Merval Pereira
Merval Pereira: Política de atritos
Imaginar que a morte do ex-ministro Gustavo Bebianno poderia ser “queima de arquivo” é ir longe demais, mas ela não ajuda a imagem presidencial
As circunstâncias desta vez não estão do lado do presidente Bolsonaro. Imaginar que a morte do ex-ministro Gustavo Bebiano poderia ser “queima de arquivo” é ir longe demais na teoria conspiratória, repetindo o comportamento paranóico do clã Bolsonaro. A autópsia do IML de Teresópolis acabou com essa paranóia. Confirmando que ele morreu de infarto
Mas é uma morte que traz para o centro da disputa política as emoções de uma amizade rompida à base de intrigas palacianas e traições.
As entrevistas com acusações por parte de Bebiano ao presidente e seus filhos, a percepção de que a tristeza pode ter ajudado a matar um fiel amigo largado de mão por interesses mesquinhos, as revelações de uma relação conturbada no Palácio do Planalto, prejudicada por um comportamento desequilibrado de Bolsonaro, tudo isso junto e misturado não ajuda a imagem presidencial.
Assim como não ajudou o fuzilamento do miliciano Adriano, que trouxe de volta as circunstâncias que uniram a família Bolsonaro a ele.
Mesmo que, por dever de responsabilidade, não se faça a ligação das mortes com ações premeditadas com objetivos políticos, as circunstâncias das duas mortes levam os Bolsonaro novamente a um terreno pantanoso, onde sobram insinuações de envolvimento com ações ilegais.
Poupado de fazer campanha em virtude do atentado político que sofreu, Bolsonaro reforçou sua paranóica visão de mundo com a facada, que pareceu lhe dar razão para desconfiar de tudo e de todos. Não podia ir aos debates, e seu sacrifício emulou muitas pessoas, levando a que sua candidatura ganhasse muitos mais adeptos.
À falta de um candidato forte no centro político, que atraísse as forças de direita ou de esquerda não extremistas, tornou-se a opção natural para quem não queria que o PT voltasse ao poder.
Hoje, o coronavírus Covid-19 impediu que se medisse a força popular do presidente nas manifestações que irresponsavelmente incentivou. O estilo agressivo e atritoso de fazer política do presidente Bolsonaro e seus filhos gera em conseqüência um ambiente desagregador e inseguro.
Não pode levar a bom porto.
Responsabilidade
A decisão do ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas de conceder uma medida cautelar suspendendo os efeitos da derrubada do veto presidencial, que ampliaria o alcance do Benefício de Prestação Continuada (BPC), abrindo um rombo nas contas públicas de R$ 20 bilhões, está causando reboliço, especialmente no Senado.
Os senadores estão indóceis, e a Câmara é que evitou que as pressões contra a decisão se materializassem. A decisão é tecnicamente perfeita, e corrige uma irresponsabilidade política que ganha dimensões maiores ainda devido à situação de crise mundial, que levará a economia brasileira a ter uma performance abaixo do necessário para a retomada do desenvolvimento.
Ao tomar a decisão, o ministro Bruno Dantas não fez controle de constitucionalidade. Apenas condicionou a execução da despesa à efetivação das medidas compensatórias em valor correspondente, como manda a lei de responsabilidade fiscal.
O ministro Bruno Dantas diz que assim como o Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição, o TCU é o guardião da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Esquerda fora?
A corrida pela Prefeitura do Rio, embora ainda não tenha todos os seus competidores alinhados na largada, deverá ser diferente das anteriores devido à proibição de coligações proporcionais para vereadores.
Todos os partidos estão tendo problemas para fechar a nominata de candidatos, pois será muito difícil a eleição individual. Muitos querem lançar candidatos imaginando assim puxar a votação dos vereadores, mesmo que não tenham chance de vencer a Prefeitura.
Outros aguardam o lançamento da candidatura do ex-prefeito Eduardo Paes pelo DEM, imaginando que uma candidatura forte apoiada por vários partidos pode alavancar a eleição de vereadores.
Ao mesmo tempo, há nos bastidores disputas que podem inviabilizar um candidato de esquerda forte como seria o deputado federal Marcelo Freixo em coligação com o PT, que daria a deputada Benedita da Silva como vice.
A maioria do PSOL, no entanto, não quer essa aliança com o PT, sem o que Freixo não está disposto a disputar. A direita e o centro ganhariam um espaço maior com essa divisão da esquerda, com um candidato do PSOL e outro do PT.
Marcello Crivella está armando uma aliança com a família Bolsonaro, e o vereador Carlos e sua mãe, Rogéria Bolsonaro, estão se inscrevendo no partido do prefeito, o PRB.
A esquerda pode ficar de fora no segundo turno
Merval Pereira: Realidades distintas
Realidade crua destrói teorias conspiratórias, como no caso brasileiro, que obrigou Bolsonaro a usar máscara
O presidente Bolsonaro aproveitou até mesmo a desmobilização de seus seguidores para cutucar os congressistas, que dias antes haviam dado um troco a seu governo ao derrubar irresponsavelmente um veto seu, criando uma despesa nova de R$ 20 bilhões sem saber de onde esse dinheiro viria.
Diante da crise do Covid-19, o presidente foi obrigado a aconselhar seus seguidores a não fazerem as manifestações programadas para amanhã, mas fez do limão uma limonada.
Criticou indiretamente o Congresso de todas as maneiras que pôde, comemorando um suposto “recado das ruas” contra os políticos. Não aproveitou a ocasião para pacificar os ânimos, ao contrário.
A direita internacional está usando a crise do novo coronavírus para reforçar a tese nacionalista de que fechar as fronteiras é a melhor resposta à globalização, que estaria sendo confrontada pela realidade.
O presidente dos Estados Unidos Donald Trump tentou inicialmente minimizar as conseqüências da crise de saúde pública mundial, mas teve que se curvar aos fatos. Aproveitou para jogar sobre a União Européia a culpa da disseminação do vírus, e fechou os aeroportos aos europeus, com exceção dos ingleses, como se o brexit fosse uma fronteira intransponível para o Covid-19.
Os extremistas americanos atribuem a situação a uma manobra política da esquerda para derrotar Trump. Outros acham que é uma jogada da China, que sairia fortalecida política e economicamente sendo o primeiro país a controlar a crise. Até mesmo os grandes laboratórios farmacêuticos estariam por trás da crise, em busca de lucros no capitalismo selvagem.
