Merval Pereira

Merval Pereira: o Dito pelo não dito

Depois de receber um cartão vermelho simbólico do presidente do PSL, Luciano Bivar, teve que recuar

O presidente Bolsonaro descobriu, nesse episódio da briga com a direção do PSL, que pode muito, mas não pode tudo. Deu uma de Jânio, ameaçou sair do partido pelo qual se elegeu, e deu com os burros n’água. Ficou o dito pelo não dito.

Depois de receber um cartão vermelho simbólico do presidente do PSL, Luciano Bivar, teve que recuar. Em entrevista ao site O Antagonista, o presidente, apesar de reiterar as críticas, deixou escapar o centro das divergências: “Eu não quero esvaziar o partido. Quero que funcione. O PSL caiu do céu para muita gente, inclusive para o Bivar. O que faço é uma reclamação do bem. O partido tem que funcionar, tem que ter a verba distribuída, buscar solucionar os problemas nos diretórios. Todo partido tem problema. O presidente, o tesoureiro, eles têm que solucionar isso.”

Bolsonaro tem razão quando diz que “o partido caiu do céu para muita gente, inclusive para o Bivar”. Por sua causa, o PSL recebeu 10,8 milhões de votos para deputado federal a mais nessas eleições do que em 2014.

Na última disputa para a Câmara dos Deputados, sem Bolsonaro, o partido tivera apenas 808 mil votos. Já em 2018, foram 11,6 milhões. Por isso, o partido terá nada menos que R$ 359 milhões em 2020, com os fundos Partidário e Eleitoral. Mais que o PT, (R$ 350 milhões) e o MDB (R$ 246 milhões).

A engorda do Fundo Partidário se deveu a Eduardo Bolsonaro, eleito com mais de 1,8 milhão de votos, o deputado federal mais votado da história do Brasil. Superou Éneas (1.573.642 em 2002 pelo Prona) e Celso Russomanno (1.524.361 votos em 2014). A candidata de primeiro mandato Joice Hasselmann, também do PSL, foi outra campeã de votos em São Paulo, com mais de 1 milhão de votos, superando Tiririca, do PR, que teve 1.016.796 votos em 2014, mas caiu para cerca de 500 mil votos em 2018.

Além de aumentar as bancadas de seus partidos, ajudando a eleger vários deputados com a votação que excedeu o quociente eleitoral, esses puxadores de voto aumentam também o fundo partidário distribuído pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anualmente aos partidos que participaram das eleições para a Câmara.

A maior parte dos recursos - 95% - é distribuída entre os partidos de acordo com o número de votos obtidos na eleição para a Câmara dos Deputados (os 5% restantes são divididos igualmente). Cada voto obtido por uma legenda equivale, todo ano, a uma determinada quantia. Hoje, deve estar por volta de R$ 30,00. Isso quer dizer que só Eduardo Bolsonaro deu ao PSL cerca de R$ 54 milhões, além de ter elegido três outros deputados federais.

Os grandes puxadores de voto também recebem uma atenção especial dos partidos, assim como os grandes craques de qualquer esporte têm remuneração variável pela performance, ou executivos recebem bônus por produtividade.

O partido de Bolsonaro tem ainda as maiores votações de cinco estados. Hélio Negão, como é conhecido, obteve 480 votos quando disputou uma vaga de vereador no Rio. Em 2018, como Hélio Bolsonaro pelo PSL, os votos pularam para 345.234, tendo sido o deputado federal mais votado.

São filiados ao PSL os deputados mais votados de Goiás, Delegado Waldir, hoje líder do partido, do Mato Grosso, Nelson Barbudo; de Minas Gerais, Marcelo Alvaro Antonio, ministro do Turismo às voltas com denuncias de ter usado candidatas laranjas para desviar dinheiro para sua campanha.

Na chamada "janela partidária", um período de 30 dias corridos antes de o prazo de filiação se encerrar, seis meses antes do pleito, os parlamentares podem trocar de partido sem a ameaça de perda de mandato. Deputados podem mudar, fora da janela eleitoral, se expulsos sem justa causa ou se houver fusão de legendas.

Nem os votos, nem o tempo de televisão, que é contado pela bancada eleita em 2018, e não pela atual, migram para a nova legenda, a não ser que seja um novo partido criado. E mesmo assim é uma questão a ser decidida pelo Tribunal Eleitoral.

É essa a aventura que Bolsonaro teria que encarar, a um ano das eleições municipais, convencer deputados a trocar o certo pelo duvidoso, criar um novo partido do zero, para ter tempo de televisão e dinheiro para a campanha municipal. Por isso, recuou para a defesa e procura rearrumar o time, com o mesmo Luciano Bivar, que disse estar queimado, na presidência da legenda.


Merval Pereira: Dirigismo cultural

Critério do que é pornográfico é de Bolsonaro, como se dinheiro público também fosse dele. Essa não é a função do governo

A intromissão do governo na vida pessoal dos cidadãos é a ambição de todo governo autoritário, de esquerda ou de direita. Quando há uma ditadura, como na China, é fácil até mesmo controlar o dia a dia do cidadão, como o governo pretende fazer a partir do próximo ano pondo em prática o Sistema de Crédito Social, que dará nota aos cidadãos de acordo com seu comportamento cotidiano, que será monitorado pelo governo.

Esse programa definirá o grau de confiança do governo no cidadão. Conforme a pontuação, cidadãos serão proibidos de viajar, ou de colocar filhos em boas escolas, ou de trabalhar. Pode transformar alguém em pária, ou em burocrata bem-sucedido.

Aqui, como ainda somos uma democracia, o governo está inaugurando um sistema de monitoramento tupiniquim, com burocratas checando nas redes sociais o pensamento e o comportamento político de artistas e produtores que pretendam financiamento para suas obras dos órgãos públicos.

Na Caixa Econômica já começou. Para o presidente Bolsonaro, trata-se de não “perder a guerra da informação”. O que ele chama de “mudanças na questão da cultura, da Funarte, da Ancine”, é simplesmente censura oficializada, pois determinou que “não veremos mais certo tipo de obra por aí”.

Para Bolsonaro, “não é censura, isso é preservar os valores cristãos, é tratar com respeito a nossa juventude, reconhecer a família como uma unidade familiar, essa é a nossa linha”. O presidente já definiu claramente o que pensa: se quiserem fazer filmes pornográficos, façam com dinheiro próprio, não com dinheiro público.

Simples assim. O critério do que é pornográfico é dele, como se o dinheiro público fosse também dele. Essa não é a função do governo no financiamento público da cultura. Ao contrário, um governo democrático tem obrigação de estimular e financiar a diversidade cultural.

