Apesar das dissidências na direita, as marchas provaram que ainda há muita gente disposta a sair de casa para reverenciar o “Mito”. A segunda é mais questionável. Ao atacar o presidente da Câmara e os deputados do centrão, o bolsonarismo hostilizou personagens que decidirão o sucesso ou o fracasso das reformas.
Rodrigo Maia substituiu o ex-presidente Lula como alvo número um das passeatas. No Rio, ganhou até um boneco inflável para chamar de seu. O “pixuleco” usava camisa do Botafogo com logotipo da Odebrecht e escondia notas de dólar nos bolsos e sapatos. Nas costas, era rotulado como “Nhonho”, “Judas” e “171”.
Os ataques ao deputado não parecem uma tática inteligente. O presidente da Câmara é quem organiza a pauta de votações e decide se aceita ou não eventuais pedidos de impeachment. Bolsonaro deveria ter aprendido essa na época em que frequentava o gabinete de Eduardo Cunha.
Homenageado com um boneco que o comparava ao Super-Homem, Sergio Moro definiu as marchas como “festa da democracia”. “Sem pautas autoritárias”, sentenciou, no Twitter. O ministro não circulou por Copacabana, onde faixas exibiam dizeres como “Os partidos políticos no Brasil são facções criminosas” e “Trabalho para sustentar vermes e parasitas dos três poderes”.
Em Curitiba, a passeata bolsonarista produziu um instantâneo do nosso tempo. Vestidos de verde e amarelo, manifestantes subiram as escadarias da Universidade Federal do Paraná e arrancaram uma faixa onde se liam quatro palavras: “Em defesa da educação”. Foram aplaudidos.
Merval Pereira: Sem carta branca
Manifestações não foram desprezíveis mas não suficientes para levar presidente a ter poderes acima de Congresso e STF
A relação do presidente Jair Bolsonaro com seus assessores militares, além da amizade com a maioria, e do respeito à hierarquia inerente à corporação – o presidente da República é o Comandante em Chefe das Forças Armadas – tem um ingrediente especial: o respeito pela sua vivência na vida partidária dentro do Congresso.
Quando algum assunto relativo à política está sendo tratado, Bolsonaro é direto com quaisquer de seus interlocutores militares e civis não políticos: “Quem entende de política aqui sou eu”.
Os militares são os mais impressionados com essa habilidade, pois, ao entrarem no ministério, entraram também em um mundo político que desconhecem.
Ao dizer que as manifestações de domingo foram “maiores do que se esperava”, o General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), estava refletindo essa admiração pela atuação de Bolsonaro na arena política.
Para muitos que estão de fora, o presidente tem feito trapalhadas seguidas, sendo obrigado a se retratar e a voltar atrás frequentemente. Esses já são a maioria, segundo as pesquisas.
Os militares, no entanto, estão convencidos de que tudo não passa de uma estratégia muito bem montada por Bolsonaro. A força das manifestações de domingo demonstraria o acerto do comportamento errático do presidente.
Um dia replicou em seu twitter convocação para as passeatas, quando elas ainda eram focadas em atacar o Congresso e o Supremo, defendendo até mesmo o fechamento das instituições simbólicas da democracia. No outro, orientou seus ministros e assessores a não irem às manifestações. E desautorizou usarem seu nome em reivindicações não democráticas.
A tática do morde e assopra, como agora, que se desculpou por ter chamado os estudantes que “idiotas inúteis”, seria uma maneira de manobrar entre os obstáculos políticos para chegar a um objetivo, no caso, a aprovação da reforma da Previdência.
Da mesma maneira, as freqüentes gafes que comete, como se reunir com ministros usando uma camisa do Palmeiras, ou servir pão com leite Moça para o secretário de Defesa dos Estados Unidos John Bolton, fariam parte de um jogo de cena para manter sua imagem popular.
Parecido com Jânio Quadros (olha ele aí novamente), que comia sanduíche de mortadela em público, ou espalhava caspa no terno. Collor também usou esse estratagema.
No domingo, Bolsonaro conseguiu o que os dois tentaram em vão. Jânio renunciou pensando que o povo o levaria de volta ao governo. Collor pediu para saírem de verde e amarelo, e todos saíram de preto. Bolsonaro conseguiu uma vitória parcial.
As manifestações não foram desprezíveis, como ressaltou o General Heleno, mas não foram suficientes para levá-lo a ter poderes acima do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), que continuarão, como a imprensa, a fazer o papel de contraponto ao poder do Executivo.
