Merval Pereira
Merval Pereira: Campeão de tiro no pé
Em vez de desacreditar o Inpe, o governo deveria trazê-lo como parceiro de uma campanha pela redução do desmatamento
O presidente Bolsonaro, que está ganhando medalha de ouro no campeonato mundial de tiro no pé, deu ontem mais dois, em temas de grande sensibilidade internacional. Voltou a acusar o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) de estar divulgando dados falsos sobre o desmatamento da Amazônia, talvez com má-fé, e vai ter que voltar para a Funai a demarcação das terras indígenas, por uma decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF).
É impressionante que o presidente não se importe com a repercussão para a imagem do país em questões envolvendo índios e desmatamento. Bolsonaro reconheceu que sua fama no exterior “é péssima”, mas a atribui a “rótulos” que colocam nele.
Não entende, infelizmente, que ajuda a fortalecer esses “rótulos” com atitudes como a de cancelar em cima da hora a audiência com chanceler francês Jean-Yves Le Drian.
O que já era uma desfeita diplomática grave piorou ontem quando, num dos seus rompantes, revelou a verdadeira razão do cancelamento. “O que ele foi fazer se encontrando com ONGs?”, perguntou Bolsonaro, confirmando nota publicada na coluna do Ancelmo de terça-feira, que dava conta de um encontro no domingo do ministro francês com ambientalistas.
Com relação ao Inpe, ele ontem cometeu o mesmo erro anterior, quando disse para correspondentes estrangeiros que os números eram falsos. O Inpe é um órgão do governo brasileiro reconhecido internacionalmente, que deveria ser aproveitado para ajudar a imagem do país no exterior.
Em vez de desacreditá-lo, o governo deveria trazê-lo como parceiro de uma campanha pela redução do desmatamento. Se, porém, como se desconfia aqui e no exterior, a política de seu governo é afrouxar os controles ambientais para favorecer o agronegócio, deveria se munir de dados científicos para rebater os do Inpe, e não ficar no achômetro.
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, estimou, sem revelar em que se baseava, que o número do desmatamento, se utilizada a técnica correta, será cerca de 30% menor. Ora, uma redução nesse nível é realmente um dado importante nessa discussão, mas não pode ser “chutado”.
Seria preciso que o ministro estivesse acompanhado de um técnico respeitado, que explicasse a nova metodologia científica, e a contrapusesse aos números do Inpe.
Tendo essa base científica, deveria ter chamado os correspondentes estrangeiros para comprovarem que seu comentário no café da manhã não era mera especulação irresponsável.
Essa insistência de Bolsonaro de impor seus pontos de vista, sem aceitar decisões contrárias, foi ressaltada na reunião de ontem no Supremo Tribunal Federal pelo decano Celso de Melo, na sessão em que o plenário confirmou decisão, tomada liminarmente pelo ministro Luís Roberto Barroso, de retornar a demarcação de terras para a Funai.
O Congresso já havia vetado a medida provisória de Bolsonaro que transferia essa demarcação para o Ministério da Agricultura. O presidente insistiu com nova medida provisória sobre o mesmo tema, o que é proibido pela Constituição. Por isso, foi dada liminar no Supremo, ontem confirmada por unanimidade pelo plenário.
O ministro Celso de Mello, em seu voto, chamou a atenção para o fato de que não aceitar os limites impostos ao Executivo revela “uma inadmissível e perigosa transgressão ao princípio fundamental da separação dos poderes”.
Também alertou para o perigo de um “processo de quase imperceptível erosão” das liberdades da sociedade civil. No mesmo dia em que foi derrotado no STF, Bolsonaro lamentou na sua live diária nas redes sociais que a Justiça está “se metendo em tudo”.
Citou decisões recentes da Justiça revogando propostas como a retirada de radares das rodovias federais e a demissão de servidores comissionados. “Está uma briga, porque a Justiça, em cima da gente (…), quer que a gente mantenha radares multando você. É a Justiça, lamentavelmente, se metendo em tudo”.
Quem considera que Bolsonaro é um Jânio no mundo digital liga o alerta, pois acusar “forças ocultas” que o impedem de governar é repetir em farsa uma tragédia anunciada.
Merval Pereira: Presidente em transe
Bolsonaro está levando o governo brasileiro como se estivesse em uma mesa de botequim, ou no Twitter, ou em outro meio digital
Ter um presidente sem superego, sem limites e controles, não é fácil. É um teste para nossa democracia, que tem que impor os limites. Nem se fale na insensibilidade, na falta de respeito com os mortos de um período negro de nossa história.
Ou na atitude pouco civilizada de justificar o massacre de 57 presos da penitenciária de Altamira (PA), numa briga de gangues, com os crimes que cometeram. Perguntado sobre sua reação ao massacre, o presidente respondeu: “Pergunte às vítimas deles o que acham”.
Ao dar uma explicação, que não lhe foi pedida, com aparente sentimento de raiva, sobre a morte do pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, o presidente Bolsonaro mostrou que pode ser irresponsável mesmo fora do palanque.
Primeiro sugeriu, e depois afirmou, que ele foi “justiçado” por seu próprio grupo guerrilheiro. Documentos oficiais do governo brasileiro, entre eles o relatório da Comissão da Verdade e um atestado de óbito dado pelo Ministério dos Direitos Humanos de seu governo, indicam que Fernando Santa Cruz, então com 26 anos, militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), foi preso no Rio e levado para uma instituição militar.
É dado como desaparecido até hoje, e há versões de que seu corpo possa ter sido incinerado. Bolsonaro, no dia seguinte, voltou ao tema, e confidenciou que sua fala “foi coisa minha, coisa pessoal”, provavelmente para se livrar de ter que explicar ao Supremo Tribunal Federal (STF) onde obteve tal informação.
O fato é que Bolsonaro está levando o governo brasileiro como se estivesse em uma mesa de botequim, ou no Twitter, ou em outro meio digital desses onde cada um dá seu pitaco sem precisar provar nada, de usar a lógica, o bom senso.
Geralmente entusiasmados pela bebida, ou pelo anonimato, essas pessoas deixam de lado seu superego, e falam sobre qualquer assunto, dão palpite sobre tudo. Geralmente com ódio, o mesmo ódio que estava embutido na provocação inicial.
