Merval Pereira

Merval Pereira: Superando barreiras

O combate à corrupção ganhou duas batalhas judiciais ontem. No Tribunal Federal Regional da quarta Região (TRF-4), a condenação do ex-presidente Lula por lavagem de dinheiro e corrupção foi não apenas confirmada por unanimidade, como sua pena aumentada de 12 anos e 11 meses para 17 anos, 1 mês e 10 dias.

No Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento sobre o compartilhamento de dados dos órgãos de fiscalização caminha para a liberação sem limites da atuação da Unidade de Inteligência Financeira (UIF, antigo Coaf) e da Receita Federal.

Os dois casos são emblemáticos porque superam obstáculos impostos no embate que se trava há algum tempo sobre a amplitude ou limitação da Operação Lava Jato e similares. O resultado do julgamento do TRF-4 é mais importante pela decisão unânime de não fazer o processo retornar às alegações finais da primeira instância, do que propriamente pelo aumento da pena, que repete uma visão dos desembargadores de que um crime presidencial merece punição mais severa.

No processo do triplex do Guarujá, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reduziu a pena de Lula, que fora aumentada pelo TRF-4. Prevaleceu no julgamento em Porto Alegre ontem a tese de que, embora a decisão do STF sobre a ordem das alegações finais deva ser respeitada, é preciso demonstrar o prejuízo causado ao não permitir que os réus falassem depois dos delatores.

Ainda não foram definidos quais são os limites da decisão do Supremo, o que deverá ser feito pelo próprio tribunal. O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, defende que a decisão não alcance processos já encerrados. A ministra Cármen Lúcia, no julgamento do caso, acatou a tese de que os réus devem apresentar as alegações finais antes dos delatores, mas, para que haja nulidade em sentenças já proferidas, a ministra considerou que é preciso demonstrar o prejuízo causado ao réu.

Essa foi a tese dos desembargadores do TRF-4, que alegaram que os delatores não apresentaram nenhuma prova nova nas alegações finais, o que demonstra que não houve prejuízo aos réus delatados. Há também a possibilidade de o Supremo limitar o alcance da decisão, beneficiando somente réus que pediram, ainda na primeira instância, o direito de apresentar as alegações finais por último, e que provarem que, por isso, tiveram prejuízos.

Os desembargadores do TRF-4 não aceitaram também as acusações de “plágio” contra a juíza Gabriela Hardt, que teria copiado trechos de uma sentença do ex-juiz Sérgio Moro. Caso a Segunda Turma do Supremo venha a anular a condenação sobre o tríplex do Guarujá acatando a acusação de parcialidade de Moro, com a condenação de ontem Lula continuaria inelegível pela Lei de Ficha Limpa.

Para anular também o processo do sítio de Atibaia seria preciso alegar que, tendo copiado trechos de sentença de Moro, embora representem apenas 1% da sentença e sejam citações do juízo, que ela assumiu em lugar de Moro, a juíza Hardt teria contaminado sua sentença. Um raciocínio tortuoso demais para prosperar.

Se o Congresso aprovar a prisão após a condenação em segunda instância, o que parece bem encaminhado, Lula voltaria para a cadeia, pois os anos de condenação dos dois processos são somados, e ele teria que cumprir 1/6 dessa nova pena para obter a progressão para o regime semiaberto.

O presidente do TRF-4, desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores disse em seu voto que o Supremo vai ter que enfrentar uma questão que a Suprema Corte dos Estados Unidos já enfrentou, decidindo há anos que uma medida que atinja processos já concluídos só vale a partir da sua promulgação, sem retroceder, para não causar insegurança jurídica.

No julgamento do Supremo sobre compartilhamento de informações, o combate à corrupção foi o centro das discussões, e possivelmente o resultado a favor da não limitação das ações da UIF e da Receita Federal terá uma maioria de 7 a 4.

O ministro Luiz Fux afirmou que “os direitos fundamentais não são absolutos a ponto de tutelar atos ilícitos. O direito não serve à proteção de iniquidades, tem que ser interpretado de uma maneira que proteja a segurança jurídica”.

O ministro Luis Roberto Barroso fez duras críticas às tentativas de tolher a Lava-Jato: “ (...) há uma enorme demanda por integridade e as instituições precisam corresponder à demanda da sociedade.”.


Merval Pereira: O mal menor

Não é um bom sinal quando um país passa a discutir a possibilidade de voltar à ditadura militar a que foi submetido por 21 anos. Ainda mais em um governo presidido por quem defende há anos que não houve ditadura, que esse período foi o melhor de nossa história, e que as medidas repressivas deveriam ter sido mais fortes, negando ou minimizando as torturas ocorridas nas delegacias e nos quartéis.

Por isso, cada vez que o AI-5 é lembrado, seja por que razão for, tem-se a sensação de que algo há por trás dessa repetição. O ministro da Economia, Paulo Guedes, não pediu a volta do AI-5, mas, como fez o deputado federal Eduardo Bolsonaro, classificou o ato de exceção como uma possível resposta do governo contra eventual radicalização dos movimentos de esquerda.

Ambos atribuíram a Lula e ao PT o estímulo às manifestações de rua, à radicalização, o que é verdade, na boca do próprio ex-presidente: “A gente tem que atacar, não apenas se defender.” Se referia aos protestos no Chile, que, em diversas oportunidades, citou como exemplo do que deveria ser feito pelos militantes, “principalmente os jovens”. Mas não é sair às ruas uma vez, e depois parar. É preciso uma movimentação constante, diária, ensinou Lula.

Foi essa atitude que Guedes chamou de comportamento “irresponsável” e “burro”. Não por acaso, os dois lados se dizem defensores da democracia. O presidente Jair Bolsonaro disse que, se alguém apresentar o AI-5, ele apresenta o AI 38, referindo-se ao número do partido que pretende construir, como a dizer que trava sua luta através de instrumentos democráticos como um partido político.

Aliás, por falar em números de partidos, é ridículo atribuir à escolha do 38 como sendo referência ao calibre de um revólver. O PSDB então, que é 45, tem um calibre mais perigoso há mais tempo, e o Partido Liberal, do Valdemar da Costa Neto, número 22, um bem menor.

