Merval Pereira
Merval Pereira: O fundo do poço
Os especialistas são unânimes em afirmar que nunca houve no Brasil uma educação de qualidade para todos
O vídeo em que o jornalista Alexandre Garcia sugere que uma troca de população entre Brasil e Japão faria com que os japoneses transformassem o Brasil em potência mundial, e os brasileiros estragariam o Japão, só viralizou porque o presidente Bolsonaro avalizou, compartilhando-o em suas redes sociais.
O melhor do Brasil é o brasileiro, ou é o brasileiro que prejudica o desenvolvimento do Brasil? A questão é outra, a meu ver: a diferença educacional dos países mais desenvolvidos. Os especialistas lembram que as escolas do Brasil são historicamente deficientes.
Em 1850, 90% da população dos EUA estava alfabetizada, e no Brasil, naquele ano, tínhamos 90% de analfabetos. O Chile, em 30 anos, aumentou a produtividade graças à educação, Malásia e a China vão na mesma direção. A Coréia do Sul deu ênfase à tecnologia, e hoje precisamos de mais de três brasileiros para produzir o que um coreano produz, quando em 1980 estávamos no mesmo patamar.
Na mesma época, eram precisos dez chineses para produzir o que um brasileiro produzia, já em 2010 bastava um chinês, e hoje um brasileiro já não produz o mesmo que um chinês. A correlação entre escolaridade e renda foi constatada em trabalhos científicos na década de 1950, quem estuda mais, ganha mais.
A diferença entre a produtividade de um empregado nos Estados Unidos e no Brasil - uma hora trabalhada por um brasileiro produz 1/5 que o de um americano - é explicada em boa parte pelo atraso da educação.
Os especialistas são unânimes em afirmar que nunca houve no Brasil uma educação de qualidade para todos. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Japão é o país com o maior nível de igualdade na educação, e apenas 9% da variação de desempenho entre os alunos é ocasionada por diferenças socioeconômicas.
O Japão tem um dos menores índices de evasão escolar: 96,7% dos jovens terminam o ensino médio, quando a média nos países analisados pela OCDE é de 76%, e no Brasil, é de 46%. A importância dada aos professores é uma das explicações para os bons resultados. Assim como a distribuição de professores para diversas áreas do país, criando equilíbrio no nível de ensino. Professores mais experientes são enviados a locais menos desenvolvidos.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Roberto Barroso considera que a educação é dos principais ítens de uma “verdadeira agenda patriótica”. Ele escreveu no último número da revista acadêmica Direitos Fundamentais e Justiça, da PUC/RS, o artigo “Educação Básica no Brasil: Do Atraso Prolongado à Conquista do Futuro”, com base em estudos e contatos com diversos especialistas em educação.
Como a universalização da Educação Básica no Brasil “se deu com grande atraso, um século depois dos EUA”, mesmo com o progresso da inclusão nas últimas décadas, os problemas ainda são dramáticos: a escolaridade média é de 7,8 anos, inferior à média do Mercosul (8,6 anos) e dos BRICS (8,8 anos).
Um dos “pontos nevrálgicos” é a pouca atratividade da carreira do magistério. “É preciso tratar o magistério como uma das profissões mais importantes do país, elevar a capacitação dos professores e aumentar a atratividade da carreira, com incentivos de naturezas diversas”, afirma Barroso.
A ampliação do tempo de permanência na escola de cinco para oito horas é providência reconhecida como decisiva para o avanço da Educação Básica, diz ele. “Os Estados da Federação que adotaram programas de escolas em tempo integral, como Espírito Santo e Pernambuco, destacaram-se nos resultados do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica)”.
Segundo Luis Roberto Barroso, documentos do Banco Mundial e pesquisadores reconhecidos internacionalmente atestam que o principal investimento a ser feito em Educação Básica é “a partir das primeiras semanas de vida da criança. Nessa fase, o cérebro é uma esponja que absorve todas as informações que lhe são transmitidas”.
Pesquisas indicam que as boas creches contribuem de maneira significativa para o desenvolvimento do potencial das crianças, assegurando que recebam nutrição adequada, afeto, respeito, valores e conhecimentos básicos.
Como se vê, não é preciso mudar o povo para transformar o Brasil em potência mundial. Depende de nós, como aliás disse Alexandre Garcia no final de sua palestra. Enquanto o ministro da Educação considerar que é a ideologia que atrapalha o país, não sairemos da situação em que estamos, o fundo do poço, como ele mesmo definiu.
Saio de férias, a coluna volta a ser publicada na quinta-feira dia 27.
Merval Pereira: O guarda da esquina
As palavras do líder são levadas a sério pelos liderados mais afoitos ou com menos bom senso
O caso é conhecido e já entrou para a história política brasileira. Em 13 de dezembro de 1968, o governo Costa e Silva decretou o Ato Institucional 5, e na reunião ministerial, o único voto contrário foi do vice-presidente Pedro Aleixo, que alegou, premonitoriamente: “o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país. O problema é o guarda da esquina”.
A censura a livros em Rondônia é o típico caso de o guarda da esquina sentir-se autorizado a cometer abusos de autoridade, não mais pelo AI-5, revogado ainda na ditadura militar com Geisel, mas pelo exemplo do ministro da Educação e do próprio presidente Jair Bolsonaro.
Não se pode dizer que há uma ordem direta deles para que atitudes desse tipo sejam tomadas, mas palavras do líder são levadas a sério pelos liderados mais afoitos ou com menos bom senso.
A mesma coisa aconteceu com o meio-ambiente. O ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas (INPE) Ricardo Galvão, em pleno debate sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, disse que não tinha dúvidas de que foi a leniência do governo Bolsonaro com o desmatamento que fez com que ele crescesse no primeiro ano de governo. As críticas de Bolsonaro às ONGs que defendem a Amazônia também teriam dado respaldo aos grileiros que atuam na região.
O “guarda” no momento na Prefeitura do Rio, bispo Crivella, já censurou histórias em quadrinhos com beijo gay, alegadamente para proteger nossas crianças. Quando ainda era próximo politicamente do governo Bolsonaro, o “guarda” governador de São Paulo João Dória mandou recolher uma cartilha com material escolar de ciências para alunos do 8º ano do Ensino Fundamental da rede estadual.
