Merval Pereira
Merval Pereira: Surto populista
Bolsonaro vai sair chamuscado seja qual for a decisão que tomar em relação ao Fundo Eleitoral
O presidente Jair Bolsonaro, na tentativa de ficar bem com os dois lados, seus apoiadores que defendem o veto ao Fundo Eleitoral, e os congressistas, sairá chamuscado seja qual for a decisão que tomar.
Ele havia ganhado uma queda de braço com o Congresso quando a verba de R$ 3,8 bilhões que fora fixada na Comissão Mista de orçamento acabou sendo reduzida para R$ 2 bilhões, justamente o valor que ele havia proposto.
Foi a pressão da opinião pública que fez com que os deputados e senadores aceitassem a proposta do governo, equivalente à mesma de 2018 reajustada.
Bolsonaro, no entanto, não resistiu a um populismo, e levantou a questão na porta do Palácio Alvorada, para os apoiadores que diariamente chegam de vários lugares do país para verem o presidente de perto.
Do nada, perguntou como se fosse Silvio Santos oferecendo dinheiro à platéia: “Devo vetar ou não o Fundo Eleitoral?” Ora, se a democracia direta através de plebiscitos ou referendos é um sistema de decisão muito discutível, que deu margem a fortalecimento de ditaduras ou aprovação de decisões perigosas como o Brexit na Inglaterra, imagine uma enquete popular improvisada?
Bolsonaro chegou a alegar que vetaria porque não queria que seus adversários, como o PT e o PSL, recebessem dinheiro para fazer suas campanhas. Os dois partidos têm direito à maior parte do Fundo, por serem as maiores bancadas de deputados federais eleitas em 2018.
O que o presidente queria era fazer uma graça para seus eleitores, reavivando a disputa com a “velha política”. Não existe nenhuma outra razão para que volte atrás da decisão anunciada do que a vitória do bom senso.
Alguém deve ter alertado o presidente de que o Fundo Eleitoral de R$ 2 bilhões fora proposta do Executivo, e que, vetando-o, estaria indo contra uma decisão sua. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, foi bastante pragmático na reação: “Se ele quer vetar sua própria proposta, tudo bem”.
Alegar que poderia ser enquadrado em crime de responsabilidade devido a um eventual veto é desculpa esfarrapada que mais uma vez joga para o Congresso a responsabilidade de criar o Fundo Eleitoral de R$ 2 bilhões.
Embora a proposta da Comissão Mista praticamente dobrasse a verba eleitoral em relação a 2018, ela não retiraria verba de nenhum setor do governo, muito menos da área social, como foi alegado.
O que aconteceu é que na proposta do ministério da Economia não estava previsto um excedente de R$ 7 bilhões de dividendos das estatais, o que deu margem para aumentar o fundo.
A questão que acabou pesando para a mudança de posição do Congresso é que, aprovando o fundo na ordem de R$ 3,8 bilhões, deputados e senadores estariam considerando o aumento do financiamento da eleição prioritário em relação aos setores carentes do país, como saúde, educação, saneamento.
O Orçamento agora é do Congresso, e não mais do Planalto, que apenas sugere parâmetros. Com as emendas impositivas, são os congressistas que decidem no final das contas quais são as prioridades. Por isso, têm que entender que serão culpados por distorções, e muita gente pode continuar acreditando que o excedente dos dividendos das estatais seria mais bem aplicado em setores essenciais como saúde, educação, saneamento.
Essas negociações já haviam ocorrido, e tinham tido um final aparentemente feliz, com o Congresso aceitando o valor do Fundo proposto pelo Executivo. O surto populista do presidente Bolsonaro, ameaçando vetar mesmo assim, não passou disso, e agora ele está querendo “preparar a opinião pública” para a sanção do Fundo Eleitoral.
Não é porque teme um impeachment que o presidente agirá assim, mas simplesmente porque não lhe resta alternativa. As eleições municipais precisam ser financiadas e, com a proibição de financiamento privado, o dinheiro só pode sair do Tesouro.
Se vetasse, o Congresso derrubaria o veto, e ele poderia aparecer à opinião pública como aquele que tentou conter a irresponsabilidade dos políticos. Mas teria comprado uma confrontação irresponsável com o Congresso, de consequências imprevisíveis. Bem que tentou, mas parece que recuou a tempo.
Merval Pereira: Chances renovadas
As crises políticas que Bolsonaro alimenta podem representar obstáculos intransponíveis a qualquer momento
O novo ano começa como os últimos, com esperanças de que o país recupere sua capacidade de crescimento econômico. As perspectivas desta vez são melhores do que já foram, especialmente porque o governo, eleito pelo voto popular, mantém seu projeto reformista, avalizado pela aprovação da reforma da Previdência.
O governo Temer, um intervalo entre o petismo e o bolsonarismo, chegou a ter o controle político do Congresso, mas perdeu a chance de aprovar a reforma da Previdência devido à crise desencadeada pelo diálogo gravado com o empresário Joesley Batista.
Temer teve que trocar o apoio que tinha no Congresso pela manutenção de seu cargo, perdendo força para aprovar as reformas. Hoje, temos pela primeira vez um Congresso renovado que comprou a ideia de que é preciso reformar estruturalmente o país, e um governo que mantém o objetivo de aprovar as reformas tributária, administrativa, do pacto federativo.
O parlamentarismo branco faz com que o Congresso module as reformas propostas pelo Executivo, às vezes avançando, principalmente na economia, em outras as adequa a seu perfil, como no pacote anticorrupção. Sempre, porém, tem havido progressos.
O Supremo Tribunal Federal (STF) assumiu para si garantir a governabilidade do país, num estranho pacto entre os Três Poderes que não reflete obrigatoriamente o pensamento da maioria de seus pares.
Como quando seu presidente Dias Toffoli blindou a presidência da República sustando a investigação sobre o suposto esquema de lavagem de dinheiro envolvendo o hoje senador Flavio Bolsonaro quando era deputado estadual no Rio e tinha o famigerado Queiroz como seu assessor de confiança. O calcanhar de Aquiles do governo.
Toffoli teve que voltar atrás e aderir à decisão da maioria que avalizou a atuação do antigo Coaf e da Receita Federal. Apesar dos êxitos na área econômica e da popularidade do ministro Sérgio Moro, identificado pela opinião pública com o combate à corrupção e ao crime organizado, a presidência de Bolsonaro consegue reduzir suas próprias conquistas com a obsessão de aniquilar a esquerda e produzir embates quase diários para manter a polarização com o PT.
