Merval Pereira
Merval Pereira: Radicalismo que isola
Presidente reafirmou na ONU os pensamentos mais retrógrados, inclusive sobre valores morais e religiosos
O discurso do presidente Bolsonaro na abertura da Assembleia Geral da ONU foi surpreendente não pelo que falou, pois não há novidade no seu discurso, nada que não seja conhecido por todos, aqui e no exterior. O que surpreendeu é que se esperava que o discurso fosse pacificador e conciliador, quando foi agressivo na sua maior parte, e defendeu posições anacrônicas na política externa.
Quem ainda tinha esperança de ver o presidente brasileiro associando-se a posições progressistas das democracias ocidentais frustrou-se, mesmo porque o presidente e seus assessores, oficiais e informais, como o guru Olavo de Carvalho, consideram que o termo “progressista” identifica socialistas e comunistas, não governos que se alinham aos conceitos e valores do mundo atual globalizado, mas não globalista, como gostam de criticar.
Nessa visão extemporânea do mundo, o governo brasileiro vê na discussão sobre os interesses globais, como o meio ambiente, uma tentativa “de apagar nacionalidades e soberanias”. Como exortou Bolsonaro no final de seu discurso, (...) “Esta não é a Organização do Interesse Global. É a Organização das Nações Unidas. Assim deve permanecer”.
Não foi à toa que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, cumprimentou Bolsonaro pelo discurso, embora não tenha encontrado tempo na agenda para um jantar, ou ao menos um encontro privado, como era esperado pela comitiva brasileira.
Pelos assessores que fizeram o discurso, o tom não poderia ser outro: general Heleno, ministro Ernesto Araújo, Eduardo Bolsonaro e assessor internacional Filipe Martins. Foi uma defesa das posições que assume desde a campanha eleitoral, e usou a tribuna da ONU como um palanque para seu público interno.
Bolsonaro erra quando diz que representa o pensamento da população brasileira. Ele representa o Brasil, pois foi eleito presidente, mas muito do que diz não tem a concordância da maioria. Foi firme e não se intimidou diante da plateia e da possibilidade de protestos — apenas a representação de Cuba se retirou.
O que pode ser visto como uma qualidade, coragem de reafirmar suas posições mesmo num ambiente potencialmente hostil, não significa que persistir no erro deixa de ser um defeito.
Só significa que está mais à vontade no cargo, pois quando foi ao Fórum Econômico Mundial de Davos, logo depois de tomar posse, perdeu a chance de marcar posição lendo um discurso de oito minutos, quando tinha 45 minutos à sua disposição.
Mas assumiu naquela ocasião compromissos importantes, para incentivar os investidores estrangeiros. Falou em reformas, em abertura da economia, simplificação da burocracia para melhorar ambiente de negócios, diminuição da carga tributária, abertura para o mundo e ainda se comprometeu com preservação do meio ambiente. Coerente com o que está fazendo, com exceção do meio ambiente.
Ontem na ONU, se preocupou também em agradar aos investidores, mas abriu mão de potenciais aliados, contentando-se com o apoio que imagina ter do governo Trump. O problema é que Bolsonaro assume as suas verdades como se refletissem fatos, e esses muitas vezes o desmentem.
Foi um discurso radical, mas sem perder a linha, uma retórica agressiva, mas sem ser perder a compostura do cargo. O presidente mostrou que tem posição e sabe o que quer. Nem sempre, no entanto, o que ele quer representa o melhor para os interesses do Estado brasileiro, mas apenas ideias pessoais, que podem ser prejudiciais.
Ontem, Bolsonaro perdeu a oportunidade de levar sua assertividade ao porto seguro da conciliação e do entendimento. Ao contrário, reafirmou os pensamentos mais retrógrados, inclusive sobre valores morais e religiosos num cenário inapropriado, mergulhou de volta na Guerra Fria, mas dispensou o apoio da Europa com críticas veladas ao presidente da França, Emannuel Macron, e à chanceler da Alemanha, Angela Merkel.
Reafirmar a soberania nacional sobre a Amazônia com ataques a países que deveríamos querer como aliados pode alegrar seu público interno e uma ala mais radical das Forças Armadas, mas não resolve a situação. Só ficamos mais isolados num mundo necessariamente conectado.
Merval Pereira: Os meandros da Justiça
Se o entendimento da maioria acompanhar o da Segunda Turma, julgamentos de Lula podem ser anulados
É costumeiro dizer que o tempo jurídico é diferente do da política. Desta vez, eles estão se aproximando. O ex-presidente Lula, pela conta mais conservadora, cumpriu ontem um sexto de sua pena de 8 anos, 10 meses e 20 dias definida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no caso do tríplex do Guarujá. Poderia ir para o regime semiaberto.
Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal (STF) marcou para amanhã o julgamento de um caso semelhante ao do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, Aldemir Bendine, que teve a condenação anulada devido ao entendimento da Segunda Turma de que réus delatores devem falar antes dos demais réus, pois seriam auxiliares da acusação. E a defesa deve falar sempre por último.
Se o entendimento da maioria acompanhar o da Segunda Turma, não apenas os julgamentos de Lula, mas de vários outros condenados, podem ser anulados, recomeçando do zero.
Em outro processo contra Lula, o do Sítio de Atibaia, está tudo pronto para o julgamento do recurso da defesa no Tribunal Regional Federal-4 (TRF-4). O ex-presidente foi condenado em primeira instância a 12 anos e 11 meses de prisão pela juíza Gabriela Hardt, que substituiu interinamente Sergio Moro quando este deixou a magistratura para tornar-se ministro da Justiça.
O desembargador João Pedro Gebran Neto entregou seu voto no dia 11, depois de 90 dias de análise, e o revisor Leandro Paulsen também já terminou seu trabalho, restando agora o presidente do TRF-4, Victor Luiz dos Santos Laus marcar a data do julgamento. Isso quer dizer que Lula pode ser condenado novamente antes mesmo que os trâmites burocráticos para a progressão da pena sejam cumpridos. Ou que fique pouco tempo no regime semiaberto, tendo que voltar para a prisão fechada.