Também Lula refutou a pecha de radical para o PT, alegando que seu partido nunca defendeu a ditadura militar, nem o AI-5, o que é verdade. “Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, perguntou o ministro Paulo Guedes. “Um pouco de radicalização faz bem à alma”, disse Lula.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, que há algum tempo é o político mais sensato em posto de comando, foi direto ao ponto: “Por que alguém vai propor um AI-5 caso o ex-presidente Lula, que eu acho que está errado porque está muito radical, estimule manifestação de rua? O que uma coisa tem a ver com a outra? Vamos estimular o fechamento do Parlamento, dos direitos constitucionais do habeas corpus? Porque foi isso que o AI-5 fez. Então se tiver manifestações de rua a gente fecha instituições democráticas?”.

É disso que se trata, um “varejo da política”, como definiu o ministro do STF Luis Roberto Barroso, que banaliza ações radicais, como se não houvesse outra maneira de fazer política que não seja a confrontação física, não de idéias, defendida pelos dois lados. Como disse Maia, “(...) dá impressão, às vezes, que tanto o ex-presidente Lula quanto parte do governo ficam estimulando que as manifestações venham para as ruas. Não que seja um movimento natural.”.

A questão é justamente essa, os dois contendores dos pólos extremos gostam de reduzir a disputa eleitoral entre os grupos minoritários que representam, pois sabem que, nesse caso, como aconteceu em 2018, o centro majoritário procurará um dos dois, para evitar a vitória do outro. Continuaremos elegendo “o menos pior”, e não projetos de governo.

GLO Rural
O projeto de Jair Bolsonaro que prevê o excludente de ilicitude em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), e a possibilidade de estender uso das Forças Armadas para garantir a reintegração de posse em áreas rurais são medidas extremas em resposta às ameaças de movimentos como o MST e o MTST. Ontem terminou, 17 anos depois, uma disputa de terras peculiar. Em 2002, no primeiro governo Lula, o Incra doou em Caruaru 800 hectares de terra para o MST, ficando com um pequeno trecho do terreno para si. Logo o MST invadiu as terras vizinhas. O Incra entrou na Justiça pedindo a reintegração de posse, ganhou em todas as instâncias, e teve o tal trânsito em julgado definido . Pois o governador de Pernambuco, Paulo Câmara, do PSB, reuniu-se com os representantes dos Sem Terra e garantiu que não dará apoio para que sejam despejados, reafirmando o compromisso social de seu governo.


Merval Pereira: Obstáculos para Lula

Ex-presidente está prestes a provar o gosto amargo de uma derrota que poderá representar sua volta à cadeia

Tudo indica que há uma maioria consistente no Congresso para alterar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de autorizar a prisão de um réu apenas após o trânsito em julgado do processo. Mas a aprovação da prisão em segunda instância, que a pressão da opinião pública pede, não se dará sem troca de concessões.

Deputados estão convencidos de que não é possível resistir ao clamor das ruas, mas querem proteção contra delações premiadas no pacote anticrime do ministro da Justiça, Sérgio Moro.

As mudanças, já aprovadas por um grupo de trabalho, pretendem deixar claro que as delações são instrumentos para obtenção de prova, não podendo ser utilizadas como a única prova para incriminar alguém. Não é novidade, mas não está em lei alguma. A definição já foi feita pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e consta de cartilhas do Ministério Público Federal.

Querem também proibir os juízes de decretarem de oficio medidas cautelares sem que haja solicitação de autoridade policial ou do Ministério Público. Mesmo assim, para impor essas medidas, desde prisão até proibição de saída noturna ou uso de tornozeleira, o juiz terá que demonstrar que não é cabível uma medida mais branda, devendo a decisão ser baseada em provas do crime, indícios de autoria e comprovação de perigo em função de manter o acusado em liberdade.

O acordo e os depoimentos deverão ser mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia ou da queixa-crime, não tendo o juiz mais o poder de divulgá-los.

O ex-presidente Lula está prestes a provar o gosto amargo de uma derrota que poderá representar sua volta para a cadeia. Com a probabilidade aumentada de o Congresso aprovar a prisão em segunda instância, Lula tem se esforçado nos bastidores para conseguir votos para manter a decisão do Supremo Tribunal Federal de só permitir a prisão após o trânsito em julgado.

Para se transformar em alternativa viável para a campanha de 2022, não basta a Lula, porém, recuperar a capacidade de mobilização popular, que, no momento, parece abalada. Terá que lutar contra a prisão em segunda instância, e também contra a Lei da Ficha Limpa.

No caminho tortuoso da política, uma coisa tem a ver com outra, embora a primeira seja da esfera criminal, e a outra da eleitoral. Nada impede que a lei eleitoral exija como condição para ser elegível que o candidato não tenha condenação por órgão colegiado, e que a prisão só seja permitida com o trânsito em julgado do processo.

Mas a defesa de Lula pretende argumentar que se a culpa só se verifica no final de todos os recursos, por que um candidato pode ser barrado quando ainda tem recursos aos tribunais superiores? É a mesma coisa de argumentar que se uma pessoa pode votar aos 16 anos, por que não pode beber ou dirigir automóvel?

Além dessas atribulações, o ex-presidente tenta adiar uma eventual nova condenação em segundo grau, desta vez no caso do sítio de Atibaia. O julgamento no TRF-4 está previsto para amanhã, mas é possível que o processo retorne à primeira instância, graças à decisão do STF de que os delatores devem se pronunciar nas alegações finais antes dos demais réus.

Como essa norma nunca existiu, quando a juíza Gabriela Hardt condenou Lula a 12 anos e 11 meses de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro no processo do sítio, a defesa de Lula se pronunciou ao mesmo tempo que os delatores, que denunciaram que as obras foram feitas pelas empreiteiras Odebrecht e OAS em pagamento de favores em licitações.

Se as alegações finais tiverem que ser refeitas, o processo retrocede cerca de 11 meses, dando mais tempo para Lula. Mas, antes de 2022, alguns acontecimentos já com data marcada necessariamente serão obstáculos à sua tentativa de se candidatar novamente à presidência da República.

Em novembro de 2020, se aposenta compulsoriamente o ministro Celso de Mello, ao completar 75 anos. No ano seguinte, será a vez do ministro Marco Aurélio Mello. Ambos são contra a prisão em segunda instância, e serão substituídos por ministros indicados pelo presidente Jair Bolsonaro. Além disso, o ministro Luis Fux, favorável à prisão em segunda instância, assumirá em setembro do ano que vem a presidência do STF, para um mandato de dois anos.

