Merval Pereira
Merval Pereira: Sem legenda
O presidente Bolsonaro, cujos atos estrambóticos levaram o país à desmoralização internacional, é o tipo político que chega ao governo central do país como consequência de uma disfunção eventual da democracia. Como tal, não tem a compreensão do que seja o presidencialismo de coalizão, que reduz a uma troca de favores entre quem manda e quem obedece.
Não lhe passa na cabeça que é possível montar uma base parlamentar sobre interesses republicanos, sem repetir expedientes como o mensalão, o petrolão e que tais. Mas também não sabia que, sozinho, não teria como governar.
Do radicalismo inicial, em que montou um governo com pessoas da sua linha de pensamento, que, como ele, sabiam o que queriam destruir, mas não o que colocar no lugar, teve que se aproximar do Centrão e aprovar um “orçamento secreto” para tentar garantir que não será votado o impeachment. O único que sabia o que queria, o ministro da Economia, Paulo Guedes, não sabia que precisaria do apoio do Congresso para aprovar as reformas e queria mais do que Bolsonaro aceitava, como ficou demonstrado.
Porque tem uma visão política de baixa extração, de onde montou sua estrutura eleitoral que se limitava a um nicho suficiente para elegê-los todos e, como consequência, formar a fortuna da família à base de “rachadinhas” e ligações com interesses de forças militares oficiais e paralelas, Bolsonaro achou que podia tudo e descobriu que pode muito, mas não tudo. Não tem moderação nem discernimento para usufruir o poder que tem, por isso não conseguiu ficar na legenda que o elegeu, o PSL, nem montar uma própria, muito menos encontra outra para abrigar seus sonhos megalomaníacos.
Não há dúvida de que o PSL cresceu nas eleições de 2018, tornando-se o segundo maior partido da Câmara, devido à onda bolsonarista. Mas, transformado em uma potência mais econômica do que política devido aos fundos partidário e eleitoral, transformou também seus “donos” em felizardos descobridores de uma mina de ouro, de cujo controle não querem abrir mão.
A desorganização de seu grupo político ficou demonstrada na tentativa de criar uma legenda própria, a Aliança pelo Brasil, que acabou abandonado antes de nascer por impossibilidade de conseguir as assinaturas necessárias. Em busca de um partido para disputar a reeleição em 2022, o presidente Jair Bolsonaro, que já foi de nove partidos diferentes, não consegue encontrar sua décima legenda.
Quando fazia parte do baixo clero, podia pular de legenda em legenda com a garantia de uma votação acima da média. Hoje, quer controlar o partido que o receber e, até agora, teve rejeitados todos os seus desejos. Acontece que, no Brasil, não há partidos programáticos, mas com “donos” controladores. Controlar um partido é negócio grande, o que ganha menos ganhou na recente eleição R$ 1,5 milhão do fundo eleitoral, mesmo sem ter cumprido as cláusulas de barreira.
Os que conseguiram cumprir as exigências novas da legislação eleitoral, além de tempo de televisão, ganham também os Fundo Partidário e o Eleitoral, que deram cerca de R$ 359 milhões ao PSL pelo resultado da eleição de 2018. O PRTB — Partido Renovador Trabalhista Brasileiro —, em que o vice-presidente Hamilton Mourão está inscrito, não cumpriu as cláusulas de barreira e ficou sem tempo de televisão e fundo partidário, mas, mesmo assim, a família de Levy Fidelix, que controla o partido com a morte de seu patriarca, não aceitou a condição de Bolsonaro de controlar suas finanças.
Quem hoje preside a legenda é a viúva Aldinea Fidelix, e um dos seus três filhos, Levy Fidelix Filho, é o secretário-geral. Um negócio familiar de que não desejam abrir mão, mesmo com a possibilidade de ter o presidente Bolsonaro como candidato à reeleição. Bolsonaro teria pedido carta branca, o que significa que, além dos fundos de financiamento, os Bolsonaros poderiam alterar o comando de diretórios estaduais e controlar as decisões da Executiva Nacional.
Não será por falta de partido que Bolsonaro deixará de disputar a eleição presidencial de 2022, mas a dificuldade para encontrar uma legenda demonstra também que já foi o tempo em que sua vitória era considerada favas contadas.
Fonte:
O Globo
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Merval Pereira: Uma sociedade de amigos
A instalação da CPI da COVID-19 trouxe à discussão, de maneira colateral, um problema brasileiro que talvez tenha no deputado Bonifácio de Andrada, de Minas Gerais, que morreu em janeiro, um exemplo radical. A presença de sua família na política vem do Império, e já tem cerca de 200 anos na ação parlamentar. Atualmente, Lafayette de Andrada (Republicanos – MG), seu filho, exerce mandato na Câmara Federal.
Quando os governistas tentaram impedir a participação dos senadores Renan Calheiros e do suplente Jader Barbalho, por serem pais dos governadores Renan Filho, de Alagoas, e Helder Barbalho, do Pará, o que era apenas uma estratégia parlamentar de postergar o funcionamento da CPI, pois ninguém acreditou que os dois fossem proibidos de atuar, trouxe novamente à tona a questão dos clãs familiares na política nacional.
Levantamentos do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) e do site Congresso em foco mostram que existem hoje na Câmara Federal 172 deputados com algum grau de parentesco de políticos – 33,5% do total – e 24 senadores, quase 30% das bancadas. Numa eleição disruptiva como a de 2018, na qual políticos tradicionais, como Romero Jucá no Amapá, e clãs familiares como os Sarney e os Lobão no Maranhão não tiveram êxito, a renovação foi grande, especialmente para a Câmara, que já teve anos em que 60% dos eleitos eram ligados a famílias tradicionais de políticos.
Uma disrupção comandada, paradoxalmente, por um dos muitos clãs políticos, os Bolsonaros, numerados de 1 a 4, três dos quais com cargos legislativos – o senador Flávio, o deputado federal Eduardo e o vereador Carlos, sobrando ainda um futuro mandato de deputado estadual para o mais novo, Renan -, que emergiram do baixo clero para o proscênio da tragédia que estamos encenando.