O presidente Bolsonaro tem estado em transe nos últimos dias. Acusa, repete a acusação, ataca pessoalmente aqueles que considera inimigos, joga pressão em cima das instituições e cria situações embaraçosas. Vergonha alheia é o que os cidadãos minimamente civilizados devem sentir pelo seu presidente.
Mas o pior de tudo é que essa vergonha nos atinge como cidadãos, como país. Coloca-nos à parte da comunidade internacional, nos iguala a países onde não existe democracia, onde é normal o nepotismo, o achincalhe é uma arma política. Filipinas de Duterte é exemplar desse estado de coisas.
Mas também no país mais democrático do mundo, os Estados Unidos, sob a administração de Donald Trump, a grosseria verbal no Twitter passou a ser uma estratégia de aproximar-se do seu eleitorado e tentar desmoralizar as instituições que impõem limites ao Executivo. E ainda teremos o primeiro-ministro da Inglaterra, Boris Johnson.
Foi-se o tempo em que tivemos líderes de direita como Ronald Reagan ou Margaret Thatcher. É um fenômeno da atualidade que está levando o mundo para um caminho muito perigoso, com o descrédito das instituições e tentativa de aumento de poder pessoal dos mandatários. Como na Rússia de Putin, outro autocrata por quem Bolsonaro diz ter “profundo respeito”.
Bolsonaro cria um ambiente que não combina com uma corrida para novos caminhos que sua política econômica indica. Como a correta política de desburocratização, que ontem deu mais um passo importante com as normas regulamentadoras e de consolidação da legislação trabalhista.
As reformas estruturais, fundamentais para um recomeço de crescimento econômico, não podem ficar ameaçadas por arroubos personalistas de quem continua no palanque, obcecado por demolir.
Merval Pereira: Coincidências de datas
Para variar, a semana foi de polêmicas para Bolsonaro, que, entre outras coisas, comentou que o jornalista Glenn Greenwald podia “pegar uma cana aqui mesmo”.
Referia-se à publicação, pelo site Intercept Brasil, das conversas hackeadas entre o então juiz Sergio Moro e o coordenador dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol.
Não se trata aqui de concordar com a atitude do site, que, ao divulgar os diálogos, o faz a conta-gotas, numa edição que busca interpretar as conversas e fazer ilações, sem colocá-los no contexto em que foram realizados. Nem com o viés claramente tendencioso em busca da anulação de processos para ajudar a libertar Lula.
Trata-se de defender a liberdade de expressão, pura e simplesmente. Se Glenn Greenwald não participou da operação de hackeamento, nem a encomendou, não há como “pegar uma cana”. Está protegido, como todos os jornalistas brasileiros, pela Constituição.
Mesmo que tenha pagado pela cessão do material, terá cometido no máximo um ato antiético. No entanto, a ligação política que surgiu com a revelação, confirmada por ela, de que Manuela D’Ávila, candidata a vice pelo PCdoB em 2018 na chapa do petista Fernando Haddad, foi a intermediária entre o hackeador e o Intercept Brasil reforça a hipótese de que a publicação desse material tem objetivos políticos.
E há coincidências que não podem ser evitadas. O hacker Walter Delgatti Neto diz que procurou Manuela D’Ávila no Dia das Mães, 12 de maio. No mesmo dia, Glenn Greenwald entrou em contato com ele pelo Telegram.
Nove dias depois, a 21 de maio, Glenn Greenwald esteve visitando Lula na sede da Polícia Federal em Curitiba, para fazer uma entrevista com ele, que havia sido autorizada pela Justiça no início do ano.
É certo, portanto, que Greenwald já tinha o material quando conversou com Lula na cadeia. No dia 9 de junho, 19 dias depois da entrevista, o Intercept Brasil começa a divulgar as conversas hackeadas.
Entre o primeiro dia em que o hacker fez o contato com Glenn Greenwald e a publicação passaram-se exatos 29 dias, ou quatro semanas. Glenn Greenwald, ao publicar os diálogos, declarou: “Ficamos muitas semanas planejando como proteger a nós e nossa fonte contra os riscos físicos, riscos legais, riscos políticos, riscos que vão tentar sujar a nossa reputação.”
No fim do mês de abril, no dia 27, uma entrevista com Lula foi publicada pela “Folha de S.Paulo” e o “El País” e, como se fosse premonitório, o ex-presidente garantiu ter (...) “obsessão de desmascarar o Moro, de desmascarar o Dallagnol e a sua turma”.
Uma pergunta que não quer calar: será que nas conversas de Dallagnol com outros procuradores, ou mesmo com Sergio Moro, não havia um espaço para troca de informações sobre outros casos da Lava-Jato que não os relacionados ao caso de Lula? Delgatti Neto disse também que entrou nas conversas sobre a Operação Greenfield em Brasília, que apura desvios em fundos de pensão. Pelo seu relato, não encontrou nada de ilegal nas conversas, por isso não se interessou. Que estelionatário mais preparado esse, que sabe onde há supostas irregularidades processuais, e sabe onde não há.
Tiro na cabeça
Como era óbvio, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou-se da tragédia acontecida no Rio, onde um morador de rua, provavelmente drogado, matou duas pessoas e feriu várias outras com uma faca, para defender sua política de armamento.
Disse o presidente: (...) “Agora, não tinha ninguém armado para dar um tiro nele, é impressionante. Mas tudo bem. Estava drogado o cara? Tá certo. Viciado em drogas.”
Outro que se aproveitou da situação para defender sua “política de segurança” foi o governador do Rio, Wilson Witzel. “Se eu estivesse no lugar do policial, teria dado um tiro na cabeça dele, para evitar imediatamente ”.
Bolsonaro procurou ressaltar que se houvesse pedestre armado com um revólver, teria resolvido a situação. Ou mais pessoas poderiam ter morrido. Certamente, nem todo mundo tem preparo e o sangue-frio do PM, que atirou na perna do morador de rua surtado para imobilizá-lo.
