Merval Pereira

Merval Pereira: Asneiras

Bolsonaro diz que proibiu seu partido de usar o fundo eleitoral. Ele terá até 2022 para se desdizer, como faz com frequência

O presidente Jair Bolsonaro sancionou o fundo eleitoral de R$ 2 bilhões, mas continua fingindo para seus eleitores que era obrigado a sancionar, não poderia veta-lo, pois corria o risco de ser impedido por crime de responsabilidade. Não é verdade, mas ele quer sempre passar a ideia de que é um político “fora da caixa”.

Já proibiu que seu partido use essa verba. Como o partido provavelmente não estará pronto para concorrer às eleições municipais, ele pode prometer qualquer coisa, pois terá até 2022 para se desdizer, como faz com frequência.

Sabendo da impopularidade do Congresso, (na primeira pesquisa do ano pela XP Investimentos, a Câmara tem 83% de desaprovação e o Senado 79%) - Bolsonaro procura tirar proveito da fama de ser um político diferente dos demais, mesmo depois de ter passado mais de 30 anos nos subterrâneos do Congresso, membro desimportante do chamado “baixo clero”.

Mas Bolsonaro fala tanto que acaba dando bom dia a cavalo, como diz o ditado popular. Ontem, em evento do Aliança pelo Brasil, seu partido, voltou a fazer uma comparação que o agrada: para ele, a presidência da República é um casamento. Mas desta vez fez dois adendos, contrários entre si, mas reveladores de seu estado de espírito.

“Um casamento de quatro ou oito anos, quem sabe por mais tempo lá na frente. Tenho um compromisso com vocês. Jamais pensei que uma pessoa do nosso perfil chegaria à Presidência”. Muita gente nunca pensou também que uma pessoa com o perfil de Bolsonaro chegasse onde chegou, e a cada dia esse espanto só faz aumentar.

Que ele só pensa na reeleição desde o primeiro momento do seu mandato, mesmo tendo prometido aos seus eleitores que acabaria com ela, todo mundo já sabe. A novidade está na admissão de que o mandato presidencial pode passar a ter mais reeleições.

Para que isso aconteça, será preciso que uma emenda constitucional seja aprovada pelo Congresso, com maioria qualificada de 2/3 dos votos nas duas Casas, em duas votações. Uma tarefa e tanto, que já foi pensada para a permanência de Lula por mais quatro anos. A reação foi muito grande, e o ex-presidente acabou não aceitando a ideia.

Seus companheiros bolivarianos todos tentaram permanecer mais no poder. Rafael Correa, do Equador, convocou uma Assembleia Constituinte que aprovou a possibilidade de reeleição indefinida. Foi presidente por três mandatos, mas um referendo em 2018 revogou a emenda e impediu que se candidatasse pela quarta vezes.

Evo Morales, hoje exilado - assim como Correa - admitiu recentemente que seu grande erro foi ter tido o terceiro mandato, também permitido através de uma Constituinte. Na Venezuela de Chaves e Maduro, este último iniciou seu terceiro mandato em janeiro do ano passado.

Essa onda de reeleições na nossa região já foi criticada diversas vezes por Bolsonaro, que agora acena com a possibilidade de um terceiro mandato, mal iniciou o primeiro. O presidente também voltou a dizer que “sabia que não seria fácil” assumir a Presidência.

“Sabia do peso nas minhas costas em obtendo a eleição. Eu não sei como pessoas de bem possam ficar felizes com o cargo no Executivo.” A última frase é uma critica a todos os seu ministros e demais auxiliares. Os que querem ficar no governo não são pessoas de bem. Nem ele mesmo, Bolsonaro, que só fala em reeleição, e agora em terceiro mandato, desde que assumiu o governo.

Ou é um infeliz, como já se queixou diversas vezes, e ninguém pode estar feliz a seu lado no governo. Todos têm que carregar o fardo de fazer parte do governo, e não há lugar para alegrias. Mas, quem se acha um infeliz por ser presidente da República, por que quer um terceiro mandato, antes mesmo de terminar o primeiro?

Não faz sentido, mas nada faz muito sentido quando Bolsonaro resolve dizer asneiras.


Merval Pereira: Sai Jdanov, entra Goebbels

Responsabilidade primeira é de Bolsonaro, que extinguiu o Ministério da Cultura e escolheu uma pessoa desequilibrada e despreparada para a secretaria

Era só o que faltava para que a imagem do Brasil, que já é péssima aqui no exterior, ficasse ainda pior. A leniência com que o governo Bolsonaro trata a questão ambiental como um todo, e as queimadas da Amazônia em particular, já provocaram protestos e crises internacionais, e continuam em debate na Europa.

A defesa do meio ambiente é uma faceta da cultura que já fez parte do mesmo ministério aqui na França. Desde o início do governo Bolsonaro, a política cultural está em xeque. A partir do momento em que o Ministério da Cultura foi extinto, a designação de um secretário de Cultura subordinado primeiro ao Ministério da Cidadania, e hoje relegado ao do Turismo, deixou claro que o tema não era prioritário para o novo governo.

O que se queria era, nas palavras do presidente, desmontar o esquema esquerdista legado pelos governos petistas para colocar em seu lugar uma política cultural que fizesse “bem ao povo”. Um governo que acha que pode definir e dirigir o que seja cultura é um governo de índole autoritária.

Como em diversos casos, na Cultura o presidente Bolsonaro, que acusa o PT de ter aparelhado o Estado, quer não apenas se livrar “dessa gente”, mas aparelhá-lo com “sua gente”. A mesma disputa política deu-se durante os governos Lula. Logo de saída, em 2003, o cineasta Cacá Diegues classificou como tentativa de “dirigismo cultural” as regras de patrocínio estatal formuladas pela Secretaria de Comunicação, à época sob comando de Luiz Gushiken.

Exigiam contrapartidas sociais e adequação dos projetos a políticas de governo. Cacá as classificou de “política jdanovista”, em referência a Andrei Jdanov, que impôs o realismo socialista como estética do período stalinista.