O próprio presidente Bolsonaro revelou que só se candidatou à presidência porque estava “de saco cheio” de ser deputado federal, depois de sete mandatos consecutivos. Uma brincadeira que custou caro ao Brasil. O antropólogo Roberto Da Matta, um estudioso da sociedade brasileira, considera que esse protagonismo de relações de compadrios marcam os partidos brasileiros, que os trocam pelas ideologias. “Estamos vivendo em um regime colonial, de realeza, de fidalgos, que querem manter e ampliar seus privilégios”. Ele se refere ao decreto presidencial que criou um duplo teto para os funcionários públicos que trabalham no Executivo, permitindo que o presidente da República e seus ministros acumulem salários da função pública com a aposentadoria.
Essa imbricação familiar faz parte de uma crise cultural que vivemos há muito tempo, resultado de uma sociedade de fidalgos, que se colocam em posição superior aos demais da sociedade, que, por sua vez, aceita essa hierarquia que reflete o abismo da desigualdade no país. Da Matta, que estudou o autoritarismo brasileiro a partir da expressão “Você sabe com quem está falando?”, diz que a subserviência dos mais pobres diante dos “fidalgos” mostra que “eles sabem com quem estão falando”. Para ele, a nossa é uma sociedade “de amigos”, em que a família é central.
Essa análise de Roberto da Matta leva a que se compreenda a dificuldade de conter o nepotismo, de investigar os próprios pares, como se vê permanentemente no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e agora no caso da denúncia contra o ministro Dias Toffoli de ter aceitado propina para mudar um voto em favor de prefeito de um município do Rio. Feita em delação premiada à Polícia Federal pelo ex-governador Sérgio Cabral, será arquivada sem investigação pelo Supremo Tribunal Federal.
O bate-boca promovido pelo senador Flávio Bolsonaro na CPI da Covid-19, chamando o relator Renan Calheiros de “vagabundo”, e recebendo em troca a mesma pecha, marcou a semana. Mais ainda porque o presidente Bolsonaro no dia seguinte foi a Alagoas, nicho eleitoral dos Calheiros, para atacá-los no próprio campo, acompanhado de dois chefes de clãs alagoanas: o presidente da Câmara Arthur Lira, filho do ex-senador Benedito de Lira, e o ex-presidente Fernando Collor de Mello, filho do ex-senador Arnon de Mello, que já foram aliados de Renan Calheiros e poderão voltar a sê-lo, de acordo com seus interesses.
Fonte:
O Globo
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Merval Pereira: Mentiras perigosas
Que o ex-secretário de Comunicação de Bolsonaro Fabio Wajngarten mentiu na CPI da Covid, disso não há dúvida. A partir daí, é possível detectar como os senadores estão despreparados para os interrogatórios e prospectar um resultado muito mais político do que real, se não mudarem de postura. Um resultado político pode ser sem grande valia, pois a própria característica da decisão poderá dar ao presidente Bolsonaro uma escapatória, atribuindo às acusações da CPI um teor eleitoral.
Poucos foram como o senador Tasso Jereissati, que citou uma campanha de volta ao trabalho — “O Brasil não pode parar”—, claramente negacionista, feita pela Secom, em contraposição ao depoimento do ex-secretário, que se apresentou como um seguidor da ciência e favorável às medidas de prevenção, como o distanciamento social.
Frequentemente as perguntas dos senadores eram confusas, inclusive as do relator Renan Calheiros, que, por precipitação, perdeu um grande momento quando pediu ao depoente que enviasse à CPI os e-mails que ele dissera à revista “Veja” ter “guardado”. A primeira reação de Wajngarten foi concordar, com um gesto de cabeça, para logo em seguida se aproveitar da confusão reinante para dizer que os tinha guardado no computador da Secom.
Mandar prender um depoente, mesmo que ele seja um mentiroso evidente como Fabio Wajngarten, não resolveria a situação da CPI, mas criaria um fato político que poderia reverter até mesmo em favor do governo Bolsonaro. Mesmo que a lei permita que se dê voz de prisão durante o depoimento, as mentiras de Wajngarten foram tantas e tão evidentes que dispensam essa medida extrema.
Chega a ser patética a falha do ex-secretário de Comunicação ao garantir que nunca discutiu nenhuma campanha com o presidente Bolsonaro. Deu-se um poder que nenhum secretário de Comunicação tem, nem mesmo no menor município do país. Uma secretaria de Comunicação existe para explicar aos cidadãos a política do presidente da República, que guia as ações de um governo. Nem Goebbels, na loucura do nazismo, teve tanto poder quanto Wajngarten atribuiu-se ridiculamente.
Foram demitidos sumariamente os que tentaram sair da linha de orientação de Bolsonaro, um governante que sabidamente não admite contestações. Mesmo em governos democráticos, e não é o caso deste de Bolsonaro, ministros discordam entre si, mas a última palavra é do presidente.
Tomada uma decisão, o ministro que publicamente a criticar estará fora. Disputas entre ministros e ministérios são comuns, e muitos saem ao perder a capacidade política de defender internamente suas ideias. Foi o caso de Wajngarten, que tinha muito poder até a chegada ao governo do ministro da Comunicação, Fábio Faria, que o dispensou depois de muitos atritos entre os dois.
Mesmo a carta da farmacêutica Pfizer que ele entregou à CPI, considerada por seu presidente, senador Omar Aziz, o grande achado do dia, já era de conhecimento de todos, e provavelmente o diretor da Pfizer no Brasil, Carlos Murillo, que deporá hoje, daria conhecimento dela à CPI.
No início do interrogatório, ninguém tinha a íntegra da revista “Veja” para confrontá-la com o depoimento de Wajngarten. Parece que os senadores estavam certos de que o depoimento seria uma confirmação da entrevista à revista e não se prepararam para uma reviravolta.
Em beneficio dos senadores, é raro que uma pessoa dê uma entrevista tão explícita quanto a que Wajngarten deu à “Veja” e depois tente tirar dela o teor explosivo que contém. Quando, já ao final da sessão, o senador do Cidadania Alessandro Vieira leu integralmente as respostas do depoente, é que ele foi obrigado a admitir algumas críticas.
