Merval Pereira

Merval Pereira: Meu malvado preferido

Lula soube esperar e conseguiu uma saída politicamente vantajosa, como se tivesse sido inocentado

Não sei se Lula sabe jogar xadrez, mas desconfio que, se souber, deve jogar bem. E se não souber, tem jeito para o jogo. Sua estratégia neste caso foi perfeita, defendendo-se de uma manobra do Ministério Público com uma jogada altamente arriscada, mas que se mostrou eficiente do ponto de vista político.

Recusando-se a sair da cadeia por ter cumprido um sexto da pena a que foi condenado, como se antecipou a pedir o Ministério Público, Lula evitou ter que aceitar as restrições do regime de prisão semiaberta, que o obrigariam a dormir na cadeia ou, no mínimo, a uma prisão domiciliar com limitações que dificultariam sua atividade política.

Ele soube esperar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a prisão em segunda instância, e conseguiu uma saída politicamente vantajosa, como se tivesse sido inocentado. Ele continua, porém, condenado nas duas instâncias judiciais e no recurso especial ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Mas podendo viajar pelo país em uma campanha permanente.

Seu destino agora está ligado ao STF, tanto devido ao único recurso que lhe resta nesse caso, quanto à possibilidade de a Segunda Turma decretar a anulação de seu julgamento no caso do tríplex do Guarujá, devido a uma suposta parcialidade do então juiz Sergio Moro por ter aceitado ser ministro de Jair Bolsonaro.

O julgamento está suspenso devido a um pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. Dois ministros já votaram, contra a alegação da defesa, Edson Fachin e Cármen Lúcia, e outros três se manifestarão no julgamento que deve ser retomado ainda este mês.

A dificuldade de votar a favor de Lula é que as denúncias trazidas pelo site Intercept Brasil contra a Lava-Jato não podem ser usadas, por serem baseadas em provas ilegais, já que oriundas de furto cibernético. Não estão no processo, mas sim na cabeça dos juízes que, para tomar uma decisão tão drástica, não encontrariam razoabilidade na alegação ridícula de que, ao aceitar o convite para ser ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro demonstrou sua imparcialidade.

Porém, caso o Supremo decida anular o julgamento do caso do tríplex, o processo retorna à estaca zero e Lula estará liberado, pelo menos momentaneamente, pela Lei da Ficha Limpa, que determina que condenados por órgão colegiado (segunda instância) são inelegíveis.

Sua outra condenação, sobre o sítio de Atibaia, será analisada pelo TRF-4 também este mês. É provável que o processo seja reenviado para a primeira instância, pois o Supremo decidiu que o processo retroage até a etapa em que as alegações finais são apresentadas, devendo os réus não delatores falarem por último, o que não aconteceu nesse caso do sítio. No caso do tríplex não houve delatores.

Uma decisão do TRF-4 ficaria mais distante, ainda restando o recurso ordinário ao STJ e o extraordinário no STF. Se, até o ano que vem, Lula for condenado em segunda instância novamente, certamente haverá uma campanha por parte do PT para tentar alterar a Lei da Ficha Limpa no Supremo Tribunal Federal.

Apesar de já tê-la declarado constitucional, o STF pode ser acionado, já que o trânsito em julgado passou a ser a etapa final para a prisão de um réu. Sendo assim, por que a elegibilidade de um cidadão não se dá também somente no final de todos os recursos? No julgamento da prisão em segunda instância esse tema surgiu em meio aos debates e o ministro Marco Aurélio Mello lembrou que a legislação eleitoral é diferente da penal, e que as duas não se misturam.

A exigência de não ser condenado por órgão colegiado para ser elegível é da mesma natureza que a exigência de idade mínima ou de domicílio eleitoral. Portanto, nada tem a ver com a questão criminal. Mas o que um advogado criativo não consegue tirar da cartola?

Essas interrupções nos processos contra Lula, em que ele já está condenado, o ajudarão a retomar a campanha presidencial abortada em 2018. Estará mantida a polarização com o presidente Jair Bolsonaro, a quem diversas vezes, e com um sorriso maroto, alfinetou no seu primeiro discurso ao sair da prisão. Os dois necessitam-se mutuamente. Retroalimentam-se com seus ódios e idiossincrasias. Um é o malvado preferido do outro.


Merval Pereira: STF volta atrás

O nome do ex-presidente esteve presente na tentativa de demonstrar que o Supremo não atua de maneira política

O julgamento de ontem do Supremo Tribunal Federal (STF) transformou-se, muito por causa da posição do ministro Gilmar Mendes, num debate crítico sobre a Operação Lava-Jato.

Em vão alguns ministros, especialmente o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, tentaram levar seus votos para questões conceituais, em abstrato. A Lava-Jato, e Lula, o objeto oculto, dominaram os debates.

O nome do ex-presidente esteve presente sempre na tentativa de demonstrar que o Supremo não atua de maneira política, e muito menos pode ser acusado de culpado pelo sentimento de impunidade que domina a sociedade.

Até mesmo a proposta que Toffoli enviou aos presidentes da Câmara e do Senado, sugerindo que os prazos prescricionais sejam suspensos durante os recursos especiais, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e extraordinário, no STF, foi utilizada para mostrar sua preocupação com o uso abusivo de recursos.

Não houve citação aos condenados da Lava-Jato, que serão beneficiados imediatamente pela decisão de retornar a exigência de trânsito em julgado para a prisão.

O ministro Toffoli assumiu a defesa da instituição que preside em seu voto, utilizando, em tom dramático às vezes, estatísticas que, segundo ele, mostram que a impunidade deve-se aos erros de investigações de processos penais, e ao sistema judicial em si.

O julgamento do mensalão, que marcou uma reviravolta na Justiça brasileira ao condenar políticos e empresários, foi tomado como exemplo de que o STF não atua com complacência contra os poderosos. O fato de que o tribunal dedicou-se por seis meses ao julgamento, parando a pauta geral, serviu como exemplo de que o Supremo, quando tem condições, atua com diligência.