Mais tarde, a tentativa de aprovação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), vista por setores da produção de cinema e da TV como autoritária e centralizadora, foi mais um embate no meio cultural brasileiro. Setores do governo queriam a “radicalização democrática das políticas culturais”, e diversos intelectuais, artistas e produtores culturais, como Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto e Zelito Viana, protestaram contra a centralização cultural pretendida.

O governo Bolsonaro começou defendendo “filtros” nos financiamentos públicos de filmes e peças de teatro, o que provocou a demissão do primeiro secretário de Cultura, Henrique Pires, em protesto contra a vedação de financiamentos para filmes de temática LGBT.

Na live de quinta-feira que fez ao lado do presidente Bolsonaro, Roberto Alvim disse que os filtros não representavam censura, mas uma “curadoria” do governo. A nossa sorte é que pessoas como ele se deslumbram com o poder que supõem ter.

O patético cenário que o já demitido secretário de Cultura montou para seu pronunciamento sobre a arte brasileira, que seria “heroica e nacional”, assim como definida por Goebbels, desmente que tenha sido uma coincidência retórica a repetição dos conceitos nazistas. Outras frases da mesma lavra e o fundo musical de Richard Wagner mostram bem sua intenção.

A responsabilidade primeira é do próprio Bolsonaro, que extinguiu o Ministério da Cultura e escolheu para responder pela secretaria uma pessoa desequilibrada e despreparada. Este foi o terceiro nome em um ano, e o único que se enquadrava no que Bolsonaro queria para o setor.

Não foi à toa que Bolsonaro disse que pela primeira vez tinha “um verdadeiro secretário da Cultura” horas antes de o vídeo fatídico de Alvim ser divulgado. A orientação para o setor cultural é dele, e a demissão de Roberto Alvim não terá nenhuma valia se os conceitos sobre arte continuarem os mesmos.


Merval Pereira: Talvez nunca

Juiz de garantias é uma boa medida, mas foi criado como uma espécie de vingança contra a Operação Lava-jato

Com a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) ministro Dias Toffoli de adiar em seis meses a implantação do sistema do juiz de garantias, que dividiria com o juiz de sentença os processos, não apenas verifica-se que não há condições de incluir essa nova figura sem uma ampla reorganização do sistema judicial brasileiro. Estamos novamente às voltas com uma disputa entre os membros do STF, que já tem seis ministros declaradamente a favor do novo sistema.

O ministro Luis Fux, que substitui em setembro Toffoli na presidência do STF, é contra essa mudança e poderia acatar as ações de inconstitucionalidade já a partir de domingo, quando assume interinamente a presidência no recesso do judiciário.

O novo prazo dado por Toffoli para a implantação do juiz de garantias, que considera “um avanço sem precedentes”, se esgota em julho, e se tiver que ser prorrogado mais uma vez - o que é bastante provável - corre o risco de não entrar em vigor tão cedo, ou nunca.

De saída, Toffoli limitou a atuação dos juizes de garantias. Eles não atuarão em casos dos tribunais superiores e nem nos tribunais regionais, de segunda instância. Também não serão parte de disputas nos tribunais eleitorais. E só participarão dos novos processos, a partir da sua implementação. Os processos em curso não terão essa nova figura jurídica.

Há também, a longo prazo, a possibilidade de mudar essa maioria no plenário, pois em novembro aposenta-se o decano do STF, ministro Celso de Mello, defensor intransigente do juiz de garantias. Um novo ministro, a ser indicado pelo presidente Bolsonaro, será a favor do juiz de garantias ou contra? O próprio presidente, daqui a seis meses, ou um ano, continuará a favor?

O ministro Dias Toffoli cedeu às pressões da realidade e deu a mão à palmatória ao adiar a criação do juiz de garantias. Pouquíssimas pessoas acreditavam ser possível implanta-lo imediatamente, e desde o primeiro momento a pressão foi muito forte.

Foi uma decisão correta do ministro Toffoli, que comprova que a criação dessa nova figura jurídica foi no mínimo apressada. O presidente Bolsonaro tinha indicações, dadas pelo ministro da Justiça Sergio Moro, de que a criação do juiz de garantias era impraticável na atual situação, e dependia de muitas mudanças, inclusive do Código de Processo Penal.

O mais correto teria sido lançar o debate, estudar os detalhes e depois implementar, se fosse viável e realmente necessário. Vai se passar pelo menos um ano para a medida sair do papel – se sair, pois, como vimos, em um ano muita coisa pode mudar.

Juiz de garantias é uma boa medida, mas foi criado como uma espécie de vingança contra a Operação Lava-jato, contra a relação do então juiz Moro com os procuradores de Curitiba, e esta não é uma maneira correta de se fazer mudanças desse naipe, com base na política. É difícil que dê certo.

Queda de braço
A greve contra a reforma da Previdência na França chega a seu 44º dia em pleno declínio, mas ainda com capacidade de provocar grande perturbação no cotidiano das pessoas.

Ontem, cerca de 28 mil manifestantes em Paris, número bastante abaixo do que já se registrou nos primeiros dias de greve, conseguiram mais uma vez provocar um imenso engarrafamento na cidade, com grandes avenidas fechadas ao tráfego.

Um aparato policial formidável foi mobilizado, mas não houve confrontos com os manifestantes, que obedeceram à ordem de esvaziar a Placê d’Italie às sete horas da noite.

A previsão é de que amanhã o transporte público comece a se normalizar, com metrô e trens circulando quase normalmente. O governo já fez algumas concessões, como retirar provisoriamente o aumento da idade mínima de 62 para 64 anos, e propor uma reunião com os sindicatos para discutir o financiamento das aposentadorias.

A reunião está prevista para abril, e o primeiro-ministro Edouard Phillipe quer uma contrapartida dos sindicatos: que eles se engajem no equilíbrio financeiro do Estado francês. Apenas os sindicatos mais radicalizados, chamados de intransigentes, querem continuar a greve, e aumenta o numero dos que querem sentar à mesa de negociação com o governo.