O conceito intervencionista e dirigista que está por trás do suposto projeto cultural do governo Bolsonaro, que já faz seus efeitos na autocensura dos dirigentes de órgãos que temem punições, pode ser espelhado na tentativa dos governos petistas de controlar a produção cultural.

O presidente Bolsonaro vê a área de cultura aparelhada pela esquerda, e quer fazer o seu próprio aparelhamento ideológico, pela extrema direita.

A tentativa de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) no governo Lula, com o objetivo de garantir uma “contrapartida social” à produção cultural, tem o mesmo sentido da criação do Conselho Federal de Jornalismo, para “regulamentar, disciplinar e fiscalizar o exercício profissional” e “zelar pela qualidade da informação e pelo exercício ético do jornalismo”.

Essa, aliás, é uma ojeriza comum aos governos autoritários de direita e de esquerda: detestam a imprensa independente. O presidente Bolsonaro refere-se às empresas de comunicação brasileiras como “abjetas”, “mentirosas”, e procura constranger jornalistas escolhidos como adversários pessoais, assim como faz Trump nos Estados Unidos, e como fazia Lula em seus tempos de liberdade.

Nos tempos petistas, até mesmo associações que teoricamente deveriam representar os jornalistas associaram-se ao governo para “enfrentar e combater a manipulação da informação, a distorção de fatos e as práticas jornalísticas que privilegiam interesses escusos em detrimento do cumprimento da função social do jornalismo”.

Com as mesmas palavras, o governo de hoje, que se contrapõe ao de ontem, e vice-versa, tenta controlar a imprensa e as manifestações culturais. Enquanto o PT quis incluir a tal da “contrapartida social” nos incentivos culturais, o governo Bolsonaro tenta incluir seus pensamentos e crenças, seus valores morais, como régua para os demais cidadãos, alegando que está “preservando os valores da família cristã”.

Quem define quais são os “valores da família cristã”? O que seja manipulação da informação? Qual é a “função social” do jornalismo? Denunciar os desvios do governo, qualquer governo, seria uma delas? E quais são as “contrapartidas sociais” para financiamentos de obras audiovisuais?

De esquerda ou de direita?


Merval Pereira: A arma do Congresso

Só recentemente Bolsonaro começou a se relacionar com deputados e senadores na linguagem que eles entendem

O levantamento do pesquisador da USP Guilherme Faria Guimarães, divulgado pelo GLOBO, que demonstra que o presidente Jair Bolsonaro é o presidente que teve mais vetos derrubados pelo Congresso nesses primeiros nove meses de governo desde 1988, reflete a dificuldade que o novo governo tem no relacionamento com os parlamentares.

Dos 33 vetos analisados, oito (24%) foram rejeitados de forma parcial ou total. Entre 1988 e 2014, apenas oito de 1.103 proposições vetadas foram rejeitadas pelo Congresso. É certo que a comparação não obedece aos mesmos parâmetros, pois, só a partir de 2013, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) passou a tornar obrigatória a análise dos vetos pelo Congresso, é que os parlamentares passaram a derrubá-los.

Uma resolução interna, em seguida, obrigou os parlamentares a analisarem as normas vetadas em até 30 dias. Mesmo assim, a então presidente Dilma teve 9,5% dos vetos derrubados e, no governo Temer, o número aumentou para 14%.

O presidente Bolsonaro começou o governo optando por não ter uma base governista formal. Tentou negociar por bancadas: evangélica, da bala, da saúde, e assim por diante. Como essas bancadas são transversais aos partidos, pensava poder contornar as direções partidárias, e negociar diretamente com os parlamentares. Não deu certo.

Teve que negociar com os partidos, mas foi uma relação conflituosa desde o início, pois Bolsonaro baseou sua campanha vitoriosa à Presidência da República na demonização da política tradicional, se apresentando como representante da “nova política”, contra o que seria a “velha política”.

Apesar de estar na política por quase 30 anos, dizia-se um “outsider” por ser do chamado “baixo clero” e nunca ter participado das negociações de cúpula do Congresso.

Essa relação conflituosa do governo Bolsonaro com o Congresso tem como consequência o número recorde de derrubada de seus vetos, uma forma de pressão dos políticos contra o Palácio do Planalto, que já teve que mudar de negociador parlamentar várias vezes nesses primeiros meses.

Só recentemente Bolsonaro começou a se relacionar com deputados e senadores na linguagem que eles entendem: liberando verbas e cargos para seus indicados.

O governo, que não tem uma base formal e articulada, começa a fazer o jogo da política tradicional.

A reviravolta tem a ver com os episódios envolvendo seu filho Flávio quando deputado estadual no Rio. Desde que surgiu a figura do Queiroz, hoje tristemente famoso, tem havido uma série de ações para controlar as investigações, com o apoio do Supremo Tribunal Federal (STF), cujo presidente Dias Toffoli participou de um estranho “pacto republicano” entre os Três Poderes da República a pretexto de proteger a governabilidade de nossa democracia.

As ações de investigação do antigo Coaf ( Conselho de Controle de Atividades Financeiras) foram restringidas por ordem do STF, e a transferência do Ministério da Justiça para o Banco Central, com o nome de Unidade de Inteligência Financeira, limitou ainda mais a atuação do controle financeiro, que havia detectado “operações atípicas” de Queiroz.

Também a Receita Federal teve sua atuação limitada por decisões judiciais, e por legislações aprovadas pelo Congresso. A importância de ter o apoio do Senado, onde está hoje o filho Flávio, e que vai decidir o futuro do outro filho, Eduardo, como embaixador em Washington, está demonstrada pela manutenção do senador Fernando Bezerra como líder do governo, depois de acusado pela Polícia Federal de participação em esquema criminoso em obras públicas.

Outro acordo político, desta vez de ordem interna, é o que mantém no cargo o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, mesmo depois de indiciado pela Polícia Federal e denunciado pelo Ministério Público de Minas como participante do esquema de financiamento ilegal do PSL.

Não há nada que envolva diretamente o presidente Bolsonaro no esquema que teria sido montado por seu partido, o PSL, pois seu nome não está na planilha que baseia a acusação. O presidente pensa inclusive em deixar o partido pelo qual concorreu.

Mas a dificuldade que está tendo em tirar seu ministro indica uma mudança de comportamento em relação ao combate à corrupção, outra pedra de toque de sua campanha vitoriosa.


Merval Pereira: Uma chanchada shakespeariana

Se o gênero humano está representado nas peças de Shakespeare, não poderia ser diferente com a nossa história política

Samuel Johnson, pensador britânico do século XVIII, dizia que os personagens das peças de Shakespeare resumiam a “progênie da humanidade”, sem faltar “nenhum tipo humano relevante, ou sentimento”. O poeta Geraldinho Carneiro, meu colega da Academia Brasileira de Letras, convidado pelo Sesc a traduzir e adaptar a peça de Shakespeare “Otelo, o Mouro de Veneza”, teve seu texto de apresentação do espetáculo censurada.