A mesma postura regressiva foi utilizada aqui por Bolsonaro, que tentou mascarar a verdade atribuindo a pandemia a uma ação conjunta da “grande mídia internacional”, que estaria fantasiando a realidade, não se sabe com que intenções. Talvez impedir a “decolagem” da economia brasileira, que, na visão do ministro da Economia Paulo Guedes, estava prestes a acontecer.
Como não temos fronteiras a fechar por aqui, nem somos vítimas de conspirações internacionais, Bolsonaro não conseguiu criar um ambiente irresponsável, embora tenha adiado ao máximo a admissão de que a situação era grave.
A realidade crua destrói essas teorias conspiratórias, como no caso brasileiro, que obrigou Bolsonaro e seus assessores diretos a usarem máscaras depois que o chefe da Secretaria de Comunicação, que o acompanhou na recente viagem aos Estados Unidos, foi identificado com o Covid-19.
Um caso exemplar de teoria da conspiração aconteceu com um dos filhos do presidente, aquele que sonhava ser embaixador do Brasil nos Estados Unidos e que nunca ouviu falar em Henry Kissinger. O deputado Eduardo Bolsonaro também não sabe o que é coronavírus, e, por ignorância, gerou uma desinformação importante nos Estados Unidos.
Entrevistado pela Fox News, emissora direitista que apóia Trump, ele, ao responder a uma pergunta da âncora do programa, comentou que o pai havia testado negativo para coronavírus “que nos Estados Unidos chamam de Covid-19”, como se fossem a mesma coisa.
Tomou uma aula ao vivo da jornalista, que explicou que diversos tipos de coronavirus existem há muitas décadas, e que Covid-19 é um novo tipo da família viral. Talvez por ignorância, e não má-fé, Eduardo tinha passado anteriormente a informação para a mesma Fox de que o presidente Bolsonaro testou positivo para coronavírus.
O que quer dizer que não poderia ter o Covid-19, mas provavelmente ele misturou tudo. O jornalista John Roberts revelou em um tuíte que fora Eduardo quem lhe dera a informação. Para não fugir à lógica própria dos Bolsonaro, o deputado atribuiu o mal-entendido à má-fé do jornalista, que estaria divulgando fake news.
A existência dessas versões amalucadas demonstra, porém, que a politicagem vulgar não é uma característica brasileira do momento, mas do populismo que toma conta do mundo, agora de teor direitista.
Merval Pereira: Alimentando fantasmas
Bolsonaro vive da discórdia, se alimenta de intrigas e deixa por onde passa um rastro de destruição moral
É impressionante a irresponsabilidade do presidente Bolsonaro no trato da coisa pública, comportamento que nunca teve maior repercussão nos seus 27 anos de mandatos populares porque ele nunca teve importância política. Todos os assuntos são tratados com leviandade própria dos que cuidam apenas da próxima eleição.
Afirmar que a pandemia do Covid-19 é um exagero que a “grande mídia propaga pelo mundo” é no mínimo uma imprudência governamental que pode gerar uma crise de saúde pública no país. Tão pernicioso quanto a “marolinha” de Lula na crise financeira de 2008.
Se fosse levado a sério a tempo, o mal teria sido cortado pela raiz. Circulam na internet vários vídeos com barbaridades defendidas por Bolsonaro durante sua carreira de deputado federal, inclusive não pagar impostos, sonegação que se hoje fosse adotada por seus seguidores fiéis quebraria o governo que ele preside.
Essas mesmas barbaridades foram ditas e reditas durante a campanha eleitoral, e ele só chegou com chances no segundo turno porque até o último momento seus adversários acreditavam que acabaria perdendo fôlego.
Não contavam com o acirramento da polarização antipetista, e muito menos com a facada, trágico atentado que até hoje prejudica a saúde de Bolsonaro e, na campanha, protegeu-o dos debates.
Temos então um presidente doentiamente paranóico que não sabe o limite entre o populismo eleitoral e a presidência de uma Nação, que precisaria neste momento de crise mundial de uma liderança equilibrada que investisse na unidade, e não na divisão.
Mas Bolsonaro vive da discórdia, se alimenta de intrigas e deixa por onde passa um rastro de destruição moral. Explora as dificuldades do brasileiro comum culpando sempre outros por seus fracassos, que frustram os que ainda crêem nele.
Sua força política é originária dessa frustração de um povo que, de tempos em tempos, busca um salvador da pátria e invariavelmente encontra pela frente um pilantra político pronto a usá-lo em benefício pessoal.
O caso das emendas impositivas, que dão ao Congresso uma autonomia em relação a parte considerável do orçamento da União, é exemplar da maneira sub-reptícia com que Bolsonaro se movimenta no jogo político, dilapidando a confiança que deveria existir entre o chefe do Executivo e os demais chefes de poderes.
Quantas vezes Bolsonaro foi e voltou nesse debate, ora fazendo acordo com o Congresso, para logo depois anunciar que não fizera acordo nenhum? Quantas negou ter avalizado a manifestação contra o Congresso, para depois assumir essa convocação fingindo que não era contra os políticos, mas a favor das reformas?
Até que assumiu a verdadeira intenção ao sugerir que se o Congresso abrisse mão de comandar a verba de R$ 15 bilhões do orçamento, poderia negociar o cancelamento das manifestações, que ele diz que são espontâneas e sem liderança do governo.
Uma chantagem explícita, em que assume a mesma posição que criticou nos políticos, e também a coordenação tácita das manifestações. Bolsonaro gosta de dizer que não tem controle sobre seus seguidores nos meios sociais, insinuando que essa rede de intrigas e ódio tem vida própria para defendê-lo.
Mas a CPI das Fake News está demonstrando que a origem dos ataques das milícias digitais está sempre ligada a seus filhos e assessores que formam o já conhecido Gabinete do Ódio instalado no Palácio do Planalto.
E o que dizer da denúncia de que ganhou no primeiro turno em 2018, mas teve que disputar o segundo turno por fraude na contagem dos votos na urna eletrônica? É de uma irresponsabilidade surpreendente até mesmo para os seus padrões.
Ele já havia jogado essa carta durante a campanha, prevenindo-se de um revés que nunca esteve próximo. Hoje, retoma o tema apenas para manter viva a polarização com a esquerda, que supostamente ainda é uma ameaça à democracia brasileira.