O presidente Macron já demonstra considerar que venceu essa queda de braço com os sindicatos, e está se dedicando a planos mais globais, como a questão do clima. Domingo, quando está programada mais uma manifestação, ele estará em Berlim numa conferencia de cúpula sobre a paz na Líbia.


Merval Pereira: Privilégios mantidos

Do jeito que a coisa vai, os parlamentares estarão blindados na primeira instância, com a possibilidade de recorrer a todos os recursos possíveis até o trânsito em julgado

A proibição de que juízes de primeira instância decretem medidas cautelares contra deputados e senadores é uma excrescência que está sendo planejada nos bastidores para completar uma tempestade perfeita na política brasileira que fará com que a impunidade volte a prevalecer.

Com o fim do foro privilegiado para todas as autoridades, com poucas exceções, os processos em curso serão automaticamente transferidos para a primeira instância. Mas os juízes que tratarão dos casos de parlamentares ficariam impossibilitados de apoiar as investigações, pois não teriam autoridade para determinar quebra de sigilos bancários ou telefônicos, decretar prisão preventiva e outras medidas cautelares que sejam pedidas pelo Ministério Público ou pela polícia judiciária.

Se entrar em vigor ainda por cima o juiz de garantias, aí a vida dos parlamentares envolvidos em atos criminosos ficará facilitada. O juiz da investigação, ou juiz penal, não poderá determinar busca e apreensão, por exemplo, para embasar a denúncia, e o juiz de instrução e julgamento receberá um processo sem todas as informações que poderiam apoiar uma decisão mais acurada.

Como não acompanhou a investigação, o juiz de condenação poderá entender que não há base nas acusações, pois as investigações necessárias foram restringidas pela nova emenda constitucional que se negocia nos desvãos da Câmara.

No momento, o foro de prerrogativa de função, mais conhecido como foro privilegiado, atinge cerca de 50 mil servidores públicos, mas apenas os deputados e senadores estão potencialmente atingidos por uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que definiu que eles só poderão ser julgados pelo Supremo caso o crime tenha sido cometido durante o mandato, e em decorrência dele.

Caso contrário, seus processos vão para a primeira instância. O fato de apenas os parlamentares terem sido atingidos pela decisão do STF provocou uma reação no Congresso, que aprovou o fim do foro privilegiado para todos, com exceção dos presidentes dos Três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e do vice-presidente da República.

A proposta do senador Álvaro Dias foi aprovada no Senado e enviada para a Câmara, que a engavetou. No momento, portanto, não há definição sobre o foro dos parlamentares, pois a medida não foi regulamentada e a definição sobre a competência do julgamento dependerá de decisão caso a caso do Supremo.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, está disposto a colocar em votação a proposta ainda este ano, que deverá receber esse adendo que está sendo costurado, para restringir ainda mais as investigações sobre os crimes comuns que deputados e senadores eventualmente estiverem envolvidos.

Já há, no entanto, resistência na própria Câmara, apesar do pretexto oficial de que juízes de primeira instância podem atuar com intenções políticas, a favor de grupos contrários ao parlamentar acusado. Como se a possibilidade de uma atuação parcial de um juiz acontecesse apenas com políticos, e não atingisse outras profissões igualmente expostas a disputas políticas ou pessoais.

O fato é que, do jeito que a coisa vai, os parlamentares estarão blindados na primeira instância, com a possibilidade de recorrer a todos os recursos possíveis até o trânsito em julgado, e não poderão ser investigados como o comum dos mortais, pois o juiz de primeira instância estará com as mãos atadas caso esse adendo à PEC do fim do foro privilegiado seja aprovado. Os deputados e senadores continuarão sendo privilegiados.

Correção
Na coluna de ontem escrevi que os anos 2000 foram governados durante 4 anos por Fernando Henrique Cardoso e 6 anos pelos petistas Lula e Dilma. Na verdade, os tucanos têm apenas 3 anos dessa década, que foi governada principalmente pelo PT, a partir de 2003, com a eleição de Lula.


Merval Pereira: A vertigem da política

O que está em jogo nessa escolha é menos a qualidade dos documentários, e mais o sentido político da premiação

É possível que “Democracia em Vertigem”, o documentário de Petra Costa incluído entre os finalistas do Oscar de melhor documentário, saia vencedor em fevereiro. O timing é perfeito para a premiação com cunho político inequívoco, uma crítica hollywoodiana ao governo de extrema-direita que está colocando em risco a Amazônia. E ainda acusou levianamente um dos ícones da indústria cinematográfica internacional, Leonardo di Caprio, a quem Petra, muito pragmaticamente, agradeceu em um twitter pelo muito que tem feito a favor da mesma Amazônia.

Seria o mesmo gesto político que premiou o também documentarista americano Michael Moore com o Oscar por “Tiros em Columbine” e a Palma de Ouro por “Fahrenheit 9/11”. O júri fez com o prêmio o que Moore faz com diversas seqüências de seu documentário: distorceu seu significado para atingir um objetivo político maior, declarar ao mundo naquela ocasião que estava contra Bush e a guerra do Iraque.

Petra Costa parece estar no momento certo também para ser premiada politicamente, na senda de Moore e seus documentários, como o dela, panfletários e enviesados. Assim como protestar contra Bush era necessário naquele momento, protestar contra Bolsonaro tornou-se uma causa internacional, devido ao tratamento desdenhoso com o meio-ambiente, e o menosprezo pelas minorias, inclusive indígenas, provavelmente por remorso.

O problema de “Democracia em Vertigem” é que ele concorre com o documentário “American Factory” (Fábrica americana, em tradução livre), produzido pela Higher Ground Productions, do casal Michelle e Barack Obama, em parceria com a Netflix, assim como o de Petra Costa.

Trata do fechamento de uma fábrica da General Motors na cidade de Dayton, em Ohio, e os efeitos na vida dos cidadãos com a chegada dos chineses que a compraram. A Academia vai ter que decidir contra quem protesta, se contra Bolsonaro, ou Trump, num ano eleitoral nos Estados Unidos.