Haveria outros objetivos, de maior profundidade, como a tentativa de impedir a política de troca de favores com os parlamentares, e fazer o enfrentamento das corporações que dominam o espaço público a seu favor. Logo ele, representante do “baixo clero” que passou 28 anos na Câmara defendendo corporações militares e assemelhadas, e convivendo com a “velha política” sem denunciá-la.
Apesar de ser uma figura tosca, verborrágica, contraditória, Bolsonaro estaria sendo útil ao país ao emparedar e pressionar a classe política. Deixando o poder e seus beneficiários expostos
Esse comentário interessante, que recebi de um leitor, resume a opinião de vários outros. O resultado prático pode ser esse, mas, no entanto não é confirmado, pelo menos integralmente, pela prática presidencial.
A partir da escolha de ministros por critérios ideológicos, e não técnicos. E de decisões que levam em conta esses interesses ideológicos, como no caso do meio-ambiente, contra posições já sedimentadas nas maiores democracias ocidentais. Ou no caso da liberação de armas.
O combate à corrupção é contraditório, quando um filho senador está envolvido em diversas denúncias, que transbordam para o próprio Bolsonaro. Ou quando o ministro do Turismo, acusado de ter usado “laranjas” para desviar recursos da campanha eleitoral, é claramente protegido pelo presidente.
Os embates com os poderes constituídos da República, que limitam suas ações, seriam mais a demonstração da incapacidade de Bolsonaro de agir dentro dos parâmetros constitucionais do que intenção de moralizar o país. As ruas, no entanto, não lhe deram essa prerrogativa.
Merval Pereira: Presidente endossa a ideia de que as manifestações foram contra os políticos
As manifestações a favor do governo Bolsonaro não são fatos políticos desprezíveis, mas também não são suficientes para submeter o Congresso aos desejos do Executivo. E nem o tornam mais forte nas negociações políticas. Bolsonaro, ao dizer que as pessoas foram às ruas contra as velhas práticas políticas, avalizou a ideia de que as manifestações foram contra os políticos.
Mais áreas de atrito foram criadas com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e com parlamentares f orados eu núcleo duro de apoio. A boa notícia é que o sentido inicial das manifestações, contra o Congresso, os políticos, o Supremo, foi sendo esvaziado a o longo da semana, e chegou-se a uma situação em que as manifestações, na maior parte, foram a favor de Bolsonaro, da reforma da Previdência e do pacote anticrime de Moro. Que, aliás, saiu confirmado como o ministro mais popular do governo Bolsonaro.
O caráter claramente minoritário das propostas radicalizantes mostra que as instituições democráticas superaram a vontade de uma minoria golpista. O Congresso, por sua vez, fica mais comprometido coma aprovação da reforma da Previdência, mas as ruas também deram respaldo a parlamentares que temem aspectos impopulares da reforma.
Merval Pereira: Os militares e Bolsonaro
Para o cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV, os militares teriam um papel central numa crise terminal do governo
A relação do presidente Jair Bolsonaro com os militares, corporação da qual saiu para a política e à qual dedicou prioritariamente seu trabalho parlamentar por 27 anos, tem sido conflituosa devido à intromissão dos que, no núcleo duro do bolsonarismo, vêem no grupo que está no governo o desejo de tutelar o presidente.
O filósofo online Olavo de Carvalho, orientador intelectual dos Bolsonaro, identificou no vice-presidente Hamilton Mourão um elemento desagregador no governo, e passou a atacá-lo, na suposição de que se oferece como alternativa a Bolsonaro.
Em seguida, o ministro Santos Cruz passou a ser o alvo, numa disputa pessoal com Olavo de Carvalho que teve até a clonagem de supostas mensagens de whattsapp em que o general criticava duramente o presidente. Estava em jogo o controle do sistema de comunicação do governo.
A veracidade dos diálogos foi negada por Santos Cruz, que provou ao presidente que é muito fácil montar diálogos fakes no celular. O general teve a ajuda de um filho que trabalha na área de tecnologia em uma empresa israelense de segurança.
São cerca de cem militares nos diversos ministérios e estatais, sendo que oito, além do presidente e do vice, estão no primeiro escalão do governo. Esse grupo, não por acaso, trabalha junto há anos, tendo a maioria feito parte de missões de paz da ONU.
Bolsonaro, que saiu do Exército como capitão, foi punido por questões disciplinares, já então assumindo a posição de porta-voz da corporação nas reivindicações salariais. Na campanha presidencial, quando já havia se tornado o candidato dos militares contra o PT, foi tido, simpaticamente diga-se, como “incontrolável” pelo General Villas Boas, comandante do Exército à época, e hoje assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo General Augusto Heleno, tido como o mais influente assessor junto ao presidente.