O final da sessão deu-se em clima de baixaria, com o bate-boca em que ambos, os senadores Flávio Bolsonaro e o relator Renan Calheiros, se xingaram de “vagabundo”, sem que houvesse condições de definir quem tinha razão. Ou se os dois estavam certos.
Fonte:
O Globo
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O esquema de desviar verbas através de emendas do Congresso, já usado em governos anteriores, como no escândalo dos “anões do Orçamento”, se repete agora de outra maneira, demonstrando como a criatividade dos corruptos é infindável. Fica claro que precisamos inventar um outro tipo de relacionamento do Congresso com o governo central, porque nosso sistema de presidencialismo de coalizão virou um instrumento de distribuir dinheiro para políticos e corromper o Estado.
Os “anões do Orçamento” eram deputados, de baixa estatura física e moral, que manipulavam a Comissão do Orçamento no Congresso com manobras para inclusão de obras regionais mediante propina recebida de empreiteiras e governantes estaduais e municipais. Agora, ao que tudo indica, o esquema, denunciado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, é centralizado no próprio Palácio do Planalto, que indica verbas de um “orçamento paralelo” a seus correligionários e até a oposicionistas que se disponham a votar com o governo em ocasiões especiais, como a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado.
A esse “orçamento”, só têm acesso os parlamentares indicados pelo Centrão, e as ordens de pagamento saem do Ministério do Desenvolvimento Regional e de outros órgãos, sem que se saiba o que será feito do dinheiro, que não tem controle, pois não consta do Orçamento oficial.
Centenas de requisições informais de deputados indicando para que obras deveria ser encaminhado o dinheiro, num caso até compra de tratores, foram revelados pelo jornal. Bastava que o parlamentar dissesse que fora “contemplado” com tal verba ou que tinha direito a ela, para que o dinheiro fosse liberado, após evidentemente ser checada a planilha do chefe da Secretaria de Governo da Presidência, anteriormente o ministro Luiz Eduardo Ramos, hoje a deputada Flávia Arruda, colocada estrategicamente na pasta para facilitar o trânsito dos acordos feitos pelo Centrão que ela representa.
O superfaturamento de obras continua sendo a raiz desses esquemas fraudulentos. Os tratores financiados pelo orçamento paralelo, segundo especialistas, estão mais de 200% acima do preço de mercado. A maior parte dessas verba vai para a Codevasf, Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco, que hoje abrange também o Vale do Parnaíba. Criada para atender cerca de 500 municípios, hoje abrange quase três mil em 15 Estados e o Distrito Federal, ou 37% do território nacional.
É uma das estatais mais cobiçadas pelo políticos, tradicionalmente dominada pelo Centrão. O esquema do “orçamento paralelo” é mais um para limpar dinheiro desviado do Orçamento público. No mensalão, parte do Congresso foi comprado com dinheiro público; no petrolão, o esquema montou-se especialmente em torno da Petrobras e de suas subsidiárias, com outras estatais envolvidas.
Entre as novidades descobertas pela Operação Lava-Jato, o dinheiro de corrupção não raro vinha de “doações” oficiais aos partidos políticos, que assim lavavam o dinheiro recebido. Agora, a lavagem de dinheiro é feita por meio do próprio Orçamento. As emendas parlamentares são impositivas, e todos têm direito a elas na elaboração do Orçamento. No primeiro ano do governo Bolsonaro, porém, foi criada a figura da “emenda do relator”, que ganhou o poder adicional de distribuir verbas.
Além disso, há uma disputa entre o ministro Paulo Guedes, da Economia, e seu mais direto adversário dentro do governo, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Guedes sugeriu a Bolsonaro que vetasse essa emendas no ano passado, e os parlamentares derrubaram o veto, mantendo a distribuição de emendas sem identificação pelo relator.
Não pode ser essa a base da nossa política partidária. Nenhum país aguenta um sistema político que tenha de ser regado a dinheiro e verbas desviadas para funcionar. Não há país sério que se baseie numa relação corrupta entre o governo central e os parlamentares. Quem controla esses esquemas todos é o Centrão, criado na Constituinte de 1988, formalizando a união de partidos como PMDB, PP, PFL, PTB, o mesmo grupo que sempre esteve no poder, e que hoje domina o Congresso.
Fonte:
O Globo
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Merval Pereira: Paradoxos da regressão
O formidável Tim Maia eternizou uma máxima brasileira que demonstra como, entre nós, o paradoxal acaba sendo normalizado, às vezes em decorrência de uma afabilidade presumida. “Prostituta tem orgasmo, traficante cheira e cafetão se apaixona”, repetia às gargalhadas. Eram tempos outros, em que ainda se acreditava que o país era abençoado por Deus. Bonito por natureza continua sendo, mas com um governo que não sossega enquanto não torná-lo feio, degradado, desesperançado.
André Trigueiro, meu colega da Globonews especialista em meio-ambiente, cunhou uma dessas frases que refletem o estado das coisas, com a amargura que a frase de Tim Maia não tinha. “Funai intimida indígenas. Fundação Palmares rechaça movimento negro. Ministério do Meio Ambiente intimida fiscais do Ibama”. É um retrato do país hoje, quando se distorce a função na medida dos interesses regressivos de setores da sociedade que não querem se enquadrar nos códigos modernizantes que regem o mundo ocidental.
No caso do desmatamento, o país, que já teve voz importante na questão, hoje é tido como vilão contra o meio-ambiente, a ponto de as exportações brasileiras estarem em xeque. Delegado da Polícia Federal no Amazonas, Alexandre Saraiva, que apreendeu toneladas de troncos arrancados ilegalmente, acabou sendo afastado da função, e a carga liberada.
Teve que recorrer ao Supremo Tribunal Federal com uma notícia-crime contra o ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, e presidente do Ibama Eduardo Bim, e o senador de Roraima Telmário Mota que, juntamente com outros deputados e senadores da região, pressionaram o ministério do Meio-Ambiente a favor dos madeireiros.