Bolsonaro ataca a democracia a pretexto de protegê-la de fantasmas que vai alimentando, ajudando a instabilidade política do país no momento em que uma liderança madura e adulta seria necessária.
Merval Pereira: Ação e reação
Bolsonaro deu um salto triplo carpado e passou a convocar a manifestação do dia 15 retirando dela o caráter crítico aos Poderes da República
O presidente Bolsonaro, demonstrando o quão o faro político pode substituir sua tosca visão de mundo, deu ontem um salto triplo carpado e passou a convocar a manifestação do dia 15 retirando dela o caráter crítico aos poderes da República.
Não quer dizer, e ele sabe disso, que não haverá bonecos infláveis do presidente da Câmara Rodrigo Maia, ou faixas contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e seus ministros, ou a imprensa independente.
Apenas, com a fala explícita, Bolsonaro, em tempos de coronavírus, lavou as mãos, dissociando-se da original manifestação baseada do “foda-se” o Congresso dito pelo General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) em conversa vazada.
Quando apoiou reservadamente o movimento, em grupo de WhatsApp, Bolsonaro desencadeou crise institucional que ainda assombrava a manifestação convocada por seus seguidores nas mídias sociais. Distorcendo o sentido original da manifestação para ampliá-la em direção a uma improvisada advertência popular aos mandatários do país, inclusive ele próprio, Bolsonaro oficializa a manifestação e tira de seu apoio o caráter conspiratório.
Mas se exime de culpa caso ela retome seu rumo inicial de criticas aos que não “deixam o homem trabalhar”, no caso ele próprio. Foi um lance improvisado, sem dúvida, pois até mesmo seu filho Eduardo estava pedindo a correligionários que não fossem à manifestação para não criar embaraços políticos a seu pai.
Bolsonaro foi além e liberou os manifestantes. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já tentara fazer isso, sem sucesso, junto aos movimentos populares de direita que organizam a manifestação. Sugeriu que ela fosse a favor das reformas, e não contra o Congresso. Mas não tem força política fora de sua área, nem a habilidade do presidente Bolsonaro, que consegue transformar as piores derrapadas em jogadas de mestre para os já convencidos.
O General Augusto Heleno, que pelo jeito gosta de uma disjuntiva, disse que é mentira que a manifestação seja contra a democracia, apesar de temas como intervenção militar ou fechamento do Congresso e do Supremo façam parte da pauta de reivindicações.
Ontem, contei aqui que ao ser consultado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia sobre o temor de deputados de estarem sendo grampeados nas conversas telefônicas ou gravados em encontros no Palácio do Planalto no inicio do governo, o ministro tranquilizou-o: “Isso aí acabou”. Uma negativa que traz consigo uma afirmação de que em algum momento houve.
Como autor intelectual da manifestação, pois foi ele quem sugeriu que o povo fosse convocado para impedir a “chantagem” do Congresso sobre o Executivo, o General Augusto Heleno sabe que ninguém quer “calar o povo” criticando a manifestação, mas travar uma marcha antidemocrática que estava sendo estimulada pelo próprio governo.
Na verdade, ninguém faz marcha a favor de alguma coisa, mas contra. Marcha a favor do aborto é contra a legislação que o proíbe ou restringe. Marcha a favor do Governo é contra os que não o deixam atuar. E ao dizer que o presidente Bolsonaro está encontrando resistências de grupos corruptos que combate, o General Heleno está endossando os manifestantes que acusam Congresso e Supremo de impedir o presidente de ir adiante.
De fato, o presidente Bolsonaro, com sua rede nos meios sociais, está criando um ambiente no país que obscurece sua incapacidade de gestão com a sombra de uma suposta manobra de “forças ocultas” que o impedem de avançar.
Já vimos esse filme antes, numa tentativa de golpe do então presidente Jânio Quadros, que não deu certo. Mas Bolsonaro está tendo o cuidado de tentar criar um ambiente propício a um autogolpe, jogando seus seguidores - que hoje já não representam a maioria do povo brasileiro - contra as instituições que dão limites ao Executivo: imprensa independente, Legislativo e Judiciário.
Haverá reações institucionais.
Merval Pereira: ‘Isso aí acabou’
Deputados procuraram o presidente da Câmara com uma apreensão: acreditavam que estavam sendo gravados
Foi assim que o ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da presidência da República, tranquilizou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em relação ao temor de alguns deputados de que estariam sendo monitorados pelo governo.
No início do governo Bolsonaro, quando a relação com o Congresso estava em momento crítico, deputados procuraram o presidente da Câmara com uma apreensão: acreditavam que estavam sendo gravados.
Os relatos não foram conjuntos, mas individuais, em diversas circunstâncias, uns consideravam que seus telefonemas estavam sendo grampeados, outros “sentiam” que estavam sendo gravados em suas conversas no Palácio do Planalto.
Eram mais percepções e temores do que fatos concretos que motivassem uma reclamação formal do presidente da Câmara. Até que um deputado com patente militar, ligado à comunidade de tecnologia de segurança de informação, disse a Maia que tinha certeza de que fora grampeado, e deu detalhes técnicos sobre o que poderia ter acontecido ao seu celular Android.
Segundo relatos de deputados, o presidente da Câmara aproveitou uma conversa com o General Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) para abordar o tema delicado. Revelou a preocupação de diversos deputados, e recebeu a resposta tranquilizadora, que foi repassada aos deputados queixosos. O assunto morreu.
A revelação do ex-ministro Gustavo Bebianno de que o filho 02 Carlos Bolsonaro pensara em montar um esquema não oficial paralelo de monitoramento de políticos e jornalistas trouxe o assunto de volta ao noticiário e gerou desdobramentos.
Ontem, a revista Crusoé publicou em sua capa um amplo material sobre o tema, detalhando como o esquema teria sido montado. Não há dúvida de que o atual diretor da Agência Brasileira de Informações (ABIN), delegado Alexandre Ramagem foi quem incialmente discutiu com Carlos e mais três agentes da Polícia Federal a estruturação de uma equipe que seria responsável por essa atividade. Mas não é possível afirmar, (apenas intuir), que ele sabia que o trabalho seria clandestino, embora patrocinado pelo novo grupo que ocupava o Palácio do Planalto.