Provavelmente por isso Lula pela primeira vez semana passada admitiu que pode não se candidatar: “Terei 75 anos até lá, a Igreja, na sua sabedoria, aposenta seus cardeais ao 75 anos”.


Merval Pereira: Em defesa da cultura

O premiado demonstrou angústia em face das práticas políticas tão cruéis que tanto degradam a vida nacional

A entrega esta semana pela Academia Brasileira de Letras (ABL) do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes de 2019 ao professor e escritor Roberto Acízelo de Souza, autor do livro “E a literatura brasileira, hoje?”, reunião de estudos de crítica, história e teoria literárias, transformou-se em palco para a defesa da cultura, tão desprezada pelas políticas governamentais, como base para o desenvolvimento de um país, e do ensino do português como fator de avanço da sociedade.

O prêmio é destinado “a autor brasileiro por obra de qualquer gênero que traga efetiva contribuição à cultura brasileira que tenha sido editada em português, por editora nacional, no ano anterior ao da concessão”. A comissão que concedeu o prêmio, presidida por Marcos Vilaça e composta por Celso Lafer, Alberto Venancio e Evanildo Bechara, teve como relator Domício Proença Filho, que, em nome da ABL, destacou sua importância “no momento em que os rumos da cultura brasileira são marcados por questionamentos e por políticas pautadas em avaliações impressionistas”. Classificou a obra de Roberto Acízelo de Souza de “um bastião de resistência e de tomada de posição em defesa da arte literária”.

O premiado demonstrou angústia “em face das práticas políticas tão cruéis e primitivas que nesse momento tanto degradam a vida nacional”, e revelou que se sente a cada dia mais comprometido em resgatar valores, “tendo em vista a pobreza material e cultural que oprime a maioria do nosso povo, como se vê Brasil afora, e de modo particularmente doloroso no nosso triste Rio de Janeiro, ora submetido a desgovernos nos três níveis da administração pública, tão degradada pela mistura perversa de estupidez, crueldade, cinismo, fundamentalismo e autoritarismo”.

O representante do Grupo Votorantim, José Pastore, destacou o papel da ABL “na defesa e na difusão da boa língua”, e especificamente a literatura “como instrumento da formação humanística da juventude”. A defesa da língua portuguesa “é crucial para o sucesso das pessoas e o avanço das sociedades modernas: todos dependem de bem pensar e, portanto, de bem utilizar a linguagem”.

Pastore lembrou que na sua atuação de pesquisador do mercado de trabalho, constata quanto a língua é crucial para a conquista e a manutenção de um emprego. “Para o empregador dos dias atuais, não há dúvida: quem escreve bem e entende o que lê, pensa bem. Quem escreve mal e não entende o que lê, pensa mal”.

Por isso, lamentou que o ensino da língua no Brasil tem se deteriorado na maioria das escolas. “O resultado está aí. Nossos jovens tiram as piores notas no exame do Pisa. Pior ainda: 90% dos candidatos ao exame da Ordem dos Advogados do Brasil são reprovados anualmente por deficiências em português. E assim ocorre com várias outras profissões”.

José Pastore lembrou que, apesar desse desastre, o Ministério da Educação cogitou retirar do currículo escolar o ensino da literatura de Portugal. Autores como Camões, Gil Vicente, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco e outros deixariam de ser lidos por nossos estudantes. “É um desprezo absurdo. Como é absurdo também o desprezo do governo atual pelo Prêmio Camões atribuído a um brasileiro de reconhecimento mundial, Chico Buarque de Holanda”.

Para confirmar essa visão ideológica, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, deu declarações nesta mesma semana chamando as universidades de “madrassas”, escolas de doutrinação radical, e afirmando, sem provas, que há universidades federais com “plantações extensivas de maconha”, e laboratórios de química que estão “desenvolvendo droga sintética, de metanfetaminas”.

O presidente da Academia Brasileira de Ciências, Luiz Davidovich, depois de defender o papel da universidade pública para “o avanço da ciência e da inovação, e a formulação de políticas públicas que levem a um país moderno e menos desigual”, lamentou em nota que o titular do Ministério da Educação “vilipendie e calunie esse grande patrimônio nacional, propagando denúncias não fundamentadas, que atingem brasileiros empenhados na construção do futuro do Brasil”.

De fato, é espantoso que um ministro da Educação venha a público fazer denúncias tão graves sem provas. Se houver desvios nas universidades, do ponto de vista ideológico ou criminal, devem ser combatidos, mas sem generalizações nem tentativa de impor o próprio radicalismo ideológico do governo.


Merval Pereira: Professor de juridiquês

Como televisionamento ao vivo dos julgamentos, os votos no STF ficaram maiores em média 26 páginas

A estupefação que causou o voto de quatro horas do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, na abertura do julgamento sobre o compartilhamento de dados entre os órgãos de persecução penal (Ministério Público e polícia) e os de investigação (Unidade de Inteligência Financeira—UIF, antigo Coaf —e Receita Federal) foi provocada pela tentativa de sinuosamente voltar atrás sem deixar clara a mudança.

Tão obscuro o voto que teve que ser explicado mais tarde por uma nota oficial. Há pesquisas, como a do economista Felipe de Mendonça Lopes, da Fundação Getulio Vargas, que mostram que, com o televisionamento ao vivo dos julgamentos, os votos ficaram maiores em média 26 páginas, o que aumenta o tempo de leitura em cerca de 50 minutos. O ministro Luís Roberto Barroso definiu bem o momento: “Seria preciso chamar um professor de javanês”. Referia-se ao conto “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto, sobre um vigarista que, sem saber nada do idioma, se apresentou como professor de javanês a um barão que colocara um anúncio em busca de alguém que lhe ensinasse a língua.

A utilização de métodos econométricos deu a ele a certeza de que a mudança de composição do plenário do Supremo não tem nada a ver com o aumento do tamanho dos votos, mas sim a transmissão ao vivo. Já houve quem propusesse o seu fim, mas parece uma decisão impossível de ser revista, devido à cobrança sempre maior da transparência das decisões, não necessariamente clareza.

Quanto à obscuridade da linguagem, lembrei-me de um ciclo de palestras que coordenei este ano na Academia Brasileira de Letras sobre a influência do barroco em nossa cultura. Um dos aspectos abordados pelo ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim foi justamente o juridiquês, esse idioma parecido com o português, salteado com termos em latim, que nos acostumamos a ouvir durante a transmissão dos julgamentos pela televisão.