A cartilha tratava de conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual. Também trazia orientações sobre gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. As duas decisões foram revogadas pela Justiça.
O “guarda” no governo de Rondônia, Coronel Marcos Rocha (PSL), ex-chefe do Centro de Inteligência da PM do Estado e ex-secretário de Educação de Porto Velho, mandou recolher dezenas de livros das bibliotecas das escolas públicas, entre eles clássicos da literatura brasileira como “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, “Os Sertões” de Euclydes da Cunha, e “Macunaíma”, de Mario de Andrade.
Também estava querendo proteger nossas crianças e adolescentes de “conteúdos inadequados”. Alegadamente, a decisão foi tomada por um técnico sem a autorização do secretário de Educação, Suamy Lacerda de Abreu. O memorando incluía 43 livros de autores brasileiros e estrangeiros, que deveriam ser devolvidos pelas escolas ao Núcleo do Livro Didático da secretaria estadual da Educação.
A medida, como não poderia deixar de ser, provocou protestos de instituições regionais, como a OAB de Rondônia, e nacionais, como a Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem como missão a defesa da cultura nacional. Eis a nota:
“A Academia Brasileira de Letras vem manifestar publicamente seu repúdio à censura que atinge, uma vez mais, a literatura e as artes. Trata-se de gesto deplorável, que desrespeita a Constituição de 1988, ignora a autonomia da obra de arte e a liberdade de expressão.
A ABL não admite o ódio à cultura, o preconceito, o autoritarismo e a autossuficiência que embasam a censura. É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um índice de livros proibidos. Esse descenso cultural traduz não apenas um anacronismo primário, mas um sintoma de não pequena gravidade, diante da qual não faltará a ação consciente da cidadania e das autoridades constituídas”.
São tantas as críticas do governo, e do próprio Bolsonaro, à cultura, são tantas as referências ao que denominam esquerdização na literatura, no cinema, no teatro, tantas denúncias de supostas imoralidades, que os guardas da esquina estão se sentindo empoderados pelos novos tempos.
Merval Pereira: Congresso dominante
Não há nada de mais em o Congresso querer participar da escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal
Uma febre revisionista toma conta do Congresso, que vem ocupando o espaço decisório deixado vazio pelo Executivo, comandado por um Bolsonaro completamente sem apetite para as coisas grandes, e voltado diuturnamente para as pequenezas.
Assim como a atuação do Congresso estabelece um parlamentarismo branco, também há em andamento uma Constituinte não declarada. Depois de anos de inação, dependendo do Executivo para tomar decisões, o Congresso parece estar gostando de assumir o protagonismo, o que tem sido bom para o país na maior parte das vezes.
Mas quando o Congresso resolve mudar a Constituição com objetivo político de se auto-blindar, mesmo as decisões corretas em si acabam sendo problemáticas. É o caso do juiz de garantias, figura existente em diversos países que poderia ser um avanço democrático se não fosse tirado do bolso do colete para travar o combate à corrupção pelos juízes de primeira instância, que têm tido papel preponderante na Operação Lava-Jato.
A prisão em segunda instância, que havia sido um avanço do Judiciário em direção ao fim da impunidade, foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e agora volta à discussão no Congresso. Uma proposta de emenda constitucional (PEC) está em discussão, sem que haja certeza nem de sua aprovação, nem se será considerada constitucional pelo STF.
Duas outras mudanças estão em gestação no Congresso, uma com a intenção de barrar a entrada na política de juizes e procuradores, outra para controlar a nomeação de juízes para o Supremo, hoje dependente unicamente do Presidente da República.
A quarentena de quatro ou de oito anos para um magistrado disputar cargo eleitoral tem endereço certo: impedir que o hoje ministro Sérgio Moro, indicado eventualmente para o STF por Bolsonaro para livrar-se dele como candidato à presidência da República, seja impedido de pensar na hipótese.
Assim, não apenas Bolsonaro, mas os políticos em geral, travariam uma possível carreira parlamentar de Moro, ou mesmo sua chegada à presidência da República. A outra PEC pretende tirar do presidente da República a exclusividade da escolha dos membros do Supremo, dando ao Congresso um poder maior.
A indicação seria feita a partir de uma lista tríplice, com nomes indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Procuradoria-Geral da República e pelo próprio STF. Há outras propostas que incluem o Congresso entre os que indicariam os candidatos ao presidente.
Outra PEC quer fixar um mandato de 10 anos para os ministros, mantendo a idade de 75 para a expulsória. Há bons motivos para essas mudanças, não apenas dar aos parlamentares um maior poder de barganha e uma blindagem política.
O Brasil segue o modelo dos Estados Unidos para a escolha de seus ministros da mais alta Corte, com diferenças a nosso favor a meu ver. Nos Estados Unidos, o cargo é vitalício mesmo, não havendo prazo fatal para aposentadoria. Há casos em que o juiz que já não tem condições de atuar é constrangido por seus pares a renunciar, numa ação delicada e cheia de sutilezas. Lá o presidente da República escolhe o presidente da Suprema Corte, cargo que também é vitalício.
Alguns países têm mandatos: Alemanha, 12 anos, Portugal, 10 anos, Espanha 9 anos. A maior parte tem o Congresso como avalizador da escolha, não apenas por uma sabatina. Participam também da indicação. Na Alemanha, metade dos 16 integrantes é escolhida pelo Bundestag, que é o parlamento, e outra pelo Bundesrat, órgão constitucional.
Na Espanha, o Congresso escolhe quatro dos doze membros do Tribunal Constitucional, o Senado outros quatro, dois são escolhidos pelo Judiciário e dois pelo governo. e dois pelo judiciário. Na Franca, além dos ex-presidentes que são membros vitalícios, três são indicados pelo Parlamento, três pelo presidente da Assembléia Nacional, três pelo presidente do Senado.
Na Corte Constitucional da Itália, cinco dos 15 membros são indicados pelo Parlamento, outros 5 pelo presidente do país, e o outro terço pelas cortes superiores. Em Portugal, dez dos membros do Tribunal Constitucional são eleitos pela Assembléia da República, e três pelo próprio Tribunal.