Assim como Lula já definiu como seus alvos principais os ministros Guedes e Moro, justamente as áreas mais bem sucedidas do ministério, também Bolsonaro empenha-se em colocar-se mais uma vez como o antiPT, na suposição de que esse é seu principal ativo político.
As crises políticas que alimenta podem representar obstáculos intransponíveis a qualquer momento. Bolsonaro pode também estar equivocado, mantendo a chama acessa do lulismo, que até o momento não se mostra capaz de mobilizações populares como antes da prisão do ex-presidente.
Lula preso valia mais politicamente que Lula livre.
Uma certeza
É impossível no momento saber exatamente como seu deu a fuga de Carlos Ghosn, ex-presidente da Nissan, do Japão para Beirute, no Líbano. Desconfia-se de que governos estrangeiros ajudaram de alguma maneira na fuga.
Mas uma coisa parece certa: dentre eles, não está o governo brasileiro. Apesar dos esforços do ministro da Economia Paulo Guedes, amigo de Ghosn, que apelou primeiro ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo. Não tendo sido atendido, Guedes foi a Bolsonaro. Conseguiu que se comprometesse a visitar o empresário brasileiro quando estivesse em Tóquio na reunião do G-20, em junho. O máximo que fez foi falar ao telefone com Ghosn, que se encontrava em prisão domiciliar.
O executivo foi convidado duas vezes para dirigir a Ford. A primeira em 2006, e ele exigiu acumular a direção executiva com a presidência do conselho de administração, que era presidido por Bill Ford Jr. Não deu certo.
Em 2008, na grande crise econômica, o então presidente Obama procurou-o pessoalmente para oferecer-lhe o dobro de seu salário na Nissan para presidir a Ford, que estava à beira da falência. Mais uma vez Carlos Ghosn recusou.
Merval Pereira: O diabo nos detalhes
Há quem considere que juízes de garantias não terão tempo hábil para realizar as audiências de custódia
Ainda teremos muita discussão até a implantação do juiz de garantias, que vai dividir os processos criminais com um juiz de julgamento. Afinal, o diabo está nos detalhes, e é disso que tratam os membros do grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça, reunidos pelo presidente Dias Toffoli para regulamentar a medida.
Mas os juristas que a aprovam acham que está havendo muito barulho por nada. Foi o que disse, por exemplo, o presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, ministro Dias Toffoli, para quem a implantação do sistema é “perfeitamente factível”. O ministro Gilmar Mendes, também do STF, é da mesma opinião, e considera que a medida “é mais fácil de implementar do que parece”
Outro ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, ressalva que a proposta não estava no seu projeto, nem no do Moro. Ele considera que não é urgente a adoção de tal instrumento, mas também acha um absurdo dizer que ele é inconstitucional, como alegam a Associação dos Magistrados do Brasil e a Associação dos Juízes Federais.
Moraes e Gilmar conversaram ontem sobre o tema, e algumas sugestões foram passadas para Toffoli, especialmente por Alexandre de Moraes, que tem conhecimento da experiencia com esse instrumento em São Paulo.
Sugere, por exemplo, para a Justiça estadual, onde a instalação será mais difícil, a criação de um Juizado de Garantias, com alguns juízes só para essa tarefa, no estilo do que já existe em São Paulo no Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO).
Esse Juizado se instalaria na sede da circunscrição, com competência para todas as Comarcas que dela fizerem parte. Em São Paulo, são 13 uízes no DIPO, que fazem toda a parte de garantia do Foro Central (crimes de reclusão), com 60 juízes. Além disso, fazem todas as audiências de custódia.
Esse, alias, é outro ponto controverso da lei anticrime aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Bolsonaro. Por ela, qualquer preso tem que ser apresentado a um juiz de custódia em 24 horas, caso contrário o preso terá que ser libertado. Essa exigência já existe no Código de Processo Penal (CPP), mas a nova lei a reafirma para impedir que seu descumprimento seja normalizado.
Há quem considere que os Juízes de Garantias não terão tempo hábil para realizar também as audiências de custódia, e que o exemplo do DIPO paulista não pode ser disseminada pelas comarcas brasileiras, muitas das quais têm apenas um juiz, e muitas nem isso, o que ocasionará um congestionamento de processos.
Em São Paulo, e nas principais cidades e capitais, os processos são todos digitalizados, mas esta não é a realidade do país, alegam os críticos. Alexandre de Moraes considera que com 20 juízes para todo o interior paulista, divididos nas 10 regiões que já existem para fazer execução criminal, o problema estará resolvido.
A Justiça criminal ficaria dividida em Juizados especiais, que são excetuados pela lei, e Juízes de garantia/processo. A lei prevê o rodízio nas comarcas em que há apenas um juiz, mas não traz detalhes de como isso funcionará. O ministro Sérgio Moro, que não escondeu sua decepção com a sanção da figura do juiz de garantias, voltou ontem ao Twitter para ironizar:
"Leio na lei de criação do juiz de garantias que, nas comarcas com um juiz apenas (40 por cento do total), será feito um 'rodízio de magistrados' para resolver a necessidade de outro juiz. Para mim é um mistério o que esse 'rodízio' significa. Tenho dúvidas se alguém sabe a resposta".
Não há uma concordância entre os ministros do Supremo sobre o alcance da medida. Como o ministro Marco Aurelio Mello declarara, o presidente do Supremo acha que a aplicação do instituto do juiz de garantias não vale para os processos em curso e, portanto, não atinge os abertos contra o ex-presidente Lula e o senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente.
Outros ministros, como Celso de Mello e o próprio Alexandre de Moraes, acham que sim. Os advogados criminalistas poderão reivindicar ao Supremo um tratamento isonômico, pois no artigo 3 D está dito especificamente que juizes que tiverem tido acesso às investigações não poderão julgar o caso, terão que se considerar impedidos. Esta seria uma causa de nulidade da decisão.
Toffoli e Gilmar entendem também que a decisão só vale para a primeira instância, não havendo necessidade para os tribunais regionais, e muito menos para os tribunais superiores, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF.