Há o antecedente histórico do ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, político paranóico que procurou se proteger gravando clandestinamente as conversas no Salão Oval e grampeando seus “inimigos”.
Também objetivava impedir que vazamentos de documentos oficiais voltassem a acontecer como no caso dos Pentagon Papers, que revelou atuação ilegal do Departamento de Estado na Guerra do Vietnã. Essa equipe clandestina era conhecida como “plumbers” (bombeiros), e foi descoberta a partir da prisão de um grupo que invadiu a sede do Partido Democrata no prédio Watergate em Washington. A descoberta dos esquemas clandestinos levou à renúncia de Nixon ante a possibilidade de sofrer um impeachment.
O que é certo é que o General Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, conversou com o General Heleno sobre o assunto, e também Gustavo Bebianno, o primeiro a revelar formalmente essa tentativa do filho do presidente de montar um serviço de segurança paralelo ao já disponível pela presidência da República.
Houve o aconselhamento ao presidente da República, por parte dos dois ex-ministros, de que seria uma temeridade acobertar tal tipo de atividade, que poderia motivar um impeachment.
O ministro Augusto Heleno mais uma vez ontem negou a veracidade da tentativa de criar-se uma “ABIN paralela”. Mas não se referiu em nenhum momento ao filho do presidente, talvez indiretamente citado na definição de “devaneio de amadores”, como classificou a informação.
De fato, é tecnicamente equivocado chamar-se de “ABIN paralela” uma equipe clandestina de rastreamento de pessoas em posições “sensíveis”, embora seja jornalisticamente oportuno.
Mas as indicações são claras de que esse movimento foi feito. Se o esquema chegou a ser implementado a ponto de os deputados “sentirem” sua presença nas conversas políticas, é um tema para ser investigado mais a fundo.
Pode ser até mesmo que não tenha nem sido instalado, diante das advertências aos “amadores”. Ou, o que seria uma tragédia institucional, pode ser que tal esquema continue em plena vigência. Só uma investigação independente poderá esclarecer a situação.
Merval Pereira: Sem compostura (2*)
Brincar com crescimento pífio do PIB é brincar com desemprego, é menosprezar consequências no cotidiano do cidadão
Vivendo na bolha virtual das redes sociais, o presidente Bolsonaro espanta-se quando os jornais independentes estampam nas manchetes sua falta de compostura. Diz que jornalista é raça em extinção, mas se incomoda quando identificam nele a contrafação do palhaço contratado.
Numa metalinguagem involuntária, um palhaço orientava o outro sobre que perguntas fazer para os jornalistas, enquanto bananas eram distribuídas. O que em Chacrinha era pura arte brasileira, em Bolsonaro e Carioca é a explicitação de uma visão de mundo apequenada pela atuação permanente no lado escuro da sociedade.
Beppe Grillo, o cômico italiano, youtuber e blogueiro, que criou um partido político de extrema-direita com influência importante na política italiana, é o que há de mais próximo de Bolsonaro na política internacional. Não por ser de extrema-direita, mas por ser palhaço.
Apalhaçado também é Trump, assim como foram Hitler e Mussolini, em comum todos de extrema-direita chegados ao poder em momentos críticos da vida de seus países e do mundo.
Como não podia deixar de ser, Bolsonaro enfrentou reações negativas sobre sua postura em relação ao resultado do PIB. "PIB? O que é PIB? Pergunta para eles (jornalistas) o que é PIB", disse Bolsonaro ao humorista Márvio Lúcio, conhecido como Carioca, caracterizado como o presidente, que chegou ao Palácio da Alvorada num carro oficial da Presidência, ao lado do chefe da Secom, Fabio Wajngarten.
Brincar com o crescimento pífio do PIB brasileiro é brincar com a taxa de desemprego, é menosprezar as conseqüências no cotidiano do cidadão de baixa renda ou sem renda. Bolsonaro, de tão tosco, deixa pistas sobre suas impropriedades, e até mesmo suas ilegalidades, pelo caminho.
Ao levar a tiracolo um palhaço empregado da rede de televisão Record, depois de elogiar a chegada da franquia CNN Brasil, deixa claro o que considera imprensa que merece respeito. Millor Fernandes já dizia que jornalismo tem que ser de oposição, ou então é secos e molhados.
Pois humor a favor não é humor, é propaganda. Uma velha lição jornalística foi dada por William Randolph Hearst, magnata da imprensa inspirador do Cidadão Kane de Orson Welles: “Notícia é tudo aquilo que alguém não quer ver publicado. O resto é propaganda”.
Bolsonaro confirma candidamente que não gosta de críticas, repetindo um dos nossos ditadores militares, Costa e Silva, que retrucou a explicação de que as críticas jornalísticas eram “construtivas” também com sinceridade: “Prefiro elogios construtivos”.
O ex-presidente Lula também tinha dificuldade em separar o joio do trigo, e não gostava muito dessa definição de notícia. A ex-presidente Dilma também tinha sua contrafação, o comediante que fazia a Dilma Bolada e recebia, segundo diversas delações, pagamento mensal em “dinheiro não contabilizado” para tornar a presidente em figura simpática popularmente, missão de resto impossível.
Nunca houve, no entanto, presidente algum que tenha levado a cabo com tanto entusiasmo a degradação da função presidencial, querendo adaptar os usos e os costumes republicanos ao seu modo de vida à margem das instituições, utilizando-se delas para tentar destruí-las.
Mau soldado, segundo o ex-presidente Ernesto Geisel, foi acusado de planejar atos terroristas à guisa de reivindicação salarial nos quartéis. Mau político, anda às voltas com denúncias de divisões salariais ilegais em seus escritórios e no de seus filhos, a chamada “rachadinha”. Em 27 anos como deputado federal, só aprovou dois projetos na Câmara.
Presidente eleito por uma maioria de mais de 57 milhões de votos, hoje representa um núcleo extremista da sociedade que incentiva a ir às ruas contra as mesmas instituições que jurou proteger. Não tem noção do que seja decoro, na vida privada e na pública, nem respeita a “liturgia do cargo”.