Dar o prêmio para os Obama, ainda com um tema que trata dos desvalidos da sociedade, seria um recado importante de Hollywood para dentro do país, contra Trump. Dar o prêmio para “Democracia em Vertigem” seria um recado para o mundo, a favor da Amazônia, contra o nosso extremista de direita, não a favor de Lula ou Dilma, que alguns sem noção já sugerem estarem presentes na entrega dos prêmios em Los Angeles.

O documentário de Petra é tão tendencioso quanto os de Michael Moore, o que está em jogo nessa escolha é menos a qualidade dos documentários, e mais o sentido político da premiação.

A narrativa fantasiosa de que o documentário de Petra é neutro, dando as versões dos dois lados, foi abandonada pela esquerda. Tanto que os petistas saudaram a indicação do documentário brasileiro como uma vitória de sua versão do impeachment. E ela mesma diz que, com o documentário, quer buscar a reconciliação com os que não acreditam que o impeachment foi um golpe.

Há, porém, três outros documentários concorrendo: The Cave (A Caverna) e For Sama, ambos sobre a guerra na Síria, e Honeyland, passado na Macedonia. Não sei da qualidade deles, mas uma eventual premiação de qualquer dos três terá um significa político mais amplo.

No mesmo dia em que foi anunciado oficialmente que “Democracia em Vertigem” fora selecionado para o Oscar, foi divulgado um estudo do economista Roberto Macedo, da Universidade de São Paulo, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrando que a economia brasileira registrou na última década, de 2010 a 2019, governada pelo PT por mais da metade do período, a menor taxa de crescimento desde 1900.

Na verdadeira “década perdida”, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 1,39% ao ano, a pior para o crescimento do PIB entre as 12 analisadas por Roberto Macedo. Menos da metade que os 3,39% registrados na década anterior, iniciada em 2000, governada 4 anos pelo PSDB de Fernando Henrique Cardoso e 6 anos pelo PT de Lula.


Merval Pereira: Uma autocrítica necessária

Em e-book, ex-senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque diz que, ao sucumbir à corrupção, esquerda entregou à direita o discurso de honestidade que o povo desejava ver defendido

O ex-senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque sempre foi “um estranho no ninho” da política brasileira, sem se ligar a grupos sectários, nem ter medo de fazer críticas corporativas quando considerava necessário. Foi governador de Brasília e saiu do PT depois de ter sido demitido do ministério da Educação por telefone, foi para o PDT e hoje está no Cidadania, antigo PPS.

Sempre na esquerda, nunca cedeu ao populismo nem ao radicalismo político. Por isso, é capaz de fazer uma autocrítica tão necessária à esquerda brasileira. É o que faz no e-book “Por que falhamos”, desenvolvido a partir de um convite da Universidade de Oxford para que fizesse uma análise das razões que levaram Bolsonaro à presidência da República. A versão em inglês sairá em fevereiro com o título “How the left elected the right in Brazil” (“Como a esquerda elegeu a direita no Brasil”)

Para começar, ele dá razão ao ministro Paulo Guedes, colocando na mesma definição de democratas-progressistas os presidentes que governaram o país nos últimos 26 anos. “Apesar de partidos, ideologias e comportamentos diferentes, Itamar, Cardoso, Lula, Dilma e Temer vêm do mesmo grupo que lutou contra a ditadura e defendeu posições progressistas, em graus diferentes, na economia, na sociedade e nos costumes”.

Nesse período, que para ele poderia ter sido a “República dos Sonhos” e “acabou em pesadelo”, o Brasil “manteve a democracia, respeitou os direitos humanos, ampliou sua presença internacional, implantou programas de assistência com generosidade para a parcela mais pobre, conquistou e preservou a estabilidade monetária”.

Cristovam aponta os diversos erros cometidos, mas destaca o “erro mais visível para a opinião pública”: cair na corrupção, tanto no comportamento quanto nas prioridades. “Abandonamos fins revolucionários e adotamos meios corruptos, trocando prioridades básicas, como escolas por estádios, para atender ao gosto imediatista e eleitoral da sociedade e também para receber propinas nessas construções. Fizemos isso para atender a promiscuidade entre nossos governos e empreiteiras e permitir o roubo de dinheiro público para financiar campanhas eleitorais ou enriquecer pessoas, muitas delas de nosso bloco democrata-progressista, mas também corruptas”.

Cristovam Buarque vê como conseqüência a perda da bandeira da ética e da confiança da população. “Sobretudo porque antes representávamos e nos apresentávamos como a reserva moral na política e prometíamos ser diferentes do comportamento dos políticos corruptos anteriores”.

Essa situação, escreve Cristovam Buarque, desmoralizou os líderes, degradou o Estado, trouxe a recessão, o desemprego e a violência “que permitiram à direita fazer o discurso de honestidade que o povo deseja. Entregamos à direita o discurso da ética, do emprego, da segurança, do crescimento, do valor da moeda”.

Cristovam Buarque cita escritor espanhol Jorge Semprún - “Nossa geração não está preparada para se recuperar do fracasso da União Soviética” - para dizer que “a nossa, no Brasil, ainda menos para se recuperar do fracasso dos governos que se sucederam entre 1992 e 2018”.

Admite que começa a sofrer “constrangimentos por termos um governo, escolhido pelo voto, que nos leva ao isolamento no cenário internacional. Sinto constrangimento, como democrata-progressista, por não termos oferecido ao eleitor uma alternativa de governo confiável para levar nosso povo na direção do futuro desejado e compatível com a marcha dos tempos atuais”.

Cristovam admite que o eleitor “fez essa trágica escolha como recusa aos governos que defendi e dos quais participei. O que me leva a perguntar em que erramos, a ponto de empurrarmos o eleitor ao gesto desesperado de optar pelo atual governo para fugir de nós, mesmo que isso sacrifique nosso povo e o Brasil ao longo de anos”.