Como se vê, não há nada de mais em o Congresso querer participar da escolha dos membros do STF, embora o Senado, no modelo atual, já pudesse fazer uma sabatina mais rigorosa para sacramentar a escolha do presidente da República.
Merval Pereira: De olho comprido
Agenda política e judicial será engolida pela campanha municipal, que vai dar indicações sobre a presidencial
A mais longa campanha presidencial já havida no país entra em seu segundo ano em plena efervescência. Sim, porque o próprio presidente Bolsonaro inaugurou uma nova maneira de lutar pela reeleição, assim como já havia, com sucesso, criado uma de vencer eleição presidencial sem partido, sem dinheiro, sem base política.
Semelhante a ele só Fernando Collor em 1989, com uma diferença gritante: Collor saiu de governador de Alagoas para a campanha presidencial, também sem partido, e base política, mas com dinheiro e conexões sociais nos grandes grupos empresariais dos principais centros urbano, como Rio e São Paulo.
Sobretudo com uma exposição pública pelos factoides que criou como caçador de marajás e adversário dos usineiros, representantes regionais dos privilegiados Brasil afora. A farsa que se descobriu depois é da mesma categoria da que vai sendo descoberta em relação a Bolsonaro.
Este teve a seu favor a exposição nos novos meios digitais, entendeu a nova fase das campanhas assim como Collor foi o primeiro a fazer do programa eleitoral gratuito um espaço de criações tecnológicas inéditas naquele tipo de mídia.
Os dois governaram sem apoio congressual, mas Collor levou mais tempo a entender que não podia prescindir dele. Quando entendeu, já era tarde demais. Dilma cometeu o mesmo erro. Bolsonaro está sendo mais sagaz que seus antecessores que se deram mal, mas tem mais sorte também.
Este Congresso é o mais reformista já eleito nos últimos anos, e tem em Rodrigo Maia um presidente versado em economia, o que lhe permite entender a importância das reformas e dá condições de discutir com a equipe de Paulo Guedes sobre o melhor encaminhamento das discussões.
Pelo menos enquanto não organiza seu futuro partido, o presidente Bolsonaro vai deixando que Maia e talvez Davi Alcolumbre, presidente do Senado, sejam protagonistas das ações políticas. Até quando, não se sabe. Talvez o enfrentamento para valer aconteça se Bolsonaro conseguir formar uma base de apoio com base no Aliança pelo Brasil que lhe dê controle de uma maioria relativa maioria da Câmara. Quem sabe até mesmo elegendo um presidente de sua total confiança, na sucessão de Maia.
O Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) voltaram das férias com as pautas para o primeiro semestre praticamente definidas. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que é quem determina o ritmo das discussões, estipulou que a reforma tributária é a prioridade, e garantiu a sua aprovação ainda no primeiro semestre, o que será um fato político muito bom com efeito relevante na economia.
As outras reformas devem ficar para o próximo ano, pois o segundo semestre será de campanha para as eleições municipais. No STF, uma das discussões importantes será a do juiz de garantias. O ministro Fux, relator da matéria, é contra, mas é minoria, e deve apresentar seu voto logo para ser colocado em discussão no plenário. Outro assunto importante será a votação sobre se a condenação por júri popular precisa do trânsito em julgado para ser cumprida.
A maioria parece já estar formada a favor do cumprimento imediato da pena, diante da definição constitucional de que as decisões do júri são soberanas.Tudo indica que os recursos continuarão sendo possíveis, mas com o condenado na cadeia, como aconteceria se à prisão em segunda instância ainda fosse permitida.
Essa agenda politica e judicial dominará os debates no primeiro semestre, e depois será engolida pela campanha municipal que dará indicações sobre a presidencial que virá em seguida. Bolsonaro, evitando expor-se, não está muito preocupado em criar seu novo partido a ponto de disputar as eleições municipais. Parece convencido de que depois poderá arrebanhar os vencedores nos municípios sem se arriscar a perder.
O apresentador de televisão e ativista social Luciano Huck prossegue na tarefa de formar novos líderes políticos para atuarem nos diversos entes federativos. Assim como na eleição para deputado federal e estadual em 2018 seu grupo RenovarBR elegeu 17 candidatos, espalhados por 22 partidos, desta vez se infiltrará nos municípios brasileiros, preparando uma base para a disputa presidencial, provavelmente pelo Cidadania.
Já outro potencial candidato, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, não se mete em política partidária, e negou que tenha intenção de assinar ficha de inscrição no partido de Bolsonaro. Enquanto isso, a Oposição patina.
Merval Pereira: Melhor para Bolsonaro
Regina já se disse respeitadora dos que pensam diferente dela, se define como uma conservadora, mas não destrata os de esquerda
Regina Duarte tem todas as condições para assumir a Secretaria de Cultura, e integrará a parte tecnicamente competente do governo Bolsonaro. Ela conhece bem o ambiente cultural brasileiro, é séria e sensata, e acredito que não seja adepta dessa política de bateu, levou, e de ficar falando mal das pessoas pelas redes sociais.
Até agora, foi a melhor indicação do governo Bolsonaro para a Cultura. Ela enfrentará muitas dificuldades, mas acredito que terá condições de fazer um acordo na área cultural, pois uma parte influente já se convenceu de que ajudar Regina Duarte a fazer um trabalho de apaziguamento é mais benéfico para a classe como um todo do que permanecer nessa guerra ideológica que só leva ao isolamento.
O problema maior será mesmo o próprio presidente Bolsonaro e seu entorno, especialmente os filhos, que não têm uma visão do que seja cultura, e atiçam suas milícias digitais para derrubar qualquer ministro que se coloque acima dessa radicalização patética que rege o governo Bolsonaro.
O exemplo do general Santos Cruz é autoexplicativo. Um militar sensato, sensível, que entendeu a grandeza da Presidência da República, amigo do presidente há mais de 40 anos, foi abatido por intrigas palacianas de quinta categoria, e até mesmo mensagens falsas de WhatsApp foram montadas para inviabilizar sua presença no Palácio do Planalto, onde era das poucas vozes sensatas a aconselhar o presidente da República.
Na verdade, Bolsonaro emprenha-se pelo ouvido, como se diz popularmente. Qualquer intriga tem boa acolhida no perfil paranoico do presidente Bolsonaro, que acha que está sendo sabotado por todos à sua volta, com exceção dos filhos, quando, na verdade, são os filhos que o boicotam involuntariamente.