Merval Pereira: Apoio à impunidade
Não é de hoje que a classe política, aliada a empresários e outros agentes privados, tenta minar a Lava-Jato
Foi a mais grave derrota do ministro Sérgio Moro, mas foi mais que isso. Foi a confirmação de que a luta contra a corrupção nunca foi um objetivo do presidente Bolsonaro, apenas uma desfaçatez eleitoreira que não resistiu a um ano de investigações sobre sua família.
Ao que indicam os fatos, essa relação perigosa da família Bolsonaro com pessoas e atos à margem da lei vem de longo tempo, mas somente agora se tornaram visíveis à opinião pública.
As diversas restrições que a lei impõe ao combate à corrupção, especialmente a do colarinho branco, encontraram no presidente que se dizia íntegro defensor de seu combate um aliado a favor da impunidade.
As diversas alterações feitas na proposta do ministro Sérgio Moro saíram da Câmara, onde grande parte de seus componentes têm contas a ajustar com a Justiça, ou teme vir a ter. A intenção das várias inserções é evidente, como a implantação imediata do juiz de garantias.
A esquerda festeja muito justamente, porque sua aprovação, com a sanção presidencial, é uma crítica direta ao ex-juiz Moro, uma aceitação das denúncias de que ele exorbitou de seu poder nos processos da Lava Jato.
Esse tema surgiu justamente devido à revelação do The Intercept Brasil de conversas entre procuradores de Curitiba e o juiz Moro, fruto de roubo cibernético ainda não completamente esclarecido. A idéia em si, já em prática em vários países europeus, e até mesmo em certos setores da justiça de São Paulo, não é desprezível, nem em si mesma errada.
O juiz que preside o inquérito na fase de investigações não é o mesmo que dá a sentença, como fazíamos no país desde sempre. O que a mancha é a tese de que representa uma medida que “acaba com o jeito Moro de julgar”. Como se os tribunais superiores não tivessem confirmado suas sentenças.
Justamente aí está o motivo de satisfação dos que propuseram tais alterações, e não apenas o juiz de garantias. Todo um arcabouço legal foi montado para dificultar a apuração dos crimes de corrupção, especialmente os mais complexos que implicam lavagem de dinheiro.
Bolsonaro também sancionou a limitação da delação premiada ao caso em investigação, restringindo, assim, sua abrangência. Este é um dos pontos mais festejados pelos criminalistas e seus clientes, atuais ou potenciais. Os diversos apêndices que formam uma delação premiada que justifique uma compensação judicial não mais existirão, resumindo-se o colaborador a poder denunciar fatos ligados ao processo em si, e não novos fatos que, não estando em investigação, passariam a estar devido às novas informações correlatas.
Outra alteração obriga o juiz a soltar preso em flagrante caso ele não seja submetido dentro de 24 horas a uma audiência de custódia, na qual a Justiça avalia a necessidade de mantê-lo na cadeia. Por causa do excesso de processos e da distância entre comarcas, nem sempre há condições de designar um juiz em 24 horas para conduzir a audiência.
Mesmo existindo razões para a manutenção da prisão, o preso será colocado em liberdade em razão do mero decurso do prazo, argumentou o Ministério da Justiça ao recomendar o veto. Moro também recomendou o veto a mudanças no Código de Processo Penal que dificultarão as prisões preventivas.
Adotadas essas medidas, que impõem que seja provada a periculosidade do preso e a existência “concreta de fatos novos e contemporâneos”, a vasta maioria, se não todos os implicados na Operação Lava Jato não estariam presos, pois não são violentos nem perigosos, e os fatos que os envolvem aconteceram já há algum tempo, não são novos nem contemporâneos às denúncias.
Também criminosos comuns, que forem apanhados muito tempo depois do crime ter sido cometido, não poderão ser presos preventivamente.
Não é de hoje que a classe política, aliada a empresários e outros agentes privados, tentam minar a Lava Jato, assim como aconteceu na Itália das Mãos Limpas. Depois de anos de tentativas, foi justamente num governo supostamente alinhado ao combate à corrupção, tanto que convidou o símbolo desse combate, o juiz Sérgio Moro, para seu ministro da Justiça, que as medidas de cerceamento foram aprovadas, com o aval de Bolsonaro.
A forte reação da opinião pública, inclusive dos bolsonaristas arrependidos, mostra que o mandato do presidente já não corresponde, nesse aspecto vital, à expectativa majoritária. Moro sai derrotado politicamente, mas fortalecido popularmente. Essa lacuna entre um e outro deve ter conseqüências políticas que afetarão a disputa presidencial de 2022.
Merval Pereira: Em causa própria
Se indulto visa a atender base eleitoral, sanção de pacote anticrime pode beneficiar Flávio Bolsonaro
As surpresas natalinas que Bolsonaro deu aos brasileiros, ao assinar indulto que, por vias tortuosas, coloca em vigor o excludente de ilicitude para os agentes de segurança, que fora barrado pelo Congresso, e também permitir a instalação do juiz de garantias que o ministro Sergio Moro havia pedido que vetasse, dão bem a dimensão pessoal com que o presidente lida com questões de Estado.
Ele também sancionou a limitação da delação premiada ao caso em investigação, restringindo, assim, sua abrangência. Não é à toa que ontem a hashtag Bolsonaro traidor foi das mais comentadas.
O indulto a policiais e agentes de segurança condenados por homicídio culposo, isto é, sem intenção de matar, e a soldados que, participando de ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), tenham tido o mesmo fim, é uma maneira que o presidente Bolsonaro encontrou de suplantar a vontade expressa do Congresso, que rejeitou o excludente de ilicitude no pacote proposto pelo ministro Sergio Moro.
O subprocurador-geral da República, Domingos Sávio da Silveira, coordenador da Câmara de Controle Externo da Atividade Policial da Procuradoria-Geral da República (PGR), considera que este é um dos pontos inconstitucionais do indulto, que classificou, em declaração ao GLOBO, de um “ornitorrinco jurídico”, um “excesso de poder” por parte do presidente.
Para o subprocurador, Bolsonaro confundiu a clemência com o indulto individual, que é o instrumento da graça, previsto na Constituição. O presidente cogitou usá-lo para beneficiar os policiais condenados pelos massacres do Carandiru e de Eldorado dos Carajás, mas foi desaconselhado.
O indulto tem que ser genérico, e muitos juristas consideram que o presidente, mesmo indultando policiais e agentes de segurança condenados por determinados crimes, estaria ampliando seu poder além do permitido pela lei.