O governador Witzel admitiu, relutantemente, que o policial agiu com correção e sabedoria. Mas, depois de dizer que, se fosse ele, atirava para matar, colocou ressalvas: (...) “Parabéns à Polícia Militar, foi uma ação muito profissional, minimizando ao máximo o número de vítimas. Qualquer tipo de equívoco, vamos corrigir.”
Merval Pereira: Relação pessoal
Nos últimos dias tivemos várias demonstrações do governo de que não mede esforços para ter o apoio dos Estados Unidos
Nos últimos dias tivemos várias demonstrações do governo brasileiro de que não mede esforços para ter o apoio dos Estados Unidos. Desde o caso dos navios iranianos, que a Petrobras não queria abastecer com receio de sanções americanas, até a nomeação esdrúxula do filho de Bolsonaro para a embaixada dos Estados Unidos. A questão não é legal, é moral, é ética, de imagem do país.
Se havia alguma dúvida de que o presidente aposta na aproximação pessoal com Trump, através de seu filho Eduardo, o próprio Bolsonaro revelou candidamente o que está por trás da nomeação: pretende que empresas americanas venham explorar minérios nas reservas indígenas.
Surpreendente para quem vive desconfiando de que a intenção das ONGs é roubar nossas riquezas, ou transformar a Amazônia em território internacional.
De qualquer modo, a história mostra que não existe essa “relação pessoal” na política externa dos países. A Academia Brasileira de Letras (ABL) encerrou na quinta-feira um ciclo de palestras sobre o legado do Barão do Rio Branco para a política externa brasileira, e é interessante entender como regredimos ao tempo de Rio Branco, quando o mundo era outro e o país necessitava mais do que nunca se tornar um aliado confiável dos Estados Unidos, que começava a tomar a dianteira como potência hegemônica.
O embaixador Gelson Fonseca fez um balanço da nossa política externa a partir dos parâmetros estabelecidos por Rio Branco. Àquela altura, os EUA queriam “organizar” as Américas, e uma das maneiras era estabelecer meios de resolver os problemas entre os países e seu bom comportamento financeiro, criando um órgão com sede em Washington que bem pode ser a origem do Fundo Monetário Internacional.
Na Conferência de Haia, o tabuleiro é o das potências europeias, que partem da ideia de que algumas nações, por razões de poder, devem ter mais influência no processo decisório do que outras. Os EUA tinham a garantia de que entrariam neste mundo, sem problemas, ressaltou Gelson Fonseca. Nós tínhamos a ilusão de que podíamos entrar. Os dois momentos difíceis foram quando se discutiu a composição do Tribunal de Presas e a do Tribunal Arbitral.
As propostas endossadas pelos EUA eram um tanto humilhantes para nós e, a despeito de que nenhum dos dois tribunais foi para a frente, fomos obrigados a sair do jogo.
A mesma coisa aconteceu em 1945, como consequência da Segunda Guerra Mundial, quando da criação da Organização das Nações Unidas (ONU). O diplomata Eugênio Garcia escreveu um trabalho sobre como o Brasil quase fez parte do Conselho de Segurança da ONU, meta que tentamos alcançar até hoje, sem perspectivas de vitória.
O Presidente Franklin Roosevelt acalentava a ideia de implantar um sistema chamado por ele de “tutela dos poderosos”, a cargo dos Quatro Policiais: Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e China, aos quais depois se somou a França, para formarem o Conselho de Segurança da ONU.
Mesmo ausente de Dumbarton Oaks, o Brasil, devido ao apoio de Roosevelt, foi o único país a ser cogitado naquela Conferência como possível detentor de uma sexta cadeira permanente no Conselho. A Conferência de Yalta aconteceu quando a conjuntura já havia em parte mudado, inclusive, no processo de negociação, com a morte de Roosevelt. Ficara para trás a importância estratégica que o Brasil teve na luta contra o Eixo (bases aéreas no Nordeste) ou na contenção da Argentina “antiamericana”.
Quando Truman assume, não era mais imperativo cultivar a amizade de Vargas ou tolerar abusos de seu regime personalista. Quando mais o governo brasileiro ansiava pelo reconhecimento de sua lealdade, colhendo os frutos da relação especial que pensava manter, os EUA já não privilegiavam o Brasil como antes.
O embaixador Marcos Azambuja, outro palestrante no ciclo da ABL, ressaltou que o atual governo adota uma conduta que nos afasta, de forma radical, do espírito mesmo das posições que expressamos ao longo de nossa história. Para Azambuja, não parecemos estar mais, como costumávamos, no âmago do grupo dos formadores do consenso internacional sobre as grandes questões da atualidade: meio ambiente, desarmamento, direitos humanos, problemática do Oriente Médio e várias outras.
Merval Pereira: “Sigam o dinheiro”
Não parece provável que um que um estelionatário seja movido apenas por movido apenas por ‘fazer justiça, trazendo a verdade para o povo’
A investigação sobre os hackeamentos dos celulares de centenas de autoridades brasileiras parece estar chegando a uma solução, embora a Polícia Federal não creia que Walter Delgatti Neto tenha entregue o material resultante da invasão ao site Intercept Brasil apenas por “amor à causa”, pois não tem nenhuma, aparentemente.
Tudo indica que sua linha de defesa é transformar-se da noite para o dia em um whistleblower, um denunciante de irregularidades que alerta a sociedade com a divulgação de documentos sigilosos.
Como Edward Snowden, que revelou documentos sobre o sistema de vigilância global dos Estados Unidos, que incluiu a então presidente Dilma Rousseff. Ou Chelsea Manning, que divulgou, através do Wikileaks, documentos sobre as guerras do Iraque e do Afeganistão. Assim como diversos outros casos.
O caso Watergate é um dos mais famosos. O informante dos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do Washington Post, era conhecido como Deep Throat. Uma fonte realmente anônima para o grande público, que orientava as investigações jornalísticas, mas não dava documentos. Só pistas quentes.
A revelação da sua identidade só veio quase 30 anos depois dos fatos, que levaram à renúncia de Nixon em 1974. E por decisão do próprio informante, Mark Felt, na época dos acontecimentos vice-diretor da CIA. Só depois que o Deep Throat se revelou é que Woodward e Bernstein revelaram mais detalhes dos acontecimentos.
