Merval Pereira
Merval Pereira: Vergonha alheia
Ironicamente, vários estádios estão transformados em hospitais para o enfrentamento da crise da Covid-19
“Não se faz Copa do Mundo com hospitais”, disse Ronaldo Fenômeno, rebatendo as críticas sobre os gastos para a realização campeonato mundial de futebol no Brasil em 2014. Também o então presidente Lula foi na mesma linha, declarando que ser contra a Copa por causa dos hospitais seria “um retrocesso danado”.
Também deixamos de construir hospitais enquanto nos vangloriávamos de termos vencido a concorrência para realizar as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro. Sabemos hoje que nas duas competições houve fraude na disputa pela indicação, e o Brasil ganhou as duas com a ação de atravessadores e lobistas, brasileiros e estrangeiros, comprando os votos de delegados.
A Copa do Mundo de futebol deixou na nossa memória uma vexaminosa derrota por 7 a 1 para a Alemanha, que acabou sendo a campeã. Mas deixou também inúmeros elefantes brancos construídos a preços superfaturados, que geraram diversos processos criminais por corrupção.
Inclusive o Itaquerão, onde se realizou a abertura da Copa, em São Paulo, e o Maracanã, palco da final. O Itaquerão, aliás, foi denunciado pela Odebrecht como tendo sido construído por pressão do então presidente Lula, torcedor fanático do Corinthians.
Pelo Brasil, estão espalhadas diversas arenas esportivas que se transformaram em problemas para os governadores dos 12 Estados em que foram construídas, a maioria deles sem torcidas capazes de enche-los em jogos do campeonato local. Aliás, o Brasil teve 12 sedes, e não 8, por pressão do presidente Lula e da CBF, para agradar politicamente alguns estados.
Hoje, ironicamente, vários deles estão transformados em hospitais para o enfrentamento da crise do Covid-19: em São Paulo, o Pacaembú será um hospital administrado pelo Albert Einstein, e o Itaquerão possivelmente será usado também.
Em Fortaleza, o estádio Presidente Vargas terá 204 leitos, que podem ser transformados em UTIs. Em Brasília, o Mané Garrincha, que até pouco sobrevivia comprando o mando de campo de times com grandes torcidas, como o Flamengo, agora virou hospital. O Nilton Santos, no Rio, a Arena da Baixada, no Paraná, o da Ilha do Retiro, em Pernambuco, todos estão se transformando em hospitais para receber os infectados pelo Covid-19.
Coube à então presidente Dilma, que fora reeleita em 2014, abrir a Copa do Mundo. Como acontecera um ano antes, em 2013, na abertura da Copa das Confederações, a presidente foi vaiada assim que seu nome foi anunciado pelos alto-falantes, e ela nem pôde falar. Reflexos da insatisfação que reuniu, em 2013, as maiores manifestações contra Dilma nas ruas do país, eventos que deram início à derrocada da presidente até o impeachment em agosto de 2016.
Os panelaços foram indicador preciso da crescente insatisfação do povo contra a presidente Dilma Rousseff, mas o processo de desgaste político foi lento e aconteceu concomitantemente ao crescimento das investigações da Operação Lava-Jato, que colocou o PT diante de provas irrefutáveis do maior esquema de corrupção já descoberto no país.
Junto com a trágica realidade que enfrenta de ter que transformar arenas esportivas em hospitais, fenômeno que de resto acontece em diversos países pela gravidade da pandemia, o presidente Bolsonaro continua fazendo bolsonarices, revivendo o Febeapá do inesquecível Stanislaw Ponte Preta. Na época, durante a ditadura, era o Festival de Besteiras que Assola o País. Hoje seria o Festival de Bolsonarices que Assola o País.
Após ter feito um discurso equilibrado e ponderado na terça-feira, voltou ao seu normal ao divulgar um vídeo fake sobre uma suposta falta de mercadorias na Ceasa de Belo Horizonte, para forçar uma mudança na política de isolamento horizontal.
Os bolsonaristas gostam de opor a suposta falta de corrupção em seu governo ao perigo que representaria o PT de volta ao poder. Como se fossemos obrigados sempre a escolher o menos ruim entre os dois. Trocamos a corrupção financeira em larga escala pela corrupção dos hábitos e costumes nacionais, ambas provocando a deterioração da democracia brasileira.
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/vergonha-alheia.html
Merval Pereira: Um homem atormentado
Só o futuro dirá mas, pelo pronunciamento de ontem por rede nacional de televisão, está caindo a ficha do presidente Jair Bolsonaro. Com atraso, parece ter começado a se mover na direção do bom-senso que a realidade está fazendo prevalecer em todo mundo, em governos populistas de direita, como o dele e o de Trump nos Estados Unidos, e de esquerda, como o de Lopez Obrador no México.