Certamente esse indulto será tema de debate que chegará ao Supremo Tribunal Federal (STF), assim como o do então presidente Michel Temer, que atingia até mesmo os condenados por corrupção.
Depois de uma liminar da ministra Cármen Lúcia sustar o indulto, meses depois a maioria do STF considerou que ele é uma prerrogativa presidencial “discricionária”. Resta saber se a maioria dos ministros vai considerar que Bolsonaro usou adequadamente essa discricionariedade.
Tudo indica que essa posição deve prevalecer também em nova discussão do plenário do Supremo, mesmo que uma liminar seja concedida por um dos ministros que foi vencido naquela ocasião.
Já a permissão para que a figura do juiz de garantias seja adotada no sistema judiciário brasileiro, mesmo com o pedido de veto do ministro Sergio Moro, parece uma decisão precipitada, com objetivos imediatos.
O juiz de garantias é aquele que vai presidir o inquérito, autorizar ou não ações de investigação pedidas pelo Ministério Público. Um segundo juiz julgará o caso, ao contrário do que acontece hoje no país, onde o mesmo juiz preside o inquérito e dá a sentença.
Eu gosto da ideia, mas admito que precisaríamos de bom tempo para que os tribunais se organizassem, e muita verba para contratar novos juízes, até mesmo para comarcas que não têm nem um, quanto mais dois juízes. O veto foi sugerido, entre outros motivos, porque os proponentes não se preocuparam em tratar como vai ser em comarcas de juiz único, como em cerca de 40% dos municípios brasileiros, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Não está esclarecido também como vai ser nos tribunais superiores, se vale ou não para ações penais em andamento. No Supremo, por exemplo, os processos da Segunda Turma serão distribuídos para a Primeira Turma e vice-versa? A lei sancionada pelo presidente Bolsonaro entrará em vigor em 30 dias a partir de ontem, mas os tribunais estão em recesso até 20 de fevereiro, e depois vem o carnaval. Será preciso também alterar os códigos de organização judiciária.
Necessitará, pois, muito mais tempo para se organizar e definir casos como os processos em andamento. Por exemplo, o sobre o senador Flávio Bolsonaro. Se o efeito for imediato, o juiz Flávio Itabaiana, que preside o inquérito sobre Bolsonaro e já foi criticado pelo presidente, não poderá mais autorizar investigações, mas seria o juiz prevento (competente) para dar a sentença.
Merval Pereira: Montando as peças
Bolsonaro tirou Moro da lista de indicados para o STF e passou a citá-lo como um vice ideal para a chapa de reeleição
O presidente Jair Bolsonaro vai montando seu quebra-cabeças com vista à reeleição presidencial nas respostas sobre as indicações que poderá fazer para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Já anunciou dois candidatos para as duas vagas, e nenhum deles é o ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, a quem a primeira vaga estava prometida. Em novembro de 2020 o ministro Celso de Mello se aposenta compulsoriamente por ter chegado aos 75 anos, e Bolsonaro colocou ontem o atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, na disputa, dizendo que ele “é um bom nome para o STF”.
Oliveira trabalha com Bolsonaro há cerca de 10 anos, e é filho de um seu antigo colaborador. O presidente reafirmou que o ministro da Advocacia Geral da União, André Luiz Mendonça, “terrivelmente evangélico”, é um bom nome para a outra vaga no Supremo, que se abrirá no meio de 2021, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello.
Com isso, Bolsonaro tirou Moro da lista, e passou a citá-lo como um vice-presidente ideal para a chapa de reeleição em 2022. “Seria imbatível essa chapa”, é o pensamento generalizado entre os principais assessores do presidente no Palácio do Planalto, embora Moro em nenhum momento tenha indicado que gostaria de trocar uma vaga certa no STF pela possibilidade incerta de vir a ser candidato a vice-presidente.
Ao mesmo tempo em que especula em voz alta sobre essa escolha, o presidente Bolsonaro vê-se às voltas com outras vertentes de seus auxiliares que querem esvaziar o papel do ministro Sérgio Moro, mais popular que o próprio presidente, e volta e meia apontado como possível candidato ele mesmo.
Surgiu recentemente a proposta de dividir o ministério de Moro em dois, dando a parte de Segurança Pública para o ex-deputado Alberto Fraga, da chamada “bancada da bala”. Bolsonaro demorou alguns dias para desmentir o boato, e só o fez depois que Sérgio Moro deu uma declaração pública de que não acreditava nessa divisão, apontando os avanços alcançados no combate à corrupção e à melhoria da segurança pública.
A queda dos índices de criminalidade é argumento indesmentível sobre a eficiência do novo ministério que ocupa. Além disso, o projeto anticrime está no Palácio do Planalto para sanção do presidente Bolsonaro, e precisará ser retomado mais adiante para voltar a ter a cara que Moro gostaria.
Sem a segurança pública, Moro ficaria em um ministério da Justiça esvaziado, pois na atual estrutura ministerial a costura política não é feita lá, e nem Moro seria a pessoa indicada para exercer essa função.
A simples possibilidade de Alberto Fraga assumir a segurança pública, porém, já é uma indicação de que qualquer mudança seria para radicalizar a atuação do governo. Assim como acontece com o ministro da Economia Paulo Guedes, embora continuem sendo superministros, os dois já tiveram que se adaptar à presidência imperial de Bolsonaro, e engoliram muitos sapos.
Se a crise econômica for mesmo sendo superada, e o crescimento se confirmar nos próximos anos, o perigo é que ocorra com Bolsonaro o mesmo que aconteceu com Lula. O ministro da Fazenda Antonio Palocci tendo que deixar o governo ainda no primeiro mandato, por conta de denúncias de negociatas com seus amigos da República de Ribeirão Preto, foi substituído por Guido Mantega, que começou a mudar a política econômica, tornando-a mais ao gosto de Lula e do PT.
Bolsonaro, que nunca foi um liberal, pode ser tentado a colocar no lugar de seus superministros pessoas ligadas a ele, com o mesmo pensamento. Mas isso só acontecerá se recuperar a popularidade perdida, o que depende paradoxalmente do desempenho dos dois.
As indicações dos candidatos às vagas do Supremo mostram essa tendência de valorizar a proximidade pessoal e a supremacia dos valores conservadores, inclusive religiosos. O ministro Moro já deu uma indireta ao declarar que a religião não diz muito da pessoa escolhida para o STF.
