Merval Pereira

Merval Pereira:Leis para todos os gostos

Esse debate que se desenrola sobre os diálogos entre o então juiz Sérgio Moro e o chefe dos procuradores da Operação Lava-Jato, Deltan Dallagnol não parece ter o poder de levar a uma decisão drástica do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a nulidade da condenação do ex-presidente Lula.

Principalmente porque as supostas provas levantadas pelo site The Intercept são flagrantemente ilegais, fruto de um mais que provável hackeamento de celulares de diversas autoridades envolvidas na Operação Lava-Jato.

Mas, sobretudo, porque ficou claro que não é possível definir como transgressão às normas legais as conversas entre Moro e Dallagnol, muito devido às incongruências de nossa legislação.

Há normas para todos os gostos, desde a Constituição até os regimentos internos dos diversos tribunais, passando pelas normas próprias das organizações que regem o exercício da advocacia.

Umas permitem que se entenda que as partes podem conversar com os juizes separadamente, outras definem que uma parte só pode ser ouvida na presença da outra.

O aconselhamento do juiz a uma das partes pode ser causa de nulidade, mas a definição do que seja aconselhamento fica por conta da interpretação de cada jurista. O hoje ministro Sérgio Moro, que citou o testemunho público do advogado Luis Carlos Dias Torres, garante que sempre conversou com dezenas de advogados que o procuraram dentro da Operação Lava-Jato.

Esse não foi o caso dos advogados de Lula, que nunca pediram uma audiência. Mesmo assim, como o próprio Zanin admitiu, houve várias conversas entre o Juiz e a defesa do ex-presidente nos intervalos das audiências.

A questão do contato dos juízes com as partes tem a solução encontrada em muitos países, a do juiz de instrução, que trabalha na fase investigatória, mas não julga. Para o jurista José Paulo Cavalcanti, ex-ministro da Justiça e membro da Comissão da Verdade, essa solução faz mais sentido nos países do primeiro mundo, em que as sentenças de primeira instância já levam o cidadão para a cadeia, exemplos dos Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha, Inglaterra.

Separando quem aceita a denúncia de quem julga, como se fossem duas instâncias, para proteção do réu. Aqui, ressalta José Paulo Cavalcanti, a sentença de primeira instância é toda revista por tribunais, que reavaliam provas, podem pedir outras. E analisam o mérito.

No fundo, a primeira instância dos países de primeiro mundo equivale à nossa segunda instância, explica José Paulo Cavalcanti. Com uma diferença grande, ele ressalta. “Não existe estrutura, aqui, para que isso funcione. Na última estatística de Pernambuco, apenas em 120 dos 184 municípios, havia juiz. Há juízes acumulando comarcas, com certeza, no Brasil todo.

Assim, parece fazer mais sentido a ele que julguem, “acelerando os processos. Evitando os riscos de prescrição. Deixando a revisão para os tribunais”.

Outra peculiaridade de nosso sistema judiciário são os “memoriais”, ferramenta fruto da prática cotidiana forense e que deriva do “memorial de alegações finais”.

Servem para que os advogados façam um resumo de suas razões para chamar a atenção dos juízes e ministros que julgarão o caso. Há recomendações expressas, baseadas na eficácia de tais “memoriais”: devem ser entregues próximo da hora do começo do julgamento, e não devem ter mais que três laudas, para que o magistrado possa ler com atenção.

A prática tornou-se tão recorrente que o Código de Processo Penal de 1973 a reconheceu, a fim de substituir o debate oral, devido ao acúmulo de julgamentos. O CPC de 2015 se refere aos “memoriais” nos julgamentos eletrônicos, onde não há debate oral. Alguns tribunais de apelação contemplam essa possibilidade, outros não. São considerados “atos processuais facultativos”.

O Supremo Tribunal Federal (STF) não os considera “atos essenciais à defesa”, mas “faculdade que pode ser exercida pelas partes” em qualquer momento anterior ao julgamento. Geralmente, os advogados fazem questão de entregar tais “memoriais” pessoalmente ao desembargador ou ministro, ocasião em que exercem os chamados “embargos auriculares”, reforço de argumentos por conversas particulares.

Tais “embargos auriculares” são também peculiaridades nossas, e muitas vezes advogados que já foram ministros nos tribunais superiores usam de seus conhecimentos pessoais para conseguir audiências privadas para defender seus clientes.


Merval Pereira: A dialética de Moro

Discussão acabou sendo sobre quem é contra ou a favor da Lava-Jato, quem quer soltar bandido

O debate sobre os diálogos entre o então juiz Sergio Moro e o chefe dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol, continua onde sempre esteve desde o início, no campo político.

Assim como existem juristas que acreditam que houve exacerbação do papel do juiz, ferindo a imparcialidade, outros consideram normais os contatos e os comentários.

Sendo assim, a discussão se limita a aspectos subjetivos da nossa ordem jurídica processual, e das poucas sugestões práticas que surgiram no debate de ontem no Senado foi a do senador Cid Gomes, que propôs mudar a legislação para instituir a figura do juiz de garantias, ou juiz de instrução.

Separação entre o juiz que pratica determinados atos decisórios durante a fase investigatória e o juiz que atua na fase da ação penal. Ou seja, juiz que atua no inquérito não pode ser o mesmo do processo.

As limitações dessas duas figuras novas no nosso processo penal seriam definidas pelo Congresso, ouvindo as instituições representativas dos juízes, como a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe); da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), das associações do Ministério Público.

Esse debate entre correntes distintas no meio jurídico existe porque há uma proposta para incluir a figura do juiz de garantias no Código de Processo Penal em tramitação desde 2010, e não se chega a uma conclusão.

O Instituto dos Advogados Brasileiros defende, com base em parecer do ex-deputado federal e advogado Miro Teixeira, que juízes, sejam de instrução, sejam os existentes hoje, têm que evitar toda e qualquer participação na fase investigatória. Outros juristas consideram que mesmo hoje é função do juiz do processo coordenar a investigação.

Ontem, na sabatina a que se submeteu, por decisão própria, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, desanimou os políticos que o atacaram.

Conseguiu levar o debate para o campo dialético, e a discussão acabou sendo sobre quem é contra ou a favor da Lava-Jato, quem quer soltar bandido, o que favorece muito a sua posição quando juiz da Lava-Jato.