Já o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, um negro racista, desde que assumiu o cargo, vem dando declarações contra os movimentos negros, que seriam “uma escória maldita”, e classificou Zumbi como “um filho da puta que escravizava negros”. Tomou decisões polêmicas, como mandar retirar da lista de “personalidades negras” da Fundação nomes como Marina Silva, Benedita da Silva, Gilberto Gil, Madame Satã, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Elza Soares.
Sérgio Camargo foi considerado “inapto” para a função pela ONU, que enviou uma carta ao governo brasileiro questionando ações da Fundação, como a redução das áreas quilombolas. Já a Funai tem na sua origem o Serviço de Proteção ao Índio, criado pelo Marechal Rondon mas, no governo Bolsonaro, começou a ser desmontada.
Um dos primeiros atos do novo governo foi passar a demarcação de terras indígenas e de quilombolas para o ministério da Agricultura, o que não aconteceu porque o Congresso mudou a medida provisória para manter o controle no ministério da Justiça. A ação da Funai, porém, vem sendo muito criticada, inclusive nessa pandemia, por não ter lutado para que os indígenas e quilombolas tivessem prioridade para a vacinação.
Para completar, a própria Funai pediu à Polícia Federal que abrisse um inquérito contra a líder indígena Sônia Guajajara, que foi intimada a prestar depoimento sobre as críticas feitas contra o Governo federal em um documentário da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que ela coordena.
O documentário “Maracá” retrata, em episódios, a maneira como os índios estão sendo tratados nessa pandemia, e foi considerado pela Funai uma ação de “calúnia e difamação”, e não um protesto daqueles que deveria proteger. O juiz Frederico Botelho, de Brasília, mandou arquivar o inquérito e disse que houve uma tentativa de usar a Lei de Segurança Nacional contra a líder indígena.
Esses paradoxos regressivos têm provocado até mesmo problemas familiares. O pai de Sérgio Camargo é um tradicional e importante líder negro e, embora não o critique, diz que tem uma “distância de ideias, um valor bastante fundo”. A filha de Regina Duarte, a também atriz Gabriela Duarte, deixa claro que não compartilha as mesmas bandeiras ideológicas da mãe. E o embaixador aposentado Luiz Felipe Seixas Correa considerava que, à política externa que seu genro Ernesto Araújo comandava, faltava clareza.
Essa distorção dos organismos institucionais existentes tem provocado uma regressão cultural marcante nesses dois anos e meio de governo Bolsonaro, fazendo com que o país perca o papel de destaque que já teve nessas e em outras áreas, como a da cultura, cujo secretário, Mario Frias, diz que o governo não tem obrigação de “bancar marmanjo”, referindo-se à Lei Rouanet.
Fonte:
Merval Pereira: Bolsonaro no limite
Por mais que o Exército faça para se distanciar de Bolsonaro, o presidente faz questão de incluí-lo em suas ameaças, voltando a confrontos institucionais que já o colocaram em desacordo anteriormente com o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e o ex-comandante do Exército e general Edson Pujol. Voltou a chamar de “meu Exército” os militares que, segundo ele, podem sair às ruas para proteger o direito de ir e vir em caso de lockdown. E nenhum juiz ousará contestar essa decisão, garantiu em sua retórica abusiva.
A convocação do ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello pela CPI quase se transformou em princípio de crise, não fosse a iniciativa do senador Omar Aziz, presidente da CPI, de ligar ao novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio, para esclarecer que Pazuello era convocado na qualidade de ministro civil, e não de general da ativa.
O novo comandante era chefe do Departamento do Pessoal do Exército, encarregado da logística de combate à Covid-19 dentro da corporação, e agiu de acordo com as orientações médicas. Por isso, Pujol certa vez deu o cotovelo para Bolsonaro, que lhe estendia a mão e ficou irritado.
O próprio general Paulo Sérgio escreveu um artigo em que se rejubilava pelo fato de a pandemia, no Exército, estar sendo muito menos letal entre os seus do que na média brasileira, justamente por seguirem orientações científicas. O artigo, que também provocou a ira de Bolsonaro, não impediu que a antiguidade se impusesse na escolha do novo comandante do Exército e mostra bem a diferença de visão entre os dois.
O presidente está claramente a perigo, se sentindo acuado pelos relatos que estão surgindo na CPI da Covid. Mais uma vez está escalando a retórica que domina, a da ameaça e do extremismo, para tentar criar uma situação crítica que obrigue as Forças Armadas a se posicionar. Aproveitando um discurso em cerimônia do Palácio do Planalto sobre a tecnologia 5G — que nada tem com o tema que abordou —, Bolsonaro deu um jeito de voltar a criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de garantir a autonomia de governadores e prefeitos na definição de medidas restritivas durante a pandemia, que ele considera uma “excrescência”, por ter dado “competências esdrúxulas” a eles.
O ex-ministro Pazuello se preparava justamente para atacar o Supremo em seu depoimento na CPI, que acabou adiado por incapacidade do convocado de postar-se minimamente bem diante de seus arguidores. Bolsonaro é capaz de fazer um ato extremo, como ameaçou, com o objetivo de criar uma situação-limite e confrontar instituições como o STF para testar sua força popular. As manifestações do fim de semana a seu favor, em várias capitais, devem tê-lo convencido de que ainda é capaz de acionar multidões para reforçá-lo no poder.
Trata-se de movimento perigoso porque, estando acuado, é capaz de transpor a linha da legalidade.
Pode ser só uma bazófia, mas pode perfeitamente se transformar em realidade diante dos fatos, que estão sempre contra ele nos últimos tempos. Com essas bravatas, é possível acelerar um processo de impeachment, que está latente na CPI. Está protegido pela pandemia, que impede as pessoas de ir à rua. Mas, nesse ritmo, provoca ações de seus seguidores e dos contrários. E, se isso acontecer, as instituições terão que funcionar, inclusive o Exército, que terá de dizer se está do lado da democracia ou de um presidente claramente desequilibrado, que tenta fazer tudo para criar um ambiente político que facilite o autoritarismo.