Se não lhe for oferecida a primeira vaga ano que vem, Moro terá que se manter no cargo até o meio de 2021, para ver para onde o vento sopra. Para isso terá que conservar a popularidade atual, que o torna um ministro quase indemissível e um companheiro de chapa desejável.
Merval Pereira: Sem compostura
Presidente está acuado, pela queda da popularidade, pelas limitações que instituições democráticas lhe impõem
O presidente Jair Bolsonaro vem numa escalada de falta de compostura que beira a insanidade. O episódio de ontem, em que destratou jornalistas, demonstrando falta de educação e preconceitos, é próprio de quem se sente acuado, e de fato o presi- dente está acuado, pela queda de sua popularidade, pelas limitações que as instituições democráticas lhe impõem, pelas denúncias contra seu filho Flávio, que envolvem toda uma família ampliada que, pelas acusações do Ministério Público do Rio, vivia às custas do Erário público.
Bolsonaro anda também cercado de fantasmas, desde as alucinações de que querem vê-lo morto para tomarem-lhe a presidência, até o impeachment político. O delírio persecutório que revela assiduamente pode fazer parte de uma personalidade paranoica, agravado pelo atentado contra sua vida, bastante real.
Mas o impeachment já está colocado e, como é um instrumento sobretudo político, será acionado, ou não, quando as forças políticas no Congresso desejarem. Motivos Bolsonaro já deu de sobra, e a falta de decoro de ontem é apenas mais uma, e não será a última.
A investigação contra o senador Flávio Bolsonaro certamente está abalando a já desequilibrada personalidade do presidente, embora a punição dificilmente acontecerá em razão direta das denúncias do Ministério Público. Mas podem atingir o presi- dente no correr das investigações.
O próprio Bolsonaro, demonstrando o quanto o assunto o incomoda, já disse que surgirão diálogos que sugerirão que ele tem ligações com milicianos do Rio de Janeiro. O ex-ministro Bebianno, acusado indiretamente por Bolsonaro de desejar ser seu vice para substituí-lo em caso de morte, disse claramente que as ligações de Bolsonaro com milicianos serão demonstradas nas investigações.
A punição ao senador Flávio Bolsonaro, se houver, não virá através do Congresso. O presidente do Senado, David Alcolumbre, já disse que nenhuma denúncia poderá ser analisada no Conselho de Ética porque, se algo aconteceu, foi quando Flávio era deputado estadual.
Uma possível condenação vai depender de denúncia do Ministério Público, com argumentos muito fortes, para convencer o Senado a permitir a punição, mas acho que essa autorização não será dada. No entanto, politicamente a situação é muito ruim para a família Bolsonaro, e essa investigação ainda vai bater em situações delicadas, apesar de, concretamente, ser difícil condenar o senador Flávio Bolsonaro — a não ser que a coisa evolua de tal maneira que se chegue a uma situação de impeachment.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que Bolsonaro não tem motivos para se preocupar com um processo de impeachment, mas sobre outro assunto. O presidente passou dias sugerindo que vetará a proposta de fundo eleitoral de R$ 2 bilhões aprovado pelo Congresso para a campanha municipal do próximo ano.
Fez até uma enquete populista com apoiadores na porta do Alvorada, perguntando, como se fosse um animador de auditório, quem achava que devia vetar o projeto. Foi aplaudido quando disse que não aprovaria dinheiro para fazerem campanha eleitoral. Jogou o Congresso contra a opinião pública quando disse, numa comparação absurda, que com uma verba dessas, o ministro da Infraestrutura faria várias obras necessárias para o país. Em uma live nas redes sociais, Bolsonaro depois disse que aguardava parecer jurídico para saber se poderia vetar o Fundão Eleitoral, com receio de sofrer um impeachment como retaliação política.
Mais uma tentativa de jogar seus seguidores contra o Congresso. A relação com os parlamentares, que havia entrado em módulo de pacificação, voltou a ficar conturbada. A simples ameaça de vetar o Fundo Eleitoral acirrou os ânimos no Congresso, que promete derrubar o veto — inclusive porque a proposta de R$ 2 bilhões veio no Orçamento enviado pelo Palácio do Planalto.
Os problemas da família Bolsonaro com a Justiça, porém, servirão certamente de instrumento para tentativas de constranger o Palácio do Planalto. E isso não é paranoia do presidente, é apenas a baixa política, que sempre foi o terreno das manobras de Bolsonaro.
Merval Pereira: Com otimismo
Guedes está munido de paciência e uma determinação: não aumentar a carga tributária, ao contrário, rebaixá-la
Quando visitei a China pela primeira vez, em 2003, o pagamento com cartão de crédito estava começando, e não raras vezes tínhamos que ensinar os vendedores a usar a máquina, que era manual. Hoje, não há mais na China máquinas manuais, muito menos papel-moeda. Tudo se paga com aplicativos do celular.
É de olho nesse mercado, que avança com atraso, mas rapidez, no Brasil, que o ministro Paulo Guedes, em entrevista na Central Globonews, confirmou estar estudando o imposto sobre transações digitais, muito mais amplo que a CPMF, demonizada pela população, como diz o presidente Bolsonaro.
A rapidez da mudança ocorrida na China, comparada à do Brasil, mostra bem porque estamos atrasados em quase tudo, num mundo que se transforma em velocidade que não é mais analógica. Até mesmo a CPMF tem que ser digital.
Para conseguir convencer o presidente de que esse é um imposto mais justo, pois pegará todos, especialmente os que hoje não pagam, trabalhando à margem do sistema tributário, PG, como o chama Bolsonaro, está munido de paciência e de uma determinação: não aumentar a carga tributária, ao contrário, rebaixa-la.
O caso do ex-secretário Marcos Cintra, que foi demitido depois de defender o mesmo imposto que agora ressuscitou pela própria equipe econômica de que fazia parte, é exemplar de como a falta de paciência atropela até as boas ideias.
Bolsonaro disse a Guedes que estava traumatizado com a CPMF, pois foi a primeira imagem que viu na televisão ao acordar da cirurgia reparatória que sofreu quando já estava na presidência. “Eu posso me esquecer da facada, mas não esqueço da CPMF”, comentou o presidente, referindo-se a uma entrevista de Marcos Cintra defendendo a CPMF, que não era a primeira, mas foi a última.