E conclui que “não estivemos à altura do desafio que a história e os eleitores nos ofereceram”.


Merval Pereira: Muro ameaçado

A separação por um muro invisível entre Igreja e Estado é peça fundamental de um Estado moderno e democrático

O propalado desejo do presidente Jair Bolsonaro de subsidiar a luz dos templos religiosos, atendendo a um pedido da bancada evangélica na Câmara, é mais um dado preocupante no envolvimento do governo com a religião avançando sobre o Estado laico.

As implicações econômicas da medida, que estão provocando atritos dentro do governo, não interessam neste momento, mas sim a crescente influência da religião nos rumos da política brasileira.

Quando anunciou que faria mudanças na área cultural “para preservar os valores cristãos”, Bolsonaro defendeu que o novo presidente da Ancine deveria ser um evangélico que conseguisse “recitar de cor 200 versículos bíblicos, que tivesse os joelhos machucados de tanto ajoelhar e que andasse com a Bíblia debaixo do braço”.

Sem falar que já anunciou que pretende nomear para o Supremo Tribunal Federal (STF) um ministro “terrivelmente evangélico”, provavelmente o ministro da Advocacia Geral da União, pastor presbiteriano André Luiz Mendonça.

O presidente Jair Bolsonaro já havia amenizado, a pedido dos evangélicos, as obrigações fiscais das igrejas. O cadastro do CNPJ passou a ser obrigatório apenas para matrizes, e o piso de arrecadação para que uma igreja seja obrigada a declarar suas movimentações financeiras diárias passou de R$1,2 milhão para R$ 4,8 milhões.

Quando se filiou ao PSC, com forte influência da Assembléia de Deus, Bolsonaro, mesmo sendo católico, foi batizado no Rio Jordão. No seu ministério há uma forte representação evangélica. Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é pastora pentecostal; Ministro da Casa Civil, o luterano Onyx Lorenzoni acaba de nomear um pastor da Igreja Sara Nossa Terra para seu chefe de gabinete; o Ministério do Turismo é chefiado por Marcelo Álvaro Antonio, da Igreja Maranata, e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, é batista.

No Rio de Janeiro, temos um exemplo radical da mistura entre Estado e religião, com o prefeito Marcelo Crivella, pastor sobrinho de Edir Macedo, fundador da Igreja Universal. Na campanha, ele se comprometeu a não misturar sua religião com seu governo, mas nunca fez diferenciação.

Ano passado, mandou recolher da Bienal do Livro uma história em quadrinhos que tinha um beijo entre dois homens, e neste réveillon incluiu nos espetáculos de fim de ano um grupo gospel, o que acabou gerando uma disputa jurídica com uma entidade que representa os agnósticos.

Diante da aproximação de Bolsonaro com os evangélicos, também a esquerda, sobretudo o PT, passou a tratar esse nicho eleitoral como prioritário. O PT, que nasceu das relações da esquerda católica com a Teologia da Libertação, passa agora, por orientação de Lula, a investir nos evangélicos, criando núcleos nas suas representações regionais para esse grupo.

O caso mais recente envolvendo religião, o da censura ao vídeo de Natal do grupo Porta dos Fundos, que mostra Jesus envolvido em uma relação gay, é exemplar desse ambiente exacerbado que o novo governo estimula. Há anos o mesmo grupo faz edições de Natal com sátiras a Jesus, e nunca foi possível obter a censura que agora se conseguiu por algumas horas, até que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli colocasse as coisas em seu devido lugar, revogando a decisão absurda.

Os protestos sempre existiram, e é perfeitamente normal que cidadãos ou instituições reajam às piadas que considerem insultuosas à sua religião com ações judiciais, mas, mesmo que peçam, num estado laico não poderiam ganhar uma causa de censura. A separação por um muro invisível entre Igreja e Estado é peça fundamental de um Estado moderno e democrático, que é defensor de que cada um possa exercer sua religião, mas garante que nenhuma delas prevalecerá por obra do governo.


Merval Pereira: Faltam recursos

Sabe-se agora que a implantação do juiz de garantias em todo o estado de São Paulo não foi adiante devido a restrições orçamentárias

Pelo visto, a implementação do juiz de garantias vai demorar muito, se é que algum dia sairá do papel. O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, acha que somente quando todo o sistema processual estiver digitalizado no país ele será viável.

O grande exemplo dado pelos defensores dessa nova figura é o Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo) de São Paulo, que trabalha com um sistema que tem similitudes com o do juiz de garantias, e funciona desde 2013.

Sabe-se agora, graças a documento revelado pelo site “O Antagonista”, que a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo enviou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em março de 2018, documento que derruba a tese do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, e de muitos outros ministros, de que o novo regime jurídico não implica aumento de gastos do Judiciário.

O documento mostra que o Dipo, na verdade, só existe na capital paulista, e não foi adiante por restrições orçamentárias. Ele deveria alcançar as 318 comarcas de São Paulo, divididas em 10 unidades, de acordo com volume de processos. Segundo o TJSP, o Dipo não se estendeu para fora da capital paulista porque exige “maior estrutura física e de recursos humanos”.

O documento diz que “não parece incluir-se entre as prioridades a instalação dos Departamentos Estaduais de Inquérito Policial”. Agora, então, como dar prioridade a sistema semelhante em todo o país, quando muitas comarcas têm apenas um juiz?

O presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Fernando Mendes, diz que os modelos do Dipo e do juiz de garantias são diferentes. O Dipo seria mais um instrumento gerencial. Juízes designados para acompanhar fases de inquérito não cuidam da ação, nem recebem denúncia. Eles também não ficam impedidos de atuar na ação penal, ao contrário do modelo do juiz de garantias aprovado.

A juíza coordenadora do Departamento, Patrícia Alvarez Cruz, diz que são modelos distintos, e que não há como implementar a lei com o número de juízes existentes no Brasil.