Ficou claro que o interesse do PT é apenas soltar o ex-presidente Lula, e com isso perde-se a capacidade de contestar o ministro Sergio Moro. Apesar dos apelos dos partidos de oposição, os petistas não conseguiram discutir o tema de maneira genérica, colocando sempre em questão as condenações de Lula.

A oposição, por sinal, não conseguiu se organizar para fazer com Moro o que fez com o ministro da Economia, Paulo Guedes, que acabou perdendo a paciência em momentos cruciais.

O ministro Moro garantiu que não fez treinamento formal para a sabatina, mas estava bastante tranquilo na arguição, e teve a seu favor uma bancada em defesa da Lava-Jato.

Uma situação curiosa é que, mesmo os oposicionistas, tentavam a todo custo garantir que não estavam criticando a Operação Lava-Jato, sabendo que a sessão estava sendo televisionada pela TV Câmara.

O que ficou definido na audiência é que o crime cometido foi a invasão de celulares de autoridades brasileiras. Moro fez bem ao negar que seja o SuperHomem que o representa no boneco inflável que aparece nas manifestações, e ontem foi colocado em frente ao Congresso.

Mas o fato é que enquanto contar com a credibilidade que a maioria lhe concede, e a Lava-Jato for vista como a garantia do combate à corrupção pela população, o ministro Sergio Moro estará garantido.

É o que se chama em linguagem militar moral high ground. A origem é o conceito de que, para vencer, há que conquistar os níveis mais altos do campo de batalha. É o que Moro está fazendo, com sucesso, até o momento.

Inclusive afirmando, quase ao final da audiência, que se for constatada alguma irregularidade, renunciaria ao cargo de ministro. Pura retórica, mas eficiente, pois se surgirem irregularidades, ele estará inviabilizado politicamente.

Moro repetiu com gosto o título de um artigo de um professor de Harvard que dizia “O escândalo que encolheu”. A não ser que apareçam coisas verdadeiramente graves, o escândalo, como apresentado pelo site Intercept e pela oposição, está realmente esvaziado.


Merval Pereira: Senado derrota Bolsonaro

Poder do Congresso de barrar decretos que exorbitem as prerrogativas do presidente é muito claro na Constituição

A derrota pessoal do presidente Jair Bolsonaro ontem no Senado já era pressentida pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que fez um discurso, antes de pronunciar o resultado, em defesa dos senadores que haviam sido atacados por mensagens ameaçadoras enviadas por meio eletrônico.

O convencimento generalizado era de que esses ataques eram endossados, ou mesmo incentivados, pela família Bolsonaro, o que decidiu o ânimo com que os senadores votaram. Pretendem definir essa questão do armamento num debate de que resulte um projeto de lei.

A vitória do Senado, revogando os decretos de Bolsonaro flexibilizando o porte e a posse de armas por uma diferença bastante folgada, além da expectativa geral, é parte da disputa de espaço político que se trava entre Legislativo e Executivo.

A anulação dos decretos sobre liberação de porte e posse de armamento tem que ser confirmada pela Câmara, e há pouca chance de o governo lá reverter o resultado. Os presidentes da Câmara, deputado Rodrigo Maia, e o do Senado, Davi Alcolumbre, estão trabalhando juntos nessa reafirmação do Congresso.

A base da discussão no plenário do Senado sobre o decreto de flexibilização do porte e posse de armas foi a independência do Parlamento diante do Executivo.

Quem era a favor o defendeu com base na legítima defesa do cidadão. Os contrários acrescentaram aos motivos para não armar 20 milhões de cidadãos, de acordo com a conta da oposição, argumentos políticos. O presidente Jair Bolsonaro não poderia ter decidido sozinho a liberação, através de um decreto.

O Legislativo deveria ter sido chamado a opinar. Esse argumento político reflete a posição do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que também está na luta pela emancipação do Legislativo como poder autônomo em relação ao Poder Executivo.

O poder do Congresso de barrar decretos presidenciais que exorbitem as prerrogativas do presidente da República é muito claro na Constituição, e os senadores retomaram para si a regulamentação de diversos artigos da Lei do Desarmamento.

O que deveriam ter feito desde 2003, aliás. Em cinco meses de governo, o presidente Jair Bolsonaro editou três decretos ampliando as possibilidades de liberar oficialmente posse e o porte de armas, uma de suas promessas de campanha.

Uma pesquisa do Ibope mostra, no entanto, que o argumento de que a permissão para armar a população foi dada no plebiscito de 2005 mostra-se defasado. Eram outras as circunstâncias, e outras as motivações.

O governo não tem mais o apoio da maioria da população: 61% dos pesquisados são contra afrouxar as regras de posse, e 73% se disseram contrários ao porte de armas para cidadãos.

Em mais uma etapa dessa guerra em processo, anunciou-se ontem que Bolsonaro vai vetar o trecho da medida provisória, aprovada no Congresso, que tirou o Coaf do Ministério da Justiça e Segurança Pública e o transferiu para o Ministério da Economia. Bolsonaro editará em seguida uma nova medida provisória confirmando a transferência do órgão para a pasta de Sergio Moro. É mais uma demonstração de apoio público a Moro, mas uma atitude política que pode atrapalhá-lo hoje no Congresso, quando será arguido sobre a troca de mensagens com os procuradores de Curitiba quando era o juiz da Lava-Jato.
A decisão foi informada pela Secretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil, em uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) do partido Podemos, que pede que o Coaf fique com Sergio Moro.

Não há perspectiva de essa disputa política se encerrar tão cedo, pois, da parte dos bolsonaristas mais militantes, especialmente pelas redes sociais, há a disposição de encurralar o Congresso.

O tuíte do guru dos Bolsonaro, Olavo de Carvalho, afirmando que o Congresso só faz atrapalhar o presidente Bolsonaro, lido pelo senador Renan Calheiros, espelha bem o resultado final, uma afirmação de que Bolsonaro não pode governar por decretos, sem ouvir o Congresso. E nem pelas redes sociais.


Merval Pereira: Uma ameaça à democracia

Não há projeto político maduro de governo, mas uma incontinência verbal de Bolsonaro que, não raras vezes, é incongruente. Como zagueiro que dá caneladas, na metáfora futebolística a seu gosto, às vezes Bolsonaro se arrepende, mas não perde a viagem. Fala o que lhe passa na cabeça, sem filtros, e, pior, escreve no twitter o que pensa, ampliando um ambiente de insegurança política.