O número de processos que o tribunal analisa anualmente foi mais uma vez citado, com razão, como responsável pela acusação de demora nas decisões do STF. A ampla análise do ministro Toffoli levou-o a declarar que o sistema judiciário brasileiro precisa de uma ampla reforma desde a base para que o sentimento de impunidade não predomine.

Tudo para afirmar que não é a execução após condenação em segunda instância que evitará a impunidade. Deu como evidência a possibilidade de recursos, até mesmo após a decisão do tribunal do júri, citando um caso recente de um homem que matou várias pessoas, foi condenado a 97 anos pelo júri popular e está em liberdade, recorrendo em segunda instância.

O debate sobre a execução imediata das decisões do tribunal do júri, aliás, é outro tema que estará em discussão pelo Supremo nos próximos dias, e Toffoli já adiantou sua posição, a favor do cumprimento imediato da pena.

O presidente do Supremo, aliás, organizou seu voto de maneira tal que a análise de casos criminais famosos, como o incêndio da boate Kiss, servisse de exemplo de que a condenação em segunda instância não é uma solução para a máquina burocrática judiciária que não funciona como deveria.

Toffoli, controlando o choro, leu uma reportagem sobre as consequências da tragédia da boate Kiss, que até hoje não teve nem mesmo uma sentença definida. A questão de condenações de políticos presos por corrupção não entrou em debate, propositadamente pelos que defenderam a volta do trânsito em julgado, para marcar a posição de que o tema é de alcance geral, e não apenas de crimes do colarinho branco.

Toffoli usou também o argumento de que o Congresso pode mudar a Constituição, caso a interpretação do Supremo de que o trânsito em julgado é necessário não seja compatível com a posição atual da maioria de seus membros. E a prisão preventiva passou a ser citada como uma solução jurídica válida para evitar a impunidade, quando os condenados se enquadrem nas exigências legais.


Merval Pereira: Ainda as interpretações

O ideal seria que se definisse um tempo máximo para a tramitação dos processos, para evitar a sensação de impunidade

O relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, ministro Edson Fachin, defensor da prisão a partir da condenação em segunda instância, deu ontem o tom do que será o combate à corrupção a partir da provável decisão hoje do plenário de alterar a jurisprudência vigente, exigindo o trânsito em julgado para o inicio do cumprimento da pena.

Para ele, a mudança de posição não será prejudicial, pois sempre é possível decretar-se a prisão preventiva de um réu que ofereça risco à sociedade ou ao processo. Essa solução seria mais uma manobra jurídica para superar obstáculos colocados no caminho da Operação Lava Jato.

Seria uma atitude similar à que os procuradores utilizaram quando o Supremo proibiu a condução coercitiva de suspeitos. Passaram então a usar a prisão temporária, de duração de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco. O Supremo também reagiu a isso, alegando que os procuradores estavam usando uma “condução coercitiva” disfarçada.

O ministro Gilmar Mendes atuou também para que o STF acabasse com o que chamou de "farra das prisões preventivas". Há muito tempo ele dizia que o Supremo tinha um encontro marcado com “as prisões alongadas” sem justificativa. Comparava o uso da prisão preventiva, que não tem limite de tempo, às torturas para que os presos confessassem seus crimes, e no caso da Lava Jato, fizessem a delação premiada.

Tudo indica que voltaremos a esse debate, e agora com o apoio público do ministro-relator da Lava Jato no STF. O mentor da mudança do entendimento do Supremo com relação à prisão em segunda instancia foi o ministro hoje aposentado Eros Grau, que defende que a Constituição, no artigo 5º, no inciso LXI, trata da prisão preventiva quando determina: “ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

Outros ministros, como Luiz Fux, consideram que uma decisão do tribunal TRF-4 determinando a prisão é “ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. Argumentam os cinco ministros que devem votar a favor da prisão em segunda instância que quando, no mesmo artigo, a Constituição fala que ninguém será considerado culpado até o final de todos os recursos, não quer dizer que não é possível decretar o início da pena, pois no recurso especial, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no extraordinário, no Supremo Tribunal Federal (STF), não se muda a condenação, apenas analisa-se juridicamente se houve violação de alguma norma legal.

As penas podem ser revistas, aumentadas ou reduzidas, o que nas estatísticas divulgadas pelos defensores do trânsito em julgado aparecem como alterações das decisões da segunda instância, quando na verdade são apenas ajustes que não mudam, ou rarissimamente mudam, a decisão em si.

O ministro Edson Fachin antecipou também o que parece ser a tendência dos ministros que, como ele, são favoráveis à prisão em segunda instância: darão a maioria à possível sugestão do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, de adotar uma solução intermediária, passando a ser a permissão para prisão a decisão final do STJ.

Essa proposta está sendo negociada para que a decisão possa ser tomada a partir da primeira manifestação do STJ, sem aguardar todos os recursos que se multiplicam nas mãos de advogados criativos. Seria uma interpretação constitucional que daria teoricamente ao recurso especial do STJ um efeito suspensivo que não está previsto nem mesmo para o Supremo, que é um recurso extraordinário.

Nos bastidores, procura-se uma saída para o impasse em que está envolvida essa formação do plenário do Supremo, que bem poderá mudar quando houver substituição de ministros pela aposentadoria compulsória. O ideal seria que se definisse um tempo máximo para a tramitação dos processos, para evitar a sensação de impunidade.

E determinar que a jurisprudência do STF não pode mudar tão rapidamente. Talvez fosse possível fixar um período de tempo mínimo para uma reavaliação de decisões de repercussão geral. O pais não ficaria à mercê de mudanças de composição do plenário do STF, havendo mais segurança jurídica.

A própria ministra Rosa Weber, que sempre foi a favor do trânsito em julgado mas, coerentemente, aceitou a decisão da maioria ate agora nas suas decisões, disse em um dos seus votos, citando renomados juristas, que a jurisprudência só deveria mudar depois de um bom período de tempo.


Merval Pereira: Mexendo nas estruturas

Reformas tentam tirar do papel o slogan vitorioso da campanha presidencial ‘mais Brasil, menos Brasília’

O Congresso mais reformista da história, como disse o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, tem pela frente a tarefa de aprovar a mais abrangente das reformas, que mexe na estrutura de um Estado patrimonialista e elitista.