*Em 21/12/2019 foi publicada uma coluna com o mesmo título
Merval Pereira: Futuro Nublado
Presidente da República sem apoio do Congresso, e com a economia em desacerto, não termina bem
Mesmo, ou talvez por isso, com o presidente Jair Bolsonaro fazendo piada sobre seu próprio pibinho, nada muda o fato de que o país está com dificuldades econômicas graves, e sem perspectiva de solução, agora que o Covid-19 atacou a economia mundial. Antigamente dizia-se que quando os Estados Unidos espirrava, o Brasil pegava uma pneumonia. E agora que o coronavírus contaminou o mundo todo, numa pandemia não declarada, inclusive as duas maiores economias do mundo globalizado, Estados Unidos e China?
Mais do que nunca é preciso avançar com as reformas, mas à medida que o resultado econômico não chega, mais Bolsonaro vai deixando de lado seu viés liberal. Já teria pedido um crescimento mínimo de 2% do PIB para este ano a Paulo Guedes, missão que, com as novidades, parece impossível.
Seu faro político-eleitoral está apontando para um cenário perigoso, e ele tem razão, sobretudo quando a crise com o Congresso, que o favorece diante de seu eleitorado mais fanático, tem efeitos colaterais que nossa história recente registra tristemente.
Presidente sem apoio do Congresso, e com a economia em desacerto, não termina bem. É verdade que os dois presidentes impedidos desde a redemocratização chegaram a crises econômicas devastadoras: o governo Collor registrou retração de 2,06% do PIB e, de 6,97% da renda per capita.
O segundo governo Dilma teve, entre parte de 2014 e maio 2016, uma retração média de 2,2%. O ano em que Michel Temer assumiu o governo ainda terminou com um PIB negativo de 3,5%, o país saindo da recessão apenas em 2017, com um crescimento pífio de 1,3%, que se repetiu no ano seguinte.
Mesmo com apoio parlamentar, Temer viu-se às voltas com pedidos de impeachment. Tinha uma impopularidade marcante, assim como Collor e Dilma, o que os diferencia de Bolsonaro, que ainda tem boa margem de apoio no eleitorado.
Esses resultados pífios da economia brasileira, especialmente na última década, fizeram com que o poder de compra do brasileiro estagnasse no tempo, quando não decresceu. Em 1980, o PIB per capita brasileiro equivalia a quase 40% do dos Estados Unidos, e hoje está em 26%.
Nesse período, o PIB per capita do Chile passou de 27,4% para 41,5% do indicador dos EUA; o da China, de 2,5% para 28,9% e o da Coréia do Sul, de 17,5% para 66%.
Os números levam em conta o critério de paridade do poder de compra (PPP, na sigla em inglês), com base em estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI). Nos últimos três anos, o nosso PIB per capita recuou, crescendo menos que o PIB nacional.
O presidente Bolsonaro, como qualquer outro presidente, destacou o lado bom, que este teria sido o melhor semestre desde 2013, o que não impediu que o resultado final fosse o pior crescimento desde a recessão do governo Dilma.
Ele, no momento, tem que manter a esperança de que a economia está sendo preparada para a retomada, apesar das constantes decepções. O ministro Paulo Guedes diz que “temos só 15 semanas para salvar o Brasil”, conclamando os deputados a aprovarem no primeiro semestre as reformas administrativa e tributária, antes do início da campanha das eleições municipais.
Collor e Dilma combinaram, em determinado ponto de seus mandatos, impopularidade e crise econômica. Temer foi tão ou mais impopular que os dois, mas conseguiu manter o apoio do Congresso graças à percepção de que estava levando a economia para fora da recessão.
Bolsonaro continua popular, e a política econômica liderada de Paulo Guedes mantém as expectativas de crescimento, embora já tenhamos começado o ano com a perspectiva de um crescimento medíocre devido à pandemia do Covid-19, que afetará o mundo.
Essa dicotomia, o governo dependendo do Congresso para aprovar as reformas, e o presidente da República, para manter sua popularidade em níveis razoáveis, dependendo do apoio de seus radicais contra o Congresso, é que dificulta uma prospecção a médio prazo.
Merval Pereira: Queda de braço
Houve um acordo, mas nem o Planalto nem o Legislativo querem admitir que cederam para que se chegasse a ele
Há apenas um vencedor visível até o momento nessa disputa entre o Executivo e o Legislativo em torno do Orçamento da União, os senadores que queriam manter os vetos do presidente Jair Bolsonaro.
Uns, por considerarem que a manobra da Câmara se prestava a interesses escusos em torno dos R$ 30 bilhões. Outros, com interesses puramente regionais, não querendo que seus adversários políticos na Câmara tenham mais recursos para a campanha municipal.
Coma disposição da maioria dos senadores, por razões diversas, de manter os vetos, Bolsonaro não precisaria fazer acordo para a divisão dos recursos, mas não quis se indispor coma Câmara.
Apenas uma coisa está certa nesse imbróglio do Orçamento: houve um acordo, mas nenhuma das partes, seja Palácio do Planalto ou Legislativo, quer admitir que cedeu para que se chegasse a ele.
O presidente Bolsonaro passou o dia em reuniões, recebeu o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ouviu seu ministro da Economia, Paulo Guedes, mando upara o Congresso três projetos de lei para regulamentar o Orçamento impositivo, mas avisou pelo Twiter que não fez nenhum acordo, e que a execução do Orçamento da União ficará integralmente mantida, preservada a autonomia do Executivo.
É a realidade paralela de quem vive no mundo digital, onde o que vale é o que está escrito no Twitter ou no WhatsApp. Depois de ter mobilizado seus seguidores para a manifestação do dia 15 contra os políticos e o Judiciário, Bolsonaro não poderia mesmo admitir que sucumbira à pressão do Congresso.
Mas, na realidade, não se sentiu com força suficiente para manter os vetos contra a maioria da Câmara. Como dizia o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz em “O primo Basílio”, “as consequências vêm depois”.
Quando os técnicos do Congresso entende remoque está incluído nos textos dos projetos de lei apresentados, saberemos se houve mesmo recuo do governo, como tudo indica, ou se nas entrelinhas há algum truque para o Executivo tentar enganar o Legislativo.
A falta de confiança mútua é um obstáculo ao entendimento. A de uma base sólida de apoio ao governo no Congresso é a razão de todo esse problema em relação ao Orçamento. E o presidente Bolsonaro não faz questão de ter esta base, para não depender do Congresso e do toma lá dá cá, como se a única maneira de negociar entre políticos fosse a corrupção.