O governo começou defendendo “filtros” nos financiamentos públicos de filmes e peças de teatro, o que provocou a demissão do primeiro secretário de Cultura, Henrique Pires, em protesto contra a vedação de financiamentos para filmes de temática LGBT.
Regina Duarte já se manifestou a favor de financiamentos de filmes como “Bruna Surfistinha”, que o presidente Bolsonaro já disse que não deveria ter sido financiado com dinheiro público. Como se coubesse ao governo definir que tipo de filme o cidadão deve assistir.
Usar o dinheiro público para financiar filmes de cunho religioso, ou que enalteçam os valores da família cristã, é que não é papel de um governo laico e republicano. Regina Duarte já deu entrevistas em que revelou, mesmo antes de ser nomeada, e também muito antes de essa hipótese ser aventada, que considerava, por exemplo, que a Lei Rouanet não deveria ser utilizada por pessoas famosas, que encontram patrocínios com facilidade.
Ela, no entanto, já fez uso da tal lei de incentivo à cultura, e tem uma prestação de contas em disputa na Secretaria de Cultura. Regina também já criticou essa polarização política que domina a área cultural, reflexo da disputa entre esquerda e direita também aqui.
Regina Duarte já se disse respeitadora dos que pensam diferente dela, se define como uma conservadora, mas não destrata os de esquerda. Mas recentemente retuitou um vídeo de crítica ao que chamam de “marxismo cultural”, dando apoio integral.
Tem sido atacada com leviandade e grosserias por um tipo de esquerdista que se considera dono da verdade, que não admite que ela tenha aceitado o cargo. Aceitar ser parte do governo Bolsonaro seria uma prova de que ela é uma fascista, o que por si só é uma bobagem histórica.
Ser de direita não é ser fascista. Querer participar de um governo ideologicamente afinado com seu pensamento é um sinal de dedicação à cultura, ainda mais Regina Duarte, que não precisa mais de prestígio popular. Ao contrário, a incorporação dela ao seu ministério ajuda muito mais a Bolsonaro.
Espanta-me a alegria com que Regina Duarte está assumindo cargo tão espinhoso, parece que ela não tem ideia do que Bolsonaro pensa sobre a área que vai comandar. É uma fria assumir a Cultura, mas Regina Duarte tem todas as qualificações. Inclusive tamanha popularidade que pode constranger eventuais arroubos autoritários na área.
Merval Pereira: Governar com o estômago
Gabinete Civil da Presidência da República sempre teve papel de destaque nos diversos governos brasileiros
A confusão provocada pela demissão de um assessor do Gabinete Civil da Presidência da República que utilizou um avião da FAB inteirinho só para viajar de Davos, na Suíça, para a Índia, revelou a um só tempo a gestão deficiente do governo e a interferência não profissional dos filhos do presidente Bolsonaro em assuntos do governo.
O Gabinete Civil da Presidência da República sempre teve papel de destaque nos diversos governos brasileiros, inclusive durante a ditadura militar. Em vários casos teve um papel político fundamental; em outros, transformou-se em centro da gestão do governo.
Na maioria deles, porém, apesar de críticas que possam merecer, os ocupantes foram personalidades de destaque, políticos de renome, executivos de qualidade. Isso só não aconteceu em alguns momentos, ou no governo Collor, que colocou no lugar um diplomata seu cunhado, e agora com Bolsonaro, que tem, por enquanto, Onyx Lorenzoni.
Getúlio Vargas teve Lourival Fontes, o homem que na ditadura do Estado Novo havia criado o temível Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Juscelino teve intelectuais como Álvaro Lins, Victor Nunes Leal; João Goulart levou para o Gabinete Civil gente do nível de Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Darcy Ribeiro.
No regime militar, Castello Branco teve o político e escritor baiano Luís Viana Filho; Médici, o jurista Leitão de Abreu, Geisel teve Golbery do Couto e Silva, Figueiredo reconvocou Leitão de Abreu para substituir Golbery, que saiu no início do governo.
Na redemocratização, Sarney teve José Hugo Castelo Branco, Marco Maciel, que viria a ser vice de Fernando Henrique, e o historiador Ronaldo Costa Couto. Itamar teve Henrique Hargreaves. Fernando Henrique teve Clóvis Carvalho e Pedro Parente.
Lula teve José Dirceu. Dilma teve Antonio Palocci, e tentou colocar Lula no posto-chave do governo, para resistir ao impeachment que se avizinhava. Temer teve Eliseu Padilha. A escolha de Onyx Lorenzoni já foi uma indicação de que a meritocracia no governo Bolsonaro na grande parte das vezes não tem nada a ver com as qualidades para exercer um cargo, mas com a recompensa pela lealdade demonstrada.
Estão aí, entre outros, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que também usou um avião da FAB indevidamente, o da Educação, Abraham Weintraub, que comete erros em cima de erros e fica tudo como está, ou o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, cujo laranjal continua intocado, e ainda ganhou de sobra a Secretaria de Cultura.
O deputado Onyx Lorenzoni, do DEM, nunca foi destacado na atuação do Congresso, e ganhou uma notoriedade além de sua capacidade política com a nomeação para o Gabinete Civil. Logo a realidade se impôs, e ele foi perdendo as funções, primeiro a de coordenar as relações do Palácio do Planalto com o Congresso, tarefa que passou para a Secretaria de Governo. A Secretaria- Geral passou a ter a coordenação dos ministérios.
Para compensar Onyx, dos primeiros políticos a apoiá-lo, Bolsonaro colocou em sua pasta a coordenação do Programa de Parceria de Investimentos (PPI), que ontem foi retirada, indo para onde sempre deveria ter estado, o Ministério da Economia. Paulo Guedes passa a ter o controle completo das privatizações, o que deve dar mais organização ao setor.
O assessor Vicente Santini acabou demitido abruptamente, mesmo sabendo-se que vários outros ministros usaram o mesmo artifício indevidamente. Santini, no entanto, é amigo dos filhos de Bolsonaro, que o convenceram a recolocá-lo em outro cargo no governo.