Jobim criticou as transmissões, avaliando que com elas os votos ficaram mais longos. Mas ressaltou a vantagem da transparência do processo decisório do Supremo, não obstante o Brasil continue sendo o único país do mundo que televisiona os julgamentos de seu Supremo ao vivo, em tempo real.

A Corte Suprema dos Estados Unidos realiza suas reuniões a portas fechadas, e somente o acórdão é divulgado, sem a especificação das eventuais divergências entre seus membros. E nenhum deles vai à imprensa criticar a decisão da maioria ou dar seu voto divergente.

Mas, voltemos ao juridiquês. Para Jobim, o uso radical da linguagem mais culta e o excesso de erudição têm o objetivo de “transmitir potência no discurso”. Nelson Jobim acredita que o formalismo da linguagem jurídica já virou piada, mas “ainda assim, insistimos em usar o juridiquês no Brasil”.

Para ele, “a ornamentação linguística” sinalizaria um jurista mais preparado, “pois quem se afasta se torna grande e incompreensível”. Jobim definiu assim o falar empolado: “Comunicação sem clareza é uma forma eficaz de esconder ignorância no assunto sobre o qual se fala”. Leu, ao encerrar a palestra, um trecho do conto “Teoria do medalhão”, do patrono da ABL, Machado de Assis, destacando a seguinte frase: “Falar difícil é fácil. O difícil é falar fácil”.

O tema favorece debates intermináveis, e na quarta-feira tomou conta das redes devido ao longo e obscuro voto do presidente Dias Toffoli. Em um grupo de que participo na internet vieram diversas citações muito úteis para se ter uma ideia de como se deve falar. Diz Ludwig Wittgenstein, respeitado filósofo da linguagem: “tudo o que pode ser dito, pode ser dito claramente; e o que não pode ser dito claramente, deve relegar-se ao silêncio”.

No “Dicionário de filosofia” de Nicola Abbagnano, outra definição de Wittgenstein da linguagem: “Devemos atribuir um significado às palavras que usamos se desejamos falar com algum significado e não por simples tagalerice, e o significado que atribuímos às palavras deve ser algo do qual todos já tenham conhecimento.”

Outro, Hans-Georg Gadamer, filósofo alemão, das maiores autoridades em hermenêutica, o estudo das palavras, afirma que “aquele que fala uma linguagem que mais ninguém fala, rigorosamente não fala”. O sociólogo alemão Niklas Luhmann considerava a argumentação jurídica um “acréscimo de redundância”.


Merval Pereira: O STF pode tudo?

O que se vê no momento é um colocar de dificuldade para apuração de lavagem de dinheiro e corrupção

O Supremo Tribunal Federal (STF) julga hoje, sob pressão da opinião pública, a liminar que seu presidente, ministro Dias Toffoli deu em julho passado suspendendo todos os inquéritos baseados em informações do antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e da Receita Federal.

A decisão foi tomada a pedido da defesa do senador Eduardo Bolsonaro, que alegou que a investigação do Ministério Público do Rio sobre sua vida financeira fora baseada em informações detalhadas fornecidas pelo Coaf, o que representaria uma quebra ilegal de seu sigilo bancário.

Além de paralisar mais de 900 inquéritos por todo o país, a atitude de Toffoli teve conseqüências graves: três meses depois da liminar, o presidente do STF requisitou ao Coaf e à Receita Federal todos os inquéritos existentes nesses órgãos, mais tarde exigindo o nome dos auditores que tinham acesso àquelas informações.

Embora tenha revogado sua própria decisão, até anteontem ele tinha possibilidade de acesso a dados de 600 mil pessoas com detalhamento de todas as informações que ele considerou ilegais na liminar. Não os deve ter acessado, porque o Coaf os enviou digitalizados, juntamente com uma senha que identificaria quem no STF os consultou.

Mas a Receita Federal enviou os documentos em papel, e Toffoli esqueceu-se, num primeiro momento, de devolver também esses dados, só o fazendo ontem. Revogou essas medidas escandalosas porque não teria como defendê-las no plenário na sessão de hoje.

Em manifestação encaminhada aos ministros do STF, o Procurador-Geral da República Augusto Aras pediu que seja revogada a decisão liminar de Toffoli. O Procurador-Geral explicou ainda que órgãos de persecução penal (Polícia Judiciária e Ministério Público) não têm acesso à integralidade dos dados fiscais e bancários dos contribuintes, mas, apenas, àqueles específicos cujo repasse se faça necessário para possibilitar que o Estado atue na prevenção e repressão de ilícitos penais.

Vivemos no Brasil um paradoxo terrível. O Judiciário, através do presidente do STF, diz que o Tribunal é que garante o combate à corrupção. Verdade que teve posição muito importante no mensalão, que deu origem à devassa que acabou no petrolão. Mas o que se vê no momento é um colocar de dificuldade para apuração de lavagem de dinheiro e corrupção.

É um absurdo proibir o Coaf de trabalhar nos moldes internacionais, como vinha sendo feito há anos. O jurista americano Jack de Kluiver, ex-integrante do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi ), que atua globalmente no combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, diz que exigir uma autorização judicial para que uma unidade como o Coaf compartilhe informações com os órgãos de investigação “não é um padrão internacional”.

Segundo ele, unidades de inteligência financeira precisam ser independentes, e ter acesso a dados detalhados sobre movimentação bancária. A princípio, o plenário do STF ficaria dividido em decisão polêmica como essa, mas é preciso levar em conta que se estará julgando uma decisão do próprio presidente.

Os recuos de Toffoli indicariam que ele não conta com o apoio da maioria nessa sua cruzada, e estaria tentando minimizar os danos. A única explicação para as atitudes de Toffoli é que informação é poder. O STF está ganhando poderes que não são dele, porque há um vácuo de poder no país.

Um Executivo disfuncional faz com que os outros poderes, como o Congresso e o Judiciário, assumam para si poderes que não lhes pertencem, inclusive de blindagem do presidente Bolsonaro e sua família, a pretexto de viabilizar a governabilidade. O Congresso e o STF, ao contrário, deveriam atuar para garantir os direitos dos cidadãos contra investidas antidemocráticas.