Assim como a reforma da Previdência tocou, embora ainda não tão profundamente quanto requerido, na desigualdade dos benefícios dos servidores públicos em contraste com os do regime geral (INSS). O mesmo espírito de criar um sistema previdenciário sustentável no longo prazo, e mais equânime, rege as reformas apresentadas ontem pelo presidente Bolsonaro, que as levou pessoalmente ao Congresso, realçando sua importância.

Politicamente delicadas, pois mudam critérios legais guiados por interesses políticos, como a criação de municípios, as reformas da equipe econômica de Paulo Guedes tentam tirar do papel o slogan vitorioso da campanha presidencial “mais Brasil, menos Brasília”.

Para isso, é preciso criar estruturas novas que sejam sustentáveis. O novo pacto federativo propõe mais dinheiro para estados e municípios, mas também faz exigências maiores para a gestão desses entes federativos. A previsão é que até R$ 500 bilhões possam ser transferidos nos próximos 25 anos com as novas regras de divisão de recursos do petróleo, podendo até 70% dos royalties da exploração do petróleo e do gás serem transferidos para estados e municípios, que ficarão ainda com a totalidade do salário-educação.

Os entes poderão definir o que será feito com esses novos recursos, e aí é que mora o perigo. Até 1.200 pequenos municípios, cerca de 20% do total dos municípios do país, com cerca de cinco mil habitantes, deverão desaparecer na transição para, a partir de 2025, só ficarmos com municípios que provem arrecadar, em impostos, ao menos 10% de suas receitas totais.

Caso esse limite não seja alcançado, serão incorporadas por cidades maiores. Há estudos, como um da Federação das Indústrias do Estado do Rio (Firjan), que mostram que um em cada três municípios não gera receita suficiente para sustentar prefeitura e Câmara. Não deveriam ter sido criados, e o foram meramente por questões eleitorais.

A maioria vive do Fundo de Participação de Estados e Municípios, e poderia se beneficiar da nova regra de distribuição dos royalties do petróleo também proposta nas reformas. Mas a intenção é justamente fazer com que estados e municípios sejam sustentáveis, sem depender exclusivamente do Tesouro da União.

Uma consequência saudável desse novo modelo é criar uma estrutura burocrática menos dispendiosa, unindo até três cidades para a formação de um município que arrecade um mínimo para seu sustento, extinguindo em compensação cargos de prefeito, vice-prefeito e Câmara de vereadores desnecessários.

A política de equilíbrio fiscal está na base de várias mudanças propostas, havendo a previsão de gatilhos para quando estiver em perigo esse objetivo, chegando ao ponto de poder ser desencadeado o que o ministro Paulo Guedes classificou de “shutdown à brasileira”, que seria a permissão para o governo central reduzir o salário dos funcionários públicos, com redução compatível da jornada de trabalho.

Nos Estados Unidos, essa decisão é drástica, com os funcionários públicos não recebendo salários nesses momentos de crise. Aqui, o governo pagará até 25% dos salários. A equipe econômica considera que vários aspectos da Lei de Responsabilidade Fiscal foram aperfeiçoados nessas propostas, e a criação de um Conselho Fiscal da República é uma delas.

Está prevista na LRF um controle dos gastos do Executivo, mas esse artigo nunca foi regulamentado. O novo Conselho, formado pelos presidentes da República, da Câmara, do Senado, do Supremo Tribunal Federal, governadores, prefeitos e o Tribunal de Contas da União, se reuniria periodicamente para analisar a situação das contas públicas.

É um passo econômico importante que tem grande alcance político, revigorando a Federação. Por isso mesmo, será de difícil aprovação, especialmente num ano de eleições municipais como 2020. Se governadores e prefeitos se unissem para colocar estados e municípios no acordo da nova Previdência, seria um primeiro movimento em direção à sustentabilidade de nosso sistema federativo.


Merval Pereira: Até aqui, tudo bem

Quanto mais Bolsonaro e seu entorno tentarem avançar limites democráticos, é preciso valorizar Legislativo e Judiciário

Vivemos momento grave do país, em que a retórica presidencial pretende criar clima propício a tentativas golpistas, em uma democracia relativamente recente como a nossa, ainda abalada pela mais grave crise econômica já vivida em tempos recentes.

Como aquele sujeito que, despencando do 15º andar, ao passar pelo décimo constata que “até aqui, tudo bem”, nesses 11 meses de governo Bolsonaro estamos nos mostrando um país resiliente, onde as instituições, por mais imperfeitas que sejam, resistem satisfatoriamente aos ataques à democracia.

Quanto cada vez mais Bolsonaro e seu entorno tentarem avançar os limites democráticos, é preciso valorizar os outros dois poderes, Legislativo e Judiciário, que representam os diques de contenção dos que tentam fazer letra morta da Constituição democrática.

Nos recentes casos provocadores de potenciais crises institucionais, como a defesa do deputado Eduardo Bolsonaro de um novo AI-5 para conter possível levante esquerdista, ou o vídeo do Rei Leão cercado por hienas famintas representadas por instituições como o STF, partidos políticos, órgãos de imprensa independente, a Teoria da Separação dos Poderes, de Montesquieu, onde pesos e contrapesos funcionam para impedir que um deles tente avançar sobre os demais, tem funcionado para conter abusos institucionais do Executivo.

Uma força coletiva levantou barreira democrática à retórica golpista, o que chamou a atenção positivamente do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, satisfeito de ver nossa jovem democracia resistir aos ataques.

Essa barreira foi levantada em diversas ocasiões por representantes do Legislativo e do Judiciário, e obrigou a um recuo tanto do presidente, que pediu desculpas pelo vídeo das hienas, quanto de seu filho Eduardo, que tentou consertar a frase do AI-5, sem consegui-lo.

Figuras destacadas dessa reação democrática foram o decano do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. O primeiro ressaltou o “atrevimento presidencial” no episódio do vídeo, que caracteriza “absoluta falta de ‘gravitas’ e de apropriada “estatura presidencial”.