Ele escreveu que, ao iniciar o trabalho, descobriu “que Iago adoraria o mundo de hoje, onde suas fake news fariam sucesso nas redes sociais. Afinal, nunca houve personagem mais competente em matéria de armações e calúnias”.

Trazendo a trama para nossos dias, ele escreveu: “Imagine um oficial de baixa patente que é preterido na carreira, e, movido pelo ressentimento, pretende destruir a república, representada pelo general Otelo e uma mocinha da classe dominante. A alegoria é tão clara que não me atrevo a decifrá-la. Fica a seu critério, caro espectador”.

O texto cita o professor americano Harold Goddard, que disse que Iago "está sempre em guerra, é um piromaníaco moral, que ateia fogo à realidade.". Mas se abstém de fazer analogias, de todo modo óbvias.

Como já escrevi aqui na coluna, também o economista Gustavo Franco, estudioso da obra de Shakespeare, diz que “os enredos políticos do nosso noticiário não passam de variações empobrecidas sobre um vernáculo catalogado há cerca de 400 anos”.

Ele e o advogado José Roberto Castro Neves, outro especialista na obra do bardo, fizeram um trabalho interessante, comparando seus personagens a figuras da cena política. Sobre comparação implícita de Geraldinho Carneiro de Iago a Bolsonaro, José Roberto Castro Neves diz: “O texto é ótimo, mas o Iago era muito mais sofisticado”.

Também a ex-ministra Marina Silva escreveu um artigo comparando Lula ao Rei Lear, pondo-se no lugar de Cordélia, a terceira filha, a não bajuladora, e, por isso mesmo, banida em benefício das duas outras, bem mais ambiciosas, Goneril e Regan.

Quando Lear rejeita Cordélia, e decreta seu banimento — ou a demite do Ministério do Meio Ambiente —, segundo Marina, “não por acaso desmorona seu mundo. O que antes era tão bem definido passa a ser ambivalente. Ele só existe no mundo daqueles que o aceitam e o amam tal como é”.

Tornou-se merecedor da reprimenda feita por meio das palavras do bobo: “Tu não deverias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”. Lear é um belo retrato da decadência de um rei que se ilude com a sensação de que anda sobre as águas, comenta Gustavo Franco.

Falstaff, personagem de várias peças de Shakespeare, foi descrito como “simpático cachaceiro, oportunista pândego e covarde espirituoso”. Seria o tipo mais macunaímico de toda a galeria shakespeariana.

“Nenhum personagem foi mais carismático, cometeu gafes e pronunciou tantos ditos espirituosos próprios de um humor de taverna, que se tornou sua marca”. Falstaff tornou-se um personagem gigantesco, destaca Gustavo Franco, contrariamente a todos os prognósticos. “Sempre retratado como gordo e barbudo, de um humor bonachão e etílico, não é preciso especular um segundo sobre onde Falstaff reencarnou no Brasil contemporâneo”, ironiza.

Falstaff,destacam Franco e Castro Neves, é o verdadeiro herói de “Henrique IV” aos olhos do público, pois é quem mais se parece com ele, e, se as coisas fossem se decidir por eleições gerais — um homem (ou mulher), um voto — Falstaff ganharia todas”.

Laertes “se torna uma espécie de Ciro Gomes, movido unicamente pelo ódio imerecido a Hamlet”. Ciro tem muito também de Coriolano, o brilhante general que se voltou contra Roma, depois de preterido. Coriolano também veste o perfil de Bolsonaro: tinha enorme ressentimento da elite política, que o preteriu, a despeito de seu heroísmo. Era o outsider agressivo.

Angelo, um puritano hipócrita em “Medida por medida”, também lembra Bolsonaro. Petruchio em “A megera domada”, tentando controlar Catarina, “brusca, irritada e voluntariosa” e, finalmente, domando-a com brutalidade, refere-se ao machismo atribuído a Bolsonaro.

Se o gênero humano está representado nas peças de Shakespeare, não poderia ser diferente com a nossa história política, sobretudo a recente, marcada tanto pela tragédia quanto pela comédia.


Merval Pereira: De volta ao futuro

O sonho de Bolsonaro é Lula livre. Repetir a disputa petistas x antipetistas é o caminho mais curto para ficar no Planalto

Sérgio Moro dizer que Bolsonaro é seu candidato a presidente em 2022 tornou-se uma das declarações mais impactantes dos últimos dias. Afinal, Moro é o melhor cabo eleitoral em circulação, já que Lula continua encarcerado. Mas não convence ninguém, principalmente o presidente, de que ali na Esplanada dos Ministérios não está instalado um potencial adversário na disputa presidencial.

Bolsonaro lançar o prefeito de Salvador ACM Neto a presidente, para irritar o governador petista da Bahia Rui Pimenta, sugere que o presidente, que dizia que não se candidataria à reeleição, só pensa naquilo.

Não foi por acaso que já atacou, do nada, o governador João Doria e o apresentador de televisão Luciano Huck. São possíveis candidatos à presidência com ativos políticos fortes: um atua no maior colégio eleitoral do país, o que torna qualquer governador paulista candidato automático.

O outro é muito popular, viaja por todo o país com seu programa, e desde 2018, quando quase disputou a eleição presidencial, tomou gosto por estudar questões nacionais e dedica-se a um projeto de formar cidadãos capazes de serem políticos modernos através da ONG Renovar BR.

O sonho de consumo de Bolsonaro é ver Lula livre. Repetir a disputa entre petistas e antipetistas é o caminho mais curto para permanecer oito anos no Palácio do Planalto, mas, para isso, não pode abrir espaço para um candidato de centro competitivo.

Lula, se conseguir que sua condenação pelo triplex do Guarujá seja anulada, tem todas as condições de iniciar uma campanha de recuperação de imagem. Criatividade e disposição não lhe faltam.
Depois de mais de um ano na prisão, acusado de comandar o maior esquema de corrupção já descoberto no país, ainda consegue criar fatos políticos, como anunciar que não aceita o regime semiaberto, por ser inocente.

Se a condenação for anulada, sairá da cadeia com um selo de perseguido político dado pelo STF, o que validará sua versão. Controlar a Operação Lava Jato, para que deixe de ser percebida como uma instituição de combate à corrupção apartada das demais da Justiça brasileira, é mais atraente para muitos ministros do Supremo, e parlamentares, do que a condenação de Lula e de outros criminosos do colarinho branco apanhados pela ampla rede de investigações que foi montada a partir de Curitiba.