O professor da Professor da EBAPE da FGV do Rio, cientista político Octavio Amorim Neto, acaba de publicar um trabalho intitulado “Cenários para as Relações Bolsonaro-Militares”, onde esboça cenários para essas relações, depois de elas haverem "trincado" com os insultos dirigidos pelo bolsonarismo radical aos generais que trabalham no Palácio do Planalto.
Jair Bolsonaro não se solidarizou com os generais que servem à sua gestão, ressalta Octavio Amorim Neto, lembrando que “um dos seus auxiliares da caserna deixado claro que não afundarão com o governo”. O cientista político considera que “se o atual governo se tornar mais ou menos normal de centro-direita, os militares deverão ir gradativamente saindo da administração para dar lugar a políticos do Centrão”.
Octavio Amorim Neto acha que “escaldados pelas intrigas do bolsonarismo radical, e temerosos dos custos inerentes ao exercício do poder, os militares dariam sua missão por cumprida”. Esse cenário, contudo, é de baixa probabilidade, avalia Octavio Amorim Neto, e, com o cenário atual, “a presença dos militares no governo deverá permanecer alta”.
A continuar o que se vê, “Bolsonaro consegue apenas maiorias pontuais no Congresso, a centro-direita dividida não logra tomar decisões consistentes nem moderar os ímpetos disruptivos do chefe de Estado, a oposição se radicaliza, tudo isso resultando numa competição política com caráter marcadamente centrífugo”.
Octavio Amorim Neto acredita que “as frequentes crises e os contínuos fracassos do governo” vão criar um círculo vicioso: quanto mais o governo precisa dos militares, mais esses são combatidos tanto pelo bolsonarismo radical (abertamente) quanto pelos políticos do Centrão que querem seus cargos (veladamente); quanto mais agudas as tensões entre os militares e esses dois grupos, mais o governo erra e fracassa, e mais acaba recorrendo aos militares.
Embora considere que esse continua sendo o mais provável, Octavio Amorim Neto teme o cenário pessimista, “a degeneração da dinâmica centrífuga em crise de governo, por conta de um Executivo francamente minoritário e desastroso”. Nesse caso, analisa, “Bolsonaro vai para a ofensiva, atacando duramente o Congresso e outras instituições (Judiciário, imprensa, universidades, etc...)”.
Para o cientista político da FGV do Rio, os militares terão um papel central numa crise terminal do governo. O cenário pessimista, cuja probabilidade é crescente para Octavio Amorim Neto, e a ruptura dos militares com Bolsonaro são as duas faces da mesma moeda.
Merval Pereira: Refis de ganho de capital
É bem mais abrangente do que atualizar o valor dos imóveis. No projeto, era aplicável a quaisquer bens ou direitos
A estimativa do presidente Bolsonaro de o governo arrecadar mais de R$ 1 trilhão com a permissão da atualização do valor venal dos imóveis no Imposto de Renda, em troca de uma taxação menor do imposto sobre a valorização patrimonial, está baseada no montante de bens e direitos declarados pelos brasileiros em 2017, e não apenas nos imóveis: R$ 8,9 trilhões.
Uma taxa de 10% sobre esse total, que inclui aplicações financeiras e outros ativos, redundaria em um ganho para o governo de R$ 890 bilhões. Se todos aderissem ao programa, o que é improvável. Essa taxa de 10% foi prevista em um projeto apresentado em 2017 pelo então senador tucano Flexa Ribeiro, que não se reelegeu.
Provavelmente foi essa proposta, arquivada na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado no final da legislatura passada, que deu origem à discussão atual. É bem mais abrangente do que simplesmente atualizar o valor dos imóveis. No projeto, era aplicável a quaisquer bens ou direitos.
O advogado Luiz Gustavo A. S. Bichara assessorou o senador nessa proposição, e continua convencido de que é uma solução ganha-ganha. O projeto acrescenta o artigo 22-A na Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, “para prever a possibilidade de atualizar o custo de aquisição de bens e direitos sujeitos à tributação do ganho de capital mediante a incidência de alíquota reduzida”.
A diferença entre o custo de aquisição do bem ou direito de qualquer natureza e seu valor de mercado atualizado seria taxada por uma alíquota única de 10%, a título de ganho de capital. Diz o advogado Luiz Gustavo Bichara que, à época, buscou-se uma solução “para aumentar a arrecadação, beneficiando o contribuinte”. A proposta era conhecida como “Refis de ganho de capital”.