Para o decano do STF, o vídeo é “a expressão odiosa (e profundamente lamentável) de quem desconhece o dogma da separação de poderes”. E advertiu: “(...) ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”.

O presidente da Câmara criticou duramente as declarações de Eduardo Bolsonaro, considerando-as “repugnantes”, lembrando que “uma nação só é forte quando suas instituições são fortes”.

Também reagiu duramente ao comentário do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete Institucional da Presidência da República, que, ao invés de criticar a proposta de Eduardo, disse que “tem de estudar como vai fazer, como vai conduzir. Acho que, se houver uma coisa no padrão do Chile, é lógico que tem de fazer alguma coisa para conter. Mas, até chegar a esse ponto, tem um caminho longo”.

Rodrigo Maia considerou o comentário “grave”, lamentando que o general Heleno tivesse virado “um auxiliar do radicalismo do Olavo [Olavo de Carvalho]. É uma pena que um general da qualidade dele tenha caminhado nessa linha”.

Embora os episódios não tenham merecido uma nota oficial do Supremo, ministros se pronunciaram. Marco Aurélio Mello considerou uma “impropriedade” o comentário do deputado federal Eduardo Bolsonaro sobre “um novo AI-5”: “A toada não é democrática-republicana. Os ventos, pouco a pouco, estão levando embora os ares democráticos”.

Também o ministro Gilmar Mendes foi ao Twitter para protestar: “O AI-5 impôs a perda de mandatos de congressistas, a suspensão dos direitos civis e políticos e o esvaziamento do habeas corpus. É o símbolo maior da tortura institucionalizada. Exaltar o período de trevas da ditadura é desmerecer a estatura constitucional da nossa democracia”.

Por mais diversas que sejam as posições desses personagens de nossa cena política, por mais divergências que decisões pessoais possam causar, é com as instituições que Legislativo e Judiciário representam que os democratas contam na eventualidade, perigosamente próxima, de a guerra retórica dos Bolsonaro se transformar em atos concretos contra a democracia.

São eles nossa rede de proteção.


Merval Pereira: Gente fina

Áudio vazado tem o mesmo teor das negociações com o baixo clero político que levaram ao mensalão e ao petrolão

O áudio vazado por um deputado federal da bancada do PSL que revela o presidente Jair Bolsonaro cabalando votos para a destituição do líder Delegado Waldir tem o mesmo teor das negociações com o baixo clero político que levaram ao mensalão e ao petrolão.

A diferença é que o Fundo Partidário é fruto de dinheiro de origem controlada, o nosso dinheiro colocado no Orçamento para financiar os partidos políticos. O dinheiro do PT também era nosso, porém desviado das empresas estatais. Mas o caminho é o mesmo trilhado pelo PT com outros partidos, atraídos para sua base política por favores e dinheiro. Que acabou em escândalo e prisões.

Bolsonaro, na conversa gravada que tem sua legalidade garantida pelo Supremo Tribunal Federal, que já decidiu que o participante de uma conversa tem o direito de gravá-la sem a autorização da outra parte, mostra toda a sua habilidade política, muito diferente do parlapatão que surge em público sem travas na língua.

Em nenhum momento o presidente oferece vantagens ao interlocutor, mas sugere que o seu lado é mais confiável para concedê-las: “Que poder tem na mão, atualmente, o presidente, o líder aí? É o poder de indicar pessoas, de arranjar cargo no partido, é promessa para fundo eleitoral por ocasião das eleições. É isso que o cara tem, mas você sabe que o humor desse cara muda, de uma hora para outra, muda”, comentou Bolsonaro, durante a conversa com o deputado federal.

Não pode ser acusado diretamente de estar tentando comprar o apoio do deputado, mas basta ligar lé com cré que se chega à conclusão certa. Hoje, no entanto, estamos voltando a viver um ambiente que favorece a impunidade. O ex-presidente Michel Temer, por exemplo, acaba de ser absolvido da acusação de obstrução de Justiça devido àquela famosa conversa com o empresário Joesley Batista em que disse a célebre frase: “Tem que manter isso aí, viu?”.

O tom baixo das vozes dos dois, quase sussurrando, o local, a entrada sorrateira de Joesley no Palácio do Jaburu tarde da noite, com o nome de um assessor do presidente, tudo dá bem a dimensão do que tratava a conversa, mas há espaço, como sempre houve antes do mensalão e do petrolão, para um entendimento mais benevolente.

Estamos voltando ao tempo em que será preciso um “ato de ofício” para comprovar corrupção. Nem mesmo serve a mala de dinheiro do assessor Rodrigo Rocha Loures, de cujo nome Joesley se utilizou para entrar no Palácio, indicado por Temer a Joesley para tratar de todos os assuntos: “Pode passar por meio dele, viu? Da minha mais estrita confiança”.

Por trás da briga do PSL estão os R$ 350 milhões do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral para as eleições do ano que vem. O PSL é um partido grande, com dinheiro gigante, com tudo para se firmar como importante na vida política brasileira, mas essa briga de baixo clero no Congresso — Luciano Bivar e Bolsonaro sempre foram baixo clero — está levando partido e presidente à desmoralização.

É uma briga abaixo da linha da cintura. Bolsonaro quer controlar o fundo partidário, mas precisa da concordância de Bivar de que, se fizer a união com o DEM, leva o dinheiro. Já se fala que Bolsonaro poderia até ir para o Partido da Mulher Brasileira, que mudaria de nome. Mas não adianta, é um dos mais nanicos de todos os 37 partidos existentes, sem verba, nem tempo de televisão para propaganda eleitoral. A situação do presidente é complicada, ele vai aprender que pode muito, mas não pode tudo. Partidos grandes e médios estão longe dele, sem interesse em levar os problemáticos filhos de Bolsonaro para suas legendas.

O PSL está repleto de novos e antigos parlamentares, mas o estilo é o da velha política nossa conhecida. O líder do PSL na Câmara, Delegado Waldir, que Bolsonaro quer derrubar para colocar em seu lugar o filho Eduardo, afirmou em reunião interna da ala ligada ao presidente do partido, Luciano Bivar, que vai “implodir” o presidente Jair Bolsonaro.