Ela admite que há semelhanças entre os dois sistemas, mas diz que as diferenças de ordem prática são importantes. A figura do juiz de garantias continua, portanto, no centro das discussões políticas e jurídicas. Para o Ministério Público Federal, a norma é inconstitucional por ferir direitos fundamentais, como amplo acesso ao Judiciário, ampla defesa e da eficiência da administração pública.

Um grupo de 100 juristas e advogados apresentou uma moção contra a constitucionalidade do juiz de garantias, da maneira como foi criado, pois, segundo eles: viola a Constituição por não ter sido proposto pelo Poder Judiciário; fere a separação entre os Poderes; viola o princípio constitucional do juiz natural (prerrogativa da jurisdição imparcial), na medida em que dispõe que dois juízes, ou mais, ficarão responsáveis por um mesmo processo em fases distintas; é inconstitucional porque foi criado sem prévia dotação orçamentária.

De outro lado, sete desembargadores federais e 43 juízes divulgaram um manifesto em favor do juiz de garantias. Eles defendem que essa nova figura no Judiciário garantirá a “imparcialidade do juiz de julgamento”, sendo uma “figura indispensável à densificação da estrutura acusatória de processo penal”.

Os juízes ainda responderam às críticas dizendo que os problemas podem ser resolvidos “com regras de distribuição dos feitos” e “recursos tecnológicos do processo eletrônico”.

Se tudo correr com rapidez, a implantação do juiz de garantias em todo o país deve levar entre seis meses e um ano. Já há sugestões de que seja instalado inicialmente apenas nas capitais, para ir se estendendo à medida que mais juízes forem sendo incorporados no interior. Essa alternativa deverá ser contestada nos tribunais superiores.


Merval Pereira: Diplomacia ideológica

As ideologias não podem impedir que se tenha uma politica externa que atenda aos interesses do país

Na sua ilógica atuação internacional, o governo brasileiro vem colhendo situações inusitadas, como a que fez com que o presidente Bolsonaro afirmasse que o Brasil continua interessado nos acordos comerciais com o Irã, momentos depois de ter emitido uma nota oficial em que apoiou o ataque dos Estados Unidos.

Ontem, no entanto, o Itamaraty adiou uma reunião, agendada antes dos ataques, que a embaixada do Brasil em Teerã teria para discutir questões culturais, alegadamente porque não teria sentido discutir acordos com o Irã tendo apoiado a ação dos americanos.

O que parecia ter sido um recuo do Brasil movido pelo bom-senso, em relação ao conflito EUA x Irã, quando Bolsonaro mandou todos ficarem em silêncio depois que o Irã chamou nosso embaixador para uma conversa, vê-se agora que foi um surto que já passou.

Embevecido com a imagem de Trump na televisão, dirigindo-se à nação respaldado por militares de alta patente, Bolsonaro passou a defender a posição brasileira inicial e a atacar o governo do ex-presidente Lula com afirmações equivocadas. Não precisava inventar críticas, elas são muitas nesse relacionamento com o Irã e com outras autocracias e ditaduras pelo mundo.

O acordo que Lula assinou com a Turquia e o Irã em 2010 não permitia que o urânio fosse enriquecido a 20%, como acusou Bolsonaro. Simplesmente não foi levado em conta na Europa e nem nos Estados Unidos porque não tinha credibilidade. Foi uma tentativa do governo Lula de dar-se uma importância que não tinha nas negociações geopolíticas internacionais.

Três anos depois, os membros do Conselho de Segurança da ONU que têm direito a veto (Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, Franca e China) e mais a Alemanha, após quatro dias de negociações em Genebra, chegaram a um acordo que foi considerado histórico.

O compromisso, que estava em vigor mesmo Trump tendo retirado os Estados Unidos dele, previa que o Irã parasse a produção de urânio enriquecido a mais de 5% e impedia a instalação de novas centrífugas. A lição é que não se pode tratar a política externa da maneira como vem sendo tratada pelo presidente Bolsonaro e pelo chanceler Ernesto Araújo, que reagem com o fígado, antes de ter estratégia e visão geopolítica e econômica.

Não se pode dizer o mesmo do governo de Lula, que tinha estratégia clara e megalômana, que levou o país a assumir posições contrárias às nossas tradições diplomáticas e acima de nossa capacidade de atuação.

No caso de Honduras, chegou a ser escandalosa a intromissão do governo brasileiro nos assuntos internos daquele país, a ponto de ter tentado, com a cumplicidade de Hugo Chávez, criar um fato consumado com o retorno do presidente deposto Manuel Zelaya, abrigando-o na embaixada brasileira.

Da mesma forma, o Brasil foi dos países mais ativos, ao lado da Venezuela de Chávez, na condenação das bases militares dos Estados Unidos na Colômbia, mas nunca fez um comentário sobre os acordos militares que o mesmo Chávez andou assinando com a Rússia e o Irã.

O Brasil tem definições de política externa na Constituição que o colocam contra qualquer tipo de terrorismo, e foi nisso que o chanceler se baseou para a nota apoiando o ataque americano no Irã. Bolsonaro usou o mesmo argumento ontem, para defender a primeira reação brasileira.

Mas também na Constituição há outros aspectos, como o da não intervenção em assuntos de outros países, o da tentativa de buscar sempre a paz, e este é o caminho que temos que tomar. O Brasil não tem que ser parte de uma crise no Oriente Médio, e não tem condições geopolíticas para ser intermediário de nenhum acordo internacional fora de sua região.

As ideologias não podem impedir que se tenha uma politica externa que atenda aos interesses do país. Na ditadura militar, o Brasil reatou laços de amizade com a China no governo Geisel, assim como, no mesmo governo, cujo chanceler era o embaixador Azeredo da Silveira, reconheceu a independência das colônias portuguesas na África.

Censura
A proibição de o especial de Natal do Porta dos Fundos ser exibido pela Netflix nada mais é do que censura. Com a decisão, o juiz respalda a tese da defesa do miliciano que colocou fogo na sede da produtora de que foi um protesto, não uma tentativa de homicídio.