A sorte é que, aparentemente, ele é minoria. A questão é saber se irá até o final, se testará nas ruas sua força. O mais grave, diante da falta de vacinas e do tamanho da tragédia que vivemos, é voltar a pensar alto besteiras como uma guerra biológica da China, que teria “inventado” o vírus da Covid-19 para poder crescer economicamente e superar seus competidores ocidentais. São os ecos ainda da visão conspiratória do ex-ministro Ernesto Araújo, que ficou no inconsciente dos remanescentes do governo e levaram o ministro Paulo Guedes a repetir a besteira numa reunião que era transmitida.
Fonte:
O Globo
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Merval Pereira: Isolado no mundo
Além do erro primário de ter deixado para comprar vacinas de última hora, ficando exposto à vontade do vendedor e do mercado mundial, o Palácio do Planalto, justamente por desdenhar a vacinação em massa como solução para a pandemia de Covid-19, deixou de planejar ações, não apenas de logística, mas também geopolíticas, que nos levaram a ser um país pária num mundo globalizado, quer queiram os Bolsonaros da vida ou não.
Estamos diante de um quadro de isolamento nunca antes enfrentado, com agentes públicos desqualificados para superá-lo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que a cada dia se encolhe mais, acabou contagiado pela mediocridade do governo que pretendia controlar no seu superministério.
O tratamento dado à China no governo Bolsonaro é ridículo, para dizer o menos. Assumimos uma guerra que não é nossa, é dos Estados Unidos, passamos a dar estocadas no nosso maior parceiro comercial e segunda economia do mundo, consumidora voraz de commodities, que já começou a retaliar. Aumentou em 300% a importação de soja dos Estados Unidos e reduziu a do Brasil.
Outras retaliações virão, e é impressionante que um técnico bem formado como Guedes se deixe levar pela idiossincrasia do presidente em relação ao comunismo chinês, desqualificando a vacina chinesa contra a Covid-19 para enaltecer o poder da livre-iniciativa americana, que teria produzido uma vacina mais eficaz que a chinesa.
Acontece que a vacina da Pfizer não é americana, mas alemã, e o Brasil quase só tem a CoronaVac para vacinação interna — apenas 20% das doses são da Oxford/Astrazeneca . Por si, seria razão suficiente para um governo normal ter cuidados especiais com esse parceiro tão importante. Guedes pediu desculpas devido à reação diplomática da China, que tem em suas fábricas o insumo necessário para a fabricação da vacina no Instituto Butantan, em São Paulo, e na Fiocruz, do Rio.
Até o momento, a maioria dos brasileiros não pode viajar porque ser brasileiro, hoje, virou motivo para bloquear a entrada na maioria dos países do mundo, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Quando a situação se normalizar, só os felizardos que tiverem a sorte de se vacinar com a AstraZeneca poderão viajar para a Europa, mas não para os Estados Unidos, que só aceita as vacinas da Moderna e da Jansen, americanas, e da Pfizer, alemã.
Essas são questões de geopolítica que deveriam estar sendo analisadas desde o início da pandemia. O governo Trump, negacionista como o de Bolsonaro, não deixou de comprar vacinas em abundância, mais até do que a necessidade da população dos Estados Unidos, e agora está distribuindo doses da vacina para países necessitados, mas o Brasil não está nessa primeira leva.
A solidariedade internacional com a Índia, que vive uma crise humanitária de proporções inéditas, é muito maior do que com o Brasil, mesmo o primeiro-ministro Narendra Modi sendo um político direitista que idolatrava Trump. Mas, ao contrário de Bolsonaro, não foi ingênuo a ponto de não cumprimentar o presidente eleito Joe Biden.
A Índia também tem uma importância na geopolítica internacional que o Brasil não tem, o que não recomenda uma política externa maniqueísta e não pragmática. Não há como não admitir que, nessa geopolítica internacional, países como o Brasil precisam se impor por seu soft power, que no nosso caso é muito bem representado pela cultura — música, cinema, futebol — e passou a ser um instrumento fundamental de nossa política externa, explorado na atuação exitosa de nossas Forças Armadas nas missões de paz da ONU.
Um governo cheio de generais que comandaram as Forças brasileiras nas missões das Nações Unidas para estabilização do Haiti já deveria ter entendido que a posição do Brasil no mundo depende de fortalecermos nossas vantagens comparativas, como deveríamos fazer no meio ambiente, e não na confrontação.
Merval Pereira: Uma assombração
O presidente Bolsonaro, em seu modo radicalizado de fazer política, sobretudo acuado como está agora pela CPI da Covid, volta a usar o Exército como mero instrumento de sua ação e, por meio de metáforas rotas pelo mau uso, diz que “está chegando a hora de o Brasil dar um novo grito de independência”.
Poderia estar se referindo às eleições presidenciais e, com isso, já nos daria indicações de como se sentirá respaldado para sua ação devastadora da cidadania se for reeleito. Mas estava mesmo reafirmando que “o seu Exército”, como a cavalaria dos velhos filmes de caubóis, chegará para salvar o povo brasileiro de “pseudos” governadores que querem “impor a ditadura no meio de vocês, usando do vírus para subjugá-los”.
Num português trôpego e com sua visão peculiar do que seja uma democracia, Bolsonaro definiu: “É inconcebível os direitos que alguns prefeitos e governadores tiveram por parte do STF. É inconcebível. Nem estado de sítio tem isso”.
No seu raciocínio torto, que só faz enredá-lo mais ainda, como se afundasse na areia movediça a cada vez que tenta se safar da culpa, declarou na Bahia: “Não foi o governo federal que obrigou vocês a ficarem em casa. Não foi o governo federal que fechou o comércio. Não foi o governo federal que destruiu milhões de empregos. Pode ter certeza: este suplício está chegando ao fim. Brevemente, voltaremos à normalidade, com o apoio de todos”.
Não estava falando da campanha de vacinação, que continua precária por falta de doses. Voltar à normalidade, nesse ritmo, demorará muito, e também a recuperação dos milhões de empregos que foram destruídos pela incapacidade de gestão do governo federal. Bolsonaro mais uma vez soltava uma bazófia para estimular seus militantes. São confissões, melhor dizendo, e suas palavras, acusações prontas para a CPI da Covid. Assim como as perguntas enviadas pela Casa Civil para os ministérios arrolam uma série de fatos que são justamente os motivos de a CPI ter sido criada.