No áudio do encontro, gravado por um dos presentes, ele diz “Eu vou implodir o presidente. Aí eu mostro a gravação dele. Não tem conversa. Eu implodo ele. Eu sou o cara mais fiel. Acabou, cara. Eu sou o cara mais fiel a esse vagabundo. Eu andei no sol em 246 cidades para defender o nome desse vagabundo”, afirma Waldir.

Tudo gente fina.


Merval Pereira: Azares da sorte

A interpretação dos textos tem proporcionado casos esdrúxulos, como o de Dilma, que escapou de ter seus direitos políticos cassados

Por esses acasos que regem a política, sobretudo a brasileira, que se transmuda tão rapidamente como as nuvens como identificou o político mineiro Magalhães Pinto, o ex-presidente Lula foi parar na cadeia devido a uma lei sancionada por seu “poste” Dilma Rousseff, e pode sair apoiado por uma lei editada por seu inimigo cordial Fernando Henrique Cardoso.

Foi durante o primeiro mandato de Dilma, em 2013, que a Lei das Organizações Criminosas instituiu a colaboração premiada, vulgarmente chamada de “delação premiada” entre nós. Instrumento que, utilizado pela força-tarefa da Lava Jato, permitiu a prisão de políticos e empresários envolvidos num esquema de corrupção organizado pelo PT para financiar suas campanhas políticas e as de partidos aliados.

Lula foi condenado por corrupção no caso do triplex do Guarujá devido a provas indiciais e testemunhais, entre elas a delação premiada do proprietário da empreiteira OAS, Léo Pinheiro, que confessou ter dado o apartamento ao ex-presidente em troca de favores recebidos.

Já o artigo 283 do Código de Processo Penal que define, na opinião dos contrários à prisão em segunda instância, o trânsito em julgado como uma das maneiras de se levar alguém à prisão, é fruto de uma reforma legal proposta pelo Governo Fernando Henrique em 2001, aprovada dez anos depois.

Na gestão do ministro da Justiça José Gregori, sendo Advogado-Geral da União o hoje ministro do STF Gilmar Mendes, foi criada uma comissão de juristas para elaborar o projeto de lei, apresentado à Câmara dos Deputados baseado em uma explicação técnica das mudanças assinada pelo então presidente Fernando Henrique. Sobre o trânsito em julgado, diz: “Fora do âmbito da prisão cautelar, só é prevista a prisão por força de sentença condenatória definitiva. Com isso, revogam-se as disposições que permitiam a prisão em decorrência de decisão de pronúncia ou de sentença condenatória, objeto de crítica da doutrina porque representava antecipação de pena, ofendendo o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da Constituição Federal)”.

As ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44 propostas pelo partido PEN e pela OAB pedem que o Supremo declare a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que diz: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.

Para os defensores do trânsito em julgado, esse artigo define os três tipos de prisão que existem legalmente: 1) Flagrante delito; 2) Em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado; 3) Prisão temporária ou provisória.

Os defensores da segunda instância alegam que as preposições “em” mostram, claramente, quais são os “casos permitidos” para a “prisão”. A “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente” também permite a prisão, e o ministro Luis Fux disse no julgamento do habeas corpus de Lula que a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF-4) está, assim, respaldada.

O que está na Constituição Federal quanto à prisão (art. 5º, LXI)confirmaria essa interpretação, quando diz que ela ocorrerá: “Em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.

A interpretação dos textos legais tem proporcionado casos esdrúxulos, como o da ex-presidente Dilma, que foi impedida como presidente da República pelo Senado presidido pelo presidente do STF, na ocasião o ministro Ricardo Lewandowski, mas escapou de ter seus direitos políticos cassados.

Consta na Constituição, no artigo 52, o seguinte: “Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis”.

Uma manobra do presidente do Senado, Renan Calheiros, com a conivência de Lewandowski, e apoio dos partidos de esquerda, levou a que o impeachment e a cassação dos direitos políticos fossem interpretados como punições distintas, e não uma consequência da outra.


Merval Pereira: Zonas de interpretação

A exigência de culpabilidade apenas depois do ‘trânsito em julgado’ é considerada cláusula pétrea da Constituição

Em paralelo à discussão conceitual sobre a prisão em segunda instância, que prevalece nas principais democracias ocidentais quando a prisão não é decretada logo na condenação em primeira instância, como nos Estados Unidos, há uma vasta área cinzenta de interpretação constitucional.

Caso uma provável mudança da jurisprudência recente do STF saia do julgamento que começa amanhã, dependerá de interpretação a decisão sobre que presos serão afetados. O presidente da Associação Nacional do Ministério Público (Conamp), Victor Hugo Azevedo diz que homicidas e estupradores poderão ser soltos.

Ministros do STF, mesmo alguns que se dizem a favor da segunda instância, acreditam que esse argumento terrorista não tem lógica, pois os presos perigosos podem ficar presos provisoriamente.

Os números que estão sendo apresentados pelos que defendem a jurisprudência atual, que permite a prisão após decisão dos Tribunais Regionais Federais, são considerados exagerados pelos defensores da mudança, como o ministro do STF Gilmar Mendes.

Ele considera que é impossível que 170 mil presos sejam beneficiados. Mesmo estimando que todo o acréscimo de encarcerados de 2016 (quando mudou a jurisprudência do STF) a 2019 seja resultado direto da decisão do Supremo, ainda assim teríamos um total de 85.300 presos possivelmente beneficiados.

Esse cálculo de 170 mil presos se basearia em uma compreensão equivocada do que seja “prisão provisória”, a única maneira de poder prender um condenado antes do trânsito em julgado, caso vença essa tese.

Ela independe de decisão condenatória, de primeira ou de segunda instância. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), hoje 40% do sistema prisional brasileiro são de presos provisórios. A prisão é justificada pelo artigo 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, da ordem econômica, a conveniência da instrução criminal, ou a asseguração da aplicação da lei penal.