Ele considera uma ideia boa para o governo, pois ganharia com essa arrecadação inesperada. E também para os contribuintes, que ganhariam com o recolhimento de um Imposto de Renda com alíquota menor. O problema é que o fato gerador é incerto, pois a venda do bem pode até jamais ocorrer. Para o governo, é bom porque ele recebe uma receita de tributação inesperada, e de um fato gerador que pode nem ocorrer.
Segundo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, os estudos estão sendo feitos com base em uma alíquota entre 3% e 5%, o que torna mais viável a adesão do contribuinte, diante de uma alíquota mínima de 15% na hora de vender, e reduz a estimativa de ganho de receita a cerca de R$ 300 bilhões.
Isso porque o estoque de imóveis declarado foi de R$ 3,3 trilhões em 2017. A tributação sobre a venda hoje de um imóvel é baseada em uma tabela que vai até 22,5%. Quem pegasse essa “janela” estaria evitando uma tributação muito maior na hora da venda.
A ideia do projeto era abrir um período pequeno, de seis meses, por exemplo, para quem desejasse se beneficiar da redução. O grande pulo do gato, segundo Bichara, é o ganho de capitais nas participações societárias.
Todo mundo que tem cotas de uma empresa, que pretende um dia vender, ou fazer uma transação, vai atualizar, imagina ele. Seria, portanto, útil para quem quisesse atualizar o valor de participações societárias, por exemplo.
Se o governo está precisando de dinheiro, como hoje, pode ser uma boa tentativa, mas não pode ser vendida como sendo uma ajuda à classe média. Na verdade, os mais ricos serão os beneficiados, assim como na repatriação de capitais.
Tema que deve ser discutido é a ocorrência de prejuízo na venda. Nos Estados Unidos, se o contribuinte paga Imposto de Renda sobre o lucro, e até três anos depois tem prejuízo, recebe de volta o equivalente que foi pago. Aqui iria ser devolvido o que se pagou?
Outro problema é que temos impostos estaduais (sucessão, doação) e municipais (venda), quando o imóvel é alienado. Vão também ser antecipados? E se tiver que devolver depois, alguém acredita que prefeituras e governos estaduais vão fazer isso?
Merval Pereira: Simples e errada
O incipiente estudo da Receita Federal, revelado de maneira indireta pelo próprio presidente Bolsonaro, feliz pela possibilidade vislumbrada de arrecadar mais de R$ 1 trilhão, causou rebuliço na equipe econômica e no Congresso.
Pelo mesmo motivo: temor de que arrefeça o ânimo dos deputados e senadores para votar a reforma da Previdência, diante da perspectiva de uma entrada de dinheiro maciça nos cofres do governo. Provavelmente isso não vai acontecer
São muitos os entraves para que a idéia mirabolante de criar uma taxa para permitir a atualização do valor dos imóveis na declaração do Imposto de Renda se concretize. Mas a proposta, que aparentemente é uma oportunidade para o governo conseguir uma arrecadação extra de impostos, não resolve os problemas estruturais da economia brasileira, como bem lembrou o presidente da Câmara Rodrigo Maia, ecoando com mais liberdade o sentimento da equipe econômica.
A começar pelo ministro Paulo Guedes, que não foi informado dessa proposta, nem sabe quem a levou diretamente a Bolsonaro. Que, por sua vez, não consultou o seu Posto Ipiranga. Pela satisfação com que o presidente revelou parte de seu segredo aos parlamentares da bancada nordestina, estava convencido de que havia descoberto o pulo do gato.
Os proprietários pagariam menos imposto sobre a valorização de seus imóveis na hora da venda, e o governo ganharia uma arrecadação extra. Um jogo de ganha-ganha que ninguém acredita que exista. “Uma receita extraordinária não vai resolver o problema do déficit estrutural da Previdência, que é crescente” definiu Rodrigo Maia.
Que voltou a defender a necessidade da reforma. “A gente precisa entender que arrecadação que acontece apenas uma vez, não é alternativa à reforma da Previdência.”
O vice-presidente da comissão especial da reforma da Previdência, deputado Silvio Costa Filho, quer convidar o secretário da Receita, Marcos Cintra, para explicar, na Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara, “a possível criação de um novo tributo”. E já adiantou sua posição, contra o que chamou de aumento de imposto, “o pior remédio para combater a crise econômica e o déficit público”.
Ele cobrou do presidente que deixe de gastar suas energias políticas em “fórmulas mágicas” e se concentre na aprovação das reformas da Previdência e tributária, além do novo pacto federativo.
Hoje o custo do imóvel já é atualizado na venda por uma tabela que reduz o lucro a ser tributado. Além disso, o Imposto de Renda estabeleceu uma tabela com aumentos escalonados, começando pela taxação de 15% do lucro pelas vendas de imóveis de até R$ 5 milhões.