Um Supremo superpoderoso não funciona numa democracia, e por isso governos autoritários tentam dominar as Cortes Superiores, como fizeram na Bolivia, na Venezuela. No Brasil, vivemos uma situação extraordinária, onde o próprio Supremo arvora-se em partícipe do jogo político nacional, com poderes acima dos demais.

Mas votar contra essa situação é ir contra a própria corporação. Se houver uma visão crítica das atitudes do presidente do STF, será uma reunião plenária conflituosa. Veremos o que vai prevalecer, o corporativismo, ou a preservação de um espaço democrático onde, mesmo quem pode muito, não pode tudo.


Merval Pereira: Faro político

O fantasma do Chile e das manifestações de 2013 no Brasil faz com que Bolsonaro mande Guedes tirar o pé do acelerador

O tempo da política não é o mesmo do da economia, às vezes pode acelerar as medidas econômicas, outras retardá-las, como está acontecendo agora.

O presidente Bolsonaro deu a deixa ao dizer que a reforma administrativa vai demorar “um pouquinho mais”, e perguntar: “Pra que tanta pressa?”. A pergunta não é uma simples ironia do presidente, mas a revelação de um estado de espírito.

Foi o mesmo recado que passou ao ministro da Economia, Paulo Guedes, mandando que não vá com tanta sede ao pote. O faro de Bolsonaro indica que o momento político na América do Sul não está para reformas que provoquem a percepção de risco aos direitos, especialmente os dos servidores públicos.

O fantasma do Chile e das manifestações de 2013 no Brasil faz com que Bolsonaro mande Guedes tirar o pé do acelerador. Lá como cá, a motivação foi o aumento da tarifa dos transportes públicos, que levou os estudantes às ruas.

Como em Santiago agora, porém, a repressão policial considerada pela opinião pública como excessiva foi a faísca que desencadeou a adesão maciça das populações de diversas cidades e estados, ampliando a pauta dos protestos em reivindicações latentes, como o combate à corrupção e a melhoria dos serviços públicos em geral.

“Não é apenas pelos 20 centavos” foi a explicação popular para a rebelião, assim como em Santiago, onde os estudantes secundaristas protestaram organizando as “invasões”, quando centenas deles pulavam a catraca das estações de metrô para protestar.

Os 15 centavos (em reais) do aumento levaram a outras reivindicações, revelando um descontentamento da população que era mascarado pelos bons índices econômicos.

O modelo liberal implantado ainda na ditadura de Pinochet, que não foi alterado substancialmente mesmo nos governos socialistas, está em debate.

A oposição chilena de esquerda ao governo liberal de Sebastián Piñera acusa o modelo de não reduzir a desigualdade no país, embora o Chile tenha o mais elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região, considerado “muito alto”, e um Coeficiente de Gini (0,45) em média melhor que a maioria dos países vizinhos, e seja o país latinoamericano com a renda per capita mais alta (US$ 15.346 em 2018).

Um dos pontos mais afetados pela percepção popular de injustiça social é a falta de garantias sociais, como o modelo de Previdência por capitalização. Esse mesmo modelo era uma das principais medidas propostas pela equipe econômica de Paulo Guedes, que trabalhou no Chile durante a ditadura de Pinochet.

O Congresso rejeitou a medida e, diante da realidade chilena neste momento, Bolsonaro mandou esquecer o assunto. O professor e comentarista político Álvaro Vargas Llosa, especialista em América Latina, diz que essa percepção de injustiça social é provocada pela falta de reformas no modelo, e a crise econômica mundial, que reduziu o ritmo de crescimento econômico do país e, consequentemente, a mobilidade social.

Uma das razões dos protestos atuais no Chile é o custo de vida alto em relação ao salário mínimo. Para não mexer nesse vespeiro, o presidente Bolsonaro deu uma freada de arrumação em seu governo, e vai dividir as reformas restantes em etapas.

A reforma administrativa, que pretende mexer na estabilidade do servidor público e reorganizar as carreiras, para que a progressão seja feita mais lentamente e de acordo com critérios de produtividade e meritocracia, não atingirá quem já estiver no serviço público.

O faro político de Bolsonaro não corresponde ao do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que está disposto a aprofundar as reformas. A administrativa está com estudos adiantados no Congresso.

A mudança no Imposto de Renda, que será enviada no primeiro trimestre do próximo ano, vai ampliar a isenção e aumentar a tributação dos mais ricos, o que não gera convulsão social.

Assim como, na reforma da Previdência, o presidente Bolsonaro tinha dificuldades para defender mudanças nos setores mais ligados a ele, como os militares e os membros de forças públicas, desta vez ele não está disposto a enfrentar corporações que podem ser afetadas.


Merval Pereira: Os invisíveis

O mais recente invisível a se tornar visível foi o porteiro do condomínio de Bolsonaro e do miliciano Ronnie Lessa

A invisibilidade social é objeto de diversos estudos acadêmicos. Há profissões que têm utilidade no cotidiano, mas são consideradas subalternas, como lixeiros e coveiros, que tornam invisíveis quem as exerce.

Um caso clássico desse preconceito aconteceu com o âncora Boris Casoy que, ao ver uma mensagem de fim de ano de dois lixeiros, comentou na Bandeirantes, sem saber que o microfone estava aberto: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto de suas vassouras. O mais baixo da escala de trabalho”. Casoy pediu desculpas ao saber que o áudio havia vazado, mas o estrago estava feito.

Outras profissões, como porteiro, motorista, secretária, garçom, empregada doméstica, fazem parte do dia a dia das famílias e empresas e frequentemente ouvem e vêem coisas que não deveriam ouvir nem ver, mas de tão invisíveis, dão liberdade às pessoas para falarem o que não pode ser ouvido em público. O embaixador Marcos Azambuja, com sua ironia cortante, diz que não há nada mais perigoso do que secretária.

Os personagens invisíveis estão em torno de nós e são temas de trabalhos acadêmicos, filmes e livros. Professores já experimentaram trabalhar de garis e constaram essa invisibilidade social, fruto de preconceito e desprezo.

“A Vida Invisível de Euridice Gusmão”, filme de Karim Ainouz que representa o Brasil na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro, trata de outra tipo de invisibilidade, das pessoas que não podem ter sonhos, esmagadas pela realidade.