Nesse caso, as sentenças são somadas, e o cumprimento de um sexto da nova pena vai demorar mais. A não ser que, nesse intervalo, uma nova decisão do STF proíba a prisão em segunda instância. O que pode demorar também é a insistência de Lula em não querer pedir a progressão da pena, aguardando ser inocentado ou ter a condenação anulada.
Há ainda outro recurso que já pode ser marcado no STJ, onde a defesa de Lula pede, desde maio, que ele, em vez de ir para o regime semiaberto, pois não há vagas em locais apropriados, vá direto para o aberto.
Com a nomeação do substituto interino do ministro Felix Fischer, relator das ações da Lava-Jato, o caso já pode ser decidido.
A decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de anular o julgamento que condenou Aldemir Bendine por ter recebido R$ 3 milhões da Odebrecht para facilitar contratos da empreiteira com a Petrobras, que presidia na ocasião, é uma interpretação alargada do direito dos réus, mesma prática de que o juiz Sergio Moro e os procuradores de Curitiba são acusados.
Como lembrou ontem no Twitter o juiz Marcelo Bretas, “no processo criminal brasileiro sempre houve delatores e delatados, réus confessos que depõem contra corréus”. Ambos sempre foram tratados igualmente como réus. A nova interpretação da Segunda Turma, tratando os delatores como auxiliares da acusação, tem espaço devido à figura da “delação premiada”, que não existia no processo penal brasileiro.
Tanto que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) referendaram a decisão de Moro, apesar dos apelos da defesa. Justamente por ser uma decisão sem precedentes, caso semelhante está sendo levado ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).
O caso de Bendine, se estiverem esgotados os recursos do Ministério Público e o acórdão publicado, poderá se tornar único se a maioria do plenário do STF decidir em contrário. Ou pode dar inicio a uma jurisprudência.
Merval Pereira: Queda de braço
A relação do Planalto com o Parlamento entrou em nova fase com o ministro Ramos, pois ele está atuando para tentar formar uma base mais firme de apoio
Os tempos estranhos em que vivemos, no dizer do ministro do Supremo Marco Aurélio Mello, estão transformando o parlamentarismo branco em arma do Congresso contra o presidente da República, que tem uma Compactor cheia de tinta na mão, mas não pode tanto quanto já pôde, mesmo que a legislação não tenha mudado.
No governo anterior, o parlamentarismo branco serviu de apoio ao então presidente Michel Temer, que teve que abrir mão de ser um presidente propositivo para não perder o apoio do Congresso, que o tirou do Palácio do Jaburu e o botou no do Planalto.
Nos tempos de Bolsonaro, o Congresso tomou as rédeas nos primeiros momentos, quando o presidente recém-eleito resolveu demonizar apolítica e emparedar os parlamentares.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, no seminário “E agora, Brasil?”, promovido pelo GLOBO e pelo “Valor Econômico”, não teve pejo em afirmar, em alto e bom som, que vivemos um parlamentarismo por decisão do Parlamento, que assumiu para si a tarefa de aprovaras reformas estruturais, apropriando-se de um protagonismo que transformou o ministro da Economia, Paulo Guedes, em coadjuvante do processo, reconhecidamente liderado pelo presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia.
Agora, abola está no Senado, para aprovação final da reforma da Previdência. Na reforma tributária em discussão, Câmara e Senado disputam a paternidade de projetos, enquanto o governo tem o seu próprio, que será relegado a segundo plano se Guedes não se acertar com Maia e Alcolumbre.
Recentemente, em reunião com o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, o deputado Ricardo Barros, do PP, fez, sem rodeios, uma advertência inusitada: “O presidente não pode demitir deputado, mas deputado pode demitir o presidente”.
Ramos, além de ter sido até recentemente chefe do Comando Militar do Sudeste do Exército, é amigo do presidente Bolsonaro há 40 anos e foi encarregado de assumira relação com os parlamentares. Ele tem um histórico de bom relacionamento com políticos em São Paulo, muito além dos potenciais políticos da base. Parlamentares do PT e do PSOL eram seus interlocutores assíduos.
Foi escolhido mais por essa característica do que por ser general de Exército, mas certamente não esperava receptividade tão sincera, para dizer o mínimo. A relação do Planalto com o Parlamento entrou em nova fase com o ministro Ramos, pois ele está atuando para tentar formar uma base mais firme de apoio, fazendo um levantamento de como votou cada deputado e senador, quais os cargos que cada um já tem indicados seus na burocracia do Estado, quais os que ainda querem nomeações.
É uma sinalização de que o Palácio do Planalto quer entrar no jogo político mais tradicional. Esse levantamento, em governos anteriores, teve em Eliseu Padilha seu artífice. Enquanto não se define quais são os limites desse relacionamento, os parlamentares já colocam suas cartas na mesa.
A aprovação do filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro, para embaixador em Washington já está sendo objeto de acordos no Senado. Ao mesmo tempo, o poder de veto do presidente da República está sendo posto em xeque por rebeliões localizadas.
A operação de busca e apreensão no gabinete do senador Fernando Bezerra, líder do governo, desencadeou uma reação corporativa que pode gerar boicotes de diversos tamanhos, desde o veto ao filho do presidente na sabatina do Senado, o que seria uma declaração de guerra, até a derrubada de vetos do presidente a trechos da Lei de Abuso de Autoridade, o que, em si, seria um abuso da autoridade parlamentar.
Está em jogo também a possibilidade de vetos, já em debate na assessoria do Palácio do Planalto, à nova lei eleitoral. Oficialmente, ambos os lados assumem teorias republicanas.
Disse o ministro-chefe da Secretaria-Geralda Presidência, Jorge Oliveira, na entrevista à “Central GloboNews”: “O Congresso tem todo o direito de derrubar os vetos do presidente da República. É do jogo democrático, cada um faz sua função”.