A taxação vai subindo à medida que o preço aumenta. Os lucros que excedam os R$ 5 milhões, até R$ 10 milhões, pagam 17,5%. O lucro entre R$ 10 e 30 milhões é taxado em 20%, e acima de R$ 30 milhões a taxação chega a 22,5%. Várias dúvidas são levantadas pelos proprietários:
Além de não prever restituição do valor caso o imóvel se desvalorize, boa parte da valorização desses ativos no Brasil é mero ajuste inflacionário. Se a taxa não for atraente, é melhor levar o tributo para hora da venda, senão o proprietário do imóvel estará antecipando o imposto que só irá pagar no futuro. Será preciso fazer uma conta para ver o que vale mais a pena.
Uma situação curiosa seria a do próprio governo federal, que tem milhares de imóveis avaliados pelo ministro Paulo Guedes em R$ 1 trilhão. A venda será feita aos poucos, para não desvalorizar o preço de mercado devido à enxurrada de ofertas. O governo vai ter que fazer suas contas também, pois terá que atualizar o valor venal deles antes de vender.
Na maioria dos casos, quem vende um imóvel recebe o dinheiro para pagar o imposto de lucro imobiliário. Se atualizarem o valor sem vender o imóvel, muitos proprietários não vão ter de onde tirar o dinheiro para pagar o imposto.
O mais provável é que a reavaliação seja feita apenas na hora de vender, o que torna a arrecadação extra mais imprevisível ainda. Se o governo estabelecer um prazo para essa atualização, pode ser que a arrecadação imediata aumente. Mas será quase que um imposto compulsório.
Como disseH L Mencken, jornalista e crítico americano do século passado, famoso por suas frases ácidas, “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.
Merval Pereira: Em busca do dinheiro
A ideia em estudo seria permitir, com o pagamento de uma taxa, a atualização do valor venal dos imóveis
O governo estuda uma mudança na declaração de Imposto de Renda que reduziria o pagamento de lucro imobiliário do contribuinte, rendendo, ao mesmo tempo, mais que o trilhão de reais que pretende economizar em dez anos com a reforma da Previdência.
Foi o que o presidente Jair Bolsonaro previu ontem em reunião com a bancada de deputados do Nordeste, brincando com o ministro da Economia, Paulo Guedes. Os parlamentares ficaram curiosos sobre a medida, e muitos consideraram que a afirmação do presidente Bolsonaro pode reduzir o apoio à reforma da Previdência, pois o governo já teria uma fonte de renda como plano B.
A ideia em estudo seria permitir, com o pagamento de uma taxa, a atualização do valor venal dos imóveis, o que reduziria o lucro imobiliário a ser pago no ato da venda.
Hoje, o lucro imobiliário tem um imposto de 15%, e, como não é permitida a atualização na declaração do Imposto de Renda, é necessariamente alto o lucro e, portanto, o valor a ser pago pelo vendedor. Algumas exceções existem em leis estaduais, mas são casos específicos.
Essa situação estimula que muitos contratos de venda sejam feitos com o valor da transação subestimado, o que acarreta redução na arrecadação do imposto sobre o lucro imobiliário.
O que não está claro é qual seria o mecanismo utilizado. Pode ser uma taxa fixa, ou proporcional à redução do valor a ser pago, podendo ser a atualização opcional ou compulsória.
Se for opcional, especialistas consideram difícil calcular quanto o governo arrecadaria, pois a taxação teria que ser atraente para os proprietários em relação ao que deveriam pagar de lucro imobiliário no caso da venda.
Seria um mecanismo semelhante à mais-valia, em que o proprietário paga uma taxa à prefeitura para ser autorizado a fazer uma obra em seu imóvel fora dos padrões para sua região. No Rio, existe até mesmo a Mais Valerá, para os proprietários que pretendam fazer obras no futuro.
Só que, no caso da atualização do valor venal, seria um lucro presumido, não realizado para os proprietários que não venderem seus imóveis. Se for compulsória, essa taxação seria um ato de força certamente contestado judicialmente. Poderá ser considerada um novo imposto sobre a propriedade.
É improvável, porém, que a medida que está sendo pensada seja obrigatória, pois o governo a trata como um benefício para a população.
A curiosidade é que em um livro recente da Princeton University Press denominado “Mercados radicais: desenraizando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa”, o economista da Microsoft e da Universidade de Yale Glen Weyl e o jurista da Universidade de Chicago Eric Posner tratam do valor dos bens de capital de um ponto de vista crítico.