O governo está formando um grupo de trabalho que busca respostas técnicas aos questionamentos da CPI da Covid, com o objetivo de neutralizá-la, mas a cada dia nutre a comissão, que ainda nem se formou, com informações novas e desorganização. A pressão política sobre os integrantes da comissão, especialmente o relator, senador Renan Calheiros, é previsível, como indica a aproximação do presidente Bolsonaro do governador de Alagoas, Renan Filho, e do ex-presidente José Sarney, hoje ainda uma força política dentro do PMDB.
O governo terá trabalho, mas pode até conseguir neutralizar a CPI, pois sua capacidade de resolver problemas de aliados, ou dar compensações a eles, é grande. O senador Renan Calheiros não é uma figura incontroversa. Tem muitos inimigos, mas é um político habilidoso, que desaparece quando sabe que a derrota não pode ser revertida. Perdeu a eleição para a presidência do Senado para Davi Alcolumbre e volta agora, dois anos depois, com muita sede ao pote, enquanto o ex-presidente do Senado não tem peso político como Renan continua tendo. Por culpa de Alcolumbre, não de Renan.
Vamos ver como reagirá às pressões sobre o governo de seu filho ou sobre os processos que estão correndo na Justiça. Não está descartada a possibilidade de que essa CPI acabe não produzindo muita coisa importante. A decisão judicial do Distrito Federal proibindo Renan de assumir a relatoria da CPI, que deve ser montada hoje, é um sinal claro de que a pressão política do governo será forte e usará todos os meios ao alcance da maioria. Renan deve resolver o caso com um recurso, que será aceito por outro juiz, mas a pressão sobre ele será grande.
Vamos saber, com o começo dos trabalhos, que senadores são realmente independentes, qual o tamanho do “acordão” que está sendo montado nos bastidores e qual a força política real do Palácio do Planalto. Isto é, se os políticos do Centrão ainda apostam na expectativa de poder de Bolsonaro ou se já enxergam uma luz no fim do túnel com a confirmação de que Lula está liberado para se candidatar em 2022.
Não esquecendo que o PT, assim como o PSDB em 2005 em relação a Lula, prefere ver Bolsonaro sangrando até a eleição do que impedi-lo agora. O ex-presidente Fernando Henrique defendeu naquela época o “sangramento” com a tese de que não poderiam criar um Getúlio vivo. Resultado: Lula foi reeleito em 2006, e o Getúlio vivo reapareceu, agora como uma assombração.
Merval Pereira: O futuro adiado
Ao ler que o prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa declarou apoio a Keiko Fujimori na disputa presidencial do Peru, alegando ser ela “o mal menor” diante o candidato de esquerda Pedro Castillo, fui tomado por uma sensação desalentadora de futuro adiado que experimento há anos, em relação ao Brasil e à nossa região.
Nós também no Brasil votamos no “mal menor”, raras vezes em um projeto de governo. Em busca permanente do “salvador da pátria”, acabamos escolhendo o “erro novo”. Jair Bolsonaro em 2018, Collor em 1989. Agora, possivelmente ficaremos em 2022 diante de dois “erros antigos”.
Lula, liberado pela Justiça para concorrer à eleição, deixa de ser “ficha suja”, sem ser “ficha limpa”, num paradoxo tão brasileiro que faz com que um ministro do Supremo, o “novato” Nunes Marques, vote a favor e contra a mesma ideia.
Ele considerou, na Segunda Turma, que o ex-juiz Sérgio Moro não é suspeito, mas aceitou, por questões regimentais controvertidas, que prevalecesse no plenário com seu voto a tese da falta de isenção de Moro no julgamento do triplex do Guarujá. A ministra Carmem Lucia mudou também de voto, de insuspeito para suspeito, em meio ao julgamento. Assim como ministro Gilmar Mendes votou a favor e contra a prisão em segunda instância, em julgamentos distintos, e ajudou a salvar Lula, assim como ajudara a prendê-lo. Lula foi vítima e beneficiário desses “passos trôpegos”, da balbúrdia jurídica oferecida pelo Supremo.
Apenas dois presidentes depois da redemocratização foram eleitos por projetos políticos: Fernando Henrique em 1994, com o Plano Real, e Lula em 2003, como alternativa ao que chamava de projeto neoliberal. Os dois foram reeleitos em 1988 e 2006, esgotando as últimas reservas dos projetos vitoriosos.
Lula chegou ao poder em 2003, depois de perder quatro eleições, porque se reinventou criando o personagem Lulinha Paz e Amor. E lançou a Carta aos Brasileiros. Mas também porque o segundo governo de Fernando Henrique, que teve méritos evidentes como a Lei de Responsabilidade Fiscal, a Rede de Proteção Social, origem do Bolsa-Família, dos genéricos e do combate à Aids, ficou marcado pela desvalorização do Real logo nos primeiros dias, o apagão de energia e a economia em situação difícil.
Paradoxalmente, para acalmar o mercado financeiro, Lula teve que escrever a Carta aos Brasileiros onde se comprometia a manter o tripé da política econômica: câmbio flutuante, meta de inflação e equilíbrio fiscal. Foi isso que garantiu o bom desempenho econômico no primeiro governo Lula, e o tripé é a base da política econômica até hoje. Ou era, pois o Centrão está aos poucos minando esse tripé, com o auxílio de Bolsonaro que, candidato à reeleição, escolhe aumentar os gastos.
O julgamento do STF que decidiu pela suspeição do juiz Sérgio Moro foi uma grande vitória política do ex-presidente Lula, e uma grande derrota do combate à corrupção do Brasil, que não cansa de regredir. Um país que teve avanço brutal no combate à corrupção volta à estaca zero, supostamente na defesa do estado de direito, de um justo julgamento. Um ministro como Ricardo Lewandowski, que admite que os diálogos roubados por um hacker são provas ilícitas “mas, enfim, foram amplamente divulgadas”, não deveria poder falar sobre suspeição.
Nem diante de todo o escândalo revelado, as forças políticas que continuam no poder, e a manter controle da situação, sempre encontram jeito de prevalecer, mesmo depois de cinco, seis anos. Tanto o combate à corrupção quanto o equilíbrio fiscal foram conquistas da sociedade brasileira, mas estão colocadas em perigo por um governo que se elegeu justamente para defendê-las.