Disse o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, que ontem se reuniu pela manhã com o presidente Bolsonaro: “O presidente tem todo o direito de vetar. Nós aprovamos o que achamos melhor para os partidos e as eleições.”
Na prática, será preciso encontrar um meio-termo para que Congresso e Executivo tenham uma relação harmoniosa, sem perderem a legitimidade.
Bolsonaro chegou à Presidência achando que poderia ditar o ritmo da relação política. O Congresso está gostando do papel de protagonista.
Merval Pereira: Crise da minoria
Bolsonaro trabalha com maiorias ocasionais enquanto tenta formar uma base de aliados fiéis
O mundo político está tão virado de cabeça para baixo que há um recurso no Supremo Tribunal Federal pedindo a instalação da chamada CPI da Lava-Toga, barrada no Congresso. A dita CPI pretende justamente investigar ministros do próprio STF. O sorteio eletrônico escolheu para relator o ministro Gilmar Mendes, que já revelou sua posição em entrevista recente: se for parar no STF, essa CPI não passa, por inconstitucional.
Uma crise na relação dos Poderes foi logo substituída por outra. A permissão do ministro Luís Roberto Barroso para que a Polícia Federal fizesse busca e apreensão nos gabinetes do senador Fernando Bezerra, líder do governo, e de seu filho, deputado federal, provocou um início de crise institucional envolvendo os três Poderes da República.
O Congresso se queixa da invasão de seu território, o presidente Bolsonaro ficou em situação delicada, pois ao mesmo tempo em que não quer ser identificado como opositor da Lava-Jato, não pode jogar às feras seu líder, um dos principais sustentáculos da improvisada base partidária e, sobretudo, coordenador da tentativa de aprovar o nome de Eduardo Bolsonaro para embaixador em Washington.
Também o ministro Sergio Moro entrou na roda, pois a Polícia Federal é subordinada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, e a ação policial é vista como uma retaliação contra o Congresso, que trabalha para esvaziar a Lava-Jato e, sobretudo, o pacote anticrime de Moro.
Bolsonaro não quer ficar marcado como o presidente que persegue a Polícia Federal e a Lava-Jato para ganhar o jogo político em favor de seu filho. O problema de Bolsonaro é que seu governo não tem uma base parlamentar organizada, como frisou várias vezes o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, durante o seminário “E Agora, Brasil?” realizado em Brasília pelo GLOBO e pelo “Valor Econômico”.
Essa decisão de não formar uma maioria legislativa estável, explica o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da EBAPE/FGV, faz parte do que ele chama de “estratégia minoritária” de Bolsonaro, que trabalha com maiorias ocasionais enquanto tenta formar uma base de aliados fiéis.
Aspecto distintivo dessa estratégia é “um modo de comunicação com a população que apela, quase que exclusivamente, a nichos específicos do eleitorado e, enfaticamente, exclui outros”. Para Octavio Amorim Neto, a estratégia almeja apenas ter votos suficientes para chegar ao segundo turno e “empalmar um novo mandato a partir de uma campanha radicalmente negativa contra seu adversário”.
A alta fragmentação do sistema partidário o beneficia, à medida que vários candidatos à Presidência surgirão, dispersando os votos do centro. Os partidos de centro poderão formar amplas coligações eleitorais, ressalva Octavio Amorim, tendência que só deverá se consolidar após as eleições municipais de 2020.
O que corresponde justamente à estratégia abordada pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre, no seminário desta semana. Ele considera que os extremos, à esquerda e à direita, têm cada um 25% do eleitorado, e essa grande massa do centro definirá a eleição.
O professor Octavio Amorim Neto avalia que se o adversário for um candidato de esquerda radical, muito provavelmente Bolsonaro vencerá; se for de centro, o resultado dependerá da reação do eleitor centrista.
A eleição nos Estados Unidos terá influência importante, segundo Octavio Amorim, especialmente se Trump não for reeleito. Sua derrota sinalizará que a onda de populismo de extrema direita terá perdido impulso. Por Bolsonaro ter se associado excessivamente a ele, a derrota de Trump será lida como do presidente brasileiro.
“O Brasil ficará isolado em Washington e na Europa, transformando Bolsonaro num oneroso passivo aos olhos de importantes setores das elites nacionais”. Inversamente, se Trump for reeleito, Bolsonaro ganhará fôlego eleitoral.
A tática tanto de Trump quanto de Maduro na Venezuela tem sido atacar eleitores centristas, como Bolsonaro vem fazendo aqui. A diferença significativa, adverte Octavio Amorim Neto, é que no Brasil o voto é obrigatório, ao contrário dos Estados Unidos e da Venezuela.
“A combinação de agressão permanente às sensibilidades do eleitor centrista com voto obrigatório não favorece a reeleição de Bolsonaro, pois é justamente este eleitor quem decidirá a eleição”.
Merval Pereira: Uma questão de dinheiro
Com aumento de custo pela volta da propaganda no rádio e na TV, haverá necessidade de novo tipo de financiamento
A dificuldade de aumentar o Fundo Eleitoral para as eleições municipais do ano que vem está revivendo entre deputados e senadores a necessidade do financiamento privado das campanhas eleitorais. Com o aumento de custo pela volta da propaganda no rádio e na televisão, haverá necessidade de novo tipo de financiamento.
O argumento do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, de que as próximas eleições abrangem muito mais candidatos a vereadores e prefeitos dos 5.570 municípios do que eleições gerais, e por isso é necessário mais dinheiro para financiar as campanhas, é “questão de matemática”, não resiste à questão política.
Um país que pede sacrifícios a seus cidadãos não pode dobrar o financiamento público para campanhas eleitorais. Como o valor do Fundo Eleitoral só será definido quando for aprovado o Orçamento da União, é provável que os parlamentares revejam o financiamento das campanhas. Para tanto, será preciso aprovar uma emenda constitucional.