Os mecanismos e legislação atuais estimulariam a desigualdade, um calcanhar de aquiles do capitalismo, influenciando o funcionamento da própria democracia.
Eles propõem, entre outras coisas, a taxação auto-estimada, um sistema de posse e impostos pelo qual cada um teria de estimar o valor de seus bens, e pagar um imposto proporcional a essa estimativa.
Essa medida idealmente seria aplicada a todos os bens de capitais. Até aqui, alguma semelhança esse sistema pode ter com a medida que o governo estuda. Mas para por aí. O que os autores americanos propõem é o fim da propriedade, já que todos teriam o direito de adquirir os bens uns dos outros, contanto que pagassem o preço estimado.
Essa “liberalidade”, um toque socialista num projeto que pretende salvar o capitalismo, tem a intenção de impedir que os proprietários subestimem ou superestimem o valor de suas posses. Weyl e Posner estimam que esse imposto geraria aproximadamente o equivalente a 20% do PIB americano, reduzindo a desigualdade.
Nada indica que essa proposta tenha futuro na economia americana, embora tenha causado grandes debates acadêmicos, e nem que o ministro Paulo Guedes leve a tal radicalização o liberalismo. Mesmo porque Glen Weyl admite que mistura marxismo com liberalismo, em busca de uma saída para a crise do capitalismo.
O que o governo Bolsonaro está buscando são medidas que façam a economia sair do marasmo em que se encontra. E dinheiro para equilibrar suas contas.
Merval Pereira: Testando os limites
Jânio pensou que o povo impediria sua saída, Bolsonaro tenta usar o povo para não ter que sair
A manifestação a favor, uma incoerência em termos numa democracia, só serve a ditadores que precisam mostrar força popular, como Nicolas Maduro na Venezuela.
Um presidente democraticamente eleito há cerca de cinco meses não precisa disso, a não ser, como acho que está acontecendo, que se sinta desconfortável com as limitações que as instituições democráticas lhe impõem.
Por isso a manifestação do próximo fim de semana é contra o Congresso e os políticos, contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e contra a imprensa, justamente as instituições que têm como finalidade impedir que o Poder Executivo exorbite de seus poderes, sobretudo em um presidencialismo como o nosso, que dá preponderância quase imperial ao presidente da República.
Ainda bem que o presidente Bolsonaro, apesar de ter publicado em sua rede social uma convocação para a manifestação, avalizando, portanto, seus objetivos, desistiu de participar, como chegou a ser aventado. E orientou seus ministros a não irem. Ao chamar à noite o presidente do STF, Dias Tofolli, para uma conversa sobre a conjuntura atual, o presidente Bolsonaro deu um sinal claro aos seus seguidores, confirmando o que seu porta-voz dissera: não autoriza manifestações que oponham seu governo aos outros poderes da República.
O que tira um ar oficialesco da convocação, que só o comprometeria. Desde o início, aliás, o presidente deveria ter se apartado desses movimentos que querem emparedar os demais poderes do Estado, mas esse parece ser a sua natureza.
Como é de seu feitio, a meu ver numa tentativa de testar até onde pode ir, o presidente desde o início de seu governo vem voltando atrás em uma série de medidas polêmicas, rejeitadas, ou pela opinião pública, ou pelos líderes políticos. Um exemplo dessa atitude cambiante, que atribuo a uma tática, é a autorização, vislumbrada no decreto de liberação de porte de armas, para a venda de um fuzil antes classificado como de uso restrito às forças de segurança do Estado.
A fábrica Taurus, que supostamente é especialista em decifrar normas e legislações para ampliar seu escopo de venda, entendeu que o decreto assinado por Bolsonaro a autorizava a vender tal fuzil.
O mercado para esse tipo de arma, cujo modelo mais sofisticado, com rajadas de balas, é muito usado por traficantes e milicianos, é tão grande que existem 2 mil pessoas na fila de espera.
Diante da reação negativa da maioria, que não pertence ao nicho eleitoral dos Bolsonaros, o governo voltou atrás e garantiu que esse tipo de fuzil continua de uso restrito. Vai ser necessário agora mudar o texto do decreto pelo Congresso para que essa vedação fique explícita.
É certo que Bolsonaro foi eleito também por esse nicho eleitoral que se prepara para sair às ruas em sua suposta defesa, como se estivesse sendo coagido por “forças terríveis”, quiçá as mesmas que levaram Jânio Quadros a denunciá-las e renunciar.
Era também um líder populista que não se enquadrava nas limitações que a democracia impõe. Jânio pensou que o povo impediria sua saída, Bolsonaro tenta usar o povo para não ter que sair.