O país do futuro de Stefan Zweig vai sendo eternamente adiado para ficar do tamanho de sua elite política e empresarial. E seguimos elegendo o populista da vez, revezando entre esquerda e direita, sem entendermos que o mundo lá fora, pelo menos o mundo que funciona, já está em outro patamar, discutindo o futuro.
Merval Pereira: Cabeça de juiz
A novela do julgamento de Lula pode chegar a um fim hoje, se o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entender que a Segunda Turma, que decidiu pela suspeição do então juiz Sergio Moro, poderia fazê-lo mesmo antes de ser definida a questão da competência da Vara de Curitiba nos julgamentos da Lava-Jato.
Mas, como em cabeça de juiz ninguém sabe o que se passa, a dizer que julgam com independência — a evolução da tecnologia médica não permite mais dizer que não se sabe o que tem em barriga de grávida nem em fralda de bebê —, existem algumas situações peculiares neste julgamento de hoje.
O decano do STF, ministro Marco Aurélio, não concordou com a afetação do processo ao plenário, mas, vencido pela “douta maioria” — nesse caso não tão douta assim, na sua opinião —, já votou a favor da manutenção dos processos em Curitiba, e pode votar outra vez, já que disse que a suspeição de Moro é bem mais importante. O ministro é sempre elogioso ao trabalho de Moro na Operação Lava-Jato e, com seu voto, pode ajudar a impedir que seja confirmada a suspeição dele.
O ministro Alexandre de Moraes disse na sessão anterior que não é possível afirmar que o julgamento pelo plenário significa desrespeito ao princípio do juiz natural: “A estrutura da Corte privilegia o plenário, e as turmas só foram criadas devido ao excesso de trabalho do tribunal”. Com essa posição, é provável que defenda que o plenário tem preferência às turmas. Mas não significa que concorde ou não com a suspeição de Moro.
A ministra Rosa Weber convocou para assessorá-la durante o julgamento do mensalão o juiz Sérgio Moro, que era famoso apenas no círculo jurídico como especialista em combate à corrupção, não a celebridade de hoje. Ela tem melhores condições que qualquer outro para julgar se Moro é um juiz suspeito.
O ministro Nunes Marques é contabilizado como um dos quatro votos certos a favor de que a Segunda Turma tinha condições de julgar a suspeição naquela sessão, pois votou na ocasião, embora contra, para surpresa do ministro Gilmar Mendes. Mas pode alegar que, hoje, com a decisão tomada pelo plenário sobre a incompetência da Vara de Curitiba, considera que aquela questão se sobrepõe à suspeição.
Como ressaltou a ministra Cármen Lúcia, o plenário não é órgão revisor das turmas. Mas, nesse caso, seria uma análise técnica, não uma revisão. *
Nesse caso, o resultado é imprevisível. Já temos três votos pela suspeição dados na Segunda Turma —Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski — e um a favor de Moro, por Nunes Marques. Alguns ministros já se pronunciaram favoravelmente em várias oportunidades sobre a Operação Lava-Jato, como o presidente Luiz Fux e os ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello. Assim como fizeram, contra, os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.
Na visão de Fux, a discussão envolvida no caso é relevante, pois pode afetar outros processos da Lava- Jato e “atingir um grande trabalho feito pelo Supremo Tribunal Federal no combate à corrupção”. A sombra que paira sobre o julgamento, os diálogos entre os procuradores de Curitiba e o juiz Sergio Moro divulgados depois de ter sido roubados por um hacker, sofreu um golpe com o laudo da Polícia Federal afirmando que não há possibilidade técnica de atestar sua veracidade ou origem. O laudo não apagou da mente dos ministros a impressão causada, mesmo que digam que não o usaram nas decisões, mas colocou concretamente a possibilidade de que tenham sido alterados.
A suspeição de Moro no caso do triplex do Guarujá criará uma situação esdrúxula: o ex-presidente da empreiteira OAS Léo Pinheiro, que confessou ter dado o apartamento a Lula em troca de benefícios recebidos durante seu governo, será também absolvido, assim como o ex-executivo Agenor Franklin Medeiros, ambos condenados no mesmo processo. O mesmo acontecerá nos demais processos contra Lula, caso o benefício seja estendido a eles pelo ministro Gilmar Mendes, novo relator da Lava-Jato na Segunda Turma do STF.
Merval Pereira: ‘Kigali já’
A Câmara dos Deputados tem uma oportunidade rara de ajudar a recolocar o Brasil no mapa da comunidade internacional em relação à política ambiental com a ratificação, no dia 22, o Dia da Terra, da Emenda de Kigali, um adendo ao Protocolo de Montreal para redução do uso de substâncias com elevado potencial de efeito estufa nas geladeiras, freezers e aparelhos de ar condicionado vendidos no país.
Hoje, 100% do mercado japonês e a maior parte dos países europeus já adotam fluidos refrigerantes de baixo potencial de aquecimento global. Essas tecnologias começam a dominar outros mercados robustos, como o chinês e o indiano. EUA e China anunciaram apoio em conjunto à Emenda de Kigali. Sua aprovação será um aceno diplomático ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que encaminhou ao Senado americano uma orientação por sua aprovação, e também aos demais países da OCDE que estão entre os 119 que já aderiram à emenda.
Biden convidou o presidente Bolsonaro e outros 39 líderes mundiais para o encontro virtual denominado “Cúpula dos Líderes sobre o Clima”, nos dias 22 e 23 de abril, preparação para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP26, prevista para acontecer de 1º a 12 de novembro em Glasgow, na Escócia. A ratificação da Emenda de Kigali seria um trunfo para o governo em relação à redução do impacto ambiental e abriria para a indústria brasileira créditos a fundo perdido do Fundo Multilateral para implementação do Protocolo de Montreal, estimados em US$ 100 milhões, para modernizar fábricas e gerar empregos.