O problema está muito mais na regulamentação dessas doações, nas suas limitações legais, do que no método em si. O que atrapalha é a legislação eleitoral aprovada pela Câmara que, embora tenha tirado muitas das distorções da proposta original, manteve algumas.
Uma decisão pelo menos deve ser vetada pelo presidente Bolsonaro, ou pelo Supremo. É a que faz da Lei da Ficha Limpa letra morta, permitindo que candidatos disputem uma eleição mesmo sub judice. Teremos disputas jurídicas, e eleitos atuando sem uma definição da Justiça Eleitoral.
A dificuldade do veto presidencial, para não entrar em choque com a Câmara, foi reduzida pela posição conciliadora do presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Ao mesmo tempo em que apoiou a maioria, bancando as duas versões do projeto, admitiu que as pressões da sociedade foram importantes para ajustar certos pontos, e que o presidente Bolsonaro tem o direito de vetar. Não deu sinais, até o momento, de que a Câmara derrubaria os vetos, embora essa hipótese não seja descartável, tamanho o esforço que os parlamentares despenderam na aprovação.
Os deputados só pensaram em seus interesses eleitorais, Maia disse que aprovaram um projeto “bom para os partidos e as eleições”, o que é um erro de visão. A reação que provocou na opinião pública a primeira versão do projeto deveria ter mostrado aos deputados, como mostrou aos senadores, que jogadas em benefício próprio não são mais aceitas.
Além do quase fim da Lei da Ficha Limpa, o mais grave do que restou são decisões que, mesmo que não tenham sido tomadas com este fim, abrem brechas para uso ilegal do dinheiro público. Um exemplo disso é a permissão para que recursos do Fundo Partidário possam ser transferidos para qualquer instituto, desde que presidido pela Secretaria da Mulher.
Com os exemplos recentes de uso da representação feminina para burlar o financiamento eleitoral, transformando candidatas em “laranjas”, não há garantias de que essa transferência tenha destino legal.
Também permaneceu a permissão para que serviços advocatícios e de contadores sejam financiados por pessoas físicas, além do Fundo Partidário, sem limite de valor e sem contar para o teto legal permitido. Essa é uma brecha para o caixa 2, pois está revelado que esse tipo de serviço muitas vezes foi usado para lavar dinheiro da corrupção.
A retirada dos partidos da classificação de pessoas politicamente expostas tem uma alegação esdrúxula: partidos não são pessoas, e não podem estar nesta lista.
Algumas medidas têm razão de ser, como permitir que o dinheiro seja utilizado para pagamento de passagens a pessoas que não sejam filiadas. Os partidos têm que ter recursos, por exemplo, para convidar especialistas para debater assuntos que sejam objeto de projetos no Congresso.
Acho também razoável a permissão para que deputados que mudem de partido, porque a legenda pela qual se elegeram não atingiu a cláusula de desempenho, aumentem o valor do fundo dos partidos que os receberem. Pela legislação, os votos individuais têm valor para a formação do fundo e, portanto, devem ir para onde o candidato que os recebeu for.
Os demais se referem ao trabalho da Justiça Eleitoral, sempre no sentido de ampliar os direitos dos partidos. São decisões claramente corporativas que terão que ser acompanhadas com lupa para saber se a desburocratização não significa leniência com ilegalidades.
Merval Pereira: Nação e Exército
Militares não querem ser confundidos como parte do governo Bolsonaro, como não quiseram em outros governos
A relação entre os militares e o presidente Jair Bolsonaro foi mais uma vez colocada em xeque por interferência do guru Olavo de Carvalho, que foi ao YouTube para criticar a edição do livro do sociólogo Gilberto Freyre “Nação e Exército” pela Biblioteca do Exército.
O lançamento será amanhã na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), para comemorar os 70 anos da edição do livro. Olavo de Carvalho estranhou, questionando se a decisão seria uma indicação de que militares estariam se unindo a comunistas para afrontar o presidente da República.
A análise nesse sentido foi publicada no blog bolsonarista Sociedade Militar, interpretando que a publicação do livro marca “o fortalecimento de uma ala mais progressista da força terrestre” e um “gradual afastamento do presidente da República e do governo como um todo”.
O que provocou a ira de Olavo de Carvalho, que normalmente é elogiado pelo blog bolsonarista. No seu blog, Olavo disse não acreditar que essa análise representasse a visão do Exército. A informação de que Gilberto Freyre, em 1949, fazia parte da Aliança Nacional Libertadora, formada por comunistas, antifascistas e militares descontentes, e que, portanto, o livro representaria uma visão ideológica diferente da do Exército é rechaçada pelos militares responsáveis pela edição. Que, aliás, começou a ser pensada cerca de três anos atrás, sendo impossível atribuir a ideia a uma mensagem cifrada contra o governo Bolsonaro.
O neto de Gilberto Freyre, que é secretário de Cultura do governo de Pernambuco, aprovou a ideia e fará um lançamento também em Recife. No livro, Gilberto Freyre defende a tese de que o Exército não deve ser convocado pela sociedade para atuar em todos os momentos de crise.
Debate que continua atual devido ao acionamento do Exército para a Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em vários pontos do país, além de atuações na área de infraestrutura. A mensagem de Freyre é de união entre civis e militares para enfrentar os desafios futuros, como está ressaltado no livro. Os militares, na verdade, não querem ser confundidos como parte do governo Bolsonaro, como não quiseram em qualquer outro governo, pois fazem questão de serem reconhecidos como parte de instituições do Estado brasileiro.
A participação de militares no governo Bolsonaro não significa a presença das instituições militares no governo, fazem questão de afirmar. O comandante do Exército, general Pujol, sempre acentua que o Exército é uma instituição do Estado brasileiro, e não de governos, que são eventuais e ligados a partidos políticos.
Por isso, há uma preocupação, por exemplo, com a adoção de “escolas militarizadas”, que fazem parte do programa do Ministério da Educação e foram prometidas na campanha por Bolsonaro como política de governo, embora alguns estados já estivessem colocando em prática a ideia.