Não há como negar que ele foi eleito também para aprovar a flexibilização do porte e posse de armas, o que vem fazendo com rapidez impressionante, ou para interferir no ensino numa direção oposta ao que considera ser o “marxismo cultural”.
Só que ele não foi eleito apenas por aqueles que concordam com esses e outros projetos. E é preciso negociar com a sociedade, através do Congresso e da opinião pública vista de maneira ampla, bases para um consenso nessas questões delicadas de valores e costumes.
Nesse ponto voltamos ao fulcro do debate, às tais limitações institucionais que Bolsonaro parece querer superar pela pressão popular. Ele tem razão em criticar as corporações que impedem as mudanças, mas não conseguiu que sua própria corporação, a dos militares, abrisse mão de muitas das condições especiais que tem.
Sem dúvida é preciso levar em conta as características específicas da atuação das Forças Armadas, mas há também outras corporações com especificidades a serem analisadas, como a dos professores, e esse é o problema das mudanças, em todos os países.
A negociação deve ser feita, então pelo Congresso, e, mais uma vez tem razão, não pode se dar em troca de favores menores. Mas não é desafiando o Congresso que o governo vai conseguir fazer as reformas.
Merval Pereira: Algaravia presidencial
O presidente torna-se o Chacrinha da política, aquele que veio não para explicar, mas para confundir
O presidente Bolsonaro dá a cada dia mais sinais de que está com dificuldades de se comunicar, não apenas no sentido técnico do termo, mas, sobretudo, no pessoal. No técnico, o movimento pendular característico de sua gestão hoje favorece o bom senso do general Santos Cruz, que fez ontem a apologia de uma comunicação sem viés ideológico, e aberta a todos.
A partir da Virgínia, nos Estados Unidos, o recado deve ter convulsionado as redes sociais bolsonaristas. O presidente torna-se o Chacrinha da política, aquele que veio não para explicar, mas para confundir.
A algaravia presidencial teve palavras animadoras para os empresários, por exemplo, quando os chamou de “heróis” por empreenderem com uma legislação que se torna um fardo. E foi tão crítico sobre as más condições de nossa infraestrutura que deu a esperança de que a privatização será tocada adiante com vigor.
Mas, no mesmo discurso, ontem na Firjan, acenou a uma reconciliação com a classe política, ao mesmo tempo em que também a considerou a causa dos problemas brasileiros.
“É nóis”, disse o presidente, incluindo-se, como político, entre os responsáveis pelas desditas nacionais. A expressão popular é usada corriqueiramente hoje em dia, significando adesão a um pensamento ou a uma atitude. É também uma afirmação de identidade comum.
Enfim, o presidente cometeu um erro, mesmo no português coloquial, pois a expressão tem um sentido positivo, e ali Bolsonaro estava fazendo um diagnóstico negativo da classe política.
Ninguém replica nas redes sociais mensagens de que discorde. Os Bolsonaros sabem muito bem usar esses novos meios. Portanto, não há possibilidade de que a mensagem compartilhada pelo presidente sobre as dificuldades de governar seja apenas uma distribuição aleatória de palavras vãs.
Assim como é sintomático, e preocupante, o presidente ter compartilhado um vídeo em que um suposto pastor congolês diz que Bolsonaro é o escolhido por Deus para levar o país a um novo destino. Tudo o que alguém posta no Facebook, no Twitter, e outros meios digitais tem um sentido, especialmente quando se trata do presidente da República. A balbúrdia, que tanto temia o ministro da Educação, está instalada, a ponto de haver provocações dos dois lados.
A Câmara assumir a reforma da Previdência pode ser uma tentativa de autoafirmação da classe política sobre o Executivo. Mas pode também ser uma jogada de mestre do próprio Bolsonaro.
Os principais líderes da Câmara, até mesmo os do partido teoricamente dele, o PSL, estão evitando uma aproximação. Temem, por exemplo, que as manifestações convocadas para o dia 26 fracassem, ou entrem por um terreno contra as instituições, da maneira que a convocação está sendo feita.
Mas também não querem perder esse momento se, como garantem alguns, ele estiver em sintonia com o sentimento popular. A maioria quer mesmo dar um toque pessoal da Câmara, para retirar do governo os louros pela aprovação da reforma da Previdência, caso ela desencadeie uma retomada do crescimento.
Ao mesmo tempo, os deputados ficarão com a responsabilidade de aprovar uma reforma que seja eficaz, pois, do contrário, serão responsabilizados por não darem condições de governabilidade a Bolsonaro. É isso que ele está implantando preventivamente nas redes sociais, e em discursos como os de ontem no Rio.