Esses são também os personagens do poeta gaúcho da Academia Brasileira de Letras Carlos Nejar, que acaba de publicar o livro “Os invisíveis (Tragédias brasileiras)”, que trata dos flagelados de Brumadinho, dos desalojados pelo desastre do Rio Doce em Mariana, dos índios, do incêndio do Museu Nacional. Nejar, com razão, identifica o livro com “o terrível Brasil contemporâneo”.

A vida política não poderia estar imune a essa invisibilidade, dando proeminência ocasional a porteiros, caseiros, secretárias, motoristas. O mais recente invisível a se tornar visível devido a uma crise política foi o porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde têm casa o presidente Bolsonaro e o miliciano Ronnie Lessa, acusado de ter assasinado a vereadora Marielle.

Ele registrou à mão no livro da portaria que, no dia do assassinato, o ex-PM Elcio Queiroz, outro dos acusados, entrou no Condomínio dizendo estar indo para a casa 58, residência da família Bolsonaro. No relato ao Ministério Público do Rio, o porteiro disse que ligou para a casa 58 e o “doutor Jair” autorizou a entrada.

Depois, ao ver no monitor que ele se dirigia à casa de Ronnie Lessa, avisou pelo interfone a mudança de trajeto, e a pessoa, que ele identificou mais uma vez como sendo o “doutor Jair”, disse que sabia para onde ia o visitante.

Como o então deputado Jair Bolsonaro estava em Brasília naquele dia, ficou constatado que o porteiro mentiu, segundo a investigação. Há muitas interrogações ainda no ar, pois um outro porteiro apareceu na história, falando com Lessa, que autorizou a entrada de Queiroz.

O porteiro está escondido desde o dia da revelação, pelo Jornal Nacional, e recentemente, encontrado pela revista Veja, recusou-se a falar sobre o caso, alegando que estava proibido. Mas tampouco renegou as primeiras informações.

Outro invisível que fez história foi o caseiro Francenildo Santos Costa, da República de Ribeirão, casa em que o então ministro Antonio Palocci se reunia em Brasília com lobistas. O caseiro reconheceu o então ministro como a pessoa que frequentava a casa e era chamado de “chefe”, desmentido Palocci, que negava ter estado lá.

Seu sigilo bancário foi quebrado, o que adicionou um escândalo a mais no caso, que resultou na demissão de Palocci. Francenildo, de 2006 até hoje, tenta receber na Justiça uma indenização pela quebra de sigilo.

Outra figura importante na vida política recente foi Eriberto França, motorista da presidência da República, que denunciou o então presidente Fernando Collor de ter suas despesas pessoais e da família pagas pelo tesoureiro de sua campanha presidencial PC Farias, homem forte do governo. Seu depoimento foi fundamental para o impeachment de Collor.


Merval Pereira: Espiões nas universidades

A criação de alunos-espiões na China de Jinping vem da mesma inspiração do governo Bolsonaro

um debate acirrado sobre o incentivo a que estudantes denunciassem professores que considerassem ideologicamente “desviados”, pelos critérios dos novos donos do poder.

Houve casos de estudantes que filmaram com seus celulares aulas de professores “esquerdistas”. Vários vídeos circularam em grupos de WhatsApp para denunciar o uso da sala de aula para doutrinação política.

Muitos mostravam estudantes tentando constranger seus professores, outros professores fazendo também proselitismo na sala de aula. Salas foram invadidas, com alunos denunciando professores, pela direita e pela esquerda.

Sempre me lembrava de uma palestra que fiz em 2012 sobre liberdade de expressão, em debate na Academia de Ciências Sociais de Xangai promovido pela Academia da Latinidade, coordenado pelo cientista político e meu colega da Academia Brasileira de Letras Cândido Mendes.

O debate àquela altura, mas poderia ser hoje, era sobre os choques entre os governos de esquerda na América Latina e a imprensa independente. O mesmo que acontece hoje no Brasil, com um governo de extrema-direita.

Falei sobre a importância da mídia para a garantia da democracia, com a tarefa de refletir as pressões e desejos da sociedade, papel que desde sempre exerceu, nas origens para se contrapor à força do estado absolutista e legitimar as reivindicações da sociedade civil nascente.

Durante os debates, fiquei gratamente surpreso com a amplitude da discussão, com os estudantes falando abertamente de censura do Estado e revelando a ansiedade por mais liberdade de expressão.

Ao final, conversei com uma estudante, das que mais questionaram, e perguntei se não tinha receio de falar tão abertamente sobre suas angústias e necessidades. Ela me disse que o governo considerava a universidade um ambiente aberto, livre de censuras. E fazia isso para garantir que os estudantes não tivessem tolhida sua criatividade. Fora dali, a conversa era outra. Lembre-se o massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989.

Isso agora acabou. O governo chinês - sob o comando de Xi Jinping (que veio ao Brasil para a reunião dos BRICS), o chefe do Partido Comunista mais forte desde Mao Zedong - está adotando uma política severa de acompanhamento da atuação de professores nas salas das universidades.

Com o título de presidente perpétuo, e prestando todas as homenagens oficiais a Mao, o que havia caído em desuso, o governo de Xi Jinping criou uma categoria de “estudantes oficiais de informações”, popularmente conhecidos como espiões.

São contratados oficialmente pelas universidades, e trabalham abertamente nas salas de aula, para constranger os professores. Muitas universidades colocaram câmaras nas salas, e as aulas são monitoradas em tempo real.

Vários professores já foram demitidos por criticarem medidas do governo, denunciados por espiões e grupos de alunos. A atuação é tão aberta que universidades colocam anúncios para contratar os alunos-espiões.

O New York Times entrevistou o professor You Shengdong, da Universidade Xiamen, que foi demitido por ter criticado um slogan do governo chinês. Diz o jornal que muitos espiões não se limitam à atuação dos professores em sala de aula, mas suas vidas pessoais também são alvo de investigações, inclusive o tipo de filmes que assistem.

A ideia de que a universidade deveria ser um território livre para debates de ideias e estímulo à criatividade foi abandonada, e, ao contrário, a política de Xi Jinping é voltar a utilizar as escolas e as universidades como instrumentos de ação ideológica, como na época da Revolução Cultural de Mao.

Também o culto à personalidade, uma característica da era maoista, está de volta com o estudo disseminado dos “pensamentos de Xi Jinping”. Como se vê, o autoritarismo tem as mesmas obsessões contra a liberdade de expressão, sejam de esquerda ou de direita.