Merval Pereira: Ainda o populismo

É interessante que pesquisa Datafolha mostre que Bolsonaro e Moro têm eleitores semelhantes, assim como Lula e Luciano Huck

É interessante esse recorte da recente pesquisa do Datafolha que mostra que Bolsonaro e Moro têm público eleitor muito semelhante, assim como Lula e Luciano Huck. No mínimo indica que tanto o presidente atual quanto o ex-presidente têm adversários em uma eventual corrida presidencial em 2022.

Num país tão desigual quanto o Brasil, Getulio Vargas sempre derrotará o Brigadeiro Eduardo Gomes, diz-se a propósito da eleição de 1945, quando o Brigadeiro – tão popular que deu até nome de doce – foi derrotado pelo ministro da Guerra de Getúlio, General Eurico Gaspar Dutra. Em 1950, o Brigadeiro Eduardo Gomes foi derrotado pelo próprio Getúlio.

Eduardo Gomes era popular, mas não era populista. De lá para cá, só tivemos governantes populistas eleitos diretamente para a presidência da República. Juscelino, Jânio, Collor, Lula, Dilma. Fernando Henrique não era popular nem populista, mas tornou-se o símbolo de um programa, o Plano Real, muito popular e em alguns momentos populista, mesmo que tecnicamente pudesse haver razões para fazer o Real valer mais que o dólar logo na largada do plano, e depois demorar a desvalorizá-lo no final do primeiro governo.

O ministro da Economia Paulo Guedes, antes de procurar Bolsonaro, foi a Luciano Huck, pois sabia que para derrotar o petismo era preciso um candidato que representasse a renovação política, mas que fosse popular, idealmente populista.

A propósito do populismo, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello fez há algum tempo uma palestra na Universidade de Coimbra, em Portugal, onde chamou a atenção para o movimento antissistema que surgia entre os populistas, “que tem como nota a oposição aos elementos da democracia”.

Falava da ascensão de populistas da direita radical, com discursos autoritários e nacionalistas, em várias partes do mundo. “Exacerbam a polarização com a diferenciação entre “nós” e “eles” e o ataque ao que seria uma elite política corrupta, que favorece países estrangeiros e imigrantes, traindo o próprio povo”.

Antes mesmo da eleição de Bolsonaro para a presidência da República, o ministro do STF já fazia previsões sobre sua atuação: “Aliás, temo muito pelo Brasil, uma vez que reações à corrupção têm pavimentado o caminho ao levante de populistas de extrema direita”.

Sob o ângulo democrático, o populismo tem apenas aparência de democracia, ponderou Marco Aurélio. “(O populismo) não pode ser apontado como ideologia política que favoreça a democracia liberal, na medida em que pressupõe o abandono da crença no Parlamento como o espaço democrático e pluralista por excelência”.

O ministro Marco Aurélio previa acontecimentos presentes: “Ao se opor à visão pluralista, o populismo também ataca as barreiras institucionais e a liberdade de imprensa. O passo ao autoritarismo pode ser curto, rápido e desastroso”.

Os dois candidatos potenciais políticos profissionais são Bolsonaro e Lula - dois populistas, um de direita, outro de esquerda. Moro e Huck tornaram-se populares através de suas atuações profissionais, que têm pinceladas de populismo. Huck é chamado de populista em sua atuação na televisão, e é o único que disputa popularidade com Lula no nordeste. Moro é acusado de populista no combate à corrupção com a Operação Lava-Jato, e por isso tira eleitores de Bolsonaro, que anda deixando de lado o combate à corrupção.

Mas o combate à corrupção tem também seu lado populista, e Moro é visto como inimigo figadal de Lula. Huck tem enfatizado muito o combate à desigualdade, aproveitando o contato que tem com os cidadãos mais necessitados. Aproveita sua popularidade para alavancar debates de temas mais ligados à social-democracia.

Os dois, como estão fora da política formal, têm mais credibilidade do que os políticos tradicionais. Se for confirmada a intenção do presidente Bolsonaro de entregar pessoalmente a Moro a ficha de inscrição para o partido que pretende criar, estará diante de uma armadilha.

Apesar de ter aceitado participar do ministério de Bolsonaro, um cargo político, Moro não é visto como tal, e faz questão de negar que seja político, embora cada vez mostre mais aptidão para os embates políticos.


Merval Pereira: Em extinção

É mais perigoso ser jornalista num governo que não dá muita importância para valores democráticos

O presidente Bolsonaro disse que nós, jornalistas, somos bichos em extinção. Essa declaração realmente me assustou, não por causa da sua agressividade, mas porque ser um bicho em extinção num governo que não dá a mínima para a preservação da natureza é mesmo muito perigoso.

Se formos analisar a metáfora do presidente, veremos que é mais perigoso ainda ser jornalista num governo que não dá muita importância para valores democráticos. Ataques aos órgãos de imprensa acontecem quando a democracia não é um regime respeitado por populistas que estão no poder.

Quando na oposição, esses mesmos políticos adoram ver seus adversários sob críticas, as mesmas que rejeitam quando governo. Todos os governos, populistas ou não, têm com a imprensa uma relação difícil, e é compreensível.

Como diz Bolsonaro, “parece que sou responsável por tudo”, reclamando de críticas ao seu governo. O pior é que é mesmo, e essa incompreensão de seu papel, e do papel da imprensa, é o que faz a relação de um presidente democrata ser diferente de um populista como ele.

Os democratas sabem a importância do jornalismo para a formação de uma sociedade plural, os populistas o consideram uma pedra nos seus caminhos, obstáculo a seus desejos de dominação. O filósofo alemão Jürgen Habermas classifica como missão do jornalismo “informar e formar”.

O jornalismo não é o quarto poder, como se costuma falar sobre a suposta força dos meios de comunicação. Só se torna um poder quando se respalda na opinião pública, quando reflete o espírito de seu tempo, e isso incomoda os autoritários.