A gravidade de suas palavras, como a de todo presidente da República, parece ser desconhecida por ele. Ou, como já disse o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), faz tudo de modo pensado, como uma estratégia política. Nesse caso, seria mais grave do que simplesmente dizer besteiras.

Besteiras, a ex-presidente Dilma Rousseff também dizia. O perigo é executar as besteiras, como ela fez e perdeu o cargo. De tantas besteiras, a mais grave foi dita no sábado à noite em Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul.

Durante evento em memória ao marechal Emilio Mallet, o patrono da Artilharia, Bolsonaro voltou a defender a ditadura militar, mas, desta vez, foi mais longe, e ligou a atuação dos militares na ocasião ao armamento dos cidadãos que propõe hoje.

Para defender a ampliação das licenças para porte de arma, que a Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) vetou, Bolsonaro disse: “(...) Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta”.

São frases claramente ameaçadoras da democracia e, ditas pelo presidente da República, mais graves do que, por exemplo, a do presidente da CUT falar em “pegar em armas” para defender Dilma dentro do Palácio do Planalto.

Embora a então presidente não tenha desautorizado o líder sindical, as palavras não saíram de sua boca. Mais grave até que a frase de Lula, que falou na sede da Associação Brasileira de Imprensa em 2017: “Também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o exército dele nas ruas”.

Lula já era ex-presidente, embora seu partido estivesse no poder e ele fosse, inegavelmente, seu líder maior.

Além da gravidade em si, a fala de Bolsonaro é incongruente, pois ele defende o governo militar fruto de um golpe para dizer que quer armar o povo para impedir golpes.

Quem quer impedir pelas armas que um governante qualquer tenha a tentação de dar um golpe, pode também ceder à tentação de dar um autogolpe, em nome da maioria armada da população.

É conclamar a uma guerra civil, pois nem todos os cidadãos armados serão a favor de um governo Bolsonaro sem as peias institucionais que tanto o desagradam. A ponto de ele, nesse mesmo discurso, falar que precisa mais do povo a seu lado do que do Parlamento.

A disputa constante entre Parlamento e governo, aliás, vai continuar – eles estão em confronto, e nenhuma das partes dá sinais de querer trégua.

O ministro Paulo Guedes criticou muito o Congresso que, por sua vez, assume cada vez mais o protagonismo político, tentando limitar os poderes do Executivo.

Bolsonaro insiste em desmoralizar o Congresso, e o ministro da Economia afirma que deputados sucumbiram ao lobby dos servidores públicos. Mas Rodrigo Maia está conseguindo convencer os deputados que aprovar a reforma da Previdência é bom para a imagem da Câmara, e para tirar de Bolsonaro e Guedes a primazia dela.

Esclarecimento

Recebi do presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Marcio Barandier o seguinte esclarecimento a respeito de comentário meu na coluna intitulada Juiz das Garantias: “O IAB se posicionou contrariamente ao uso da denominação “juiz de garantias” em lei. Primeiro, porque se trata de um pleonasmo, afinal, todo e qualquer juiz tem necessariamente o compromisso de zelar pelas garantias constitucionais e processuais; segundo, porque o PLS continha perigosa ambiguidade sobre o tema, na sua exposição de motivos, ao dizer que o objetivo seria tutelar as liberdades individuais e, ao mesmo tempo, fortalecer as funções de investigação, o que configuraria, neste último caso, um desvio de função, na medida em que juiz não investiga. No entanto, o IAB posicionou-se sim pela separação entre o juiz que pratica determinados atos decisórios durante a fase investigatória e o juiz que atua na fase judicial (ação penal).


Merval Pereira: Intolerância política

O presidente demonstra considerar lealdade mais importante do que competência e não admite pensamentos diferentes no governo

O presidente Jair Bolsonaro deu várias mostras nos últimos dias daquilo que já havia sido evidenciado desde o início do governo: o que considera lealdade é mais importante para ele do que competência. E de que não admite diversidade de pensamentos em qualquer instância do governo.

O que ele fez com o presidente do BNDES, Joaquim Levy, foi demiti-lo publicamente ontem, ao anunciar que ele está “com a cabeça a prêmio” há muito tempo, e que já está “por aqui” com ele, que não estaria cumprindo o que combinara ao ser nomeado.

Isso porque Levy indicou para uma diretoria do BNDES Marcos Pinto, que trabalhou na gestão de Lula como chefe de gabinete de Demian Fiocca na Presidência do BNDES, de quem era assessor quando Fiocca foi vice-presidente.

Fiocca encaminhou a indicação de Marcos Pinto para a diretoria da CVM em 2012, na gestão de Guido Mantega. Essa relação de Marcos Pinto com a gestão petista irritou Bolsonaro, que exigiu publicamente sua demissão, ameaçando demitir Levy amanhã se não cumprisse sua ordem.

Por trás da confusão com Marcos Pinto está a irritação de Bolsonaro com o próprio Levy, a quem aceitou no BNDES por insistência do ministro da Economia, Paulo Guedes. A desconfiança do presidente recai até sobre pessoas que o auxiliaram muito de perto, como os ex-ministros Gustavo Bebianno e o general Santos Cruz, de quem era amigo há 40 anos. Foram vítimas de intrigas do mesmo grupo, comandado pelo filho Carlos e pelo guru esotérico Olavo de Carvalho. Bolsonaro faz jus a um conselho que recebeu de seu pai, que lhe dizia para confiar apenas nele e na sua mãe.

O ministro da Justiça, Sergio Moro, também passou pelo mesmo problema que atinge agora o ministro da Economia, Paulo Guedes. Os dois supostamente tiveram carta branca de Jair Bolsonaro para escolher seus assessores e foram desautorizados pelo presidente.

O caso de Moro foi menos grave que o de Guedes agora, mas exemplar de uma intolerância incomum nos governos recentes, com exceção de uma atitude pontual de Michel Temer, que demitiu um garçom nos primeiros dias de presidente por considerá-lo um espião petista.