O projeto já passou por todas as comissões da Câmara, mas está parado há um ano, sem que seja colocado para votação em plenário. Um manifesto de entidades da indústria e de defesa da eficiência energética, de sustentabilidade e dos direitos do consumidor foi enviado ao presidente da Câmara, deputado Arthur Lira. Coordenador de energia e sustentabilidade do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), uma das organizações signatárias do manifesto “Pela aprovação de Kigali já!”, Clauber Leite diz que a expectativa é que a Câmara sinalize o compromisso do país com a agenda mundial de sustentabilidade apoiando a ratificação.
Além do Idec, apoiam o manifesto entidades como a Abrava (Associação Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Ventilação e Aquecimento), Eletros (Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos), Fecomércio-SP, Centro Brasil no Clima, Climate Policy Initiative, Instituto Ethos, entre outros. A emenda estabelece metas de redução dos gases hidrofluorocarbonetos (HFCs) em geladeiras e aparelhos de ar-condicionado.
Os mais utilizados no Brasil são até duas mil vezes mais prejudiciais ao efeito estufa que o dióxido de carbono. “Essa modernização permitiria que a indústria brasileira ficasse alinhada às inovações já presentes em mercados como norte-americano, europeu, chinês e indiano”, diz a carta.
A indústria diz que aprovação da emenda evitará que o Brasil se torne um dos últimos destinos de aparelhos obsoletos, que aquecem o planeta e têm baixa eficiência energética, elevando os gastos das famílias, do governo, da indústria e das empresas em geral com a conta de luz.
O uso de aparelhos eficientes resultaria num impacto de R$ 57 bilhões no Brasil até 2035, de acordo com um estudo do Instituto Clima e Sociedade (iCS) em cooperação técnica com o Lawrence Berkeley National Laboratory (LBNL). Do total, R$ 30 bilhões deixariam de ser gastos na geração de energia elétrica, e outros R$ 27 bilhões seriam economizados pelos consumidores na conta de luz.
“A proteção do planeta precisa ser compatível com o desenvolvimento econômico, e a busca pela eficiência energética e por produtos mais inteligentes é o melhor caminho para aliar essas duas agendas fundamentais”, diz a coordenadora da Iniciativa de Eficiência Energética do iCS, Kamyla Borges, advogada e uma das líderes do movimento pela Emenda de Kigali.
Merval Pereira: As razões do STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem razões que até a razão desconhece, como disse o filósofo Blaise Pascal no século XVII sobre o coração. Só assim podemos compreender a série de decisões tomadas nos últimos dias, reflexos distorcidos de outras, que percorreram todas as instâncias jurídicas nos últimos cinco anos em que a Operação Lava-Jato esteve em pleno vigor no combate à corrupção.
O STF é o exemplo mais evidente de que, no Brasil, até o passado é incerto, frase que o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan colocou em evidência. Cinco anos depois de vários processos, vários julgamentos até na terceira instância do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vem o Supremo decidir, por maioria, que o foro para a Operação Lava-Jato não era Curitiba. Pior: ninguém sabe que comarca é o foro correto.
Dos onze ministros, oito votos a favor de transferir o foro se dividiram entre dois que achavam que era mesmo Curitiba, mas seguiram a maioria: o próprio relator Edson Fachin, e Luis Roberto Barroso. Outro, o ministro Alexandre de Moraes, votou por São Paulo, que deve prevalecer, e os demais pediram tempo para pensar. Três outros ministros votaram por manter o foro em Curitiba.
Como se vê, não é uma questão simples, e nem tampouco política. Denota um ponto de vista jurídico que é apoiado por cinco ministro do STF, e foi apoiado pelo STJ. Transformou-se a definição do foro em um ato político contra o ex-juiz Sérgio Moro, como se ele tivesse usurpado o juízo natural quando a questão foi discutida em diversos fóruns e, até o momento, a centralização em Curitiba dos processos da Lava-Jato por conexão era perfeitamente compatível com as normas jurídicas.
Aconteceu a mesma coisa no julgamento do mensalão. O então advogado Marcio Thomas Bastos, que já fora ministro da Justiça do governo Lula, tentou de diversas maneiras fatiar os processos, para mandar para tribunais regionais eleitorais ou varas comuns todos os que não envolvessem pessoas com prerrogativa de foro.
Por que queria fazer isso ? Porque era mais fácil para os advogados de defesa, desmembrando os casos, retirar deles a carga de uma operação organizada, conectada entre os diversos crimes. Assim como começou a ser feito pela Segunda Turma em relação à Lava-Jato, enviando processos para os tribunais eleitorais regionais e para instâncias inferiores da Justiça.
A segunda parte dessa história será julgada na próxima quinta-feira, a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá. Mais uma vez, as razões que a própria razão desconhece surgirão para serem debatidas. No início da sessão, vai ser levantada uma questão de ordem para saber se o plenário pode ou não analisar se a Segunda Turma poderia ter julgado o caso mesmo depois que o ministro Edson Fachin transferiu o foro para o Distrito Federal, decretando a perda de objeto do habeas-corpus.
Portanto, o plenário, embora não seja instância revisora das decisões das Turmas, como ressaltou a ministra Carmem Lucia, pode decidir que o julgamento da suspeição de Moro não deveria ter ocorrido. O que prevalece, a incompetência ou a suspeição? O artigo 96 do Código de Processo Penal diz que a suspeição é a primeira questão que tem que ser analisada nos processos, dentre as exceções: de competência, de impedimento, de suspeição.
Porém, segundo Douglas Fischer, renomado processualista penal, esse artigo só se aplica às exceções que são apresentadas na primeira instância. Quando essas exceções são arguidas em um habeas-corpus, ou em vários, impetrados em qualquer tribunal, inclusive no Supremo, não há ordem de precedência, pelo contrário.
Entre as duas, o que prevalece é a incompetência, porque você pode ter na mesma Vara, na mesma comarca, ou na mesma sessão judiciária, dois juízes, sendo que um é suspeito e o outro, não, ambos competentes. Mas não pode ter um juiz que é competente, e outro não, na mesma sessão judiciária. A competência prejudica a suspeição.
Vai ser outra das muitas discussões jurídicas a que assistiremos perplexos, no dizer do ministro Marco Aurelio Mello