Essa proposta não conta com o apoio do Exército, cujos líderes consideram que o que se busca com essa adjetivação das escolas é segurança e disciplina, que não são objetivos dos colégios militares, mas consequência de um programa mais amplo de preparação dos alunos para a vida na sociedade.
Tanto que eles não são restritos aos militares, havendo oficiais superiores que não cursaram um Colégio Militar, e civis que cursaram e não seguiram a carreira. Os colégios militares não fazem parte da formação da carreira, que tem três pilares: a Academia Militar das Agulhas Negras; a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao) e a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).
Os colégios militares são considerados educação assistencial, e são procurados por seus alunos, não impostos pelo governo. Não representam, portanto, uma filosofia educacional militar que possa ser transferida para o sistema nacional de educação.
Os militares como instituição consideram que muitas vezes são usados como válvula de escape de políticos, especialmente na segurança, e agora na educação, que os convocam quando a situação é grave, mas só assumem a responsabilidade quando as intervenções dão certo. Recaem sobre os militares as falhas, e seria da mesma maneira no caso de o programa educacional baseado nos colégios militares dar errado.
Merval Pereira: O bom senso prevaleceu
Mudança na legislação eleitoral será discutida na Câmara da maneira correta, à luz do dia e com amplo debate
Melhor ainda, prevaleceu a pressão da opinião pública, e o projeto de um simulacro de reforma eleitoral voltará para a Câmara, onde deverá ser discutido da maneira correta, à luz do dia e com amplo debate.
Sem correrias desnecessárias, como estavam querendo impor os defensores das medidas que afrouxavam a fiscalização eleitoral e reduziam a capacidade de punição da Justiça Eleitoral.
O perigo agora é a ameaça de que a Câmara, recebendo o projeto quase que integralmente vetado pelo Senado, decida ressuscitá-lo, com todos os defeitos que estão sendo rejeitados.
Seria um abuso de poder se os deputados fizessem isso, diante da reação que provocou na opinião pública a tentativa de aprovar uma reforma eleitoral que limita a fiscalização e aumenta a possibilidade de crimes como o caixa 2.
Apenas o Fundo Eleitoral será aprovado agora no Senado, para valer nas eleições municipais do ano que vem. Com o compromisso de que não será duplicado, como querem alguns.
Num momento em que o país passa por situações que exigem sacrifícios dos cidadãos, sem dinheiro para nada, há a proposta de aumentar o fundo de R$ 1,8 bilhão para R$ 3,7 bilhões.
É preocupante, no entanto, certa maneira de pensar que continua prevalecendo. O ministro-chefe do Gabinete Civil, Onyx Lorenzoni, perguntado sobre o projeto, saiu-se com essa: “Se não houver aumento de gasto, tudo bem”.
Esse não é o único problema do projeto. A questão ética é fundamental para que o Congresso prossiga na sua atuação de protagonismo na política nacional.
Correu-se o sério risco de haver um acordo entre o Palácio do Planalto e o grupo de congressistas que apoia as mudanças em benefício próprio para a aprovação do texto, com o compromisso de o presidente Bolsonaro vetar alguns trechos, não o suficiente para retirar do projeto seu caráter deletério ao processo político.
Com a dependência da aprovação do seu filho Eduardo para embaixador em Washington sendo negociada cuidadosamente no Senado, seria perigoso que os vetos do presidente Bolsonaro fossem confundidos com a sabatina.
Foi aí que o bom senso trabalhou a favor da cidadania, e os senadores entenderam que não deveriam se responsabilizar por um projeto que permaneceu na Câmara durante meses, mesmo que na clandestinidade dos acordos entre os iguais, e agora o Senado não teria tempo para analisá-lo minimamente.
Apenas referendaria a iniciativa, alvo de críticas da sociedade civil através de entidades representativas do combate à corrupção. Ficaria a sensação de que nenhum acordo é respeitado pelo Congresso.
A volta da propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão é um exemplo desse descumprimento de acordos. Para a criação do Fundo Eleitoral, foi decidido acabar com essa propaganda, que, embora fosse gratuita para os partidos, era paga pelo governo federal às emissoras de rádio e televisão.
Essa economia seria usada para ajudar a criar o fundo que financiaria as eleições, depois de proibidas as doações privadas. No projeto em discussão, estava lá a volta da propaganda, que se somaria à ideia de mais que dobrar os recursos do Fundo.
O que o Congresso não conseguiu, sempre devido à reação da opinião pública, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez de maneira indireta ao decidir encaminhar para a Justiça Eleitoral, sabidamente menos aparelhada para as investigações, diversos processos contra deputados e senadores.
A anistia ao caixa 2 está sendo tentada há anos no Congresso, para que os parlamentares pudessem escapar da Justiça comum. Muitos deles com a acusação de terem sido meras simulações de doações legais para utilização de dinheiro proveniente da corrupção nas campanhas eleitorais.
Uma legislação que afrouxe as regras de prestação de contas facilitará o uso continuado de dinheiro ilegal.
Merval Pereira: Dia decisivo
Mudança na lei eleitoral é retrocesso brutal, inclusive para o Congresso, que estava recuperando a sua imagem
A maior prova da irregularidade que está sendo tramada nos bastidores do Senado para aprovar a toque de caixa o projeto de lei que altera a legislação eleitoral está no relatório favorável do senador Weverton Rocha.
Ele opinou pela “constitucionalidade, juridicidade e regimentalidade” do projeto, e seu relatório deveria ser colocado em votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, mas o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, cancelou a reunião da CCJ de hoje, e colocou o projeto como prioritário na ordem do dia de votação.
Alcolumbre já havia tentado, na semana passada, levar a votação diretamente ao plenário, mas foi derrotado por uma obstrução de senadores de diversos partidos. O argumento de que é preciso aprovar o projeto até inicio de outubro, um ano antes da eleição municipal, para permitir que as novas regras sejam válidas já em 2020 é falacioso, pois elas não são regras eleitorais, com nenhum impacto na eleição em si, mas na atuação burocrática e jurídica dos partidos políticos.