O chamado Caso Watergate ficou célebre como jornalismo investigativo, e virou livro e filme, dirigido por J Pakula, com Robert Redford e Dustin Hoffman nos papéis dos repórteres. Foi no filme que surgiu a frase que se tornou famosa: “Sigam o dinheiro”, nunca dita por Felt, mas criada pelo diretor.
Passou a ser o símbolo das investigações de crimes, especialmente os de corrupção política. Chegamos agora a esse ponto de seguir o dinheiro. Ao revelar que Manuela Dávila, a ex-candidata a vice do petista Fernando Haddad na eleição de 2018, foi a intermediária entre ele e o editor do The Intercept Brasil Glenn Greenwald, o hacker Walter Delgatti colocou-a na chamada sinuca de bico.
Ter intermediado a entrega do produto de um crime para um jornalista pode implicar cumplicidade, na visão de alguns. Há, porém, quem considere que a ex-deputada apenas agiu como uma pessoa que informa a um jornalista sobre um fato de que teve conhecimento.
O problema muda de figura no caso de ter havido um pagamento nessa cadeia de informantes. Não parece provável que um estelionatário seja movido apenas por “fazer justiça, trazendo a verdade para o povo”, conforme depoimento de Glenn Greenwald sobre seus contatos com o hacker, que ele continua sem confirmar ser o preso na operação Spoofing.
Se o grupo atuou sob encomenda de alguém, quem contratou é cúmplice, co-autor do crime. Se o Intercept Brasil não participou do pagamento, ou, sabendo dele, mesmo assim publicou o material, também não pode ser considerado cúmplice. Apenas terá a sanção moral pelo ato.
Se Manuela Dávila participou da negociação para a compra do material, poderá ser acusada de cumplicidade. E se um partido político foi o negociador da compra, será possível enquadra-lo criminalmente, mas duvidoso o resultado.
Um caso assim aconteceu durante a campanha presidencial de 2006, quando um grupo de petistas foi flagrado comprando, em dólar, um dossiê que supostamente implicaria o candidato tucano José Serra em falcatruas no ministério da Saúde.
Serra acabou vencendo a eleição para governador, derrotando Aluizio Mercadante, e Lula, com o peso do mensalão recentemente descoberto, acabou indo para o segundo turno contra Alckmin, a quem derrotou com facilidade. Nenhum petista graúdo foi punido.
No caso presente, se Walter Delgatti insistir nessa versão fantasiosa, a Polícia Federal poderá usar seu Telegram para confronta-lo com as conversas que teve com Manuela Dávila e Glen Greenwald.
Merval Pereira: Descaso institucional
Nem Executivo, nem Legislativo, nem Judiciário têm normas de segurança seguidas por seus líderes, mostram os fatos
Da mesma maneira que o ministro Sergio Moro e o coordenador dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol, se recusam a dar credibilidade aos diálogos que vêm sendo divulgados pelo Intercept Brasil, os controladores do site também se negam a confirmar que sejam os hackers presos a fonte original do material publicado.
Mesmo depois de Walter Delgatti Neto, um dos presos, ter admitido que deu ao diretor do site, Glenn Greeenwald, acesso ao material hackeado. Delgatti acrescentou que passou os dados sem cobrar ou receber vantagem financeira em troca. Não parece ser o perfil de uma pessoa envolvida em estelionato e falsificação de documentos.
Os três têm a mesma motivação: não querem reconhecer possíveis delitos. Todos dependem de interpretações jurídicas para validar seus atos, como já largamente analisados. Os hackers não escapam de uma condenação, mas dizer não ter vendido o material é uma tentativa de dar um ar político à atuação. O que deve ser facilmente desmontado pelas investigações.
Os crimes imputados aos hackers são de invasão de dispositivo eletrônico e interceptação de comunicação. O crime foi consumado quando eles invadiram os telefones e captaram as mensagens.
O que impressiona é a amplitude da ação criminosa, a revelar um completo descaso de nossas autoridades com a segurança institucional. Foram hackeados o chefe do Executivo, Bolsonaro, e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Também ministros do Supremo, do STJ, e diversas autoridades. Além de destacar brechas no sistema de segurança das telefônicas, cujas listas de números podem ser compradas no mercado paralelo por estelionatários.
Os fatos demonstram também que nem Executivo, nem Legislativo, nem Judiciário têm normas de segurança seguidas por seus líderes. O presidente Bolsonaro diz que só usa o celular pessoal para comunicações não oficiais, esquecendo-se de que qualquer mensagem ou fala do presidente tem caráter oficial.
O uso indiscriminado das redes sociais para propaganda política é tão importante quanto uma nota oficial. E já deu muito problema político por permitir que seu filho Carlos usasse sua senha para mandar recados como se fossem de seu pai.
A utilização do Twitter é um hábito que Bolsonaro copia do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, seu grande ídolo. Nos Estados Unidos, a utilização de meios particulares para atividade oficial já deu muita dor de cabeça a Hillary Clinton, que, quando secretária de Estado no governo Obama, dispensou o e-mail oficial para usar o seu privado, mesmo para assuntos de Estado.
O caso provocou o temor de que informações sigilosas do Departamento de Estado circulassem em redes de caráter privado, ou estivessem expostas a ataques de hackers. Durante as investigações, que ocorreram na campanha presidencial, prejudicando-a como candidata, o inspetor-geral do Departamento de Estado afirmou que ela não pediu permissão para adotar um servidor privado. Hillary sofreu com o hackeamento de suas mensagens, alegadamente feito por russos para beneficiar Trump.
Voltando ao nosso caso de hackeamento, a informação de que as mensagens seriam destruídas, anunciada pelo presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, acabou desmentida pelo Ministério da Justiça. Destruir provas é crime, só um juiz pode decidir sobre isso.
Mas se o juiz mandar desentranhá-la dos autos, os hackers podem ser absolvidos por falta de prova. O juiz tem que se basear no que está no processo no momento em que for dar a sentença. Por isso, se diz que “o que não está nos autos, não está no mundo”. Se o juiz usar as provas na sentença, ele não pode destruí-las depois, porque elas têm que ser avaliadas pelas instâncias superiores.