Tentar validar provas roubadas, retardar os processos, fazendo-os retroceder em nome da ampla defesa, faz parte dessa estratégia. Assim como a proposta do novo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, de descentralizar os inquéritos, criando várias forças-tarefas pelos estados.

Esvaziar Curitiba como responsável pelos êxitos do combate à corrupção ajudaria a desmontar a imagem de Moro e dos procuradores da Lava Jato. O Supremo já está fazendo parte do serviço mandando para a primeira instância ou para a Justiça Eleitoral processos desmembrados da Lava Jato.

Todos são muito ciosos de suas áreas de poder em Brasília, e cada um quer preservar a sua. Até mesmo o governador do Rio, Wilson Witzel, que se lançou candidato a presidente da República logo depois de se eleger surpreendentemente, entrou em colisão com o presidente, que já aconselhou o “Naval”, como chama Witzel, por ter sido fuzileiro naval, a não disputar a eleição presidencial.

Por que Bolsonaro antecipou tanto a disputa eleitoral, fazendo com mais profundidade o que sempre criticou em seus adversários? Tudo indica que Bolsonaro gosta mais de disputar do que de governar. Assim como Lula, que não sai do palanque nem mesmo na cadeia.

Um populista de direita contra outro de esquerda, e o país fica refém de um jogo politico em que as partes se acomodam em torno do mesmo interesse comum, sem abrir espaço para outras forças políticas.

Lula domina a esquerda e impede que outros candidatos se viabilizem, como aconteceu com Ciro Gomes na eleição de 2018 ou com Marina Silva desde 2014. Bolsonaro quer tomar conta da centro-direita. Assumiu o controle do eleitorado do PSDB no centro-oeste e no sul justamente por ser o candidato competitivo para derrotar o petismo.

Cada um com seus defeitos e qualidades, prefere lutar contra o outro a enfrentar um candidato de centro. Bolsonaro espera ser novamente a alternativa realista contra o PT. Lula torce para que o governo Bolsonaro confirme sua tendência ao autoritarismo. Como no Brasil até o passado é incerto, como se vê agora com a novidade do STF de anular os julgamentos em que o delator falou depois do delatado, não é possível, com três anos de antecedência, saber o que nos aguarda como “país do futuro”.


Merval Pereira: Poder em disputa

Moro insinua que sanha contra Lava-Jato, de ministros do STF e parlamentares, será combatida com apelos à opinião pública

A disputa em torno da Operação Lava-Jato acirra-se em dois planos. No Supremo, há movimentos para antecipar decisões sobre a prisão em segunda instância, e a suspeição de Moro quando juiz em Curitiba, que podem favorecer o ex-presidente Lula.

No Congresso, o ministro Sergio Moro, auxiliado por uma campanha publicitária do governo, tenta reverter uma situação difícil para aprovar no plenário alguns pontos de seu pacote anticrime derrubados em comissões.

Não foi à toa que, no discurso de lançamento da campanha ontem, que já ganhou imensos painéis na Esplanada dos Ministérios para atrair a atenção do público, Moro destacou como um dos pontos principais de seu programa a prisão em segunda instância. Atribuindo a tese ao falecido ministro do STF Teori Zavascki, para colocar em constrangimento os ministros que pretendem derrubá-la no Supremo.

O que o ministro da Justiça e Segurança Pública insinua é que a sanha de derrotar a Lava-Jato, que une ministros do Supremo e parlamentares, será combatida com apelos à opinião pública.

A popularidade de Moro continua inabalável, apesar de as mensagens roubadas dos celulares dos procuradores de Curitiba terem afetado gravemente a credibilidade destes, e também reduzido os índices de aprovação do próprio Moro.

Mas não o suficiente para deixá-lo sem o seu maior trunfo, o apoio da opinião pública. Que é tão forte que o próprio presidente Bolsonaro, que já esteve disposto a rifá-lo, sentiu-se obrigado a citá-lo em seu discurso da ONU como símbolo do país.

Ontem, o presidente Bolsonaro levou para o Palácio do Planalto o lançamento da campanha a favor do pacote anticrime, que já está sendo contestada na Justiça por membros da oposição. E também por parte dos políticos que potencialmente fariam parte de uma suposta base governista.

Esta é uma briga política das grandes, que envolve disputa de poder, onde os dois lados esgrimam seus trunfos. No Supremo, os ministros que querem enquadrar a Lava-Jato argumentam com abusos cometidos contra a ampla defesa dos condenados.

Do lado dos procuradores, difunde-se a narrativa de que há uma ampla campanha contra o combate à corrupção, que reúne ministros do Supremo, deputados, senadores e, vez por outra, o próprio presidente da República, que se equilibra numa linha tênue que demarca seus interesses pessoais do interesse do Estado.

Em um momento o Supremo está do seu lado, proibindo, através de decisões dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, investigações sobre possíveis desvios de conduta do filho Flávio, hoje senador, quando era deputado estadual.

No outro, Bolsonaro está do lado de Moro, defendendo o combate à corrupção, porque parte de seu eleitorado já estava decepcionada com as indicações de que queria tirar Moro do Ministério da Justiça e Cidadania.

A disputa dentro do Supremo, que provocou o adiamento da discussão da tese proposta pelo ministro Dias Toffoli para orientar as demais instâncias sobre a nova interpretação da lei, que diz que os delatores têm que falar nas alegações finais antes do delatado, é de teor jurídico, mas de fundo político.

O princípio da ampla defesa do réu é virtuoso, mas serve também para controlar o Ministério Público e juízes como Moro, que tentam uma autonomia processual que muitas vezes assume ares, aos olhos de alguns ministros, de insubordinação.

O ministro Gilmar Mendes, que tem o galardão de ter sido dos primeiros, se não o primeiro, a se insurgir contra o que considera abusos da Operação Lava-Jato, trabalha com o intuito de submeter os procuradores à tutela do Supremo, — ele dirá da lei —para que o cachorro continue abanando o rabo, e não o contrário.

Para isso, não se inibe de usar provas inválidas para marcar sua posição. Os diálogos roubados por hackers e divulgados pelo site The Intercept e outros jornais e revistas foram usados pelo ministro Gilmar Mendes para demonstrar que os procuradores zombavam do Supremo e de alguns de seus ministros.

Nenhum dos citados declarou-se ofendido de fato, e os comentários podem ser considerados, ao contrário, comemorações pelo apoio que pressentiram vir de membros do Supremo. É claro que, fora do contexto, e numa leitura crítica, podem ser vistos como ofensivos, e, sem dúvida, representam informalidade indevida no trato de procuradores e ministros do Supremo.