O relator também rejeitou todas as emendas apresentadas, alegando justamente esse prazo. “Melhorias pontuais (...) terão o condão de colocar a perder os benefícios de todo o projeto para o processo eleitoral do ano que vem”.
A presidente da CCJ, senadora Simone Tebet, que não vê motivo para uma decisão de afogadilho, já se colocou contra o projeto do jeito que veio da Câmara, definindo-o: “Este é um projeto de partido, não de país”. Ela vê no seu bojo “inúmeros retrocessos”, e adiantou sua posição no Twitter, contra os empecilhos à transparência e à fiscalização dos recursos dos fundos partidário e eleitoral, e o uso, sem limite de valor, de dinheiro público na contratação de advogados para a defesa de partidos e políticos.
O relator, ao contestar retrocessos apontados por senadores e por diversas instituições de controle da corrupção, alega que a autorização para utilizar qualquer sistema de gestão contábil para prestação das contas partidárias não tem importância porque “nada impede que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), na regulamentação da lei, preveja um padrão de dados abertos”.
Ora, se já existe um sistema de prestação de contas padronizado por determinação do próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE), definido em 2015, e que entrou em vigor em 2017, o Sistema de Prestação de Contas Anual da Justiça Eleitoral (SPCA), por que alterar essa norma por projeto de lei?
Outro ponto criticado pela Transparência Partidária é o que permite que os candidatos e partidos insiram dados incompletos, ou até falsos, nos sistemas eletrônicos do TSE utilizados para divulgar as contas dos candidatos durante as campanhas e na prestação parcial.
Isso porque o projeto prevê que as prestações de contas podem ser refeitas e corrigidas até o final da campanha, valendo apenas sua versão final. O objetivo da obrigatoriedade da prestação parcial durante as campanhas eleitorais é justamente permitir uma transparência maior e o acompanhamento pelos eleitores.
Se esses dados parciais não precisam ser os verdadeiros, esse acompanhamento perde o sentido. Um retrocesso político brutal, inclusive para o Congresso, que estava recuperando sua imagem junto à população, tomando a frente nas reformas necessárias para o país.
Já aprovado na Câmara sem ninguém saber, o projeto traz coisas absurdas, como dar aval aos partidos para manipularem o dinheiro público ao seu bel-prazer, inclusive contratando advogados para defender políticos acusados de corrupção, construir prédios, e por aí vai o descalabro.
Foi feito de má-fé, o que fica demonstrado pela pressa do Senado em aprová-lo sem debates, sem discussões, nem audiência pública. Foi maquinado por deputados e senadores na surdina para ser aprovado sem que a sociedade pudesse reagir. Hoje o dia pode ser decisivo para conter esses retrocessos.
Merval Pereira: País trapaceado
Quase à surdina, um projeto de reorganização da legislação partidária e eleitoral foi aprovado na Câmara e está a ponto de ser votado no Senado
O país está sendo trapaceado à luz do dia por aqueles que deveriam representar os cidadãos brasileiros, deputados e senadores. O Congresso, que havia começado a recuperar sua credibilidade junto à opinião pública, liderando o projeto de reformas do Estado, dilapida seu patrimônio em reconstrução adotando medidas em benefício próprio, sem debates com a sociedade.
Quase à surdina, um projeto de reorganização da legislação partidária e eleitoral foi aprovado na Câmara e está a ponto de ser votado no Senado, num ritmo sumário que, mais uma vez, impede o amplo debate.
Entidades de combate à corrupção, como a Transparência Partidária, fizeram estudos e divulgaram um documento alertando para os prejuízos que esse projeto pode trazer.
Mais dinheiro público está prestes a ser gasto, se aprovado esse projeto. Ele permite o pagamento, com dinheiro público, de advogados para políticos acusados de corrupção; permite o pagamento de advogado em processo de “interesse indireto” do partido; permite o pagamento de passagens aéreas com recurso do Fundo Partidário para qualquer pessoa, inclusive não filiados.
As multas por desaprovação das contas só podem ser aplicadas se ficar comprovada conduta dolosa, ou seja, intencional. Em consequência, as prestações de contas ainda não transitadas em julgado em todas as instâncias serão anistiadas.
Para facilitar as coisas para nossos candidatos a parlamentar, pessoas físicas poderão pagar despesas de campanha com advogados e contadores sem limite de valor, o que abre margem para caixa dois e lavagem de dinheiro público.
O combate à corrupção também sofre com o projeto em outro nível, pois retira as contas bancárias dos partidos dos controles da Receita Federal de Pessoas Politicamente Expostas. Quem será mais exposto politicamente que os partidos políticos?
A permissão de que partidos utilizem sistemas diferentes para prestação de contas demonstra a intenção de dificultar a fiscalização. A padronização das declarações, implementada em 2017, não será mais obrigatória.
Qual a razão para isso, a não ser impedir a comparação e a verificação mais eficiente das prestações de contas dos partidos políticos?
Outro ponto da lei que terá consequências diretas e indiretas no controle dos candidatos aptos a concorrer: eles poderão disputar a eleição sub judice, e a avaliação da regularidade da candidatura ocorrerá só na data da posse. O que certamente causará uma disputa judicial que gerará parlamentares atuando com pendências judiciais.
Ao mesmo tempo em que diminui as obrigações dos partidos, o projeto aumenta as responsabilidades da Justiça Eleitoral que, como se sabe, não tem estrutura para acumular mais funções.
Decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) de enviar para a Justiça Eleitoral processos da Lava-Jato tidos não como crimes comuns, mas eleitorais, como o caixa dois, já levantaram discussões sobre o tema.