O que o presidente ganha com esse ambiente conturbado? Motivos para mobilizar o núcleo duro de seu eleitorado, esse mesmo que está organizando as manifestações do dia 26.
O PT sobrevive politicamente há anos com a adesão de cerca de 30% do eleitorado, que se expande eventualmente na disputa eleitoral. Bolsonaro quer mobilizar os seus 30%, suficientes para levá-lo com vantagem a um imaginário terceiro turno.
A ideia é colocar o verde e amarelo nas ruas. Já houve outro presidente que teve a mesma ideia, e não deu certo. O pessoal saiu de preto. O ambiente político naquele momento do governo Collor era, porém, mais degradado do que o que vivemos, embora os primeiros meses de Bolsonaro sejam os mais conturbados de quantos já vivemos.
Merval Pereira: Políticas de Estado e de governo (2)
A ampliação do alcance do aborto é exemplo de política de Estado saída de uma decisão do Supremo Tribunal Federal
A diferenciação entre políticas de Estado e de governo não é nítida, admite o jurista Joaquim Falcão, fundador da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e um dos criadores do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Ela muda com a história, ‘o Estado sou eu’, (como agora acredita o presidente do STF, ministro Dias Toffoli), a geografia, a cultura, a religião (como no Irã atualmente)”.
Joaquim Falcão defende um critério mínimo, que definiria as Forças Armadas (polícia inclusive), Justiça e Relações Internacionais (Itamaraty) como carreiras de Estado, como definidas pelo ex-ministro Bresser Pereira na reforma administrativa do governo Fernando Henrique Cardoso.
Foi por este critério, lembra, que defendeu nos anos 2000 o Pacto pela Justiça como um pacto de Estado, como aconteceu na Espanha. “O Toffoli iniciou-se (na presidência do STF) propondo um Pacto Republicano, incluindo reforma da Previdência. Mas presidente do Supremo não tem competência legal para propor ou opinar nada sobre o que terá de julgar”, adverte Joaquim Falcão. Política de governo, a “policy”, é mais conjuntural. Finalmente, outro critério seria a Constituição. As estruturas do estado democrático de direito constitucionalizadas seriam de Estado. O jurista José Paulo Cavalcanti, ex-ministro da Justiça, membro da Comissão da Verdade, também separa o estrutural do conjuntural. No primeiro caso, haveria carreiras de Estado, interesses de Estado, políticas de Estado. No segundo, só conjunturas, políticas de governo.
Mas ele admite que se trata de um tema complexo, para o qual seria necessário haver algum tipo de consenso prévio em relação à necessidade, ou conveniência, de uma determinada política pública duradoura. Para além do contingente. E como isso se dá no mundo real?, eis a questão, comenta.
“Quando já estiver na Constituição é até simples. O que nos leva a tentar precisar a vontade coletiva que deveria estar na base de uma ‘política de Estado’”. Como é que ela se daria? Por plebiscitos? Referenduns? Simples pesquisas de opinião?. Ele entra no debate dos decretos sobre armas. “Houve plebiscito, em que puderam votar todos os brasileiros habilitados. E mais de 70% escolheram poder guardar em casa uma arma. Há, nesse caso, uma vontade popular expressa por um instrumento da Constituição. O resultado foi certo ou errado?, não importa. Cada um pôde expressar sua opinião”.
As dificuldades começam, comenta José Paulo, quando o governo pretende dar cumprimento a essa vontade popular em uma espécie de política. Estamos vendo isso agora. E o governo é criticado precisamente por operacionalizar uma política de Estado que foi definida em plebiscito. “As diferenças entre as tais políticas, de Estado e de governo, ficam turbadas”.
O jurista José Paulo Cavalcanti ressalta que uma “política” não pode ser implementada por palavras. Mas por atos concretos. “Quais as alterações, concretas, propostas para a Constituição? Quais os projetos de lei apresentados? Quais as medidas administradas?”. A ampliação do alcance do aborto, outro exemplo de política de Estado saída de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro aposentado Eros Grau considera esse um exemplo de juízes fazendo sua própria lei, título de um texto que escreveu sobre o assunto, explicitando sua revolta contra o aborto.
“Não há nenhuma dúvida, pois, a respeito do fato de que há no aborto é destruição da vida. Um filho anencéfalo morto pela mãe sob a influência do estado puerperal é um ser vivo. Sua morte pela mãe consubstancia um homicídio. Então, pergunto: por que não seria criminoso o assassinato de um feto anencéfalo, que —repito —pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e mesmo ser adotado?”