A exigência de culpabilidade apenas depois do “trânsito em julgado” é considerada cláusula pétrea, e está inserida no artigo 5º, LVII da Constituição: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

É o que as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) utilizam para combater a prisão em segunda instância, alegando que ela é inconstitucional. Como se trata de uma cláusula pétrea, a opinião majoritária de juristas é que é impossível alterá-la, mesmo através de uma proposta de emenda constitucional (PEC) como a do deputado Alex Manente que está em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara.

No novo texto, ninguém seria considerado culpado “até a condenação na segunda instância”. O que é incoerente com a argumentação jurídica dos que defendem a prisão em segunda instância. Para esses, o mérito da condenação é julgado pelas primeira e segunda instâncias, e os recursos que restam não afetam a decisão, a não ser que sejam encontrados erros factuais nos tribunais superiores (STJ e STF).

Para se ter uma idéia, o número de processos revistos do STF das decisões do STJ é de 0,006%. Mas os condenados presos continuariam com o direito de recorrer, não sendo, portanto, considerados culpados até o fim dos recursos.

Há ainda um argumento que foi apresentado pelos ministros do STF Luis Roberto Barroso e Luis Fux em recente julgamento de um habeas corpus do ex-presidente Lula, diferenciando a “culpabilidade” da “prisão”.

No mesmo artigo 5º, no inciso LXI, que trata da prisão, está definido: “ninguém será preso senão em flagrante delito, ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

O ministro Luiz Fux ressaltou que a decisão do tribunal TRF-4 determinando a prisão de Lula é “ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”.

Têm-se, então que o artigo da Constituição que trata de “culpabilidade” e “prisão”, não podendo ser alterado, pois se refere aos “direitos individuais”, uma cláusula pétrea, só pode ser interpretado, e é o que está sendo feito a partir desta quinta-feira pelo Supremo Tribunal Federal.


Merval Pereira: Poderes em conflito

Marco Aurélio pretende resumir seu parecer, a favor do trânsito em julgado, para ganhar tempo na tomada de decisão final

A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, de incluir na pauta de quinta-feira a discussão das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) sobre a prisão em segunda instância trouxe de volta ao debate político a atuação paralela do STF com o Congresso.

Tramita na Câmara, não apenas no pacote anticrime do ministro da Justiça Sérgio Moro, mas também em um Projeto de Emenda Constitucional (PEC), a proposta do deputado Alex Manente, do Cidadania, de tornar definitiva a permissão para prisão em segunda instância.

A PEC, aliás, será analisada hoje na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara, justamente devido à decisão do STF. O Supremo, que está desde 2017 com essas ADCs aguardando pauta, não deveria discutir o assunto agora, que o Congresso está tratando dele.

Além desse conflito de poderes, há ainda conflitos internos no Supremo que certamente retardarão uma decisão mais rápida. O relator da matéria, ministro Marco Aurélio Mello, pretende resumir seu parecer, que é a favor do trânsito em julgado, para ganhar tempo na tomada de decisão final.

Ele acha possível que o julgamento possa ser encerrado na semana seguinte, mas tudo indica que está sendo otimista. Na quinta-feira, haverá espaço apenas para a fala dos defensores das três ADCs e a leitura do relatório.

Na semana seguinte começaria a votação, que deve ser prolongada, pois o plenário do Supremo está dividido. Os três primeiros votos, a não ser que haja alguma surpresa, são favoráveis à prisão em segunda instância: Alexandre de Moares, Edson Fachin e Luis Roberto Barroso. O quinto e o sexto votos, do ministro Luis Fux e da ministra Carmem Lucia, serão também favoráveis.

A quarta a votar é a ministra Rosa Weber, que se declara a favor do trânsito em julgado. Não se sabe qual será sua posição caso a proposta de Toffoli, de prisão na terceira instância no Superior Tribunal de Justiça (STJ) seja apoiada pelos cinco ministros que se declaram contra a prisão em segunda instância.

Ela pode considerar que, para mudar a jurisprudência, não é razoável desistir da segunda instância que está em vigor para criar mais uma etapa nos processos.

Os demais ministros, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello são favoráveis também ao trânsito em julgado. A definição estará nas mãos do ministro Gilmar Mendes, que mudara o voto para acompanhar o presidente do Supremo a favor da terceira instância (STJ), mas pode recuar mais ainda, defendendo o trânsito em julgado.

A decisão final deve sair apenas no início de novembro.

Visão humanista
Nos últimos dias, duas decisões ligadas à área econômica internacional tiveram repercussão direta na nossa política interna. O prêmio Nobel de Economia dado ontem a três economistas que dedicam seus estudos à redução da pobreza é uma demonstração de que o tema não é alheio ao Nobel.

A tentativa de fazer com que Lula ganhasse o Prêmio Nobel da Paz justamente pelo combate à pobreza, uma ação política que visava fortalecer a imagem internacional do ex-presidente, hoje preso em Curitiba condenado por corrupção, sai enfraquecida, pela derrota em si e pela premiação anunciada ontem.

São prêmios diferentes, com comissões distintas, mas o sentido é único: o combate à desigualdade e a busca do desenvolvimento econômico inclusivo.

Assim como o anúncio de que o governo Trump endossou a entrada na OCDE da Argentina em detrimento do Brasil, a quem prometera apoio, enfraqueceu politicamente o governo Bolsonaro.

Mesmo com a reiteração do governo dos Estados Unidos de que continuam apoiando a entrada do Brasil na OCDE.

Abhijit Banerjee, indiano naturalizado americano, Esther Duflo casada com Banerjee, franco-americana, diretora do laboratório de ação contra a pobreza, e o americano Michael Kremer, professor de economia do desenvolvimento em Harvard venceram o Nobel com trabalhos teóricos e práticos que aliam economia da Saúde e Educação para melhorar as condições de vida futura de crianças e jovens.

É uma visão humanista holística do que seja desenvolvimento econômico que foi premiada.