A nomeação chegou a ser publicada no Diário Oficial, e foi desfeita poucas horas depois, quando Bolsonaro foi convencido pela repercussão negativa, e pela ação dos ministros Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, que o aconselharam a voltar atrás.
O presidente tem o defeito de decidir mais com o estômago do que com a cabeça, o que faz com que se sobressaiam seus recuos, que, em vez de serem uma qualidade, são consequências de decisões equivocadas.
Merval Pereira: Gesto de paz
Sergio Moro dizer que não se candidatará de jeito nenhum não dissolve a desconfiança de Bolsonaro
Como num jogo de gato e rato, o presidente Bolsonaro e o ministro Sérgio Moro vivem se indispondo. No momento, um confronto que chegou ao ponto da ruptura dias atrás, transmutou-se em silencioso duelo, onde cada palavra tem sentido mais amplo, sempre mirando a eleição de 2022 para a presidência da República.
Acredito que Moro não entrou para o ministério com a intenção de tornar-se político e concorrer a um cargo público, muito menos à presidência. Mas, para sobreviver dentro do governo, e enfrentando reações adversas no Congresso, teve que aprender.
A popularidade que tem desde os primórdios da operação Lava-Jato se iniciou em consequência de um trabalho de combate à corrupção que veio ao encontro do anseio da sociedade. Para manter sua capacidade de atuação, usou a popularidade como um escudo contra as críticas e ataques políticos, e o apoio da população como propulsor de sua atuação.
O auge da crise que o envolveu foi a divulgação pelo Intercept, e outros jornais e revistas, de conversas privadas entre ele e o coordenador dos procuradores de Curitiba, que pretendia manchar sua imagem de homem probo, como é visto pela população.
Embora muitos juristas críticos e oposicionistas, até mesmo gente que tinha uma boa imagem de Moro, detectassem na relação entre as partes transgressões jurídicas que poderiam ter prejudicado os réus, essa percepção esteve longe de ser unânime, pelo contrário.
Muitos outros juristas e políticos não viram nada de ilegal nos diálogos entre Moro e os procuradores. Além do mais, não houve nada nas conversas que revelasse uma manobra para condenar inocentes, ou provas plantadas contra este ou aquele réu.
Não houve inocentes condenados, como lembra Moro com insistência. A confiança em Moro continuou inalterada, sendo o ministro com maior índice de popularidade entre todos do governo, inclusive o próprio presidente da República.
Além de a maioria dos cidadãos não ter encontrado nada de ilegal na atuação de Moro, há uma razão cultural mais profunda. Como constatou uma pesquisa do Instituto da Democracia divulgada pelo jornal Valor Econômico, 69,9% dos brasileiros acham que “condenar políticos corruptos é mais importante que preservar o direito de defesa do acusado”.
Pode ser um sentimento desvirtuado, provocado pela ânsia da maioria da população de ver um combate efetivo contra a corrupção e o crime organizado, que apavora o cidadão comum. Ou então a percepção de que, como diz o ministro do STF Luis Roberto Barroso, há leis que são feitas para não funcionar, existem apenas para manter a situação como está, protegendo os poderosos.
Moro transformou-se em símbolo desse combate, assim como o ministro aposentado Joaquim Barbosa por sua atuação na época do mensalão do PT. Não é à toa que até hoje, anos depois que se aposentou prematuramente do Supremo, Barbosa ainda é procurado por partidos políticos para disputar a presidência da República.
Essa popularidade, e os resultados obtidos no combate à criminalidade, uma continuidade da Lava-Jato na visão popular, criaram a possibilidade de Moro ser candidato à presidência da República.
A crise recente, provocada pelo anúncio de Bolsonaro de que estava sendo estudada a divisão do ministério de Moro, que perderia a parte de Segurança Pública, foi contornada diante da repercussão negativa.
Bolsonaro, que pode ser tudo, menos um político ingênuo, sabia que o simples anúncio de esvaziar o ministério fragilizaria Moro. Foi mais uma tentativa frustrada, que teve que ser abortada.
Moro dizer que não se candidatará de jeito nenhum, muito menos contra o presidente, não dissolve a desconfiança de Bolsonaro. Nem que gravasse na testa “Bolsonaro 2022”. A paranóia dos Bolsonaro é cultivada com dedicação. Mas pela primeira vez admitir que ir para o Supremo Tribunal Federal seria “uma perspectiva interessante” é uma saída boa para todo mundo.
Ao ser convidado, esse era o objetivo final de Moro, depois de dois anos de governo em que esperava consolidar os avanços da Operação Lava-Jato. Conseguiu muitos avanços, mas teve que aceitar derrotas.
A essa altura, ser indicado para o STF na próxima vaga do ministro Celso de Mello, que entra na expulsória em novembro, o deixaria mais contido no Judiciário, e ficaria mais difícil uma aventura política.
Não é garantia de nada, mas expressar o desejo é um gesto de pacificação de Moro.
Merval Pereira: O novo emprego
Redes de proteção social baseadas no emprego e nos salários são o referencial atual, mas o quadro já está mudando drasticamente
O recém encerrado Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, dedicou especial atenção ao debate sobre tributação e novas tecnologias que deveria estar mais aceso no Brasil, na véspera da discussão no Congresso da reforma tributária. O destino dos empregos nessa nova era tecnológica se imbricou com a discussão tributária.
O que ficou claro é que há uma emergência mundial de uma revolução na requalificação do trabalhador, e demandas que uma série de novas tecnologias trarão, tanto tributárias, quanto trabalhistas.
Em Davos, uma das discussões mais interessantes foi sobre a tributação em paraísos fiscais. Nada menos que cento e trinta e cinco países estão debatendo, por exemplo, propostas de como enfrentar o desafio colocado por uma economia crescentemente digitalizada. Uma das perguntas principais é: como modernizar as regras e garantir aos países uma fatia justa da receita de trilhões de dólares investidos em paraísos fiscais pelo mundo?
Outra questão levantada nos debates: como taxar os produtos que serão feitos por impressoras 3D dentro de casa? Com a crescente possibilidade de trabalho à distância, o trabalhador cada vez mais poderá ter uma atuação independente. Ninguém sabe como fará, mas todos sabem que precisam resolver essas questões. O Brasil precisa se antenar às novas tendências, e ao que se está a discutir no mundo.