Bolsonaro só se acalmou ao telefone quando o ministro da Economia disse que demitira o secretário da Receita Federal. E hoje brinca com a equipe: “Quem falar em CPMF está demitido”. Paulo Guedes, conhecido por seu gênio explosivo, está, assim como o ministro Sérgio Moro, aprendendo a lidar com a política, a começar pelo próprio presidente: “Quem tem voto é o presidente, ministro não tem voto”, diz sempre, para compreender as razões políticas que levaram ao adiamento de algumas reformas econômicas, como a administrativa.
Bolsonaro mandou dar uma freada no ritmo reformista, diante do que aconteceu no Chile, que era, e continua sendo, um exemplo de sucesso para Paulo Guedes, que estudou na Universidade de Chicago, cujas teses econômicas foram adotadas pelo governo Pinochet.
Guedes também deu aulas no Chile na época da ditadura militar, e é muito criticado por isso. A capitalização da previdência, por exemplo, que era o carro-chefe de sua proposta econômica, acabou rejeitada pelo Congresso, e foi uma das principais causas das recentes manifestações de protesto da classe media chilena.
Mas Paulo Guedes continua convencido de que esse é um caminho virtuoso para a aposentadoria dos brasileiros, mesmo que necessite de alguns ajustes, como agora acontecera no Chile. Lembra que por 30 anos o Chile cresceu com essa política, e hoje continua bem à frente do Brasil, com uma renda per capita medida pela paridade de poder de compra de U$ 25 mil, enquanto no Brasil, pelo mesmo parâmetro, estamos em US$ 15 mil.
Paulo Guedes, porém, está aprendendo que o timing da politica é diferente do econômico, tanto que se recusa a aceitar que os investidores estrangeiros estão deixando a Bolsa devido a uma insegurança política e à posição do governo brasileiro sobre a Amazônia. Prefere acreditar que se trata de uma reação normal aos juros baixos, que será substituída pelos investidores não rentistas. E, embora considere melhor que as reformas sejam debatidas quase que concomitantemente, pelo Congresso e opinião pública, entende que há momento em que a percepção de Bolsonaro pode captar sinais políticos que a equipe econômica desconhece, ou não leva na devida consideração.
Bolsonaro lhe disse: “Já avançamos muito, vamos aguardar os acontecimentos lá de fora (referindo-se ao Chile)”. O otimismo do ministro da Economia neste final de ano transborda na fala, nos gestos largos, na visão quanto ao futuro: “Nós vamos dobrar o crescimento no próximo ano, e aumentar o ritmo a partir daí”, afirma com convicção. Anuncia programas sociais “fortes”, mas sem populismo.
Merval Pereira: Antes mais tarde do que nunca
A ideia é concluir obras paralisadas com expertise e força de trabalho de empresas que tenham firmado acordos de leniência
Com anos de atraso, as autoridades que cuidam dos órgãos de controle como CGU, AGU, TCU estão negociando com o Supremo Tribunal Federal (STF) uma legislação que permita sanear as empresas que fizerem acordos de leniência e, ao mesmo tempo, as obrigue a pagar por seus desvios, finalizando obras públicas paralisadas.
Essa legislação deveria ter sido proposta há muito tempo, ou pelo Legislativo ou pelo Executivo, como aconteceu com o Proer no governo Fernando Henrique Cardoso. Foi o ministério da Fazenda que coordenou a legislação que permitiu evitar uma crise do sistema bancário, transferindo o controle de bancos falidos como o Nacional e o Econômico, para outros saudáveis.
Os governos dos últimos cinco anos, período em que atua a Operação Lava-Jato, não pensaram numa legislação semelhante porque estavam envolvidos com as empresas punidas pela Lava-Jato, assim como o Legislativo.
O Tribunal de Contas da União (TCU) tem levado a debate uma proposta do ministro Bruno Dantas que permitiria o recebimento do prejuízo causado pela corrupção junto com a reativação da empresa. A ideia é concluir obras paralisadas relevantes - cerca de 14 mil pelo país - utilizando a força de trabalho e a expertise de empresas que tenham firmado acordos de leniência com o Estado e ainda estejam em dívida pelos danos causados por meio de atos de corrupção.
“Depois de perdoadas, essas empresas entram em recuperação judicial, sem que nem as multas dos acordos tenham sido quitadas, e na lista dos principais credores figuram exatamente as pessoas físicas responsáveis por colocá-las, e o país, nessa situação”, ressalta Bruno Dantas.
Conceitualmente, a proposta é que o Estado e a população, os principais prejudicados pela corrupção, possam obter alguma coisa desses acordos também. Bruno Dantas diz que ela “se assemelha a uma pena de trabalhos forçados, mas com a vantagem de ser consensual, visto que as empresas só firmam acordos de leniência se quiserem”.
Ele lembra que o país sofre uma grave crise fiscal, e não terá recursos para finalizar diversas obras relevantes. “Colocando as empreiteiras para pagar pela corrupção realizando as obras de infraestrutura que estão paralisadas, como estradas, saneamento, creches, escolas, poderíamos estar em situação bem melhor”.
De acordo com a Comissão Parlamentar de Obras Inacabadas da Câmara dos Deputados, seria necessário algo em torno de R$ 40 bilhões para que as obras paralisadas no país fossem concluídas. O ministro Bruno Dantas admite que há questões jurídicas a serem superadas, e dilemas ainda não resolvidos completamente, como a criação de mecanismo que evite que sejam prejudicadas as empresas que não se corromperam.
O Estado contrata por meio de licitações, e passar essas obras para um grupo de empresas lenientes “é medida que demandará alterações legislativas que criem exceções ao dever de licitar previsto constitucionalmente. Ou, no mínimo, uma decisão judicial reconhecendo a situação excepcionalíssima”.
A definição do preço a ser considerado em cada obra é um fator relevante, e o Tribunal de Contas da União (TCU), já desenvolveu metodologia para analisar o percentual de desconto médio das contratações feitas pelas Petrobras em ambiente minimamente competitivo.
“O resultado foi que, em ambiente de concorrência sadia, o preço contratado se reduz em aproximadamente 17% em relação ao valor obtido nas situações de conluio, quando o valor contratado não se descola da estimativa feita pela própria Administração”.