Merval Pereira: Retrocesso à vista

A anunciada mudança de posição do ministro Gilmar Mendes, que votou a favor da prisão em segunda instância e mostrava-se disposto a aceitar a proposta do presidente do STF Dias Toffoli de permitir a prisão somente a partir da terceira instância, pode involuir (ou evoluir, depende do ponto de vista) para o apoio à prisão só após o trânsito em julgado do processo. “Eu estou avaliando essa posição. Mas na verdade talvez reavalie de maneira plena para reconhecer (a possibilidade de prisão apenas depois de) o trânsito em julgado.”, disse ele à BBC.

Com essa guinada, se confirmada, ele acompanhará os votos dos ministros Celso de Melo, Marco Aurelio Mello, Ricardo Lewandowski, e pode provocar uma maioria nova no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). A ministra Rosa Weber sempre se declarou a favor do trânsito em julgado, mas vinha acompanhando a maioria a favor da prisão em segunda instância por entender que o tribunal deveria manter coerência em suas decisões.

Mas mostra-se disposta a voltar à posição original caso o tema venha a ser colocado para julgamento por ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), o que deve acontecer ainda este ano. Para ela, “o postulado do estado de inocência repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade até que sobrevenha, como o exige a Constituição brasileira, o trânsito em julgado da condenação penal”.

Também o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo, pode ser levado a apoiar o trânsito em julgado se sua proposta de permitir a prisão a partir da terceira instância (STJ) não for aceita. A nova maioria, que já se sabe ser contra a prisão em segunda instância, poderia, assim, decidir voltar à exigência de trânsito em julgado, encerrando a discussão sobre interpretações do espírito da Constituição.

Foi o que levou ao entendimento majoritário de que prisão após segunda instância se justifica porque nela se obtém a certeza de culpa do condenado. Nas instâncias superiores (Superior Tribunal de Justiça e STF), se avaliam questões jurídicas, sobre se houve aplicação correta da lei e da Constituição no processo, não havendo inclusão de novas provas.

Para derrotar a nova tendência, seria preciso que os cinco ministros que se colocaram a favor da prisão em segunda instância - Alexandre de Moraes, Luis Roberto Barroso, Luis Fux, Edson Fachin e Carmem Lucia - apoiassem a proposta de Toffoli, que assim derrotaria seus próprios aliados.

De qualquer maneira, a maioria do STF decidindo pelo trânsito em julgado, ou pela prisão após a terceira instância, todos os condenados em segunda instância que estão na cadeia, e não apenas os da Operação Lava Jato, serão libertados. E voltaremos ao tempo em que quase ninguém com dinheiro para contratar um bom advogado ia preso, devido aos inúmeros recursos até chegar ao final do processo.

Essa decisão pode ter ainda uma consequência eleitoral. Mesmo que o plenário decida pelo trânsito em julgado, Lula continuaria sem poder se candidatar, pois pela Lei de Ficha Limpa um condenado em segunda instância está inelegível por oito anos após o cumprimento da pena.

Se a Segunda Turma do STF não anular o julgamento que o condenou por corrupção no caso do triplex, só restará à defesa do ex-presidente tentar retomar uma estratégia jurídica para deslegitimar a própria lei. A defesa de Lula alegará que, se a condenação em segunda instância deixou de ser o final de um processo penal, não pode ser decisiva para uma candidatura eleitoral.

Vai ser outra disputa jurídica que se desenvolverá nos tribunais superiores, e acabará no STF. A exigência de não ter condenação em segunda instância para um candidato é igual à exigência da idade mínima ou ao domicílio eleitoral, não tem nada a ver com a legislação penal. Mesmo porque essa exigência foi aprovada em 1990, quando ainda vigia a exigência do STF do trânsito em julgado para a prisão de um condenado, o que foi substituído pela prisão em segunda instância somente em 2016.

Nunca é demais lembrar, porém, que o ministro Gilmar Mendes faz criticas severas à Lei da Ficha Limpa, e chegou a afirmar certa vez que ela parece ter sido escrita por um bêbado.


Merval Pereira: Briga pelo butim

Bolsonaro sem o PSL perde o apoio financeiro, mas o PSL sem Bolsonaro será um partido rico sem uma bandeira

A eleição de Bolsonaro para a presidência da República em 2018, consequência da disfuncionalidade de nosso sistema politico-partidário e da decadência da democracia representativa pelo mundo afora, e a do próprio país, corroída pela corrupção, explicitou no nosso combalido cotidiano político o paradoxo de ter o mais poderoso Congresso dos últimos anos, e o de menor qualidade individual.

O índice de renovação foi o maior dos tempos recentes, mas resultou em um Congresso amorfo, com um quadro partidário mais fragmentado ainda, e os maiores partidos da Câmara, o PSL e o PT, sofrendo, o primeiro, de descontrole, e o segundo de controle excessivo.

Dedicando-se unicamente à libertação de Lula, o PT não tem importância parlamentar. Já o PSL, um nanico que surgiu gigantesco, do nada que significava, graças à filiação de última hora do candidato Jair Bolsonaro à presidência da República, continua no baixo clero, sem organização e sem liderança.

Bolsonaro passou a metade de seu primeiro ano de mandato criticando a velha política, e hoje se dedica a tomar conta do partido que o elegeu para, com métodos iguais aos que critica, organizar um esquema partidário que dê sustentação à sua reeleição.

A disputa no baixo clero pelo butim dos fundos Partidário e Eleitoral no ano das eleições municipais tem alcance mais longo, até a eleição presidencial de 2022. Não é à toa que o presidente Bolsonaro abriu uma guerra contra a direção do PSL. Um partido nanico até a eleição passada, o PSL elegeu a segunda maior bancada em 2018, o que garantiu um fundo partidário de R$ 110 milhões este ano.

E mais R$ 359 milhões em 2020, somando os fundos Partidário e Eleitoral. Essa vitória estrondosa, no entanto, não se converteu em ativo eleitoral para o clã Bolsonaro, pois o partido tem dono: o deputado federal Luciano Bivar.