Merval Pereira: Nulidade relativa

Gilmar Mendes aproveitou para tratar do assunto a que mais se dedica, falar mal dos procuradores de Curitiba e de Sergio Moro

Mesmo sem entrar no mérito da decisão que o Supremo Tribunal Federal (STF) vier a tomar, na conclusão do julgamento sobre qual o alcance da nova regra que exige que o réu delator fale antes dos demais réus nas alegações finais dos julgamentos, houve na sessão de ontem momentos que são definidores da posição de vários ministros, não sem frequência discordantes entre si, mas ontem com algumas concordâncias heterodoxas.

O ministro Marco Aurélio Mello tirou o presidente Dias Toffoli do sério ao classificar a decisão de “jeitinho brasileiro”, pois não existe nada que indique na legislação em vigor que réus são diferentes entre si.

Para Marco Aurélio, que se orgulha de estar quase sempre na contramão de seus pares, o STF está legislando sobre um tema que não lhe compete, que deveria ficar a cargo do Legislativo. Ele também foi contra que o plenário definisse uma orientação a ser seguida pelo sistema judiciário como um todo.

Disse que uma decisão generalista deixará de lado aspectos específicos de cada caso, impedindo milhares de réus que se considerem prejudicados em seus julgamentos de recorrer. Isso porque a decisão do plenário de anular a condenação de um ex-gerente da Petrobras por ter sido ouvido ao mesmo tempo que seus delatores, deve ser estendida apenas aos que reivindicaram, e não foram atendidos, desde a primeira instância, essa prerrogativa de ser ouvido depois do delator.

Marco Aurélio alegou, concordando com o ministro Alexandre de Moraes, que haverá um tratamento desigual para casos semelhantes. O ministro Ricardo Lewandowski lembrou que réus que não tiveram condições de pagar um bom advogado podem ter perdido a chance de exigir essa prerrogativa que agora o STF tornou obrigatória.

Lewandowski e Moraes consideram que a nulidade é absoluta, enquanto Marco Aurelio não vê nulidade alguma. A maioria parece considerar que ela é relativa, e o que se discute é como demarcar a validade da decisão nos julgamentos já realizados.

A exigência de provar o prejuízo causado pelo não cumprimento dessa determinação é o ponto mais polêmico, porém importante, da proposta de Toffoli

Marco Aurélio disse que a decisão seria favorável aos tubarões, e que dificultaria o combate à corrupção. Mexeu com dois de seus pares, o próprio Toffoli, que em sua fala respondeu indiretamente, lembrando que a decisão vai alcançar todos os réus, não apenas os da Lava Jato, e ajudará também os mais pobres, e o ministro Gilmar Mendes, seu velho desafeto, que lembrou que sempre esteve a favor do combate ao crime, mas sem a utilização de outros crimes. Citou decisões que tomou para dizer que “aqui ninguém pode me dar lição de moral”.

O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, acabou apoiado pela maioria do plenário na sua proposta de definir uma tese para ser seguida pelo Judiciário em todos os níveis. Em nome da segurança jurídica e do interesse social, viu sua tese ser apoiada pelo ministro Luis Roberto Barroso, que deu os argumentos técnicos para confrontar a tese de Lewandowski, que exigia um quorum de 8 votos para aprovar o que chamou de “modulação” proposta por Toffoli.

Desde a semana passada o ministro Gilmar Mendes repetia que o STF não faria uma modulação, que trata de inconstitucionalidades, mas definiria os termos da decisão. Tratava de evitar a armadilha do quorum qualificado, no que foi apoiado pela maioria.

O ministro Gilmar Mendes aproveitou a ocasião para tratar do assunto a que mais se dedica, falar mal dos procuradores de Curitiba e do ministro Sergio Moro, a quem acusou de transformar a prisão preventiva em “instrumento de tortura” para obter confissões dos presos: “Quem defende a tortura não pode fazer parte desta Corte”, asseverou, referindo-se à possibilidade de Moro vir a ser indicado por Bolsonaro para uma vaga no STF.

Tanto ele quanto o presidente Dias Toffoli usaram e abusaram de pausas dramáticas nas suas falas, Toffoli rebatendo as criticas de Marco Aurélio, sem citá-lo, mas olhando-o fixamente. Gilmar, para citar trechos do The Intercept que revelaram, segundo sua indignação, atitudes dos procuradores da Lava Jato contra ministros e o próprio Supremo Tribunal Federal.

Gilmar deu mais atenção às acusações reveladas pelas conversas roubadas dos celulares dos procuradores do que ao caso em si, que tratou como mais um desdobramento dos abusos de poder cometidos pela “República de Curitiba”. No auge de sua indignação, insinuou um “fetiche sexual” entre procuradores e juizes da Lava Jato.


Merval Pereira: Lula se debate

Mandela era um preso político, enquanto Lula é um político preso, condenado por corrupção

Dois movimentos quase simultâneos, que não se pode afirmar combinados, aceleraram a tentativa de definir no Supremo Tribunal Federal (STF) processos que, de maneira direta, influenciarão o destino penal do ex-presidente Lula.

O ministro Ricardo Lewandowski pediu à presidência do Supremo que apresse a inclusão na pauta da definição sobre a possibilidade de prisão em segunda instância. Ele mandou ao plenário nada menos que 80 habeas corpus que concedeu para que réus recorressem em liberdade, mesmo condenados em segunda instância.

Se a prisão em segunda instância for derrubada no julgamento definitivo de três Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), impactará muito mais o combate à corrupção do que diretamente a Lula, pois a decisão deve ser que a prisão poderá ser feita depois de julgado recurso no STJ, e Lula já está condenado nesta instância no caso do triplex do Guarujá.

Mas adiará a decisão sobre novas penas de prisão dos demais processos contra Lula que eventualmente vierem a condená-lo. Também a decisão do STF de determinar que os delatores têm que apresentar suas alegações finais antes dos demais réus, a ser finalizada hoje, não afeta a condenação no caso do triplex, mas pode retardar o processo sobre o sítio de Atibaia, que já está na fase de recurso no TRF-4, e pode regredir.

Também a defesa de Lula pediu que seja retomado o mais rápido possível o julgamento sobre a parcialidade do então juiz Sérgio Moro, na tentativa de anular a condenação de Lula no caso do triplex, pelo qual foi condenado a 8 anos e 10 meses de cadeia em regime fechado.

É nesse processo que está a esperança do ex-presidente de ser libertado sem dever nada à Justiça, ao contrário, saindo com o atestado do STF de que foi perseguido e injustiçado. É por isso que ele está se recusando a aceitar a progressão da pena para o regime semiaberto.

Caso semelhante aconteceu em Portugal, onde o ex-primeiro-ministro José Sócrates se recusou a usar tornozeleira, e o juiz do caso decidiu mantê-lo no regime fechado. Em Portugal o condenado tem o direito de não aceitar condicionantes para a progressão de pena, o que no Brasil é controverso.