Essa questão preocupa já há algum tempo o economista José Roberto Afonso, um dos maiores especialistas em finanças públicas do país, atualmente fazendo um pós-doutorado em Lisboa. Ele já havia levantado esse debate aqui na coluna, no ano passado, e com o foco de Davos ele está mais convencido de que melhorar o sistema de ensino, para conseguir colocação aos futuros trabalhadores, é fundamental, mas, “será premente também mudar as qualificações de quem já está dentro do mercado de trabalho”.
As redes de proteção social baseadas no emprego e nos salários são o referencial atual, mas o quadro já está mudando drasticamente. O economista considera que é fundamental fortalecer instrumentos como o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que tem sido desidratado, “não apenas porque o desemprego vai explodir, mas porque é urgente retreinar e requalificar mão-de-obra”.
José Roberto Afonso diz que até mesmo o lado SENAI/SENAC precisa ser prestigiado, e se há mau uso de recursos, deve ser combatido e evitado, mas não há sentido em desmantelar um sistema para aprendizado da indústria, do comércio.
No caso do emprego, ele ressalta, o fórum de Davos reforçou que não é só um problema de educação, porque, como a revolução digital ainda criará muitas novas profissões, não falta educação agora para formar o que ainda não existe, ou não se sabe bem que será.
No futuro, salienta José Roberto Afonso, cada vez mais o trabalho não passará por emprego e salário, paradigma que está sendo quebrado pela revolução em curso, na indústria, na economia e na sociedade, que compreende, entre outros fatores, uma intensa automação do processo de trabalho.
Os países precisarão construir um novo pacto ou contrato, social e também econômico, para lidar com essa realidade. O trabalho independente também será uma realidade nova cada vez maior, e, na avaliação de José Roberto Afonso, forçará a renovação do pacto social brasileiro, de modo que o amparo ao trabalhador deverá assumir outras formas que não apenas a carteira assinada.
Por isso, a palavra da moda, é “skills”, ou “habilidades” em português. A discussão, aliás, já está um passo à frente, tratando de reabilitação, no sentido de ensinar os trabalhadores a “aprenderem a aprender”. O que se está dizendo é que é preciso criar uma nova estrutura, de ensino (para novos trabalhadores) e de retreinamento da mão-de-obra (para os que já estão no mercado de trabalho), que prepare, treine e ensine novas habilidades e profissões.
Merval Pereira: Açaí e a bioeconomia
Existem várias propostas de políticas sustentáveis, que preservem a floresta e gerem riqueza para a Amazônia
Tão importante quanto o combate à criminalidade ligada ao desmatamento na Amazônia é a avaliação que se pode fazer hoje de seus resultados econômicos e socioambientais, na análise do especialista em meio-ambiente Ricardo Abramovay, professor da USP. Existem várias propostas de políticas sustentáveis, que preservem a floresta e gerem riqueza para a população da região. Muitas estão no Congresso, outras em trabalhos acadêmicos.
O Instituto Escolhas, que desenvolve estudos e análises sobre economia e meio ambiente, e tem em seu Conselho, entre outros, o próprio Abramovay e a ex-ministra do Meio-Ambiente Isabella Teixeira, lançou o estudo sobre Bioeconomia e Zona Franca de Manaus.
A proposta é um modelo de desenvolvimento econômico que integre a atual vocação da Zona Franca de Manaus (AM) e seu parque industrial à inovação tecnológica e ao uso sustentável da biodiversidade amazônica.
Em vez de subsidiar a produção industrial, como faz atualmente, o governo poderia estimular investimentos em novos negócios, sobretudo naqueles voltados ao aproveitamento sustentável da biodiversidade local – a bioeconomia.
Com pouco mais de R$ 7,15 bilhões investidos em infraestrutura física ao longo de dez anos – ou seja, menos de um terço do incentivo fiscal anual dado à ZFM –, a criação de empregos diretos e indiretos pode chegar a 218 mil vagas.
O professor professor Raoni Rajão, da UFMG, comparando a área e a produção de soja e de açaí no Pará entre 1996 e 2015, mostra que a fruta brasileira tem rendimento por hectare muito maior que o da soja.
Embora seja um produto consumido fundamentalmente na Amazônia, existe hoje uma cadeia global de açaí na casa das centenas de milhões de dólares. Para Abramovay, uma das bases para a exploração sustentável destes produtos é justamente unidade entre trabalho científico e a própria cultura material dos povos da floresta.
Um dos mais emblemáticos exemplos desta junção, analisa, é a Rede de Sementes do Xingu, organizada pelo Instituto Socioambiental. Populações indígenas e ribeirinhas coletam sementes que são selecionadas por técnicos da EMBRAPA e do Instituto Socioambiental e vendidas a fazendeiros.
Mel, óleo de pequi, copaíba, borracha, castanha, são inúmeros os produtos de uso alimentar, farmacêutico e cosmético que a ciência, aliada aos povos da floresta, pode revelar e ajudar a explorar de maneira sustentável, diz Abramovay.
O selo Origens Brasil, que certifica estes produtos e já está em grandes cidades brasileiras acaba de receber um importante reconhecimento internacional por parte da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO/ONU).
Já o professor da UERJ Ronaldo Saora Motta ressalta, com base em estudos, que é possível aumentar o valor da produção agrícola entre 79-105%, e o valor da produção pecuária em 27% sem ocasionar mais desmatamento.
Para reverter essa lógica do desmatamento, diz ele, é preciso destinar grande parte das terras devolutas para unidades de conservação, em particular para florestas nacionais, com objetivo de promoção do uso sustentável dos recursos florestais e a pesquisa científica.
Mais ousadamente, como diz, propõe a criação de Áreas de Agricultura Sustentável, situadas em parcelas da floresta que combinem menor relevância da biodiversidade, fora de corredores ecológicos, com alto grau de aptidão agrícola e acesso a infraestrutura de transporte.
Essas áreas seriam disponibilizadas gradualmente por leilão a agentes econômicos privados, e seu uso teria que obedecer a práticas sustentáveis de baixo impacto.
Há estudos, entretanto, adverte Ronaldo Seroa da Motta, que mostram que a renda sustentável da floresta em pé é espacialmente diferenciada, e somente 12% da área seria capaz de gerar rendimentos que competiriam com a agropecuária, mesmo de baixa produtividade.