Merval Pereira: Sinal trocado

Governo no mínimo foi complacente com a ação de militantes antichavistas que tomaram conta da embaixada

A patacoada que aconteceu ontem na invasão da embaixada da Venezuela em Brasília é ação típica de quem usa a política externa para fazer política interna. Já vivemos essa situação, de sinal trocado. A chancelaria brasileira deu explicações extra-oficiais, não atribuíveis ao informante, que mostram como o governo brasileiro no mínimo foi complacente com a ação de militantes anti-chavistas que tomaram conta da sede da embaixada por algumas horas.

A embaixadora nomeada pelo governo de Juan Guaidó, que o Brasil reconhece como o verdadeiro presidente da Venezuela, Maria Teresa Belandra é a única representante do governo venezuelano aceita pelo Estado brasileiro. O fato de ela ter assumido o controle da sede da embaixada em Brasília era visto pela chancelaria como normal, condizente com a situação atual das relações diplomáticas entre os dois países.

O deputado Eduardo Bolsonaro explicitou essa situação em seu twitter: “Embaixada da Venezuela mudou porque funcionários reconheceram Guaidó como presidente legítimo. Invasão é o que ocorre agora com os brasileiros esquerdistas querendo se intrometer na questão.”

Alguém deve ter avisado ao presidente Bolsonaro que a situação não era tão simples assim, e ele, também pelo twitter, desmentiu o filho e recuou do apoio tácito que o governo brasileiro vinha dando aos anti-chavistas: “Estamos tomando as medidas necessárias para resguardar a ordem pública e evitar atos de violência, em conformidade com a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.”.

Resultado, a embaixadora de Guaidó, deixada sem apoio oficial, retirou-se com seu grupo pelas portas dos fundos da embaixada, e os chavistas a reocuparam, com o apoio de manifestantes petistas e do MST, que dizem estar fazendo a segurança do local.

No caso de Honduras, em 2009, chegou a ser escandalosa a intromissão do governo brasileiro nos assuntos internos daquele país, a ponto de ter tentado, com a cumplicidade de Hugo Chávez, criar um fato consumado com o retorno do presidente deposto Manuel Zelaya, abrigando-o na embaixada brasileira.

De acordo com a Constituição de Honduras, o mandato presidencial tem o prazo máximo de quatro anos, vedada expressamente a reeleição.

Aquele que violar essa cláusula, ou propuser-lhe a reforma, perderá o cargo imediatamente, tornando-se inabilitado por dez anos para o exercício de toda função pública.

Embora essa determinação esteja explícita na Constituição de Honduras, e aqui no Brasil não, a impossibilidade legal de alterar cláusulas pétreas está em discussão hoje, com o debate sobre a possibilidade de prisão após condenação em órgão colegiado.

O então presidente Manuel Zelaya quis mudar a Constituição através da convocação de um plebiscito, como se tornou comum na região com resultados previsíveis, como a protoditadura de Chavez e agora Maduro, e a tentativa de Evo Morales de se eleger contra a lei pela quarta vez seguida.

Assim como hoje se discute se foi golpe ou não a deposição de Evo Morales na Bolívia, também houve muita polêmica na época sobre a deposição de Zelaya. Como hoje na Bolívia, também os militares em Honduras naquela ocasião foram fundamentais para a saída de Zelaya, que foi levado para o exílio de pijamas.

Tanto Morales quanto Zelaya afrontaram as leis nacionais, na tentativa de um golpe. A participação dos militares, no entanto, dá margem a outras interpretações.

Manuel Zelaya, deposto, bolou um plano, apoiado por Hugo Chaves, para tentar voltar ao poder.

Usou para isso a embaixada brasileira, onde passou a fazer reuniões políticas e a dar entrevistas para o mundo, contra o novo governo. A versão oficial de que as autoridades brasileiras nada sabiam sobre sua estratégia de regressar ao país e abrigar-se na embaixada brasileira em Tegucigalpa foi desmentida pelo próprio Manuel Zelaya, e pelo protoditador venezuelano Hugo Chávez.

Admitiram publicamente que tudo estava combinado com o governo petista. O presidente deposto disse a uma rádio que a escolha da representação diplomática brasileira foi uma “decisão pessoal”, depois de consultas feitas ao presidente Lula e ao chanceler Celso Amorim.

Já Chávez revelou, rindo, como “enganou” todo mundo, monitorando a viagem de Zelaya através de um telefone via satélite, e que quando todos esperavam que o presidente deposto estaria em Nova York, para protestar na reunião da ONU, ele “se materializou” na embaixada brasileira.


Merval Pereira: Constituinte numa hora dessas?

Decisão desse tipo só seria aceitável em caso de ruptura institucional, como nos anos 1980, ao fim da ditadura militar

O que era para ser uma ironia até certo ponto aceitável, como tentativa de não falar sobre a possibilidade de prisão em segunda instância por ação do Congresso, tornou-se uma proposta extemporânea do presidente do Senado, Davi Alcolumbre.

Encantado com o som de suas palavras, talvez supondo que se transformava em articulador político de relevo, Alcolumbre passou a levar a sério a própria ironia e anunciou que estava propondo para valer uma Constituinte para fazer as mudanças que o Congresso considerar necessárias.

A mudança da Constituição para permitir prisão após a condenação em segunda instância está causando turbulência no Congresso, explicitando até mesmo, por áudios vazados, temor por parte de parlamentares envolvidos em denúncias de corrupção.

O fato político que ganhou dimensão nas últimas horas não é uma nova Constituinte, por ser inviável juridicamente, mas a alteração da Constituição através de uma emenda, ou a mudança do Código de Processo Penal.

A tese de Constituinte levantada por Alcolumbre não encontra respaldo na própria Constituição, que não prevê essa possibilidade. Depois de promulgada, em 1988, ela poderia ter sido revisada pelo Congresso cinco anos depois, mas não o foi. A partir daí, não há como mudá-la sem a utilização de uma proposta de emenda constitucional (PEC) a ser aprovada pelo Congresso.

Como a exigência para uma emenda constitucional é grande — três quintos dos votos na Câmara e no Senado, em duas votações —,essa é a garantia que temos de que a Constituição não será alterada a qualquer momento. É claro que uma PEC poderia, em tese, revogar a Constituição e convocar uma Constituinte, mas uma decisão desse tipo só seria aceitável em caso de ruptura institucional, como aconteceu nos anos 1980, após o fim da ditadura militar, resultando na atual Constituição.