Há advogados que consideram que a transferência do regime fechado ao semiaberto deve ser feita sem a imposição de medidas condicionantes além das definidas na lei.

Mas, se devido à inexistência de estabelecimento adequado, colônia agrícola ou industrial, o que acontece com freqüência no Brasil, o juiz estabelecer condições que o apenado discorde, como monitoração eletrônica na prisão domiciliar, o condenado tem direito de recusar.

Neste caso, o juiz pode impedir a progressão, mantendo-o em regime fechado. Foi o que aconteceu com Sócrates na ocasião. Os procuradores de Curitiba consideram que é um dever do estado não manter o preso para além da medida da lei.

Lula diz que só aceita sair se for inocentado ou se o julgamento for anulado e provarem que ele é inocente, exigências que não existem na lei. Algumas pessoas gostam de comparar Lula a Mandela, numa ação política risível, a começar pelo fato de que Mandela era um preso político, enquanto Lula é um político preso, condenado por corrupção.

No caso do sul-africano, a liberdade era uma concessão do governo racista da África do Sul a Mandela, e não baseada nas leis do país, e ele recusou. Lula conseguiu a progressão da pena porque cumpriu um sexto dela, e não por bondade dos órgãos de Justiça.

Ele acredita que até o final do ano seu julgamento será anulado, pela suspeição do juiz Sergio Moro. Esse julgamento está suspenso na 2ª turma do STF, já com dois votos contra, dos ministros Edson Fachin e Carmem Lucia.

O argumento do pedido de suspeição é frágil, o fato de Moro ter aceitado ser ministro do governo Bolsonaro. Mas os diálogos roubados por hackers entre procuradores e Moro, embora sejam inválidos como prova, estão na cabeça de todos os ministros, podem ser apagado dos autos, mas não deixarão de ter seus efeitos na decisão.

A defesa de Lula não juntou os diálogos ao processo, por sabê-los provas inválidas, e, teoricamente, o que não está nos autos não está no mundo, não existe para um juiz. Mas as revelações causaram prejuízos à imagem dos procuradores. Como é Moro que está em questão, é difícil aceitar um argumento tão frágil para assumir uma responsabilidade de anular julgamentos que já foram feitos em três instâncias, até o Superior Tribunal de Justiça (STJ), todos com resultados contrários a Lula.


Merval Pereira: Um caso curioso

Este é um caso singular, provavelmente inédito, de um preso (o ex-presidente Lula) que não quer progredir de regime prisional, e impõe condições para aceitá-lo

O ex-presidente Lula dizer que só aceita sair da prisão se for absolvido, ou tiver o julgamento anulado, é uma declaração tão política quanto ele considera política a decisão dos procuradores de Curitiba de pedir a progressão de sua pena.

Lula não tem o direito de recusar a progressão, assim como o Ministério Público, como parte da ação, pode pedir a progressão da pena, de acordo com a Lei de Execuções Penais. Mas a defesa de Lula não pediu, e ontem ele se reuniu com advogados e políticos para definir sua estratégia.

Se for obrigado a acatar uma provável decisão de ir para o regime semi-aberto, Lula não quer usar tornozeleira eletrônica, nem ter que voltar à noite para a prisão. A decisão será da rigorosa Juíza Carolina Lebbos.

Este é um caso singular, provavelmente inédito, de um preso que não quer progredir de regime prisional, e impõe condições para aceita-la. A discussão jurídica é se se trata de um direito subjetivo alienável, (do qual ele pode abrir mão), ou inalienável, que ele não pode recusar.

Vai ser curioso se, por exemplo, a juíza determinar a progressão de regime e a defesa recorrer contra a decisão, pedindo que o Lula fique preso em regime prisional mais grave.

Na visão dos procuradores, resumida nas palavras do procurador Marcelo Ribeiro, foi cumprido o requisito de tempo para progressão, que tem duas faces: uma é de direito do réu, a outra de obrigação do Estado. Nessa situação, o Ministério Público, como fiscal da lei, deve pedir e, mesmo se não pedir, a Justiça deve dar, porque o Estado não pode exercer mais poder do que tem.

Do mesmo modo que uma pessoa sem condenação não pode ser levada à prisão, ainda que queira, um condenado não pode ser mantido em regime prisional mais gravoso do que a lei determina, ainda que queira, sob pena de excesso de poder, em infração à lei.

Preenchidos os requisitos para progressão, o Estado só pode exercer o poder de manter o preso no regime que a lei determina. O ex-presidente deve receber o tratamento da lei, nem mais, nem menos. O pedido de progressão feito pelo Ministério Público é obrigação, como com qualquer réu.

Para o chefe dos procuradores, Deltan Dallagnol, além da Lei de Execuções Penais, sendo o Ministério Público o “fiscal da Lei” na execução penal, “atua não como advogado, mas pelo interesse público, inclusive contra a ocorrência de excessos por parte do Estado”.

É essa postura que está irritando o ex-presidente Lula que, no seu entendimento e de seus assessores e advogados, quer limpar a imagem dos procuradores de Curitiba.

Na verdade, o que o ex-presidente quer é aguardar na cadeia os diversos recursos de sua defesa, acreditando que até o fim do ano estará solto, não pelas regras do sistema prisional, mas pela anulação do processo pelo STF por suspeição do então juiz Sérgio Moro.

O que o tornaria também elegível novamente, pois o processo do tríplex seria enviado para o juiz Luiz Antonio Bonat, que assumiu no lugar de Moro em Curitiba, teria que recomeçá-lo do zero. Os julgamentos do TRF-4 e do STJ, que confirmaram a decisão de Moro, também seriam anulados.

Há ainda a possibilidade de Lula ser beneficiado pela nova interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre processos com a participação de delatores. Amanhã, o Supremo vai definir os termos em que se darão as análises dos casos em que os delatores não se pronunciaram antes dos demais réus.

O Supremo já decidiu que essa deve ser a regra, e anulou os julgamentos do ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobras, Aldemir Bendine, e do ex-gerente da Petrobras Marcio de Almeida Ferreira.

O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, vai apresentar ao plenário uma proposta de modulação da decisão, pretendendo restringir a possibilidade de anulação aos casos em que a defesa pediu para falar por último desde a primeira instância, e o juiz negou.

No caso do triplex, isso não aconteceu. No do sítio de Atibaia, ainda na fase de recurso no TRF-4, é possível que o julgamento recomece na primeira instância, onde Lula já foi condenado a 12 anos e 11 meses. Vai adiar por alguns meses sua volta à prisão, se for condenado em segunda instância também nesse caso.