Assim sendo, diz ele, não há como prescindir de pagamentos pela comercialização de créditos de carbono por redução de desmatamento, previsto no Acordo de Paris.
Mesmo com o preço modesto de US $ 5 por tonelada de CO2, como foi contratado no Fundo Amazônia, poderiam gerar uma receita de 50 bilhões de dólares até 2025 através de fundos ou projetos liderados e coordenados por agências de desenvolvimento estaduais ou nacionais.
Merval Pereira: Fritura de alta pressão
O Congresso e o presidente vêm se encarregando de esvaziar a ação do ministro Moro. Foi o Congresso que tirou o Coaf dele
O ministro Sérgio Moro não acredita que o presidente Bolsonaro vá dividir o ministério da Justiça e da Segurança Pública. Por isso, considera inútil especular sobre o que acontecerá caso a ideia prospere. Se o presidente Bolsonaro quisesse mesmo reforçar a segurança pública, convidaria o próprio Sérgio Moro para o novo ministério, e nomearia outro ministro da Justiça.
A criação do ministério da Segurança Pública, como existia no governo Michel Temer, só tem sentido se abaixo dele ficar a Polícia Federal, que sairia então da Justiça. Nesse caso, se Moro aceitasse continuar no governo, ele ficaria sem os dois instrumentos básicos que imaginou quando propôs a Bolsonaro unir Justiça e Segurança Pública.
A Coaf já foi para o Banco Central, e a Polícia Federal iria para a nova pasta. Moro ficaria com os aspectos mais burocráticos do ministério da Justiça, e com a Funai. Não há razão para retirar do ministério da Justiça todos os encargos que ele ganhou quando se transformou, por decisão do próprio recém-eleito presidente, em superministério que combateria a corrupção e o crime organizado da mesma forma que teria como objetivo melhorar a segurança publica. Ainda mais com os resultados positivos obtidos, provocando a queda dos índices de criminalidade em todo o país.
O Congresso e o presidente Bolsonaro vêm se encarregando de esvaziar a ação do ministro Moro. Foi o Congresso que tirou o Coaf dele assim como o juiz de garantias foi criado pelo Congresso, e sancionado pelo presidente Bolsonaro, mesmo com o parecer contrário de Moro.
Bolsonaro, ao mesmo tempo em que anuncia estar estudando reduzir o tamanho do ministério de Moro, deixa vazar informação de que já decidiu trocar o delegado Mauricio Valeixo, chefe da Polícia Federal indicado pelo ministro da Justiça. Já tentou ano passado, mas naquela ocasião Moro conseguiu dissuadi-lo.
O fato é que, passado o primeiro ano de seu mandato, Bolsonaro está tendo que ajustar seus interesses pessoais às promessas da campanha. No início do governo, quando apresentou o projeto sobre flexibilização da posse e porte de armas, estava sendo coerente, não houve surpresas, mesmo de quem criticou. Mas sua coerência não resistiu à irrealidade de suas promessas.
Prometeu que acabaria com a reeleição, e já pensa não apenas num segundo mandato, mas num terceiro. O combate à corrupção não poderia ter sido sua principal bandeira, pelo passado de ligações perigosas e outras atividades ilegais, como estão sendo reveladas pouco a pouco no processo contra seu filho, senador Flavio Bolsonaro.
Foi apenas uma peça de campanha. Começam a aparecer casos dentro do ministério que derrubam a tese de que, até agora, não existe nenhuma denúncia de corrupção no seu governo. Um irmão surge no cenário de Brasília como lobista bem recepcionado nos círculos do poder. O líder do governo, senador Fernando Bezerra, investigado pela Lava Jato, permanece no cargo, assim como o secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, envolvido em denúncias de conflitos de interesses por ser sócio de uma empresa de comunicação que tem clientes de verbas publicitárias do governo que ele mesmo decide.
A percepção de corrupção no país, índice medido pela ONG Transparência Internacional, manteve a pior média histórica no primeiro ano de governo Bolsonaro.
Se o ministro Sérgio Moro, como dizem seus amigos, estiver certo, o presidente Bolsonaro está apenas ameaçando dividir o ministério para enfraquece-lo, dando sequência ao processo de fritura mais violento de que se tem notícia.
Se, no entanto, mudar mesmo a estrutura que deu para Moro, é sinal de que resolveu dar o golpe final, ou por considerar-se forte o bastante para isso, ou porque avalia que se deixar Moro mais tempo com a visibilidade que tem, ele se tornará um candidato à presidência da República difícil de bater. Cortando-lhe as asas agora, mesmo que ele saia do governo em protesto, o custo a longo prazo seria menor, pois a repercussão negativa não seria suficiente para manter a popularidade de Moro durante os próximos dois anos longe dos holofotes.
Pode estar fazendo um cálculo errado.
Merval Pereira: Denúncia temerária
Ministério Público é tão autônomo que está investigando o senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente
Não creio que os diálogos entre o jornalista americano Glenn Greenwald e Luiz Henrique Molição, um dos hackeadores das mensagens dos procuradores de Curitiba e de diversas autoridades, revelem indiscutivelmente a ação direta do jornalista no crime, a ponto de provocar uma denúncia. Mas isso não quer dizer que a liberdade de imprensa esteja em perigo no país, nem que haja uma “vingança” do governo contra ele devido à divulgação de tais conversas.
O Ministério Público Federal é um órgão autônomo, não pertence a governos, como fazem crer comentários no exterior e da oposição. Um bom exemplo é a atitude da Polícia Federal, subordinada formalmente ao Ministério da Justiça, mas com autonomia de atuação garantida pela Constituição, que não precisa de autorização para investigar.
Pois a Policia Federal, com base nos mesmos áudios, considerou que não havia indícios de que o jornalista Glen Greenwald tivesse participação moral ou material no caso. Se fosse o caso de “vingança”, não seria mais óbvio que a Polícia Federal acusasse o jornalista, que provocou uma crise política nacional com as revelações do relacionamento considerado por muitos abusivo do então juiz Sergio Moro com os procuradores de Curitiba?