De outra maneira, o Supremo Tribunal Federal impediria a ação do Congresso ou do Executivo, porque estariam sendo revogadas diversas cláusulas pétreas que são o pilar do nosso sistema democrático.

A convocação de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política, que já foi proposta pelo PT em diversas ocasiões nos últimos anos, parecia ser uma saída para a efetivação de uma reforma que, de outra forma, jamais sairá de um Congresso em que o consenso é impossível para atender a todos os interesses instalados, com 33 partidos constituídos e mais 37 na fila de espera, agora mais um com o partido que o presidente Bolsonaro pretende criar.

Mas a proposta não foi para frente porque houve quem suspeitasse de que, no bojo dessa Constituinte, a base aliada do governo petista naquele momento tentaria aprovar não apenas a possibilidade de um terceiro mandato para Lula, mas também o reforço do poder do Executivo, como aconteceu na Venezuela de Chávez e na Bolívia de Evo Morales.

Na campanha presidencial do ano passado, o candidato petista Fernando Haddad voltou a propor uma Constituinte para temas exclusivos, como a reforma política. E avisou que a ideia era de Lula. Esse temor voltou ontem ao debate político através do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, que rechaçou a proposta de seu colega do Senado perguntando: “Vamos caminhar para o que Chávez fez? Foi por isso que a Venezuela chegou onde está”.

A irônica proposta do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, não sobrevive ao feriadão em Brasília, e na próxima semana ele terá pela frente uma votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado sobre prisão em segunda instância que provavelmente aprovará a proposta.

Há ainda outra PEC na Câmara, e propostas para mudança no Código de Processo Penal. O mais provável é que as emendas sejam unificadas. O que parecia improvável já começa a ser viável no Congresso que, segundo a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, teme a atuação de Lula fora da cadeia. Ou será que é o PT que teme nova prisão de Lula?


Merval Pereira: Lula ataca

Para Bolsonaro, é sopa no mel ter Lula como adversário, especialmente para reaglutinar eleitores que podem voltar a tê-lo como uma saída contra o Petismo

O mais relevante, do ponto de vista prospectivo, da fala de ontem do ex-presidente Lula no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo foi a conclamação para que o povo siga o exemplo do Chile: “A gente tem que atacar, não se defender”.

Juntamente com a exaltação dos governos esquerdistas da América Latina, que voltam a se reorganizar na Argentina, na Bolívia, na Venezuela, Lula se referiu ao Chile como um país “que o Guedes” (Paulo Guedes, ministro da Economia) quer copiar.

A volta da união dos governos de esquerda na região, e o apelo à revolta popular, alimentam a reação da extrema-direita, já prenunciada pelo comentário de um dos Bolsonaro sobre a necessidade de volta de um novo AI-5 se a esquerda radicalizasse.

O problema dessa confrontação permanente, que já vem desde a eleição de 2018, é que o país fica refém de posições antagônicas, petista ou antipetista, como se não houvesse vida política fora dos extremismos. Ou se a Guerra Fria tivesse voltado em uma máquina do tempo.

O centro, que não tem um candidato visível com competitividade, como não teve na eleição presidencial, vai ser esmagado novamente se não acontecer a união dessas forças centristas que, embora majoritárias, não conseguem se exprimir unitariamente em torno de uma ideia-força que faça surgir uma liderança.

Para Bolsonaro, é sopa no mel ter Lula como adversário, especialmente para reaglutinar esses eleitores centristas que, sem opções, podem voltar a tê-lo como uma saída contra o petismo que ressurge com a liberdade de Lula.

Também Lula procura esse confronto, como no discurso de ontem no Sindicato dos Metalúrgicos. Subiu o tom nas criticas à Lava Jato, ao atual ministro Sérgio Moro e ao coordenador dos procuradores de Curitiba Deltan Dallagnol. Mas um toque de Lulinha paz e amor apareceu aqui e ali na sua fala, o que pode indicar que tenta se equilibrar entre o ressentimento e a necessidade de moderação.

Para tentar cooptar parte do eleitorado que votou em Bolsonaro contra o PT e hoje está arrependida da escolha, diante de atitudes e medidas governistas que produzem políticas públicas retrogradas que afastam o país da modernidade, por motivos ideológicos.

Como, por exemplo, o desprezo pela cultura nacional, o menosprezo pela preservação do meio-ambiente, o descaso nos campos da ciência e tecnologia.

O que ainda prende a Bolsonaro boa parte de uma classe média moderada é a atuação dos ministros Paulo Guedes, da Economia, e Sérgio Moro, da Justiça e Cidadania, justamente os dois pilares que Lula tratou de atacar em seus discursos ao sair da cadeia.

Não por acaso, portanto, posição que o impede de criar condições para um avanço sobre o centro moderado. A tragédia econômica, com consequências sociais terríveis, que se abateu sobre o país está tendo sua culpa endereçada por Lula ao governo atual, o que é simplesmente impossível, pois quem está no poder há menos de um ano não poderia tirar o país da depressão em tão pouco tempo.

O ponto mais crítico do discurso de ontem no Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo foi a colocação no centro do debate político da grave situação das milícias no Rio de Janeiro, território político dos Bolsonaro.

Lula já deu sinal verde para a candidatura de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio, aproximando o combate às milícias ao surgimento do nome de Bolsonaro na investigação sobre o assassinato de Marielle.

O calcanhar de Aquiles dos Bolsonaro, o envolvimento direto e indireto com milicianos, que já foram condecorados por eles e até empregados em seus gabinetes parlamentares, será explorado por Lula e pelo PSOL nas eleições municipais no Rio, centro nervoso da politica nacional.

O desaparecimento do ex-funcionário Queiroz é um tormento para Bolsonaro e seus filhos, e serviu de mote ontem ao discurso de Lula. O presidente tentou ficar à parte da disputa com Lula num primeiro momento, talvez imaginando que pudesse ignora-lo.

Não pode, e partiu para o ataque direto, chamando-o de “presidiário” e lembrando que ele continua “com todos os crimes nas costas”. Também Sérgio Moro anunciou pelo Twitter que não responde “a criminosos”.

Mas as dificuldades que ainda persistirão darão a Lula o pretexto para criticar Bolsonaro, e os dois populistas lutarão retoricamente pela narrativa desses tempos interessantes, como uma praga confuciana.