Merval Pereira: Sócio oculto
Resta saber quem está por trás do hackeamento de mais de mil autoridades dos três Poderes, pessoas ligadas a elas, e jornalistas
Com a confissão e provável delação premiada de Walter Delgatti Neto, líder dos presos na Operação Spoofing, resta saber quem está por trás do hackeamento de mais de mil autoridades dos três poderes, pessoas ligadas a elas, e jornalistas. O sócio oculto da ação criminosa.
Se alguém pagou aos hackers pelo serviço, é preciso localizá-lo e saber qual sua intenção. Se essa pessoa repassou as informações sobre a Lava-Jato para o site Intercept Brasil, os editores não têm nada a ver com os crimes cometidos, e cumpriram sua função jornalística protegida pela Constituição.
Mesmo que alguns juristas entendam que, como esse tipo de informação só pode ser conseguido com autorização judicial, o órgão de imprensa deveria desconfiar que a origem era ilegal.
Se tiverem pago pelas informações, há uma questão ética e outra jurídica. A ética, não parece estar ligada a nenhum crime. Mesmo assim, há uma dúvida sobre o momento do pagamento: antes do hackeamento, ou depois de o material obtido?
Se antes, podem ser considerados cúmplices. Também o período em que pagaram é importante na definição. Se pagaram por um pacote de informações depois de o crime ter sido praticado pelos hackers, e não receberam nenhuma informação adicional, não há como acusá-los.
Como o crime continuou a ser praticado até a véspera da prisão, com o celular do ministro Paulo Guedes sendo invadido, se o Intercept pagou por novas informações nesse período, pode ser considerado cúmplice.
A única mulher presa, Suelen de Oliveira, transaciona com bitcoins, e a Polícia Federal suspeita que parte do pagamento possa ter sido feita em moedas virtuais.
O editor do Intercept Brasil Glenn Greenwald comparou-se ontem a Julian Assange, fundador do site WikiLeaks, atualmente preso em Londres, depois de viver sete anos exilado na embaixada do Equador na capital inglesa.
Assange é o fundador do site Wikileaks, que publicou documentos sigilosos sobre a atuação dos Estados Unidos nas guerras o Iraque e Afeganistão. Vazados pelo soldado Bradley Manning, que hoje se chama Chelsea depois de uma operação de troca de sexo, os documentos foram publicados em vários grandes jornais do mundo.
Chelsea foi condenada por divulgar documentos de Estado sigilosos, mas teve a pena comutada em 2017 pelo presidente Obama.
Outro caso famoso é o de Edward Snowden, analista de sistemas que trabalhou na CIA e na NSA, e divulgou no Guardian, de Londres, e no Washington Post, dos Estados Unidos, documentos detalhando programas do sistema de vigilância global de comunicações do governo americano.
Foi acusado de roubo de propriedade do governo, comunicação não autorizada de informações de defesa nacional e comunicação intencional de informações classificadas como de inteligência para pessoa não autorizada.
Houve também os Pentagon Papers, documento sigiloso sobre a atuação militar dos Estados Unidos na guerra do Vietnã tornado público por Daniel Ellsberg, fucionário do Pentágono, primeiro pelo New York Times e em seguida pelo Washington Post.
O então presidente Richard Nixon tentou impedir a publicação dos segredos de Estado, mas a Suprema Corte considerou legítima a atuação dos jornais. Mais recentemente, durante as primárias do Partido Democrata em 2016, o Wikileaks divulgou emails da candidata Hillary Clinton.
Os democratas e técnicos em informática denunciaram que órgãos de inteligência da Rússia hackearam os emails e os entregaram ao WikiLeaks, o que é negado por Julian Assange.
Como se vê, em nenhum dos casos mais famosos os jornais foram punidos, e quando o governo tentou barrar a divulgação, prevaleceu a liberdade de imprensa e de informação. Mas todos os casos, com exceção do de Hillary Clinton, foram protagonizados por indivíduos que acessaram documentos oficiais para denunciar o que consideravam práticas indefensáveis dos governos.
São os “wistleblowers” (literalmente “sopradores de apito”, os que alertam a sociedade). Os presos em São Paulo e seus antecedentes de estelionato e fraudes cibernéticas não parecem ser “whistleblowers”. Não foram documentos oficiais divulgados, mas conversas privadas através de invasão de privacidade de cerca de mil autoridades e jornalistas.
Merval Pereira: palavras ao vento
A falta de cuidados com as palavras pode trazer grandes prejuízos políticos, como mostram precedentes
O presidente Jair Bolsonaro vai levar muito tempo para se livrar do lapsus linguae que cometeu chamando os nordestinos de “paraíbas”, numa conversa com microfone aberto sem que soubesse.
As distrações na linguagem falada podem revelar preconceitos arraigados, ou serem simplesmente equívocos desastrados. Sujeitas a manipulações políticas. Ontem, na sua primeira viagem ao Nordeste, Bolsonaro teve que se explicar diversas vezes, e o fez com criatividade.
Dizer que “somos todos paraíbas” foi uma boa saída. Já usar um chapéu de boiadeiro foi repetir um gesto político tradicional. No Rio, onde Bolsonaro fez sua vida política, embora seja paulista, chamar nordestinos de “paraíbas” tem um sentido pejorativo histórico, devido às migrações nordestinas para a Região Sudeste do país, em busca de emprego e fugindo da seca.
Em São Paulo, o menosprezo vai para os “baianos”, pela mesma razão. Bolsonaro também falou “somos todos baianos” ontem, bem orientado para que a tentativa de correção de seu lapso de linguagem tivesse alcance nacional.
O general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, sofreu muito com esse tipo de erro durante a campanha, ou revelando desejos recônditos como acabar com o décimo terceiro salário, ou tratando de temas tóxicos, como torturas ou autogolpes.
No poder, o general Mourão passou a ser cuidadoso com as palavras, refletindo uma posição mais moderada que o próprio presidente Bolsonaro, que, incentivado pelo filho Carlos, considerou parte de uma campanha para colocá-lo como alternativa viável.