Ser o cão de guarda da opinião pública, este é o papel do jornalismo, um dos conceitos basilares no estudo da comunicação. A imprensa nasceu para dar voz à sociedade civil para se contrapor à força do Estado absolutista, e legitimar suas reivindicações no campo político.

Para Rui Barbosa, a imprensa é a vista da nação. “Através dela, acompanha o que se passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe onde lhe alvejam ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que ameaça”.

O presidente americano Thomas Jefferson entendeu que a imprensa, tal como um cão de guarda, deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar.

No sistema democrático, a representação é fundamental, e sua legitimidade depende da boa informação, sendo o papel do jornalismo profissional permitir que os cidadãos exerçam seus direitos e tenham canais para expressar suas insatisfações.

No sistema de pesos e contrapesos que fundamenta a democracia, o jornalismo tem papel relevante, junto às demais instituições que formam o Estado. A função do jornalismo é buscar a verdade, não a verdade absoluta, inalcançável, mas a verdade imediata, o primeiro indício da verdade, que vai se desenrolando à medida que os fatos acontecem.

O caso do executivo brasileiro da indústria automobilística Carlos Ghosn, que fugiu da prisão domiciliar no Japão para Beirute, é exemplar dessa busca da verdade. Diversas versões já foram publicadas pelo mundo afora, e muitas outras serão, até que se chegue o mais próximo possível do que aconteceu.

Como sempre, Bolsonaro faz uma confusão danada de conceitos. O jornalismo está disseminado em diversas plataformas de informação com o avanço da tecnologia. Embora tenha perdido a hegemonia, o jornal impresso continua sendo um dos mais prestigiosos meios de comunicação.

Muito menos os jornalistas profissionais estão em extinção, indispensáveis em qualquer plataforma de comunicação, com o treinamento, as ferramentas e os códigos que definem a ética que busca a imparcialidade no relato dos fatos.


Merval Pereira: O xadrez da sucessão

Os problemas políticos criados pelo presidente só o ameaçarão no cenário eleitoral se a economia não der motivos para esperanças

Existem no momento três candidatos naturais à presidência da República: Bolsonaro, Lula e Sérgio Moro. Os dois últimos dependem de condições fora de seus controles para se viabilizarem. Bolsonaro depende de completar seu mandato, e manter os êxitos econômicos que se prenunciam. Caso consiga, é o provável vencedor em 2022. Desde que a reeleição foi implantada, todos os presidentes se reelegeram.

A perspectiva de dobrar o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), podendo chegar este ano a 2,5%, traz consigo um ambiente favorável no país: inflação abaixo de 4% ao ano, juros cadentes, em direção às taxas internacionais, criação de empregos.

Claro que o cenário internacional terá influência decisiva nessas previsões otimistas, mas, internamente, os problemas políticos que necessariamente acontecerão pela agressividade do presidente só se tornarão obstáculos intransponíveis se a economia não der motivos para esperanças. Desse ponto de vista, o presidente Bolsonaro é uma espécie de refém do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ou melhor, das reformas estruturais que estão em curso, inclusive na microeconomia.

Já a relação de poder entre Bolsonaro e Moro é de outra categoria. O presidente depende de Moro no momento, mas o combate à corrupção e ao crime organizado já não são tão prioritários para Bolsonaro, embora ele tenha que manter a percepção popular de que sejam.

Já há, porém, desconfiança sobre isso nas redes sociais, desde que o governo claramente se empenha em proteger o senador Flavio Bolsonaro, e o combate ao crime organizado esbarra em ligações perigosas e públicas com milicianos.

Moro mantém sua alta popularidade, e cada vez que é derrotado, como no caso do juiz de garantias, reafirma seu comprometimento com a luta contra a corrupção, passando subjetivamente a Bolsonaro o ônus da decisão. Moro fica com o bônus da coerência.

Não é à toa que Bolsonaro já anunciou que gostaria de ter Moro como vice-presidente na chapa da reeleição, o que não quer dizer que será. Diz apenas que Bolsonaro quer mantê-lo sob sua órbita, mesmo abrindo cada vez mais divergências com seu ministro da Justiça.

Paradoxalmente, as derrotas que Moro vem sofrendo o fortalecem junto à opinião pública. As criticas que vem recebendo refletem a insatisfação de parte dos bolsonaristas com a redução da ênfase do governo no combate à corrupção, e de apoiadores da Lava-Jato que já vêem como erro político de Moro estar no ministério de Bolsonaro.

Para neutralizar Moro, o presidente tem ainda mais uma cenoura, além de colocá-lo de vice-presidente. Pode voltar ao projeto inicial de indicá-lo para uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF), em setembro deste ano. Tanto indicação quanto aceitação dependem de circunstâncias políticas.

Bolsonaro precisa estar convencido de que é melhor se livrar de Moro sem brigar com ele. Moro deve se convencer de que é melhor ir para o STF do que permanecer na política, que pode levá-lo à presidência da República, mas não obrigatoriamente.

Uma candidatura de Moro depende também de circunstâncias políticas que vão se desenhando aos poucos. A saúde do presidente é uma condicionante, mas não a única. Obstáculos políticos podem inviabilizar uma candidatura à reeleição. Moro pode ser uma saída para uma falta eventual de popularidade de Bolsonaro.

Mas pode também ser uma pedra no sapato se, hipoteticamente, sair do governo para se apresentar como alternativa aos eleitores, assumindo uma posição crítica que ensaia.

Já o ex-presidente Lula depende de uma mudança improvável na Lei da Ficha Limpa para se candidatar, mesmo estando fora da cadeia pelo momento. Parece continuar sendo o principal ator da oposição brasileira, o que não quer dizer muita coisa na atual realidade, onde a esquerda está dividida e sem ação, ainda vivendo de um passado que alimentou esse presente.

A economia é a chave dessa impossibilidade de ação. A crise que causou três anos de recessão, com conseqüências dramáticas no cotidiano dos cidadãos, está na conta dos governos petistas. Foram dois governos de política liberal, que negam o petismo, o de Temer e o de Bolsonaro, que tiraram o país da situação em que se encontrava.