Na mesma entrevista em que defendeu o Orçamento impositivo, que agora quer barrar, Bolsonaro, ainda deputado federal, foi pragmático. “O que um parlamentar tem para negociar em Brasília? É os eu voto”.
Com isso, estava dizendo que o Planalto não teria mais a possibilidade de trocar votos parlamentares por emendas, já que o Orçamento impositivo daria mais liberdade ao parlamentar.
Se a base parlamentar do governo existisse, não haveria problema porque mudanças no Orçamento, se necessárias, seriam feitas de acordo com os programas do governo.
Há um permanente conflito entre Executivo e Legislativo porque o governo não quer distribuir programas e projetos numa base de apoio parlamentar. Era importante que houvesse esse acordo hoje para a divisão dos R$ 30 bilhões do Orçamento.
Se não houvesse, e os vetos fossem para a votação, mesmo que o governo ganhasse no Senado, onde já existe uma maioria a favor dop residente, a relação da Câmara como Executivo ficaria mais uma vez trincada.
A batalha agora passa para a Comissão Mista do Orçamento (CMO), que analisará os projetos de lei. Ontem escrevi aqui que o grande bloco formado por 13 partidos, abrangendo mais da metade dos deputados, serviria para distribuir as emendas orçamentárias por seus membros.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, enviou mensagem esclarecendo que a questão do bloco da CMO não tem nenhuma relação coma execução do Orçamento de 2020. É apenas para composição da comissão que vai analisara Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2021.
Como o regimento do Congresso é diferente do da Câmara, onde o bloco vale pelos quatro anos do mandato, no Congresso é preciso criar um bloco a cada ano, que será desfeito em uma semana.
Os críticos desse chamado “blocão”, liderado pelo Centrão, dizem que, na prática, os partidos que o compõem estão alinhados e dominarão a Comissão Mista do Orçamento.
Merval Pereira: Hidra de muitas cabeças
Câmara atua autonomamente, com uma maioria clara de centro direita que poderia ser aproveitada pelo governo
A formação, em poucos dias, de um superbloco parlamentar que reúne cerca de 70% da Câmara, com 351 deputados de 13 diferentes partidos - DEM, PL, PP, MDB, PSDB, PTB, PROS, PSC, PSD, Patriota, Republicanos, Solidariedade e Avante, - é prova de que, quando querem, os deputados se articulam entre si, mesmo sem o impulso dos líderes do governo.
Até o PSL, que já foi do presidente Bolsonaro, mas ainda é liderado por seu filho senador Flavio, entrou nesse balaio inicialmente. Alertado de que aderir ao blocão era a admitir que os vetos do presidente sobre o Orçamento seriam derrubados, Flavio deu uma marcha-ré tentando retirar assinaturas de seu próprio partido.
A criação do bloco pluripartidário, e se o Corintianos tivesse sido aprovado pelo Tribunal Superior Eleitoral também lá estaria, indica que a maioria da Câmara prepara-se para repartir o bolo, calculado em R$ 30 bilhões, que resultará da eventual derrubada do veto presidencial.
Mas significa, sobretudo, que a Câmara atua autonomamente neste momento, com uma maioria clara de centro-direita que poderia ser aproveitada pelo governo para estimular a aprovação das várias reformas que estão paradas por dubiedade do presidente Bolsonaro em relação a elas.
O fato é que essa maioria esmagadora resolveu se unir, num primeiro momento, para montar a Comissão Mista Orçamentária que vai tratar dessa verba bilionária que está prestes a cair no colo do Congresso. Paradoxalmente, esses movimentos a favor da derrubada dos vetos encontram resistência no Senado, onde crescem as críticas aos deputados.
Além dos partidos de esquerda, o Podemos e o Novo também estão contra as manobras para tirar do Executivo mais poderes para usar o Orçamento da União. São representantes do conservadorismo que não comungam com o governo Bolsonaro, mas também não estão dispostos a prejudicá-lo com o que consideram manobras políticas ilegítimas.
O Podemos, comandado pelo senador Álvaro Dias, tem como objeto de desejo a filiação do ministro da Justiça Sérgio Moro para concorrer à presidência da República, mas não quer criar atritos entre ele e Bolsonaro no momento.
O Novo tenta impor uma conduta ética às negociações políticas, e não vê senão interesses escusos nessa manobra do Centrão inflado por partidos que correm em faixa própria, como o DEM e o PSDB. Esses dois partidos, e mais o PSD que também está nesse blocão, pensam em formar outra aliança, essa com objetivo político mais amplo, o de lançar um candidato viável à presidência da República.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, considera que o Centrão é o garantidor do equilíbrio na Câmara, e mesmo que não esteja em seus planos aderir a esse grupo político, prestigia-os. Com a posição do presidente Bolsonaro de afastar-se o mais possível do relacionamento partidário para fortalecer a imagem de que é um antipolítico, a corrida presidencial vai sendo organizada em vários patamares.
Entre os partidos, em busca de um candidato de centro, seja à esquerda ou à direita, que possa enfrentar os extremos Bolsonaro e PT. Esse grupo tem no apresentador de televisão Luciano Huck, que se filiaria ao Cidadania de Roberto Freire, a melhor aposta, mas não descarta até mesmo apoiar Ciro Gomes.
Dificilmente o PSDB de Doria, ele mesmo candidato potencial à presidência, apoiaria Ciro, nem o Cidadania abriria mão de Huck, o que pode indicar uma divisão das forças centristas que repetiria 2018.
O presidente Bolsonaro pretende continuar indo às ruas, seja através das mídias sociais, seja em convocações como a que se planeja para o dia 15 de março. Aposta que seu futuro novo partido, o Aliança pelo Brasil, com sua popularidade em alta, receberá uma avalanche de apoios entre os parlamentares pelo Brasil.
Como temos o que os especialistas chamam de um “pluripartidarismo exacerbado” - são 35 partidos existentes, sendo que 27 atuando no Congresso -, nenhuma maioria governamental poderá ser formada sem que reflita esse exacerbamento, e para isso é preciso uma habilidade negociadora que falta ao governo, por incompetência ou desinteresse.