Moro foi obrigado a cancelar a nomeação da cientista política Ilona Szabó para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A ideia da nomeação da presidente do Instituto Igarapé, que estuda violência urbana e propõe medidas como desarmamento e descriminalização das drogas, era justamente colocar uma voz divergente no conselho, para que ele exercesse seu papel em plenitude, isto é, debater teses e sugerir opções ao ministro.

Nos governos anteriores, Francisco Weffort, fundador do PT, foi ministro da Cultura de Fernando Henrique por oito anos; os economistas Marcos Lisboa e Murilo Portugal foram assessores importantes de Palocci quando era ministro; e o próprio Joaquim Levy foi ministro da Fazenda de Dilma.

Os petistas boicotaram os economistas que consideravam tucanos, mas só Levy foi demitido. Dilma era mais próxima de Bolsonaro em termos de intolerância política do que Lula, que sabia aceitar assessores que não fossem petistas de carteirinha.

Com a crescente autonomia do Congresso em relação ao Palácio do Planalto, Bolsonaro parece estar retomando uma política de contato direto com o eleitor, que tentara no início de sua gestão. Radicalizando posições para contentar seu núcleo principal de eleitores.

O próprio ministro Paulo Guedes, que no início do governo disse que daria “uma prensa” no Congresso e teve que recuar, voltou a tentar pressionar os parlamentares com críticas duras contra a proposta da Comissão Especial da Previdência.

O mais provável é que queira passar a ideia de que não gostou da proposta, para que os deputados tenham a sensação de vitória sobre o governo e não façam novas alterações.

Também ontem Bolsonaro usou o Twitter para pedir que a população pressione os senadores para manterem seu decreto que flexibiliza o porte de armas. A Comissão de Constituição e Justiça do Senado decidiu revogar os decretos que permitem o porte de armas de fogo a cidadãos e colecionadores, atiradores desportivos e caçadores.

O presidente, que já dissera que não acreditava que os senadores fossem votar “contra o povo”, agora pede que os eleitores os pressionem.


Merval Pereira: Conspiração

A comprovação pelas investigações da Polícia Federal de que o episódio da captação ilegal dos diálogos do então juiz Sergio Moro com o chefe dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol, é apenas parte de uma ação coordenada contra a Lava-Jato, atingindo membros do Poder Judiciário em diversos graus, deu nova conotação política ao episódio.

Silvio Meira, um dos maiores especialistas em tecnologia da informação e professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco, diz que “ninguém fez isso sozinho, não aconteceu por acaso, tem um desenho por trás. Havia gente que estava explicitamente dedicada, gastando imaginação, competência técnica, tempo e dinheiro para chegar a essa informação”.

Abel Gomes, desembargador do TRF-4 que condenou o ex-presidente Lula em segunda instância no caso do tríplex do Guarujá, colocou o dedo na ferida: “Por que os hackers têm mirado apenas autoridades que deram decisões desfavoráveis aos investigados da Lava-Jato?”

Também a juíza Grabriela Hardt, substituta de Moro durante um período, foi hackeada e denunciou que essa manobra ilegal contra membros do Judiciário é um atentado à segurança do Estado brasileiro.

Para Silvo Meira, o Telegram, que passou a ser muito usado no Brasil depois que o WhatsApp ficou fora do ar por questões judiciais, pode ser seguro se as mensagens são criptografadas, “mas o usuário tem que habilitar seu celular para isso. Se não o fizer, as mensagens ficam abertas e, consequentemente, fáceis de serem lidas”.

Também a origem da empresa é um mistério. Telegram é o nome de uma empresa russa dos irmãos Durov, os criadores do Facebook russo, o VKontakte, conhecido como VK. Numa operação que até hoje não foi explicada em detalhes, venderam ou foram forçados a vender o VK a outro grupo digital russo. Saíram da Rússia logo depois, foram para Berlim, de onde também saíram reclamando que as autoridades alemãs não deram visto de trabalho para seu time.

Time que hoje ninguém sabe exatamente onde está. A empresa é tocada a partir de Dubai, e os demais funcionários estariam espalhados pelo mundo. A infraestrutura da companhia não se sabe onde está.

O STF deve julgar no plenário um pedido de suspensão do ex-juiz Sergio Moro, por parcialidade arguida pela defesa de Lula. Oficialmente, as conversas não estarão no julgamento, a não ser que a defesa possa pedir para incluí-las. Mas, que vão interferir, isso é claro.

Não creio que, se for para o plenário, seja aprovada a tese da anulação da condenação. Mesmo na Segunda Turma acho que haverá maioria para derrotar os prováveis votos dos ministros Gilmar Mendes e Lewandowski. O ex-presidente foi condenado em três instâncias, portanto, não há razão para anular todos os julgamentos em todas as instâncias.

Para o especialista em tecnologia de informação Silvio Meira, essa crise atual chama a atenção para um problema brasileiro: o de que as autoridades não têm um sistema de troca de mensagens ou telefone protegido de invasões desse tipo.

Como já escrevi aqui, a utilização do Twitter para suas mensagens é um hábito que Bolsonaro copia do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, seu grande ídolo. Mas Trump só usa o Twitter oficial quando trata de ações do governo.

Nos Estados Unidos, a utilização de meios particulares para atividade oficial já deu muita dor de cabeça a Hillary Clinton que, quando secretária de Estado no governo Obama, dispensou o e-mail oficial (@state.gov) para usar seu e-mail privado mesmo para assuntos de Estado.

O caso provocou o temor de informações sigilosas do Departamento de Estado circularem em redes de caráter privado, ou estarem expostas a ataques de hackers. Parte do conteúdo era classificado como supersecreto, ou o foi mais tarde. Coube a Hillary um pedido de desculpas: “Foi um erro. Sinto e assumo a responsabilidade”.

Legislações sobre esse tipo de utilização garantem nos Estados Unidos que não haja violação de normas de segurança institucional. Aqui houve um ataque em massa a diversos membros da Lava-Jato em vários estados, notadamente Paraná e Rio. Está sendo revelado que houve uma verdadeira conspiração contra a Lava-Jato e o Judiciário.

Os diálogos que já foram revelados e os ainda a revelar podem provar — o que na minha opinião ainda não aconteceu — irregularidades praticadas dentro da Operação Lava-Jato. Mas não há mais dúvidas de que esse ataque cibernético foi orquestrado justamente com o objetivo de acabar com a Lava-Jato. Mas, como diz o ministro do Supremo Edson Fachin, a Lava-Jato é uma realidade que mudou a estrutura do combate à corrupção no Brasil.