O projeto transfere mais responsabilidades para o Tribunal Superior Eleitoral e para os TREs. Passa a ser da Justiça Eleitoral a responsabilidade pela gestão dos dados dos filiados aos partidos; impede que a Justiça Eleitoral peça aos partidos documentos emitidos pela administração pública ou por entidade bancária; determina que a penalização a diretório municipal ou estadual só pode ser aplicada se a Justiça Eleitoral comprovar que notificou o diretório superior; cria novo recurso com efeito suspensivo, estimulando o acúmulo de processos no TSE e esvaziando o poder dos tribunais regionais eleitorais.
Num momento em que o país está literalmente quebrado, chega a ser escandaloso que as campanhas eleitorais exijam quase R$ 4 bilhões dos cofres públicos no próximo ano. Muitos cortes terão que ser feitos para que os partidos políticos recebam essa verba pública.
Não satisfeitos com o pretendido aumento do fundo eleitoral, os parlamentares ampliam as possibilidades de utilização do fundo partidário a ponto de transformá-lo praticamente em financiamento de caráter pessoal.
Merval Pereira: Um país quebrado
A reforma da Previdência, ainda que seja a maior das despesas, é necessária, mas não suficiente
O ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga traçou um quadro dramático das contas públicas brasileiras na entrevista que deu ao programa Central GloboNews, na quarta passada. Segundo ele, o problema hoje é que 80% do gasto público do Brasil vêm de duas grandes contas, a do funcionalismo público e a da Previdência. “É preciso mexer nelas, sob pena de não sobrar dinheiro para nada”. Os demais gastos estão muito comprimidos, inclusive os investimentos públicos, que estão perto de 1% do PIB, quando nas últimas décadas chegou a um pico de cerca de 5% do PIB.
Arminio destacou que o volume de investimentos do setor público no Brasil nos últimos quatro anos não foi suficiente sequer para repor a depreciação. “Não à toa estamos assistindo a episódios frequentes de quedas de viadutos, pontes etc”.
Segundo Arminio Fraga, comparações internacionais mostram que os gastos com funcionalismo e Previdência no Brasil estão muito acima dos observados em países de renda média. Ele vê como necessária a redução desses gastos de 80% para 60%, o que proporcionaria uma economia de 7 pontos do PIB, a ser buscada ao longo de dez anos.
Tanto como proporção do PIB quanto como do gasto total, o Brasil gasta bem mais com funcionalismo do que a maioria dos países do Ocidente, destaca Arminio Fraga. Parte desse excedente vem do fato de que temos 20% de participação de empregos públicos no total de empregos do país, um total relativamente alto se comparado a outros países.
O economista Arminio Fraga mostra também, em trabalho recente, que há um elevado prêmio salarial, de cerca de 60%, que recebem os funcionários do governo federal, em comparação a assalariados do setor privado com qualificações semelhantes, como estima o economista Naércio Menezes.
Os gastos com Previdência mostram resultados semelhantes aos do funcionalismo: o Brasil gasta relativamente muito, o que surpreende, sobretudo dada a demografia relativamente jovem do país.
Essa mesma constatação levou o deputado federal do Rio Pedro Paulo (DEM) a apresentar uma emenda constitucional que limita o crescimento de despesas obrigatórias, quando gatilhos serão acionados a cada momento em que os gastos passarem de limites predeterminados.
Até chegar a uma série de medidas mais drásticas ao atingir o estágio de descontrole grave, como a redução da jornada de trabalho temporária, até que volte o equilíbrio.
No diagnóstico do deputado Pedro Paulo, que trabalha no desdobramento da emenda constitucional com técnicos do Ministério da Economia e da Câmara, o Estado brasileiro quebrou há algum tempo. “Já quebramos todas as metas fiscais, e estamos a caminho de quebrar as que restam, com o teto de gastos”, alerta.
Para ele, é preciso conter crescimento exponencial dos gastos públicos, em especial os obrigatórios, que consomem 96% do Orçamento, não sobrando nada para investimentos.
Emitir títulos e aumentar a dívida para pagar despesas correntes, o que o Parlamento permitiu este ano dando ao governo autorização para aumentar a dívida pública em R$ 248 bilhões (7% do PIB) sem uma medida sequer para resolver o problema, é cavar mais o buraco.
O problema central do desequilíbrio fiscal brasileiro, para Pedro Paulo, é o tamanho e o descontrole da despesa obrigatória, e a enorme rigidez orçamentária.
A reforma da Previdência, ainda que seja a maior das despesas, é necessária, mas não suficiente para resolver o desequilíbrio fiscal.
Seus efeitos são de longo prazo, e faltam muitas outras despesas obrigatórias, vinculações e indexações. Se adotados, esses mecanismos de controle do gasto público podem garantir, em dois anos, a manutenção do teto dos gastos até 2026, quando a lei completa dez anos, e proporcionar economia que poderia ser aplicada, em parte, em investimentos públicos. “Não seria apenas um programa de contenção de despesas, mas de estímulo ao investimento”, explica o deputado Pedro Paulo.
Merval Pereira: A defesa da democracia
Supremo não pode comprometer seu legado democrático a pretexto de se defender de ataques
Quem identificou a origem dos ataques foi o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, quando falou, a propósito da censura de uma história em quadrinhos para adolescentes, que a inspiração para atos obscurantistas “resulta das trevas que dominam o poder do Estado”.
A partir dessa constatação, tem-se diante das instituições do Estado brasileiro a tarefa de enfrentar um Executivo que não aceita limites.
O Legislativo, se cumpre com galhardia a missão de enfrentar as reformas necessárias, sendo o protagonista da mudança do Estado, não deveria se sentir liberado para legislar em causa própria.
O STF, que, no momento conturbado que o país vive tem o papel de poder moderador entre Legislativo e Executivo, e é buscado como solucionador de questões políticas e sociais, não pode comprometer seu legado democrático a pretexto de se defender de ataques.
O pacto anunciado pelos presidentes dos Poderes da República, nascido para, segundo revelou o ministro Dias Toffoli, desmontar um incipiente movimento contra o presidente Bolsonaro no início do governo, não pode se revelar apenas instrumento de um acordão político.