Merval Pereira: Falta de confiança
Não há no Congresso confiança em que um acordo com o Planalto será cumprido, a começar por este da LDO
O vídeo que está sendo distribuído por parlamentares de uma entrevista do ainda deputado Jair Bolsonaro a Mariana Godoi mostra o candidato elogiando o orçamento impositivo, que àquela altura abrangia as emendas individuais dos parlamentares. Antes disso, o orçamento era apenas “autorizativo”, isto é, o Executivo podia cumprir só o que considerasse importante, submetendo o Legislativo aos humores do Palácio do Planalto.
Na entrevista, Bolsonaro elogiou o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, hoje na cadeia, por ter aprovado o orçamento impositivo, e disse que com essa medida, o Executivo deixaria de chantagear o Legislativo. Negou com veemência que ela tornasse o Executivo refém do Congresso.
Interesante é que as duas palavras, “chantagem” e “refém” foram ditas de maneira diversa à que o General Augusto Heleno usou para criticar o Congresso. Para ele, na conversa reservada que foi captada por um vazamento do áudio, o Congresso é quem chantageia o Palácio do Planalto, tornando o presidente da República refém. É a típica situação em que a posição de quem elogiou no passado muda de acordo com o cargo que exerce no presente.
Já com Bolsonaro no poder, o Congresso ampliou o alcance do orçamento impositivo às emendas das bancadas, aumentando a proporção das que têm que ser executadas obrigatoriamente durante o ano legislativo.
No ano passado, o Congresso deu um passo mais largo, incluindo na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que as emendas de comissão e as do seu relator também seriam impositivas. É deste avanço parlamentar nas verbas públicas que estamos tratando.
O sonho do governo, acalentado pelo ministro da Economia Paulo Guedes, seria que, ao contrário, o Congresso autorizasse que as verbas chamadas “carimbadas”, isto é, as que são destinadas à áreas específicas como saúde e educação, entre outras, fossem liberadas, para que o Executivo tivesse mais margem de manobra para distribuir o dinheiro do Orçamento de acordo com as necessidades daquele momento.
Guedes alega ainda que o próprio Congresso poderia ter maior liberdade de alocar verbas públicas nos setores que considerasse prioritários. Faz todo sentido, e aí entra a complicação de um governo que não tem articulação política, e aproveita todas as situações para criticar os parlamentares, gerados pela velha política, segundo Bolsonaro.
Uma das queixas mais freqüentes é a de que o presidente nunca leva para inauguração de obras deputados da região, a não ser os seus mais íntimos, como o deputado Hélio Lopes, o “Hélio Bolsonaro”, que já foi apresentado ao presidente dos Estados Unidos por Bolsonaro como “o meu Obama!”, referindo-se à cor de pele do amigo. Ainda segundo Bolsonaro, que o considera “um irmão”, Hélio Negão, como também é conhecido, demorou um pouco a nascer e ficou “tostadinho”.
Não há confiança no Congresso em que um acordo com o Planalto será cumprido, a começar por este da LDO. Nenhum Congresso do mundo aprova um orçamento sem acordo dos partidos, especialmente os do governo. Se a ampliação das emendas impositivas foi aprovada, ou a liderança do governo foi inepta ou relapsa, ou aprovou a mudança. Talvez tenha sido essa a principal razão para a saída do deputado Onix Lorenzoni da coordenação política.
Um líder partidário, ainda mais do governo, tem condições de obstruir a votação na Comissão de Finanças para impedir que alguma coisa seja aprovada sem o assentimento do Palácio do Planalto. Quando o governo deu-se conta do que acontecera, o ministro Luis Eduardo Ramos, que é quem cuida agora da relação com os congressistas, armou um acordo para que metade da verba de R$ 30 bilhões que passaria a ser também impositiva fosse repassada pelo Congresso aos ministérios, numa negociação para a aplicação em programas que correspondessem ao interesse tanto do governo quanto dos parlamentares.
A fala do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), sugerindo que o presidente convocasse manifestações para acabar com a “chantagem” do Congresso, e a posterior divulgação de vídeo com esse fim pelo próprio presidente Bolsonaro, levou ao impasse atual, reforçando a falta de confiança na sua relação com os parlamentares.
Merval Pereira: Sucessão de equívocos
O que não tem a ver como presidencialismo é a democracia direta, baseada em plebiscitos ou referendos e em convocações
Toda essa desavença entre Executivo e Legislativo pelo orçamento da União surgiu de um raciocínio equivocado do ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Não me refiro ao palavrão que gerou a convocação da manifestação do “fod*-se”, mas à idéia de que se o Congresso quer mudar as regras do presidencialismo, que aprove o parlamentarismo.
A separação dos poderes, criada na Constituição americana em 1789, é característica do presidencialismo. Existia na teoria, principalmente pela famosa obra de Montesquieu “O espírito das leis”, e de forma incipiente na Inglaterra.
A primeira república constitucional do mundo moderno é considerada a dos Estados Unidos, com a base de que quem dá os rumos é o Congresso. No presidencialismo, um deputado, um senador, não tem chefe, muito menos poderia ser subordinado ao chefe de outro Poder, o Executivo. Por isso, para que um parlamentar americano seja ministro, precisa renunciar ao seu mandato, e não apenas licenciar-se, como acontece no Brasil.
O que não tem a ver com o presidencialismo é a democracia direta, baseada em plebiscitos ou referendos, e em convocações de manifestações para pressionar o Legislativo ou o Judiciário. Essa é a maneira usada pelos bolivarianos que tanto Bolsonaro combate.
A disputa entre Executivo e Legislativo em torno do Orçamento tem origem nas colônias americanas da Inglaterra, que se rebelaram por quererem ter representantes presenciais no Parlamento em Londres, em vez de uma representação apenas virtual como queriam os ingleses. A frase “No taxation without representation” (Nenhuma taxação sem representação) tornou-se o símbolo de um movimento de autonomia das 13 colônias americanas que culminou, anos depois, em 1776 na fundação dos Estados Unidos.
No Brasil, o orçamento sempre foi uma peça de ficção dominada pelo Executivo, tanto que ele era considerado “autorizativo”, isto é, o Executivo poderia liberar as verbas que quisesse. Há quem considere que a aprovação do orçamento impositivo no que se refere às emendas dos deputados e senadores e das bancadas, como existe hoje, pode trazer um benefício: acabar o “é dando que se recebe” com relação às emendas parlamentares, provocando uma redefinição de forças no Congresso porque parlamentares deixariam de se alinhar automaticamente com o governo só para liberar suas emendas.