Merval Pereira: O que está em jogo

É preciso esclarecer quem tinha interesse em saber das conversas entre os membros da Operação Lava-Jato

Mais uma vez estamos diante de um debate político que envolve questões jurídicas e morais, nessa longa e penosa luta contra a corrupção, que é o que está em jogo.

Os trechos das conversas entre o procurador Deltan Dallagnol e o ex-juiz Sergio Moro, e entre os procuradores da Lava Jato, no sistema aplicativo de mensagens Telegram foram conseguidos através de uma ação ilegal, e não servem de prova em praticamente lugar nenhum do mundo civilizado.

Temos o exemplo da operação Satiagraha, anulada porque se descobriu que as investigações usaram grampos ilegais.

A partir daí, a consequência prática não existe. A questão maior é a repercussão política, para reforçar a ideia de que Lula foi injustiçado, embora nas conversas não exista nada que o absolva das acusações.

No Brasil, juízes e ministros dos tribunais superiores conversam com as partes, e opinam fora dos autos. Ministros do Supremo, como Joaquim Barbosa no exercício da função, não recebem as partes. Outros, como a ministra Cármem Lúcia, recebem sempre na presença de uma testemunha. E há os que conversam com as partes sem maiores preocupações.

No caso, o ex-presidente Lula já foi condenado em três instâncias, inclusive no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essas são as instâncias que podem corrigir eventual desvio no processo de julgamento. E quem pode julgar Moro, se for o caso, é a Corregedoria da Vara de Curitiba ou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os procuradores serão investigados pelo Conselho Nacional do Ministério Público.

É preciso esclarecer quem tinha interesse em saber das conversas entre os membros da Operação Lava-Jato, e como invadiu os celulares dos Procuradores da Lava-Jato. Essa é a parte política do imbróglio, que merece especial atenção. Não há dúvida de que os setores interessados no fim da Lava Jato são beneficiados.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, teve um problema semelhante quando presidia o STF. Uma varredura em seu gabinete convenceu-o de que estava sendo grampeado, e ele não teve dúvidas.

Foi ao então presidente Lula para exigir, em nome do Poder Judiciário, uma investigação do caso, que, aliás, nunca foi esclarecido, nem o áudio do grampo apareceu. Mas a gravidade do ataque ao Judiciário o mobilizou.

O que aconteceu com os procuradores é diferente do vazamento de delações premiadas que vem incomodando tanto ao ministro Gilmar Mendes e a outros ministros do Supremo.

As conversas obtidas por hackers fazem parte de uma etapa mais grave, de invasão de privacidade.

A Constituição é peremptória ao definir que provas ilegais são inadmissíveis em qualquer processo. O Código de Processo Penal diz que o juiz se torna suspeito, entre outras coisas, se “tiver aconselhado qualquer das partes”.

O hoje ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro diz que não sugeriu nada. Apenas combinou com os Procuradores as etapas das operações que tinham que ser autorizadas por ele. Uma questão de logística.

Há uma corrente de criminalistas que entende que as provas ilegais podem ser usadas para defender o réu. Se elas demonstram a parcialidade do julgador, podem ajudar a soltar o condenado, que é o que querem para Lula.

Mas é improvável que um criminalista aceite a tese contra seu cliente, se, por exemplo, houver uma gravação ilegal que prove sua culpa.

O Supremo, onde certamente chegará o caso, não pacificou ainda a jurisprudência. Tem decidido a favor da tese de que provas ilegais corrompem todo o processo, mas também, em alguns casos, aceita que elas possam ser usadas pela defesa, para corrigir uma eventual injustiça.

Em outro caso de grampo político, o de Joesley Batista na conversa com o ex-presidente Michel Temer, havia uma definição do STF. Qualquer das partes envolvidas pode gravar uma conversa sem a autorização da outra, o que não se confunde com a interceptação, que é o crime de que se trata.

Muitos juristas consideram que não há ilegalidade nas conversas, e o próprio “Intercept Brasil”, site que divulgou as conversas, diz que não há ilegalidade, mas imoralidade.

A questão moral é uma discussão mais ampla, difícil de se chegar a uma conclusão, pois cada ato se justifica moralmente, dependendo de que lado você está. Especialmente no combate à corrupção, em um país corroído por ela em todos os níveis institucionais.


Merval Pereira: O papel do advogado

Para Rui Barbosa, é fundamental “não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínios a estes contra aqueles”

A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) está lançando Advocacia Hoje, uma revista digital a ser distribuída trimestralmente por e-mail e Whatsapp, que, segundo o presidente-executivo da OAB editora, José Roberto Castro Neves, pretende abrir espaço para uma forma mais direta de comunicação com seus filiados, um universo de aproximadamente 1,3 milhão de advogados e 1 milhão de estudantes de Direito.

A revista homenageará sempre um advogado, a começar por Rui Barbosa, com a imagem modernizada para ressaltar a atualidade de seus pensamentos. Entre os textos estão “Advocacia Hoje”, do Presidente da OAB, Felipe de Santa Cruz, sobre os desafios e conquistas da advocacia; Direito Constitucional; Marcus Vinicius Furtado Coelho; Direito Tributário; Luiz Gustavo Bichara; Direito Comercial/Societário Marcelo Trindade; Direito, Literatura e Filosofia Tércio Sampaio Ferraz Júnior; “Nós, os advogados, por eles, os juízes” Luís Roberto Barroso.

Fui convidado para inaugurar uma seção que terá sempre um profissional de fora da área jurídica falando sobre “o papel do advogado”. Segue a transcrição:

“Assim como a imprensa nasceu para dar voz à sociedade civil para se contrapor à força do Estado absolutista, e legitimar suas reivindicações no campo político, o ordenamento jurídico surgiu da necessidade de organizar as sociedades em torno de decisões pactuadas, e defender os direitos individuais, impondo limites à força dos poderosos.

A semelhança dos desígnios das duas instituições, Imprensa e Direito, é refletida em comentários de duas figuras históricas, o americano Thomas Jefferson e o brasileiro Rui Barbosa, fundamentais para seus países. Para Jefferson, a liberdade legítima é limitada por igual direito dos outros.