Não houve nenhuma especulação a esse respeito quando o resultado da investigação da Polícia Federal foi divulgado. Pelo raciocínio da “vingança governamental”, o ministro Sérgio Moro deveria ser elogiado. Mas nada disso é real.
Não houve atuação do governo, já que o Ministério Público também tão autônomo que está investigando o senador Flavio Bolsonaro, filho do presidente. Acredito que tenha havido um procedimento temerário do procurador de Brasília, pois o Ministério Público do Distrito Federal deveria ter pedido autorização para investigar Glenn Greenwald, já que uma decisão do ministro Gilmar Mendes o blindava para proteger a liberdade de imprensa.
A decisão do ministro do Supremo é correta, porque do contrário todos os jornalistas que divulgassem documentos secretos ou revelassem mensagens entre autoridades poderiam ser investigados. Mas, se o Ministério Público do Distrito Federal descobriu, no decorrer das investigações, indícios que levavam ao jornalista, esse fato deveria ser comunicado ao Supremo.
Não esqueçamos que esse mesmo Molição que aparece pedindo conselhos a Glenn Greenwald nos áudios é o mesmo que fez uma delação premiada aceita pela Justiça. Por isso foi solto. Se ele deu alguma informação que ligue o jornalista americano ao crime de intercepção ilegal, esse fato precisaria ser investigado.
A atitude do Ministério Público do DF foi temerária porque denunciou Glenn Greenwald sem sequer investigá-lo oficialmente, embora seja um procedimento aceitável legalmente. A orientação de Greenwald para que os hackeadores apagassem as mensagens foi interpretada pela Polícia Federal como favorável a Greenwald, enquanto o Ministério Público viu nela a indicação de que o jornalista estava envolvido na ação criminosa e queria apagar as evidências.
São indícios muito frágeis para denunciar uma pessoa, ainda mais em tema tão delicado quanto a liberdade de imprensa. Mas se houver delação fazendo essa relação, será preciso investigar.
Audiências Públicas
A figura nova do juiz de garantias no processo penal brasileiro provavelmente não vai sair do papel, pelo menos tão cedo. O ministro Luis Fux, que é o relator do caso no Supremo, será também seu presidente a partir de setembro.
Ele já declarou inconstitucional o decreto que criou o juiz de garantias, e pretende promover várias audiências publicas para debater o tema antes de preparar seu voto para discutir o assunto no plenário.
Ele, como relator, decide quando seu voto estará pronto. Como presidente do STF, decide se e quando ele entrará na pauta.
Merval Pereira: Industrializar a Biodiversidade
O ministro da Economia, Paulo Guedes, com a sua retórica estimulante, poderia estar hoje em Davos anunciando novos projetos industriais na Amazônia
A polêmica frase do ministro da Economia Paulo Guedes, representante do Brasil no Fórum Econômico Mundial, afirmando que as queimadas da Amazônia são provocadas pela necessidade de se alimentar dos brasileiros que vivem na região, é uma derivação do que já disse o presidente Jair Bolsonaro: “As queimadas são uma questão cultural”.
Assim se resume a política ambiental do novo governo brasileiro: a prioridade é o milhão de pessoas que moram na região amazônica. Não há o que discordar, as pessoas em primeiro lugar. O problema é que o governo considera que a devastação da Amazônia é justificável pela questão social, sem nem mesmo admitir que a exploração econômica descontrolada serve apenas aos interesses dos grileiros, que ao mesmo tempo devastam vidas humanas que exploram e o meio ambiente que degradam em busca de vantagens econômicas.
O mais angustiante é que a exploração econômica da Amazônia baseada na nossa biodiversidade é um grande projeto nacional que poderia ser levado adiante para reforçar nossa soberania na região, que tanto preocupa os militares.
Os projetos para a Amazônia sempre foram paralisados pelos disputa politica, mesmo no governo Lula, quando a então ministra do Meio-Ambiente Marina Silva propôs programa nacional de Amazônia Sustentável, citado pelo ex-presidente do Inpe Ricardo Galvão como uma boa proposta no caminho do desenvolvimento da região.
A disputa entre Marina e o então ministro do Planejamento Estratégico Mangabeira Unger acabou inviabilizando o projeto. O ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles, queria usar o Fundo Amazônia para indenizar proprietários rurais em unidades de conservação, para fazer a regularização fundiária. Os críticos o acusam de favorecer os grileiros em áreas protegidas.
Pois o então ministro Mangabeira Unger, do Planejamento Estratégico, quando assumiu o Programa da Amazônia Sustentável (PAS), teve a mesma proposta. Aliás, o fato de Lula ter dado a Mangabeira o projeto para a Amazônia foi a gota d’água para a saída da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, assim como, anteriormente, o então deputado federal Fernando Gabeira havia deixado o PT devido a divergências, especialmente pela política ambientalista.
Em recentes entrevistas à Central da Globonews, dois dos maiores cientistas brasileiros, Ricardo Galvão e Carlos Nobre, forneceram dados para uma industrialização da Amazônia com proteção ao meio-ambiente. Galvão disse não ter duvidas de que a leniência do governo estimula o desmatamento.
Carlos Nobre lamentou que nós brasileiros não nos enxerguemos como o País da maior biodiversidade do planeta. O potencial econômico da biodiversidade, segundo ele, é muito superior ao da pecuária e ao dos grãos. O exemplo do açaí é imediatamente lembrado pois, segundo Nobre, ele já gera mais de um bilhão de dólares para a Amazônia, e na economia mundial, muito mais. O açaí está sendo industrializado no Vale do Silício, na Califórnia. Para Carlos Nobre, ”falta industrializar a biodiversidade”.
O ministro da Economia Paulo Guedes, com sua retórica estimulante, poderia estar hoje em Davos anunciando novos projetos industriais na Amazônia, em vez de ter que defender o governo brasileiro diante de uma plateia de investidores internacionais que cada vez dão mais importância ao meio-ambiente.
A indicação do vice-presidente Hamilton Mourão para coordenar um conselho interministerial de desenvolvimento da Amazônia é um passo importante, assim como a criação da Força Nacional Ambiental, mas o governo não tem uma coordenação que permitisse que Paulo Guedes, em Davos, anunciasse essas medidas como sinais de que o governo brasileiro está preocupado com a questão ambiental.