Isso se o Supremo Tribunal Federal (STF) não interferir novamente, proibindo a possibilidade de prisão em segunda instância, hoje autorizada. Em qualquer caso, Lula só se livra da punição de não poder concorrer, devido à Lei da Ficha Limpa, se sua condenação for anulada.

Caso contrário, só será elegível oito anos depois de cumprir a pena no caso do triplex, em 2035, quando terá perto de 90 anos.


Merval Pereira: Disputa de poder

Desmontar a Lava-Jato ajuda até o Planalto a conviver melhor com o Legislativo, onde está grande parte dos alvos de investigações

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), criando uma interpretação jurídica que equipara os réus que fizeram delação premiada a “auxiliares de acusação”, é mais uma etapa da disputa de espaço político entre ministros de tribunais superiores e o Ministério Público, que teve na escolha do novo procurador-geral da República, Augusto Aras, uma indicação importante.

O rabo não pode abanar o cachorro, gosta de dizer o ministro Gilmar Mendes em relação à Lava-Jato. Para muitos, a operação baseada em Curitiba virou, ou tenta virar, uma instituição que se pretende intocável.

Como tudo nessa vida é politica, especialmente no Brasil de hoje, desmontar a Lava-Jato ajuda até mesmo o Palácio do Planalto a conviver melhor com o Legislativo, onde está grande parte dos alvos de investigações e processos sobre corrupção.

Em troca, o presidente Bolsonaro protege seu filho Flávio das investigações sobre supostas ilegalidades quando era deputado no Rio, e tenta garantir a aprovação de outro filho, Eduardo, para embaixador em Washington.

Há percalços, no entanto. Para quem se elegeu muito em cima da pauta anticorrupção, fica cada vez mais difícil convencer boa parte de seu eleitorado de que seus compromissos nessa área estão mantidos.

A relação de morde e assopra com o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, é parte desse paradoxo. Figura mais popular do governo justamente por sua atuação na Lava-Jato, Moro voltou a ser um sustentáculo para Bolsonaro, que vem caindo de popularidade.

Citou-o no discurso da ONU como um ícone do combate à corrupção no Brasil, o que demonstra que o prestígio de Moro está intocado no exterior, mesmo depois das revelações de suas conversas com os procuradores de Curitiba.

O governo começou também uma campanha a favor do pacote anticrime, que está encontrando reações no Legislativo. Essa mesma disputa de poder aconteceu na Itália devido à operação Mãos Limpas, espelho para o então juiz Sergio Moro e os procuradores de Curitiba.

Assim como cá, lá também houve uma intensa campanha de desmoralização dos procuradores e tentativas diversas, que acabaram dando certo, de coibir o alcance da ação do Ministério Público.

O caso do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, que confessou ter tentado assassinar o ministro Gilmar Mendes, do STF, é inacreditável. Um sincericídio que terá graves repercussões para sua própria vida futura é também retroativamente grave, pois coloca em dúvida sua saúde mental e pode desmoralizar os atos de sua gestão à frente da PGR.

Confessou um crime, tentativa de assassinato, e já começa a ser investigado. Para piorar a situação, há a desconfiança de que falou sobre isso, anos depois, para fazer propaganda sensacionalista do livro que está lançando, intitulado “Nada menos que tudo”.

O ministro Gilmar Mendes foi subindo de tom durante o dia, sobretudo através de declarações nas redes sociais, e definiu a situação utilizando-se de um paralelo: “Para quem se propõe a matar um juiz, assassinatos de reputação não são nada”, voltando a acusar Janot de ter usado o Ministério Público para fins políticos.

Uma luta de poder, para neutralizar o Ministério Público e a Lava-Jato, que vem sendo turbinada por casos como o de Janot, ou as conversas reveladas pelo site Intercept Brasil entre os procuradores de Curitiba e o ministro Sergio Moro.

Os diálogos não contêm nenhuma ilegalidade, nada que demonstre que as condenações se basearam em provas criadas, provas forjadas. Não há uma indicação de que o ex-presidente Lula não cometeu os crimes pelos quais foi condenado. Estamos diante de uma questão moral, mais do que jurídica.

Ao verem reveladas partes de conversas em situações privadas, os investigadores se fragilizam para defender suas posições, embora tecnicamente não haja nada de errado. Além do mais, prova ilícita só pode ser usada afavor do réu. No caso das interceptações das conversas pelo Telegram, não há nenhuma prova de que ele foi prejudicado, nada a favor dele, só a questão moral.

Considero muito difícil anular um julgamento por uma questão moral, que não interferiu no resultado. Se imaginarmos uma gravação durante meses nos telefones de políticos, ministros, jornalistas, advogados, empresários, quem pode garantir que não haverá comentário politicamente incorreto, ou que possa ser considerado indevido? (Amanhã, Mãos Limpas e Lava-Jato)


Merval Pereira: Criatividade jurídica

O criminalista Alberto Toron, experiente e criativo, tirou da cartola a tese que iguala os delatores à acusação

Há anos, desde o julgamento do mensalão, advogados de defesa dos acusados de corrupção tentam manobras jurídicas para beneficiar seus clientes, o que é perfeitamente normal.

O então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, foi o coordenador das manobras que pretendiam levar para a primeira instância da Justiça os réus do mensalão que não tinham foro privilegiado.

O relator Joaquim Barbosa defendeu a tese de que os crimes eram conectados, e os réus não poderiam ser separados, pois isso prejudicaria a narrativa dos fatos criminais que os envolveram.

Sua tese foi vitoriosa, driblando uma tradição da Justiça brasileira de desmembrar os processos, e foi fundamental para a condenação da maioria dos envolvidos.

Nos julgamentos do petrolão, diversas táticas foram tentadas pelos advogados de defesa, mas nos primeiros anos, com o apoio popular da Lava-Jato no auge, não houve ambiente para que teses diversas fossem aceitas.

Só recentemente, sobretudo a partir deste ano, passaram a ser aceitas teses que abrandaram a situação dos réus. Vários processos foram enviados para a primeira instância ou para a Justiça Eleitoral, prevalecendo o argumento, defendido por vários anos, de que a maior parte do dinheiro da corrupção não passava de caixa 2, um crime eleitoral com punição mais branda.

A prisão em segunda instância, cuja aprovação foi fundamental para impedir que os processos se eternizassem com os diversos graus de recursos, começa a ser contestada teoricamente pela mesma Corte que por diversas vezes a aprovou.