Para Rui, é fundamental “não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínios a estes contra aqueles”. Sobre a imprensa, os dois também têm visão semelhante.

Para Rui Barbosa, a imprensa é a vista da nação. “Através dela, acompanha o que se passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe onde lhe alvejam ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que ameaça”.

O presidente americano Thomas Jefferson entendeu que a imprensa, tal como um cão de guarda, deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar. “Se me coubesse decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo, não hesitaria um momento em preferir a última solução”, escreveu ele.

No sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende muito da informação. O papel dos advogados numa democracia é, portanto, relevante como suporte de uma sociedade equânime.

Pesquisas promovidas pela Associação de Magistrados do Brasil (AMB), em 1995 e ano passado, revelam a evolução das prioridades da corporação, mais focada nos direitos individuais e liberdade de expressão na década posterior à redemocratização do país, mais empenhada hoje em combater os desvios do poder e a atender aos anseios de Justiça da coletividade.

Essa contemporaneidade das aspirações dos magistrados reflete a contínua relevância do papel dos advogados, que é historicamente o de proteger o cidadão da força e da injustiça.

Por isso, a independência do jurista na relação com o Poder é fundamental para Rui Barbosa, segundo quem uma “justiça militante” se baseia em “não transfugir da legalidade para a violência”; não “quebrar da verdade ante o poder”; não colaborar em “perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade”.

Em O Dever do Advogado, Rui Barbosa define a ordem legal em duas facetas: a acusação e defesa, e parece estar falando dos dias de hoje, quando o radicalismo político confunde o exercício da profissão com aval a esta ou àquela posição. Esta, a defesa, “não é menos especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira.”, diz Rui.

Para ele, cabe ao advogado ser “voz do Direito” em meio à paixão pública: “Tem a missão sagrada, nesses casos, de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel.”

A atualidade das palavras de Rui Barbosa torna sua presença na história brasileira cada vez mais influente, a ponto de ter sido um dos mais citados na pesquisa da AMB como referência dos atuais magistrados.

Sua estátua, mandada erigir pelo Centro Acadêmico XI de agosto da faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo continua simbólica de uma visão de Direito que dá aos advogados papel fundamental na vida pública de uma democracia.”


Merval Pereira: A moeda ‘peladona’

Integração monetária de Argentina e Brasil exigiria uma série de decisões, como unificar políticas fiscal e cambial

A ideia de criar uma moeda única de Brasil e Argentina parece mais esdrúxula ainda quando o presidente Bolsonaro a classifica como “uma trava a aventuras socialistas na região”.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, que hoje parece gostar da ideia, antes mesmo de assumir o cargo provocara um mal-estar com a Argentina quando afirmou que o Mercosul não era prioridade para o novo governo brasileiro porque é “muito restritivo, o Brasil ficou prisioneiro de alianças ideológicas, e isso é ruim para a economia”.

Ele se referia a um bloco que só negociava com quem tinha “inclinações bolivarianas”. Como a proposta de uma moeda única fora feita em 2011 no governo de Dilma Rousseff, quando Cristina Kirchner era presidente da Argentina, mais uma vez o governo Bolsonaro faz o que critica em seus antecessores. Se o PT queria criar uma moeda única na região para fortalecer as “repúblicas bolivarianas”, agora Bolsonaro a quer para evitar a volta ao poder dos “bolivarianos” que foram varridos dos governos da região pelo voto popular.

A moeda única dos dois países poderia evoluir para uma moeda do Mercosul, comentou o presidente Bolsonaro. O Mercosul, aliás, também já esteve na mira do governo Temer, quando o tucano José Serra assumiu o Ministério das Relações Exteriores. Na posse, disse que “a diplomacia voltará a refletir os valores da sociedade brasileira, e estará a serviço do Brasil, e não das conveniências e preferências ideológicas de um partido político e seus aliados no exterior”.

Serra já havia anunciado, quando candidato à Presidência da República, querer transformar a união aduaneira numa área de livre comércio, permitindo a seus membros fazer acordos comerciais de forma isolada, sem a concordância e adesão dos demais sócios. Essa também é uma ideia que agrada a Bolsonaro e Macri, para aproximação com a Aliança do Pacífico. O acordo com a União Europeia ainda não saiu pela necessidade de adesão de todos os membros do Mercosul, o que atrasa a inserção comercial do Brasil no mundo.

Criado em 1991 pelo Tratado de Assunção, o Mercosul é hoje o terceiro maior bloco do mundo, depois do Nafta (México, Canadá e Estados Unidos) e da União Europeia, com um PIB de US$ 2,8 trilhões (R$ 10,4 trilhões) em 2018. Se fosse um país, o Mercosul seria a quinta maior economia do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China, Japão e Alemanha. Na ocasião de sua criação, o Mercosul provocou várias gozações, hoje conhecidas como memes no mundo digital. A brincadeira sobre o possível nome da nova moeda, que seria Peso Real, mas deveria ser, segundo os internautas, “peladona”, uma junção de Pelé e Maradona, faz lembrar o que se dizia à época.

Eu mesmo escrevi um artigo intitulado Mercosul F.C., onde ironizava as vantagens que tal união poderia nos trazer: fazer uma seleção de futebol com Zico e Maradona. Hoje, assim como o Mercosul poderia ser a quinta economia do mundo, mas não é, também poderia organizar uma seleção de futebol capaz de enfrentar os europeus, que venceram as últimas quatro Copas do Mundo. Repetir na seleção do Mercosul o antigo trio atacante MSN do Barcelona, o argentino Messi, o uruguaio Suárez e o brasileiro Neymar, seria uma grande vantagem competitiva.

O fato é que o Mercosul, como uma área de livre comércio, eliminou barreiras alfandegárias e aumentou o fluxo comercial entre seus membros, mas essa proteção, que acabou sendo o principal objetivo do grupo, fez com que a indústria desses países perdesse a competitividade.

A integração monetária entre Brasil e Argentina, e depois com os demais países do Mercosul, exigiria uma série de decisões, como unificação de políticas fiscal e cambial. O euro, moeda da União Europeia, nasceu em 2002, 14 anos depois de o Conselho Europeu ter confirmado a união monetária em 1988, e décadas depois do início das negociações.