Será preciso estabelecer requisitos e exigências para que essas empresas – que firmaram acordos de leniência – possam se enquadrar nesse “programa”, bem como uma estrutura de incentivos para que elas entreguem as obras no prazo e com a qualidade exigida. “Não imagino, por exemplo, que a empresa possa ser beneficiada dessa forma e continuar sob a gestão das mesmas pessoas que foram responsáveis pelos ilícitos”, comenta Dantas, que apresentou ao presidente da Câmara Rodrigo Maia projeto de lei que permite o afastamento dos acionistas controladores, mediante alienação compulsória do controle da empresa corruptora.
Merval Pereira: Questão de conceito
O comentário de Toffoli serviu para demonstrar mais uma vez a discordância entre os ministros do Supremo
Nada mais esclarecedor para a polêmica lançada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, do que a entrevista ao Globo de Marcelo Odebrecht, ex-presidente da empreiteira. Enquanto Toffoli diz que a Lava-Jato, embora com resultados importantes no combate à corrupção, quebrou empresas brasileiras, Marcelo, o mais importante empresário condenado pela Lava-Jato, pensa diferente.
Perguntado se a Operação Lava-Jato pode ser culpada pela situação financeira da empreiteira, que enfrenta um processo de recuperação judicial, ele diz claramente: “É fácil dizer que o que quebrou a Odebrecht foi a Lava-Jato. Sim, a Lava-Jato foi o gatilho para nossa derrocada, mas a Odebrecht poderia ter saído dessa crise menor, mas mais bem preparada para um novo ciclo de crescimento sobre bases até mais sustentáveis. Só que nós não soubemos conduzir o processo da Lava-Jato. A Odebrecht quebrou por manipulações internas, não apenas pela Lava-Jato”.
Marcelo Odebrecht diz que a empresa era muito descentralizada, e por isso nem todos sabiam o que os outros diretores estavam fazendo. Quando começou a Lava-Jato, “ninguém sabia de fato o que o outro havia feito de errado, e muitos se omitiram. Havia ainda uma preocupação em não trazer para o âmbito do inquérito da Lava-Jato temas e pessoas que estavam fora da investigação de Curitiba, que, devemos lembrar, era inicialmente exclusiva sobre acontecimentos ligados à Petrobras. Não queríamos trazer para a Lava-Jato a nossa relação política, que não necessariamente envolvia toma lá, dá cá, mas que podia ser mal explorada, como, aliás, acabou sendo”.
As “manipulações internas” a que Marcelo Odebrecht se referiu na entrevista podem ser resumidas em uma frase dele: “A informação que me davam (na cadeia) é a de que a empresa não estava pronta para um acordo (com a Justiça). Depois vim a descobrir que a informação que levavam para a empresa é a de que quem não estava disposto a colaborar era eu”. O problema maior, na verdade, está ligado mais à inexistência de legislação que permitisse salvar as empresas e punir seus controladores. Os acordos de leniência na maioria das vezes tinham que ser feitos em três etapas, às vezes concomitantes: Advocacia-Geral da União (AGU); Controladoria-Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU).
Como a legislação sobre o assunto é ainda muito fluída, e nenhum governo se interessou em regulamentá-la, definindo a função de cada um dos órgãos federais, as exigências eram díspares, e muitas vezes um desses órgãos não aceitava o acordo feito com o outro. Ao mesmo tempo, ainda que feito o acordo, muitas estatais, especialmente a Petrobras, tinham receio de voltar a aceitar empreiteiras envolvidas na Lava-Jato nas suas licitações.
Marcelo Odebrecht trata as “relações políticas” da empreiteira de sua família como se girassem em torno de financiamentos eleitorais corriqueiros através do caixa 2, que “não necessariamente” envolviam “toma-lá-dá-cá” . Na verdade, o que a Odebrecht fez foi bem diferente disso, foi um passo além do caixa 2, que por sinal é crime, como nunca se cansa de salientar a miniostra do Supremo Carmem Lucia.
Ganharam licitações no exterior a custas do ex-presidente Lula, e aqui ganharam licitações fraudadas. Montaram uma operação que pudesse parecer legal, e lavaram de dinheiro através da Justiça Eleitoral, desvirtuando o sistema eleitoral brasileiro. Tomaram conta do governo através de propinas em obras no Brasil e no exterior. Depois de anos, ele tenta normalizar um escândalo nunca visto, a ponto de a Operação Lava-Jato ter recuperado já R$14 bilhões, dinheiro desviado dos cofres públicos.
O comentário de Toffoli serviu para demonstrar mais uma vez a discordância entre os ministros do Supremo, com o ministro Marco Aurélio Mello divergindo do seu presidente. Discordâncias seriam normais se não viessem a público, e se fossem restritas a interpretações constitucionais.
Com a politização da posição dos ministros, que dão suas opiniões cotidianamente, passam a ser divergências conceituais importantes. Disse o ministro Marco Aurélio: “De forma alguma [destrói empresas], ao contrário. Fortalece. E gera confiança. Gera segurança. Não deixa de ser um marco civilizatório. O ruim é quando se varre [a suspeita] para debaixo do tapete, aí é péssimo.”
Merval Pereira: Nadando pelado
Melhora na situação econômica é evidente, mas precisa chegar ao dia a dia do cidadão
Um dos símbolos do capitalismo, o investidor Warren Buffett tem uma frase definidora dos momentos de crise: “Você só descobre quem está nadando pelado quando a maré baixa”. Quando a crise econômica de 2008 explodiu, começou a aparecer muita gente pelada, e empresas e países até hoje vivem às voltas com esqueletos daquele momento.
As reformas econômicas necessárias para superar a crise, especialmente nos países em desenvolvimento, trazem consigo conflitos. Em diversos pontos do planeta surgiram, e ainda surgem, manifestações populares contra a alta dos preços, a falta de serviços públicos adequados, a globalização excludente, o capitalismo selvagem que aumenta a desigualdade, a pressão por produtividade num mundo cada vez mais tecnológico.
Na França vee-se protestos diários contra a reforma da Previdência, depois de quase um ano de manifestações dos "gilets jaunes" que refletem as dificuldades da classes médias rural e urbana em enfrentar reformas que aumentam impostos. As redes sociais ajudam a espalhar o descontentamento, desencadeando tanto a Primavera Árabe, um anseio de liberdade, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, ou a aprovação do Brexit na Inglaterra, manifestações de protesto dos que se sentem excluídos, ou temem sê-lo.