É importante impedir a percepção de que os Poderes estão se auxiliando mutuamente, em busca de um modelo de governo que deixe seus integrantes numa zona de conforto. Por isso, é necessário que o STF retome seu papel de guardião da democracia.
Sem citar nomes, mas voltando a pontuar sua indignação, o decano Celso de Mello fez defesa enfática do papel do Ministério Público, que “não serve a governos, a pessoas, não se subordina a partidos políticos e não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem”.
Uma clara mensagem sobre a tentativa de aparelhamento do Ministério Público com a escolha do subprocurador Augusto Aras para procurador-geral da República. Aras vem tocando em pontos que soam como música a grande parte dos parlamentares: a Lava-Jato se excedeu, não pode estar sujeita ao personalismo.
Tendo sido identificado como o candidato que mais se enquadrou no perfil desejado pelo presidente, um procurador-geral que seja flexível na questão ambiental, ajudando o Brasil sem atrapalhar obras de infraestrutura, e se identifique com os valores morais defendidos pelo governo, Augusto Aras assume com a percepção de que será um procurador-geral dócil ao Executivo.
A tal ponto esse sentimento está disseminado que o próprio Aras se sentiu na necessidade de comentar com políticos que avisou a Bolsonaro que ele não poderá se intrometer a toda hora.
Foi a advertência do decano do STF: “O Ministério Público não deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer seja, ou instrumento de concretização de práticas ofensivas aos direitos básicos das minorias, quaisquer que elas sejam, sob pena de o Ministério Público se mostrar infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é, segundo o que diz a própria Constituição Federal, a de defender a plenitude do regime democrático”.
A defesa da democracia também foi o tom da despedida de Raquel Dodge. Ela pediu aos ministros do Supremo, às instituições da República e à sociedade civil que “permaneçam atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal”.
Dodge citou o sistema de freios e contrapesos “(...) para proteger o direito e a segurança para todos, para defender minorias”, que depende da atuação do Ministério Público.
Os retrocessos democráticos que estão ocorrendo em diversos níveis do governo brasileiro são preocupantes, na medida em que se avança sobre as liberdades civis, conspira-se contra o combate à corrupção, aparelha-se à direita o que antes era aparelhado à esquerda.
Merval Pereira: Nuvens mudam de forma
Os interesses pessoais da família Bolsonaro passaram a ser prioritários em relação aos supostos projetos de governo
O quadro de polarização que o presidente Bolsonaro alimenta com suas agressões e polêmicas quase diárias não o está favorecendo, se levarmos em conta pesquisas de popularidade do DataFolha. Não é apenas a queda, mas o aumento da rejeição do eleitorado que indica, segundo analistas, que a sua situação neste momento do governo é pior, por exemplo, do que a do então presidente Fernando Collor nos mesmos períodos.
A avaliação da esquerda é que essa queda se dá devido à polarização politica. Mas o erro da estratégia de Bolsonaro, e da avaliação da esquerda, é que eles estão jogando na perpetuação da disputa com o PT, esquecendo-se de que o momento político do país é outro e, se é verdade que o antipetismo continua forte, ainda não há a necessidade de se escolher entre ele e o PT, ao contrário do que aconteceu na eleição de 2018. O centro volta a ser um espaço politico possível, embora não concretizado.
Existe um campo para especulações de alternativas políticas, e, portanto, amplo espaço para que se explicite a recusa a seu modo de pensar e agir. Na campanha presidencial, enquanto o centro não se mostrou incompetente para derrotar o PT, havia expectativa de uma fusão de candidaturas, ou duas ou três alternativas, que, no final, não se confirmaram viáveis. E Bolsonaro saiu de cerca de 20% para vencer no segundo turno com mais de 60% dos votos.
Havia outra diferença fundamental: Bolsonaro encarava a nova política e o combate à corrupção. A maioria que queria mudar a situação do país via nele a única alternativa competitiva diante de candidatos do PSDB, do PT, ou apoiados pelo MDB, representantes da “velha política”, que foram ficando pelo caminho. Com exceção de Lula, que liderava as pesquisas e, certamente, levaria Bolsonaro para um segundo turno. Hoje já existe a percepção dos que se enganaram de que o presidente Bolsonaro não é aquele que parecia ser, nem no combate à corrupção, nem na confrontação com a “velha política”.
Depois que seu filho Flavio começou a ser investigado pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, acusado de praticas ilegais em seu gabinete de deputado estadual na Assembléia do Rio de Janeiro, Bolsonaro dedicou-se à mais antiga das práticas políticas: aparelhar os órgãos de investigação para controlá-las, boicotar a Operação Lava-Jato, constrangendo seu ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, fazer acordos dentro do Congresso para conseguir aprovar o mesmo Flavio como embaixador nos Estados Unidos, indicação, aliás, que desagradou boa parte de seus seguidores.
Os interesses pessoais da família Bolsonaro passaram a ser prioritários em relação aos supostos projetos de governo. Nomeações de autoridades com o beneplácito dos filhos, e de amigos deles, passaram a ser corriqueiras. O presidente do BNDES é amigo de infância, o delegado escalado para substituir o superintendente da Polícia Federal também é bem relacionado com eles. Por tudo isso, a polarização, embora exista, não encontra o mesmo terreno fértil da campanha presidencial.
Comparando-se pesquisas de popularidade do Datafolha sobre os governos Collor e Bolsonaro em três períodos (expectativa antes da posse, após três meses de governo, e depois de seis meses), vê-se que a avaliação de “ótimo e bom” é a mesma, dentro da margem de erro.
O problema começa quando se analisa o regular de Bolsonaro, que é muito menor do que o de Collor na mesma época. Em decorrência, o ruim e péssimo de Bolsonaro é muito maior do que o de Collor. Na politica, as nuvens mudam de forma rapidamente, como ensinava Magalhães Pinto. Analistas admitem que não é possível dizer que a popularidade de Bolsonaro terá a mesma trajetória da de Collor daqui para frente, mas, sem dúvida, a recuperação, caso ocorra, tende a ser mais difícil.