A nova moeda exigiria instituições para cuidar do setor financeiro e da política fiscal dos países, inicialmente Brasil e Argentina, depois os demais do Mercosul, o que vai de encontro às ideias do governo Bolsonaro, contrárias aos organismos internacionais, que impediriam às nações desenvolverem suas próprias institucionalidades. Por essa razão, o governo brasileiro acabou com o passaporte e quer acabar com a placa de automóveis do Mercosul.


Merval Pereira: Vitória privatista

‘Fetiche’ de pôr controle estatal como protagonista, segundo Luís Roberto Barroso, é que estava em discussão

No julgamento que terminou ontem no Supremo Tribunal Federal (STF) com a decisão majoritária de que só a alienação do controle acionário de empresas públicas e de sociedades de economia mista exige autorização legislativa, exigência que não se aplica à alienação do controle de suas subsidiárias e controladas, houve, na verdade, a prevalência de uma visão privatista sobre a do capitalismo de Estado defendido pelo relator, ministro Ricardo Lewandowski.

Segundo ele, "crescentes desestatizações" podem apresentar prejuízos ao país. Por isso é necessário que o Congresso, onde estão os representantes do povo, se manifeste sobre as privatizações. Na sua visão o Estado não pode abrir mão da exploração de atividades econômicas por decisão exclusiva do governo.

A divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes opôs a essa idéia a tese de que o Estado não deveria entrar "nas regras do mercado privado", pois a Constituição dita que a intervenção estatal nesse deve ser mínima.

O “fetiche” de colocar o controle estatal como protagonista de tudo, segundo o ministro Luis Roberto Barroso, é que estava em discussão subjacente ao tema central, que era a tentativa de entidades sindicais de impedir a venda de subsidiárias de estatais, como é o caso do programa de desinvestimento da Petrobras.

Barroso disse que essa devia ser uma decisão do Executivo, o STF não deveria se imiscuir em questões econômicas, que devem ser resolvidas por gestores públicos. Ressaltou que a definição do papel do Estado é que estava em discussão e, no seu ponto de vista, a Constituição manda que esse papel seja o menor possível. O ministro Edson Facchin, que acompanhou o relator, ressaltou em aparte que não votou com intuito político, mas de acordo com sua interpretação da Constituição.

O Ministro Luis Fux baseou seu voto na situação econômica do país, alertando que a atitude republicana obriga a pensar no futuro: "O Brasil precisa de investimentos, de mercado de trabalho, precisa vencer essa suposta moralidade que há com tutela excessiva das empresas estatais".

A ministra Rosa Weber exigiu em seu voto que, como queria Lewandowski, houvesse uma autorização, mesmo que genérica, para alienação na lei que criou a estatal, ressaltando que já há essa autorização na que criou a Petrobras.

O voto médio do plenário foi, porém, no sentido de que a lei que permitiu às empresas estatais a criação de subsidiárias e controladas implicitamente permite a venda delas.

O ministro Lewandowski ainda tentou influenciar na redação final da decisão, no sentido de que era necessário que a lei que autorizou a criação da empresa pública preveja a possibilidade de desinvestimento, mas foi vencido novamente.

Prevaleceu a tese de que quem pode o mais, pode o menos. A necessidade de lei específica se restringiu à venda do controle acionário de estatais. Mesmo a venda de ações que não implique a perda do controle poderá ser feita sem necessitar aprovação do Congresso.

A ministra Cármen Lúcia também votou pela necessidade de autorização prévia do Congresso apenas para a privatização de uma “empresa-matriz”, sendo dispensado esse modelo para as subsidiárias. O ministro Gilmar Mendes fez uma ressalva importante em seu voto: a venda das ações deve seguir um procedimento licitatório, mas não necessariamente o previsto na Lei das Licitações.

Houve uma concordância generalizada de que o processo licitatório deverá seguir os parâmetros constitucionais de impessoalidade, publicidade e, sobretudo, competitividade entre os interessados, como fez questão de ressaltar o ministro Celso de Mello.

Embora não fosse o julgamento do mérito da venda da TAG, subsidiária de distribuição de gás, esse era o objeto oculto do julgamento, pois sindicalistas não querem que a Petrobras venda suas subsidiárias.


Merval Pereira: Parlamento toma as rédeas

Falta de articulação dos governistas está sendo aproveitada pela oposição, inclusive na Previdência

As dificuldades que o governo vem enfrentando para aprovar seus projetos na Câmara devem-se à inexperiência de seus líderes, e à falta de uma base parlamentar firme. Mas, sobretudo, à decisão dos parlamentares de tomar as rédeas das votações.

Por isso, a tendência de limitar as medidas provisórias e a aprovação em segundo turno, ontem, da emenda constitucional do Orçamento Impositivo para as emendas de bancadas. Essa também é a explicação para as dificuldades que o governo está tendo para aprovar o crédito suplementar e, sobretudo, a reforma da Previdência.

Muitos líderes partidários não acreditam que o projeto de crédito suplementar vá à votação na próxima semana, devido às muitas matérias que precisam ser votadas para limpar a pauta, inclusive 23 vetos.

Um crédito suplementar de R$ 248,9 bilhões, a serem obtidos com a emissão de títulos do Tesouro, tem como objetivo evitar o descumprimento da chamada “regra de ouro” que, incluída na Constituição, impede que o governo contraia dívidas para pagar despesas correntes, como salários e benefícios sociais.

A líder do governo, deputada Joice Hasselmann, garante que já há acordo com os partidos de oposição para limpar a pauta, o que é incoerente com a posição dos oposicionistas, que anunciaram obstrução para impedir a aprovação. Tudo indica que o governo terá que fazer um acordo com a oposição para conseguir esse crédito, mesmo que ela seja minoritária.

A falta de articulação dos governistas no Congresso está sendo aproveitada pela oposição, inclusive na reforma da Previdência. A extensão da reforma aos estados e municípios, por exemplo, é uma reivindicação oposicionista que tem lógica.

Mas essa insistência parece a líderes governistas uma manobra para retirar votos da aprovação, pois muitos deputados federais querem que essa extensão seja feita pelas Assembleias Legislativas.

O mais provável é que essa exigência seja transferida mesmo para estados e municípios. Não afeta o resultado final da economia, mas tira organicidade da reforma, e deixa incompleta uma parte importante da reestruturação financeira do sistema previdenciário.