Assim como Bolsonaro ano passado, Bivar também foi candidato à presidência da República em 2006, mas terminou em penúltimo lugar, recebendo 0,06% dos votos. O último colocado, como de costume, foi o candidato do Partido da Classe Operária (PCO), o mesmo ao qual os advogados de Bolsonaro comparam o PSL em termos de transparência de prestação de constas. Os dois estão empatados no último lugar num ranking de transparência.

Pedindo uma análise independente das contas do seu nono partido politico (já esteve no PDC, PP, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC,), Bolsonaro pretende criar uma situação tal que lhe permita, ou assumir o controle do partido, ou liderar uma debandada de deputados sem que se arrisquem a perder o mandato.

A primeira possibilidade é remota, a outra é uma improbabilidade que não está na lei, mas que o Tribunal Superior Eleitoral poderá encontrar uma interpretação alargada para permitir.

Os Bolsonaro querem mesmo é controlar os fundos do partido, que só existem por causa deles. Sair do PSL seria uma atitude megalômana daqueles líderes que chamam seus seguidores para o suicídio, neste caso eleitoral.

Disputar eleições sem tempo de televisão e dinheiro pode ter dado certo para Bolsonaro, embora o apoio de grandes empresários hoje esteja comprovado, e a facada trágica tenha criado um efeito inverso na sua campanha, que o criminoso queria inviabilizar.

Mas, achar que novamente esse fenômeno se repetirá, não é razoável. A briga pelo butim traz ainda uma contradição interna: Bolsonaro sem o PSL perde o apoio financeiro, mas o PSL sem Bolsonaro será um partido rico sem uma bandeira, que o presidente representa cada vez mais para um núcleo eleitoral nada desprezível.

Vê-se a cada dia o esforço do presidente de acelerar sua campanha pela reeleição. Ontem, esteve lado a lado com dois potenciais concorrentes: João Doria, governador de São Paulo, e Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro.

Para Doria, tucano que esteve circunstancialmente do seu lado na eleição presidencial, reservou vaias de seus seguidores, que o receberam aos gritos de “Mito”. Bolsonaro estava em seu habitat, na formatura de uma turma da Polícia Militar de São Paulo, tanto que carregou no colo uma criança fantasiada de PM com uma arma de brinquedo na mão.

Já com Witzel, aproveitou solenidade de lançamento de um submarino no Rio para adverti-lo frontalmente. Encarando-o, exigiu de seus possíveis concorrentes “ética, moral e sem covardia”. Se com João Doria a disputa é entre campos distintos, com Witzel é no mesmo campo.


Merval Pereira: Amizade interessada

Amizade entre Trump e os Bolsonaro, base da política externa atrelada aos EUA, começa a ser desmistificada

Não há países amigos, mas interesses comuns, a frase atribuída a John Foster Dulles, Secretário de Estado dos EUA, resume bem a situação atual, em que os Estados Unidos frustraram as expectativas brasileiras de entrar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), mais um dos muitos objetivos de política externa brasileira emperrados pelos compromissos internacionais que não nos contemplam.

A propalada amizade entre Trump e a família Bolsonaro, base para a defesa de uma política externa atrelada aos Estados Unidos, começa a ser desmistificada pelos próprios americanos, que ontem aceitaram Argentina e Romênia no chamado “clube dos ricos”, sem abrir brecha para o Brasil, o que fora anunciado como a grande vitória alcançada na visita do presidente Bolsonaro aos Estados Unidos.

O Brasil tem tido frustradas suas ambições internacionais historicamente pelos Estados Unidos. Na Conferência Internacional de Haia, de 1899, e assim também na Segunda, de 1907, onde as potências européias organizavam os países por influência no processo decisório, fomos obrigados a sair do jogo devido às propostas endossadas pelos EUA, consideradas “humilhantes” quando se discutiu a composição do Tribunal de Presas e a do Tribunal Arbitral.

O mesmo aconteceu em 1945, como consequência da Segunda Guerra Mundial, na criação da Organização das Nações Unidas (ONU), quando o Brasil quase fez parte do seu Conselho de Segurança, meta que tentamos alcançar até hoje.

Criou-se o Conselho de Segurança da ONU a cargo dos “Quatro Policiais”: Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e China, aos quais depois se somou a França. O Brasil, que participara da Guerra através da FEB, tinha o apoio de Roosevelt, mas a Conferência de Yalta aconteceu quando a conjuntura já havia em parte mudado, inclusive, com a morte dele, substituído por Truman.

A importância estratégica que o Brasil teve na luta contra o Eixo, com as bases aéreas no Nordeste, ou na contenção da Argentina “antiamericana”, havia sido reduzida pelos acontecimentos internacionais.

Muito se falou sobre as proximidades entre a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos, em 2008, e a de Lula em 2002, e o próprio ex-presidente brasileiro via semelhanças na trajetória de vida dos dois. Eleger um operário no Brasil teve quase o mesmo significado para nós que eleger o primeiro presidente negro nos Estados Unidos.

Além de ter chamado Lula de “o cara”, nada mais aconteceu na relação pessoal entre os dois. O governo Lula na ocasião preferia um futuro presidente republicano, porque seria "menos protecionista" e menos "próximo dos tucanos".

Se a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação, se não de amizade, também especial, nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique, que já declarou que sentia "asco físico" por Bush.

Provavelmente Bush pressentia em Fernando Henrique uma rejeição intelectual que não aconteceu com Lula, cujo temperamento cordial é mais parecido com o dele.

Além da frustração dessa meta, em que pese a reiteração retórica dos Estados Unidos de que apoiarão a entrada do Brasil na OCDE, há vários efeitos colaterais que enfraquecem o governo Bolsonaro.

A Argentina provavelmente será governada novamente pelo grupo dos Kirchner, a quem Bolsonaro já endereçou diversas críticas. A aceitação pelo Senado de Eduardo Bolsonaro como embaixador em Washington, que já estava difícil, ficou mais agora, pois seu grande trunfo era dizer-se próximo da família Trump.

Por fim, no governo de Lula, em 2009, o país foi convidado a fazer parte da OCDE e não aceitou, pois perderia o status de país em desenvolvimento que lhe dá vantagens competitivas no comércio internacional.