Carlos chegou a dizer que havia gente no entorno do pai que queria sua morte. Bolsonaro ecoou esse sentimento paranoico ao perguntar a Mourão por telefone, quando estava internado devido à tentativa de assassinato: “Quer me matar?”.
Recentemente, deu parabéns a Mourão por ter conseguido ficar sem dar entrevistas por uma semana. Como tem mandato pelo voto, tanto quanto Bolsonaro, Mourão é indemissível, ao contrário de outros militares que trabalhavam no governo e foram defenestrados, geralmente vítimas de intrigas palacianas da família do presidente.
Ontem, os dois chegaram abraçados para uma cerimônia no Palácio do Planalto, com Bolsonaro dizendo que estavam “namorando”. Outra brincadeira frequente do presidente, que distribui beijos e abraços “héteros”.
A falta de cuidados com as palavras pode trazer grandes prejuízos políticos, como mostram precedentes históricos já relatados aqui na coluna. Desde o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que tachou de “vagabundos” quem se aposentava cedo, e acabou marcado como tendo classificado todos os aposentados de vagabundos.
Mas o mais famoso aconteceu em 1945, quando o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato a presidente pela UDN com larga vantagem sobre o candidato getulista, o general Eurico Dutra, fez um duro discurso contra Getúlio.
Disse que não precisava dos votos “desta malta de desocupados que apoia o ditador”. Segundo relato da historiadora Alzira Alves de Abreu, do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, o getulista Hugo Borghi descobriu no dicionário que “malta”, além de significar “bando ou súcia”, o que já era ofensivo, também denominava trabalhadores que levavam suas marmitas nas linhas férreas, o que atingia mais diretamente os eleitores pobres.
Daí a dizer que o brigadeiro não queria os votos dos “marmiteiros”, menosprezando os pobres, foi um passo, e o general Dutra venceu uma eleição perdida. No caso atual, como o lapsus linguae foi cometido fora da campanha eleitoral, Bolsonaro ainda terá muito tempo e tinta na caneta para se aproximar dos “paraíbas” e “baianos”.
Já anunciou o décimo terceiro para o Bolsa Família, e estuda um abono para os que o recebem. Uma tentativa de retomar um reduto eleitoral petista, prejudicada pela fala revelada.
Merval Pereira: Lições democráticas
Em tempos de democracia relativa e radicalização de posições políticas faz bem à saúde institucional do país a publicação de um livro como “Transições democráticas — Ensinamentos dos líderes políticos”
Em tempos de democracia relativa e radicalização de posições políticas, faz bem à saúde institucional do país a publicação de um livro como “Transições democráticas —Ensinamentos dos líderes políticos”, seleção de entrevistas e análises de nove dirigentes de seis países, responsáveis pela consolidação da democracia em lugares chave na geopolítica internacional como Brasil, Chile, México, Polônia, Espanha e África do Sul.
O livro originalmente foi publicado em inglês pela International IDEA, instituição sediada na Suécia dedicada ao fortalecimento da democracia. A edição em português, da editora Contexto, teve o apoio da Fundação Fernando Henrique Cardoso. Os autores, Abraham F. Lowenthal, professor emérito de Relações Internacionais da Universidade do Sul da Califórnia, e Sérgio Bittar, economista e político chileno, identificaram qualidades comuns nesses líderes políticos que enfrentaram ambientes hostis diversos para consolidar a democracia.
Desde a preferência natural pela transformação “pacífica e gradual”, em vez de violenta e convulsiva, até a capacidade de articular acordos, inclusive com organizações da sociedade, além de partidos políticos, e não apenas os seus aliados. Alguns arriscaram a própria vida, todos revelaram enorme persistência diante dos problemas, e muitos, embora de caráter reflexivo e analítico, não hesitaram em tomar medidas no momento certo.
Os autores ressaltam que a maioria cercou-se de aliados que, além de competentes, tinham valores políticos semelhantes e ajudaram na formação de consensos e construção de pontes políticas, inclusive com a oposição, quando possível. O livro ressalta a importância das lideranças políticas para a consolidação da democracia em diversos contextos históricos: De Klerk, da África do Sul; e Ernesto Zedillo, do México, são identificados como figuras-chave de regimes autoritários que ajudaram por dentro a transformá-los em democracias.
Patricio Alwyn, do Chile; Fernando Henrique Cardoso, do Brasil; Felipe Gonzalez, da Espanha; Ricardo Lagos, do Chile; Tadeusz Mazowiecki, da Polônia; e Thabo Mbecki, da África do Sul, todos foram figuras de destaque na oposição em seus países, e depois ajudaram na travessia para consolidar a democracia.
Já Aleksander Kwasniewski, primeiro-ministro da Polônia, é identificado pelos autores como a ponte entre a autocracia e a democracia. Como se estivessem antevendo o que acontece no Brasil nos dias de hoje, os autores chamam a atenção para o fato de que as manifestações de rua contra a corrupção, ou a favor de séricos públicos mais eficientes, podem ser forças importantes para a realização de reformas, mas também contribuir para aumentar a polarização.
Uma preocupação especial do livro é fornecer informações que possam ser utilizadas para o fortalecimento democrático através de construção de acordos políticos, característica principal de cada um dos enredos analisados.
No balanço final do livro, Lowenthal e Bitar ressaltam que, mesmo com o surgimento de novas tecnologias, “os imperativos da expressão e da ação política são muito mais permanentes”. Para eles, as prioridades continuam sendo mobilizar as pessoas em defesa da liberdade política, criar espaços de diálogo e garantir às forças rivais que seus interesses serão protegidos.
E os principais desafios, proteger a ordem cívica e os direitos humanos individuais e assegurar o controle civil das forças militares.
O cientista político Sérgio Fausto, superintendente da Fundação Fernando Henrique Cardoso, na apresentação à edição brasileira – houve outra, em espanhol –, ressalta que as experiências narradas no livro servem para demonstrar também a importância dos líderes políticos para preservar a democracia de novas formas de autoritarismo.
Para ele, as lições de sucesso da transição do autoritarismo para a democracia servem também para evitar regressões da democracia para o autoritarismo.