A relação do presidente Jair Bolsonaro com o Congresso, que parecia ser promissora quando se analisava a tendência conservadora da maioria, na prática nunca foi harmoniosa.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, no Twitter, comemorou a aprovação da PEC do Orçamento Impositivo para emendas de bancada. “Aprovamos em segundo turno o Orçamento Impositivo. Essa proposta otimiza e democratiza o gasto público. Nós vamos ter o poder de aprovar o próximo Orçamento, as políticas públicas do governo, os investimentos. O Parlamento recompõe a sua prerrogativa.”

Essa recomposição das prerrogativas é tão almejada que a Câmara fez uma alteração na PEC, o que obrigará que sejam novamente votadas, em dois turnos, no Senado. Foi aprovado um destaque que retirou da proposta a exclusividade de iniciativa do presidente da República na apresentação de projeto de lei para definição dos detalhes para a repartição com estados e municípios, de receitas obtidas a partir de leilões do excedente da cessão onerosa do petróleo do pré-sal.

Em movimentos sucessivos para se reaproximar do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, Bolsonaro chamou-o de “meu irmão”. Mudou também de tom em relação ao Congresso, admitindo que precisa de sua ajuda para “mudar o destino do Brasil”.

Segundo o presidente, o povo e a “nova classe política” que saiu das urnas e “tomou a Câmara dos Deputados e o Senado Federal” podem permitir essa mudança, pois o Congresso hoje tem um “espírito diferente, se voltando realmente para o interesse popular.”

Ao que tudo indica, ele está entendendo que, sem o Congresso, não governará, como já dizia o ex-deputado Ulysses Guimarães: “Presidente da República sem o Congresso não governa. Não governa no Brasil nem em nenhuma democracia do mundo. Governo solidário, integrado, condominial, é o que ordena a Constituição. Ela repudia a ingovernabilidade do governo solitário, em que o destino de milhões de seres humanos depende de apenas uma cabeça. O que o presidente da República faz, o Congresso pode desfazer”.


Merval Pereira: O fantasma da facada

Bolsonaro e o filho Carlos podem estar sofrendo de Transtorno de Estresse Pós-Traumático

Muitos estão convencidos de que a facada de Adélio Bispo foi a verdadeira razão da vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018. Além do impacto emocional no eleitorado, permitiu que ele não se expusesse nos debates.

É uma maneira de menosprezar a liderança intuitiva de um político populista que estava no lugar certo, na hora certa, para galvanizar o sentimento majoritário dos brasileiros. Mas a facada pode, sim, ter tido um papel fundamental do ponto de vista psicológico, nas futuras atuações do presidente eleito.

Na entrevista à revista “Veja” desta semana, Bolsonaro chorou ao relembrar a facada, e está convencido de que por trás de Adélio havia uma grande conspiração.

O presidente contou também que chora durante a noite, angustiado pela situação do país. Nesta mesma semana, havia comparecido ao programa de Danilo Gentili e abriu a camisa para mostrar a enorme cicatriz decorrente do atentado que sofreu.

O fantasma do drama vivido naqueles dias não abandona o presidente nem seus filhos. Carlos, o filho 02, o mais ligado ao pai depois de terem ficado anos sem se falar, é também o mais emotivo. Seu depoimento a Leda Nagle sobre o atentado e os dias subsequentes são reveladores do sentimento que domina a família até hoje.

Lutando para não chorar, ele descreveu o pavor que viveu ao lado do pai. Primeiro, no momento da facada, levando-o para o hospital tentando que não desfalecesse. Depois, conta que viu o coração do pai parar e ser ressuscitado duas vezes. Viu suas vísceras serem retiradas do corpo. E desabafa: “Ainda tem fdp que diz que a facada foi fake”.

Bolsonaro e o filho Carlos podem estar sofrendo de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), que ocorre em pessoas que vivem situações com risco de morrer ou presenciam situações em que outros sofrem este risco ou mesmo morrem. O tema foi aventado pela primeira vez no blog do Saboya, nos primeiros meses do governo, quando começaram as crises internas.

Há médicos que descrevem como decorrência do TEPT transtornos de ansiedade, de humor, anorexia nervosa, paranoia, narcisismo. Antonio Egidio Nardi, professor titular do Instituto de Psiquiatrias da UFRJ, diz que o TEPT é “um sofrimento psíquico muito comum em nossa sociedade violenta e, às vezes, menosprezado ou desconhecido, o que retarda o tratamento e prejudica muito a qualidade de vida das pessoas que sofrem”.

A meu pedido, o professor Nardi falou do transtorno de uma forma técnica, e não do caso específico de Bolsonaro “que nem conheço e, portanto, nunca examinei”. Diz ele que nos Estados Unidos, a taxa ao longo da vida para TEPT é de 8,7%. Ocorre mais em veteranos de guerra e outras profissões que aumentem o risco de exposição (policiais, bombeiros, socorristas). Nardi diz que muito dos estudos de TEPT são realizados em veteranos de guerra, “mas hoje, com a violência urbana, os quadros clínicos são rotina nos consultórios de psiquiatras e psicólogos”.

O TEPT pode ocorrer em qualquer idade após a exposição a episódio concreto ou ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual. “A pessoa começa a vivenciar diretamente o evento traumático em situações diversas através de lembranças intrusivas angustiantes, recorrentes e involuntárias do evento traumático, que pode surgir em qualquer hora do dia e trazer grande sofrimento e desespero”.

Ele exemplifica que ocorrem pesadelos nos quais o conteúdo e/ou o sentimento estão relacionados ao evento traumático. “O indivíduo começa a evitar situações que lembrem o evento, pessoas, lugares, conversas, atividades, objetos, situações que despertem recordações, pensamentos ou sentimentos angustiantes acerca de ou associados ao evento traumático. A ênfase é nas lembranças recorrentes do evento, as quais normalmente incluem componentes emocionais e físicos”.

O professor Antonio Nardi diz que os sintomas mais comuns de revivência são pesadelos que repetem o evento em si. “O tratamento envolve psicoterapia e uso de medicamento. O prognóstico é muito bom”. É bom ressaltar que o transtorno se reflete no campo psíquico, podendo ter efeitos físicos, mas não tem interferência no pensamento cognitivo e ideológico do paciente.