Este é o estranhamento do governo Bolsonaro, que pretende representar a “nova política”, mas se espanta quando o Congresso ganha autonomia de gastos. Um efeito colateral da demonização que Bolsonaro faz da política partidária. Os parlamentares assumiram o controle do Orçamento querendo ser independentes do Executivo.
Se o governo tivesse uma base parlamentar sólida, não haveria problema, pois essa maioria controlaria o Orçamento de acordo com um programa de governo estabelecido em consonância com o presidente eleito.
Como estamos em ano eleitoral, essa disputa pelas verbas públicas se acirrou. Ontem, a Secretaria de Governo anunciou que somente liberará até março 30% das emendas impositivas, o que parece a deputados e senadores uma retaliação à posição majoritária de derrubar os vetos do presidente Bolsonaro, alargando o controle do Orçamento pelo Legislativo.
Como o prazo máximo de liberação de verbas para obras antes das eleições municipais é julho, e o governo pode liberar as emendas até dezembro, temem os políticos que elas ficarão retidas pelo Executivo, sem poder serem usadas a tempo de impactar as eleições.
Se o veto for derrubado na semana que vem, R$ 30,1 bilhões em emendas serão liberados pelos próprios parlamentares neste ano. O problema não é o volume de dinheiro à disposição do Congresso. Nos Estados Unidos, o orçamento é totalmente impositivo e controlado pelo Congresso, que pode alterar integralmente a proposta do Executivo.
É claro que não acontece a toda hora, mesmo quando o presidente eleito não tem a maioria na Câmara, como é o caso hoje de Trump. Mas a Câmara tem poder para negar verba extra ao presidente, e nesse caso paralisa os serviços públicos federais.
A alternativa que a Câmara e o Senado no Brasil encontraram para sobreviver à campanha de demonização da negociação política, depois dos escândalos de corrupção revelados pela Operação Lava Jato, foi assumir o controle das reformas estruturais de que o país precisa, e, ao mesmo tempo, controlar o Orçamento para ter condições de atender às necessidades de eleitores em seus Estados e municípios.
O que vai ficar agora sob o escrutínio da opinião pública é o que farão com essa dinheirama.
Merval Pereira: Luta por espaço
O governo não tem uma base que o apoie em relação ao Orçamento, que está no centro desta disputa com o Legislativo
Além de o presidente Bolsonaro levar para onde vai uma crise institucional a tiracolo, há uma disputa de poder real entre o Executivo e o Legislativo na distribuição de verbas do orçamento que merece uma atenção especial.
A crise viajou, comentava ironicamente o então senador Fernando Henrique Cardoso sobre as viagens internacionais do presidente Sarney. Hoje, não. É possível até imaginar a desnecessidade de um vice-presidente para assumir o cargo com o avanço das comunicações, que permite ao presidente da República de qualquer país tomar decisões onde quer que esteja. Além de se comunicar através das redes sociais, participando diretamente do debate político interno.
Onde quer que esteja o presidente Bolsonaro consegue criar uma permanente crise com seus recados, comentários e ataques, seja Carnaval ou outro dia qualquer. A disputa de poder entre o Congresso e o presidente Bolsonaro, que não fez uma maioria na Câmara que possa defender suas posições, tem sido permanente.
Num presidencialismo de coalizão, dificilmente o eleito terá a maioria do Congresso, o que obriga a uma negociação parlamentar para governar. O PSDB se uniu ao PFL em 1994, num escândalo político que se justificou no correr dos anos pela necessidade de governar. O PT se uniu ao grupo político do senador empresário José Alencar, fazendo-o vice de Lula, e Dilma foi procurar o PMDB de Michel Temer para governar.
O presidente Bolsonaro, eleito com a bandeira da “nova política”, apesar de vindo do baixo clero da Câmara, onde atuou por cerca de 30 anos, resolveu que poderia governar com o apoio das bancadas temáticas transversais aos partidos, como os evangélicos, os da bala, os da agricultura, e assim por diante.
Deu errado. Tentou montar uma base parlamentar a partir do PSL, partido pelo qual se elegeu, mas brigou com os dirigentes partidários por causa das verbas partidária e eleitoral. Está tentando montar um novo partido, talvez o décimo de sua vida parlamentar, e mais uma vez parte da premissa errada.
Como dificilmente conseguirá formá-lo a ponto de competir nas eleições municipais, pretende chamar para seu novo partido os deputados e senadores que já estão em outros partidos, e mais os prefeitos e vereadores eleitos este ano. O sucesso dessa estratégia depende da popularidade de Bolsonaro, e a perspectiva que ofereça para a eleição presidencial de 2022.
Enquanto isso não acontece, Bolsonaro permanece sem uma base sólida no Congresso que defenda os interesses de seu governo. Mesmo porque não pretende dar aos parlamentares a possibilidade de fazerem parte de um programa de governo negociado com as forças políticas do Congresso.
Fica assim muito dependente de um apoio que só acontece quando os deputados querem. Como este é um Congresso reformista por excelência, muito devido à atuação do presidente da Câmara Rodrigo Maia, as pautas econômicas têm encontrado abrigo.
O governo não tem uma base que o apóie em relação ao orçamento, por exemplo, que está no centro desta disputa. Até com razão, Bolsonaro está preocupado com isso, pois vai perder a capacidade de gerenciar grande parte dele. Se o veto presidencial for derrubado como ameaçam os parlamentares, o Congresso vai ficar com o controle de mais R$ 30 bilhões, além das emendas impositivas que já fazem a maioria do orçamento da União.
Em vez de negociar uma saída política, Bolsonaro pressiona através da convocação de seus seguidores às ruas, o que é um perigo, porque ficamos com um Executivo que usa o populismo mais vulgar para impor decisões ao Congresso, e um Congresso que se aproveita da fragilidade do Executivo para tentar se impor cada vez mais sobre o presidente.
É uma crise institucional que precisa ser resolvida com negociação política, o que, aliás, está sendo feito paradoxalmente pela equipe econômica, com o Secretário do Tesouro Mansueto Almeida à frente. Bolsonaro está entrando num caminho de confrontação com todas as instituições do país, defendendo uma minoria que ainda o apóia. Hoje ele não tem mais 57 milhões de votos. Pode voltar a ter num segundo turno radicalizado, como em 2018. Que é o que busca.