Merval Pereira: Em defesa da liberdade expressão
Presidente está se intrometendo na produção da cultura nacional, tentando direcioná-la para seu ponto de vista ideológico
A intolerância cultural é fomentada pela radicalização política que toma conta do país, da qual se tem notícia há alguns anos. A mesma Míriam Leitão que foi proibida de participar de uma festa literária em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, devido a ameaças de grupos de extrema direita ligados ao bolsonarismo, foi agredida em 2017 em um voo de Brasília para o Rio por sindicalistas petistas que retornavam de um congresso do partido.
Da mesma maneira que o presidente Bolsonaro disse a jornalistas estrangeiros que Míriam era terrorista, e mente quando denuncia que foi torturada, os petistas do voo a chamaram de terrorista.
O ex-presidente Lula também tinha o hábito de anunciar a seu público os “inimigos” jornalistas, a mesma Míriam Leitão, William Bonner e, como diz o Gaspari, o signatário desta, entre outros.
Assim como a blogueira cubana Yoani Sánchez foi impedida de participar de um debate em 2013 na Livraria Cultura por esquerdistas, direitistas impedem autores e jornalistas vistos como de esquerda de participar de eventos públicos.
Diante do alastramento dessa cultura do ódio, a Academia Brasileira de Letras (ABL), em memorável solenidade de comemoração de seu 122º aniversário na quinta-feira, posicionou-se através da seguinte nota lida por seu presidente Marco Lucchesi:
“A ABL, sempre atenta à defesa da liberdade de expressão e condenando qualquer forma de censura, venha de onde vier, manifesta sua preocupação com recentes episódios de intolerância no âmbito de feiras de livros e festas literárias.
“Eventos desse tipo desempenham papel importante no estímulo à leitura no país, propiciando oportunidades de contato entre autores e leitores, além de expor as pessoas a uma salutar e desejada diversidade de pensamentos, experiências e pontos de vista — algo fundamental numa democracia e numa cultura de paz.
“Qualquer ameaça à livre expressão e à pluralidade de manifestações culturais constitui um lamentável retrocesso a um obscurantismo que não deve ser tolerado”.
A tomada de posição foi aplaudida de pé pela plateia, que contava, entre outros, com as atrizes Fernanda Montenegro e Beth Goulart.
Faz parte dessa “cultura do ódio” a decisão do presidente Bolsonaro de intervir na Agência Nacional de Cinema (Ancine), por motivos errados.
Quando ele se refere a “Bruna Surfistinha” como pornografia, e diz que um filme desses não pode ser financiado por dinheiro público, está se intrometendo na produção da cultura nacional, tentando direcioná-la para seu ponto de vista ideológico.
Da mesma maneira que no governo Lula, em 2004, o Ministério da Cultura tentou controlar a produção audiovisual do cinema e da televisão com a criação da Agência Nacional do Cinema e o Audiovisual (Ancinav).
Se não houvesse uma reação imediata e forte da sociedade, a proposta intervencionista teria vingado. A legislação falava também na proteção dos “valores éticos e sociais da pessoa e da família”, e exigia “contrapartidas sociais” para financiamento de obras audiovisuais.
O cineasta Cacá Diegues, que viu na ocasião “uma vitória jdanovista” (Andrei Aleksandrovich Jdanov, stalinista ideólogo do realismo socialista), hoje, sem fazer comparações, diz que todo governante autoritário tem mania de dirigir a produção cultural do país.
Nem todas as decisões com relação à Ancine estão erradas, na avaliação dos produtores e cineastas nacionais. A transferência do Conselho Superior de Cinema, responsável pela política nacional de audiovisual, do Ministério da Cidadania para a Casa Civil, foi uma decisão correta, desde que objetivo seja mesmo o de “fortalecer a articulação e fomentar políticas públicas necessárias à implantação de empreendimentos estratégicos para a área”.
Já a Ancine, que é uma agência reguladora que não pode ser privatizada, como disse Bolsonaro, apenas extinta, como também está sendo cogitado, será transferida do Rio para Brasília para acabar com as festas à beira-mar e “ter um filtro, sim. Já que é um órgão federal”.
Esse filtro não há em nenhum país do mundo que se preze, e preze a cultura como manifestação da diversidade. O que não pode é só financiar filmes “terrivelmente evangélicos”, como “Nada a Perder”, a cinebiografia de Edir Macedo que vendeu milhões de ingressos para salas de cinema vazias.
É preciso ser “terrivelmente democrata” para resistir a esses ataques à liberdade de expressão.
Merval Pereira: Provas imprestáveis
Nívio de Freitas garantiu que, além de ilegais, nenhuma das mensagens demonstra concreto prejuízo ao réu
A impossibilidade constitucional de usar provas conseguidas através de meios ilícitos para anular processos da Lava-Jato, ou punir os procuradores de Curitiba, começa a ser explicitada através de decisões em várias instâncias judiciais. Todas concordam também que os diálogos, se verdadeiros, não indicam nenhuma ação ilegal ou prejuízo ao ex-presidente Lula.
O mais recente pronunciamento nesse sentido foi feito ontem pelo subprocurador-geral da República Nívio de Freitas. Ele rebateu no Superior Tribunal de Justiça (STJ) pedido de Lula para anular a condenação do julgamento do caso do tríplex do Guarujá, sob alegação de parcialidade de Sergio Moro, com base nos diálogos divulgados pelo site Intercept Brasil.
O subprocurador-geral garantiu que, além de ilegais, nenhuma das mensagens demonstra concreto prejuízo ao réu. Ele afirmou que as interceptações de autoridades foram realizadas “ao arrepio da lei, e utilizadas para aviltar e desacreditar as instituições republicanas de combate à corrupção.”
O representante da PGR argumentou que “(...) Ainda que se cogitasse de eventual quebra de imparcialidade pelo Juízo de primeira instância, não custa lembrar que o manancial de provas foi revisitado novamente pela instância superior”, referindo-se ao TRF-4, que confirmou a condenação do expresidente Lula.
Por sua vez, o corregedor do Conselho Nacional do Ministério Público, Orlando Rochadel, que ontem abriu uma investigação, a pedido do PT, contra o coordenador do MP em Curitiba, procurador Deltan Dallagnol, em junho já havia se manifestado contra a aceitação de provas conseguidas de maneira ilícita. O processo tinha por base pedido de membros do CNMP, utilizando os mesmos diálogos do Intercept Brasil agora usados pelo PT.