No julgamento que deverá acontecer ainda este ano, tudo leva a crer que a prisão em segunda instância será derrubada, com a mudança de voto do ministro Gilmar Mendes. O voto da ministra Rosa Weber, que é contrária à prisão em segunda instância, mas a vem acatando por representar a maioria do plenário até o momento, pode confirmá-la se entender que não é hora ainda de mudar a jurisprudência, que prevaleceu durante anos no STF. O presidente Dias Toffoli já propôs que a prisão possa ser decretada depois da condenação no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Coube a um experiente e criativo advogado criminalista, Alberto Toron, a maior vitória até agora, com a aceitação, pela Segunda Turma e ontem pelo plenário do Supremo, da tese de que os delatores transformam-se em “assistentes da acusação”, e, portanto, devem ser ouvidos antes do réu delatado, que fala por último no julgamento.

Como na legislação brasileira não há nenhuma determinação quanto a isto, pois a figura da delação premiada está em prática recentemente, sem que exista uma regulamentação para sua aplicação a não ser a própria lei que a criou, o advogado Toron tirou da cartola a tese que iguala os delatores à acusação.

Não é uma tese esdrúxula, pois vai ao encontro do conceito constitucional de ampla defesa do réu. Dias Toffoli deu o sexto voto pela anulação da condenação do ex-gerente da Petrobras Márcio Ferreira, que reclamou por apresentar alegações finais no mesmo prazo de seus delatores.

O ministro, no entanto, disse que, na próxima sessão, vai propor ao plenário uma forma de modular os efeitos da decisão, para definir se condenações passadas serão anuladas. Existem várias possibilidades na mesa. A Procuradoria-Geral da República defende que a regra só seja aplicada no futuro, o que evitaria anular condenações.

O ministro Luís Roberto Barroso, que votou contra o habeas corpus, e se colocou contra a tese que acabou vencedora, aceitou a proposta do Ministério Público de que a ordem das alegações finais só valha a partir de agora, para evitar anulações generalizadas.

É bastante improvável que essa tese prevaleça, pois, como alegou o ministro Alexandre de Moraes, não é possível acatar o habeas corpus e dizer que ele não vale para o condenado cujo caso foi analisado.

A ministra Cármen Lúcia, que na Segunda Turma já havia votado a favor da tese de que delatados devem apresentar alegações finais depois do delator, votou contra a anulação da condenação de Márcio Ferreira, pois, no caso concreto do ex-gerente da Petrobras, disse que não houve prejuízo à defesa, porque ela teve prazo complementar para rebater as acusações de seus delatores.

O mais provável é que o presidente do STF, Dias Toffoli, proponha que a regra só valha para os casos em que a defesa fez o pedido expresso de falar depois dos delatores ainda na primeira instância. A partir da decisão do STF, a ordem passa a ser essa.


Merval Pereira: O nome em vão

Soberanistas estão ficando pelo caminho, e se Trump for derrotado no ano que vem, o projeto vai por água abaixo

Nunca esteve tão em moda a frase do escritor e pensador inglês Samuel Johnson, que, escrita no século XVIII, sobreviveu ao tempo, ganhando um significado mais amplo, terrivelmente atual: “O patriotismo é o ultimo refúgio dos canalhas”.

Referia-se ao partido Patriotas de então, que, para Johnson, estava sendo dominado por políticos oportunistas. O patriotismo tornou-se, ao longo da História, instrumento político de autocratas e populistas, de esquerda e de direita, fazendo jus à ampliação do sentido da frase do pensador inglês.

Os discursos dos presidentes Donald Trump, dos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, do Brasil, utilizaram-se do termo para defender a tese mais cara aos dois e a vários líderes autoritários espalhados pelo mundo. São os “soberanistas”, que, em nome do patriotismo, veem em políticas globais coordenadas por órgãos multilaterais como a ONU tentativas de limitar a soberania das nações.

As críticas internacionais à política ambientalista de Bolsonaro foram aproveitadas para exacerbar o sentimento patriótico dos brasileiros, ameaçados que estaríamos por países europeus de olho na internacionalização da Amazônia.

O presidente francês, Emmanuel Macron, caiu na besteira de fazer um gesto demagógico aos eleitores ecológicos, abordando essa ideia como uma possibilidade de resolver as questões ambientais naquela região, e provocou a ira de Bolsonaro e da ala militar nacionalista.

Mereceu as críticas, mas não as ofensas, inclusive pessoais. Fosse um político habilidoso, e não o que vive de confrontos, e quisesse realmente enfrentar a questão ambiental com visão contemporânea, Bolsonaro poderia ter dado uma resposta ao colega francês que o obrigaria a desculpar-se, fazendo desse episódio uma oportunidade de se impor no cenário internacional.

Ao contrário, preferiu apelar para o patriotismo e aliar-se a minoritários líderes de direita e extrema direita, na vã esperança de que a tese de Steve Bannon e Olavo de Carvalho esteja certa, e que os “soberanistas” prevalecerão no final das contas.

Vários deles estão ficando pelo caminho, e se Donald Trump for derrotado no ano que vem, o projeto vai por água abaixo. Inclusive o de Bolsonaro.

Para nenhuma surpresa, o presidente Donald Trump voltou a defender o isolacionismo, justamente no palco de uma organização que trabalha para dar um sentido de unidade a um mundo cada vez mais interligado. “O futuro não pertence aos globalistas, e sim aos patriotas”, afirmou.

“Globalismo” é como os isolacionistas chamam a globalização, que consideram um movimento esquerdista que tem que ser combatido. O próprio Bolsonaro em seu discurso cravou palavras duras contra valores que considera pervertidos por uma ação coordenada ideológica de esquerda: “a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família”; “a inocência de nossas crianças, pervertendo até a identidade mais básica e elementar, a biológica” e até mesmo “a alma humana, para expulsar dela Deus”.

Sendo Bolsonaro, alinhou-se a regimes retrógrados e líderes autoritários. Criticando a mídia internacional, como faz com a brasileira, aliou-se a autocratas como ele, que não conseguem conviver com críticas. O publisher do “New YorK Times”, A. G. Sulzberger, em artigo publicado dias atrás, trata dessa postura de dirigentes autocratas tentando desacreditar a imprensa independente, a começar pelo presidente dos Estados Unidos, que inventou para isso as “fake news”, expressão que tem servido a autocratas ao redor do mundo para rebater críticas.

Entre os extremistas, Sulzberger cita o primeiro-ministro Viktor Orbán, da Hungria, os presidentes Recep Erdogan, na Turquia, Nicolás Maduro, da Venezuela, Rodrigo Duterte, das Filipinas, e Jair Bolsonaro.

Num momento em que Portugal virou um porto seguro para os brasileiros que querem e podem sair do país em busca de um futuro melhor, é sempre bom lembrar que o ditador Salazar, nos anos 70, pressionado por Portugal ainda ter colônias, cunhou um lema: “Orgulhosamente sós”.

Desse modo, Chico Buarque vai acabar acertando, quando previu em “Fado Tropical”, “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”. Só que do tempo de Salazar.