No Brasil, tivemos as manifestações de 2013 que desembocaram na eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República. Os fenômenos de massa quase sempre eclodem devido a uma faísca que encontra material combustível para provocar o incêndio. Na Tunísia em 2010, foi o achaque dos fiscais do governo contra um ambulante que tocou fogo literalmente nos protestos. No Brasil em 2013, foi o aumento dos ônibus, assim como no Chile agora, que desencadeou a crise. No Irã, no mês passado, manifestações contra o preço dos combustíveis provocaram repressão violenta do governo, com cerca de 300 mortes, segundo números divulgados ontem pela Anistia Internacional.
O governo Lula iniciou-se com uma continuidade da reforma da Previdência iniciada pelo de Fernando Henrique Cardoso. O desgaste que sofreu entre seus aliados sindicalistas fez com que deixasse de lado o aprofundamento das reformas. Hoje, o temor de que mudanças no serviço público por uma reforma administrativa provoquem reações de corporações organizadas, paralisou a ação governista.
Outros sinais de insatisfação estão sendo detectados, como ameaças de nova greve dos caminhoneiros, que Bolsonaro apoiou quando ainda era candidato. Desta vez, é a CUT (Central Única dos Trabalhadores), ligada ao PT, que tenta se aproveitar da insatisfação.
O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas atribuiu o fracasso da anunciada greve ao diálogo que diz existir entre a categoria e o governo. “Há um respeito muito grande nosso com caminhoneiros, e um respeito muito grande dos caminhoneiros com a gente. Conseguimos realmente estabelecer um diálogo, eles sabem que têm as portas abertas, e a cada dia a gente constrói uma solução.”
Parte dessa construção, o presidente Bolsonaro sentiu-se obrigado a reconhecer ontem que o preço dos combustíveis está alto no país, abordando indiretamente uma das reformas que estão no forno do governo, a tributária. “Na refinaria o preço está lá embaixo, ele cresce e fica alto por causa de quê? Impostos estaduais, ICMS, basicamente. E depois o monopólio que ainda existe na questão de distribuição, e nós estamos buscando quebrar esse monopólio para diminuir o preço. Só com a concorrência ele pode diminuir. Estamos fazendo o possível para baratear o preço do combustível”.
Os sinais da melhora da situação econômica estão evidentes, e já se refletem nos números do mercado financeiro, levando a que a nota do Brasil nas agências de risco seja mais bem avaliada. Os juros baixos como nunca ajudam a reduzir o déficit do governo, e a inflação continua sob controle, aumentando o crédito. É preciso que esses reflexos cheguem ao emprego, e ao dia a dia do cidadão.
Merval Pereira: A força (e as fraquezas) da democracia
O apoio à democracia também esbarra na busca de eficiência do sistema
As questões que estão em debate no Chile, no intervalo entre a suspensão das manifestações e a convocação de uma Constituinte, são as mesmas que afligem o mundo ocidental, em especial países em desenvolvimento, onde a insegurança pública mistura-se à insegurança econômica.
Da classe média precarizada e com receio do futuro aos jovens, setores fundamentais nas manifestações formidáveis que aconteceram nas grandes cidades chilenas, há uma gama enorme de anseios e angústias que são comuns no mundo atual.
O psicanalista Joel Birman diz que a angústia psíquica surge sempre que se entra num processo rápido de modernização do espaço social. Essas mudanças provocam um grande mal-estar, pela desestruturação de valores tradicionais e o surgimento de novos valores que levam a mudanças nos campos estético, erótico, alimentar, vestimentário, familiar.
No Chile, como já vimos em outros lugares na última década, as redes sociais tiveram papel fundamental na convocação das manifestações e na disseminação de ressentimentos, especialmente por parte da juventude. O fenômeno dos “nem-nem”, jovens que nem trabalham nem estudam, presente também entre nós, teve especial destaque nas manifestações, algumas violentas, que ocorreram no Chile.
A renda per capita dos chilenos, medida em paridade de poder de compra, chegou em 2018 a US$ 25 mil, na faixa dos países de maior nível de renda do Fundo Monetário Internacional (FMI). O Brasil está na faixa logo anterior, com US$ 15 mil. Os baixos salários, que em muitos casos fazem com que famílias não poupem para aposentadoria para manter o nível de vida de classe média, levam a ressentimentos e geram frustrações que não condizem com um país de alto desenvolvimento social pelo IDH, nem com o PIB per capita de país desenvolvido.
Por isso, a pesquisa do Latinobarômetro indica que, no Chile, 84% dos cidadãos se queixam do sistema democrático atual. Uma ampla pesquisa apresentada no Instituto Fernando Henrique Cardoso pelo francês Dominique Reynié, da Fundação para a Inovação Política (Fondapol), realizada em 42 países em sondagem internacional que ouviu 35.000 pessoas no estudo “Democracias sob Tensão”, demonstrou que os sentimentos disseminados entre os cidadãos defendem “mais ordem” mesmo com “menos liberdade”.
Mas, ao mesmo tempo, a maioria rejeita governos militares, e considera a democracia o melhor sistema político existente. Porém, em relação ao estado da democracia, 51% da média mundial acreditam que “a democracia funciona muito bem ou bem” em seu respectivo país.
O Brasil está bem abaixo dessa média, pois apenas 23% consideram que aqui a democracia funciona bem. Só estamos melhores que a Croácia. As maiores preocupações do brasileiro são hoje o desemprego, a insegurança, a desigualdade e a perda do poder de compra.
O apoio à democracia também esbarra na busca de eficiência do sistema, pois 30% dos entrevistados gostariam de ter à frente do governo “um homem forte, que não se preocupe com o parlamento nem com as eleições”.
Dominique Reynié considera preocupante esse índice, e destaca que, pela primeira vez o mundo democrático é confrontado com o fato de que os países que mais produzem riqueza hoje não são democráticos.
Mesmo que existam dados para preocupação, como constatar que regimes militares são apoiados por 21% dos cidadãos – o Brasil puxa essa média para cima, pois entre nós 45% preferem esta hipótese -, Dominique Reynié acha que existe espaço político para aperfeiçoar o sistema democrático, que ainda é o preferido no mundo.
O embaixador do Chile no Brasil, Fernando Schimidt, diz que em seu país, apesar do grau de violência alcançado nas manifestações – ou talvez até por isso mesmo -, houve condições de aproximar os partidos não radicais para um grande acordo nacional que desembocará na Constituinte, depois de uma consulta popular.