Na decisão de arquivar o processo, Orlando Rochadel citou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, no recente julgamento do habeas corpus em favor de Lula na Segunda Turma, que disse que era impossível aceitar a prova sem que ficasse comprovada a autenticidade dos diálogos, que é negada pelos procuradores e pelo hoje ministro da Justiça, Sergio Moro.
Para o corregedor do CNMP, “independentemente da veracidade dessas mensagens, ficou patente que sua obtenção se deu de forma ilícita, pois se deu à revelia de qualquer autorização judicial e com infração do direito à intimidade dos interlocutores”. O corregedor Orlando Rochadel diz na sua decisão que “ainda que as provas em questão não fossem ilícitas — como manifestamente o são —, inexistiria infração disciplinar”.
Ele alega que o Conselho Nacional do Ministério Público tem como valor básico “a comunicação e ampla disponibilidade dos Membros do Ministério Público para contato com a sociedade e os operadores jurídicos”. Logo, diz ele, “o contato entre Membros do Ministério Público e Magistrados é salutar para a administração da justiça, especialmente quando se relacionam com a praxe de gestão dos serviços judiciários”.
Para Orlando Rochadel, uma análise das mensagens “denota articulação logística em face de um processo de inegável complexidade, ao longo de vários anos. Não se identifica articulação para combinar argumentos, conteúdo de peças ou antecipação de juízo ou resultado. Igualmente não se verifica indicação de compartilhamento de conteúdo de peças decisórias ou que os atos do Magistrado foram elaborados por Membros do Ministério Público”.
Na visão do corregedor do CNMP, “contatos com as partes de processos e procedimentos, advogados e magistrados, afiguram-se essenciais para a melhor prestação de serviços à sociedade. Igualmente, pressupõe-se para os Membros do Ministério Público a mesma diligência da honrosa classe dos advogados, que vão despachar processos e conversam, diariamente, com magistrados”.
Em resumo, afirma Orlando Rochadel, “ainda que as mensagens em tela fossem verdadeiras e houvessem sido captadas de forma lícita, não se verificaria nenhum ilícito funcional”.
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Minha solidariedade a Míriam Leitão e Sérgio Abranches pelo absurdo veto sofrido na Feira do Livro de Jaraguá do Sul, Santa Catarina.
Merval Pereira: Cerco às investigações
Ao suspender processos e inquéritos com base em dados da Receita ou do Coaf, Toffoli ignorou decisão do plenário
O cerco às investigações da Lava-Jato continua com a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, de suspender todas as investigações baseadas em dados fiscais repassados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) e pela Receita Federal ao Ministério Público, sem autorização judicial. Apesar de decisão do plenário do STF a favor, tomada em 2016.
Também o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), através do corregedor Orlando Rochadel Moreira, decidiu investigar o coordenador da Lava-Jato em Curitiba, procurador Deltan Dallagnol, com base nas últimas revelações do site Intercept Brasil, a pedido do PT.
Desconhecendo a ilegalidade da invasão dos celulares, o corregedor tratou como prova válida os diálogos e, baseando-se na versão publicada, pede explicações aos procuradores. Segundo ele, as conversas “revelariam que os citados teriam se articulado para obter lucro mediante a realização de palestras pagas e obtidas com o uso de seus cargos públicos”. Esquecendo-se de que as palestras estão autorizadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo próprio CNMP.
A notícia boa para os procuradores foi que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, saiu de sua paralisia e, depois de uma reunião de mais de três horas com Dallagnol e um grupo de outros sete procuradores de Curitiba, declarou seu apoio à atuação deles na Operação Lava-Jato.
O fato de Dodge não ter se pronunciado até agora, e de ter segurado delações como a de Léo Pinheiro, presidente da OAS, fez com que o procurador José Alfredo de Paula Silva, coordenador do grupo de trabalho da Lava-Jato na PGR, pedisse demissão na sexta-feira.
Com origem em um recurso do senador Flávio Bolsonaro, que está sendo investigado pelo MPF do Rio, a liminar de Toffoli abrange toda e qualquer investigação em andamento no país e, segundo o procurador Eduardo El Hage, coordenador da Lava-Jato no Rio, atinge praticamente todas as apurações de lavagem de dinheiro.
Ao suspender processos e inquéritos abertos com base em dados da Receita ou do Coaf, Dias Toffoli ignorou decisão do plenário do STF, que, em 2016, confirmou a permissão de a Receita poder acessar informações bancárias sem autorização judicial.
O Ministério Público pede rotineiramente que seja feito o compartilhamento de dados para investigações, e a Operação Lava-Jato tem trabalhado em sintonia com a equipe especial de fraudes da Receita.
O STF deveria ter analisado o caso, com repercussão geral, em março, com base em um recurso do Ministério Público contra decisão do TRF-3, que afirmou ser ilegal o uso de dados sigilosos em investigações sem autorização judicial. Mas Toffoli adiou o julgamento para novembro.
Até lá, vale a sua decisão monocrática, durante o recesso do Judiciário. Toffoli reconhece que a jurisprudência do Supremo é a favor do compartilhamento sem necessidade de autorização judicial. Tanto que no início do ano considerou importante, reafirmada a jurisprudência, definir limites objetivos que os órgãos de fiscalização deveriam observar ao transferir automaticamente para o MP informações sobre movimentação bancária e fiscal dos contribuintes em geral.
O assunto voltou à discussão recentemente, quando uma investigação sobre o ministro Gilmar Mendes vazou para órgãos de imprensa. Ele ficou naturalmente indignado e deve ser o terceiro ministro a votar contra o compartilhamento de dados sem autorização judicial. No julgamento anterior, em 2016, somente os ministros Marco Aurélio Mello e Celso de Mello votaram contra, ficando vencidos por 9 a 2.
O ministro Toffoli, que ontem suspendeu a permissão monocraticamente, também votou em 2016 a favor. Se permanecer essa proibição, as investigações sobre fraudes financeiras ficarão seriamente prejudicadas até novembro, quando o plenário deve julgar o caso definitivamente.