Pela manhã, o presidente havia dado a entender que usaria a fala do diretor-geral da OMS Tedros Ghebreyesus para defender o fim do isolamento horizontal, mas teve que recuar diante do desmentido formal da Organização.
Mesmo assim, Bolsonaro sonegou frases para montar uma versão que, para os mais desinformados, parece ser uma concordância com a sua posição. Mas em nenhum momento ousou defender o fim do isolamento social, mesmo porque o número de mortes e infectados entre nós começa a crescer de maneira exponencial, e ainda nem estamos no pico da epidemia.
Cada vez mais solitário, o presidente Bolsonaro é um homem atormentado, conforme depoimento de pessoas que estiveram com ele recentemente. Alguns relatos falam em choros súbitos, e não seria estranho, pois há meses o presidente, ele próprio, já declarou que chora durante a noite.
Reclama dos ministros, acha que a imprensa elogia Mandetta, ou Moro, ou Guedes para diminuí-lo, como se ter escolhido bons ministros não fosse uma qualidade sua. Parece sentir não estar à altura do momento. Mas, apesar do comportamento errático que frequentemente espanta ministros e assessores palacianos, Bolsonaro consegue manter um apoio na classe militar, na qual desde o começo baseou seu governo.
Militares influentes, mesmo discordando de muitas atitudes, levam em conta sua reclamação de que o Congresso e a imprensa não o deixam trabalhar, emperram suas decisões com críticas exageradas e posições radicalizadas, como se ele não fosse o primeiro a radicalizar.
A organização de seu governo abriga cerca de mil militares em diversos escalões, inclusive oito ministros, dentre eles os que têm gabinete no Palácio do Planalto. Esse aparelhamento militar da máquina estatal é consequência natural, pois Bolsonaro fez sua vida política apoiado pelas corporações militares e por membros delas mesmo fora das três Armas, como integrantes de empresas de segurança e milicianos que a família condecorou e empregou.
Essa atitude faz com que os militares tenham pontos em comum com o presidente, mesmo quando discordam das estratégias ou atitudes. Há uma admiração pela maneira como conseguiu eleger-se deputado federal por quase trinta anos e chegar à presidência da República com apoio popular, como se esse apoio, coroado em 2018, tivesse o condão de resgatar a imagem dos próprios militares.
Bolsonaro faz questão de manter essa aura de vencedor, e quando há alguma discussão mais difícil dentro do governo, ele assume a solução alegando: “Quem tem voto aqui sou eu”. Ontem, esse homem assombrado por fantasmas viu-se diante de uma situação inusitada, o combate ao Covid-19 que provoca a maior crise humanitária das últimas décadas no mundo, e a data 31 de março de 1964, que para ele e os militares em geral, especialmente os de uma geração ainda na ativa, representa um paradigma do qual insistem em se orgulhar, como mostra a ordem do dia anacrônica do ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva.
A luta contra o comunismo num mundo em que esse sistema político nem mesmo existe mais, é o maior elo entre os militares e Bolsonaro, e ele se vale disso para alimentar o sentimento de lealdade. O perigo de haver revoltas populares por falta de comida e dinheiro é uma ameaça que o presidente vende para justificar sua insistência contra o isolamento horizontal. O fantasma da volta de Lula e do PT, a que o próprio Bolsonaro alude volta e meia, aliado à memória do golpe de 64, é um amálgama que os une, ainda que completamente equivocado.
Bolsonaro usa essa lembrança para fazer política, pois lhe convém manter essa dicotomia “eu contra ele”. Mas ele, que pela manhã havia feito um comentário sobre o golpe militar dizendo que foi “o dia da liberdade”, à noite não se pronunciou sobre o tema, demonstrando, talvez pela primeira vez, que, por momentos, sabe separar o grave período por que a humanidade passa da politicagem que ontem ainda manchava seu pronunciamento com a tentativa de distorcer as palavras do diretor-geral da OMS.
Merval Pereira: Bolsonarices
A cada bolsonarice que faz, mais eleitores se descolam de seu compromisso eleitoral, como demonstram os panelaços
A tentativa de tirar o protagonismo do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta no combate ao Covid-19 não passa de mais uma bolsonarice, entre muitas que o presidente comete cotidianamente com palavras, gestos e hábitos.
Bolsonarice ainda não existe na língua portuguesa oficial, mas caminha para tornar-se um neologismo similar a tolice, burrice, asnice, todos derivados de substantivos com o sufixo “ice”, que tem em certos casos, como nesses, uma carga pejorativa indelével.
É uma característica da língua portuguesa a criação de palavras como essa, que primeiro dominam o português falado informalmente e acabam, pela frequência do uso, se imiscuindo na língua oficial, sendo reconhecidas pelos dicionários. Talvez, portanto, estejamos vendo o surgimento de uma nova palavra, pela necessidade de classificar as atitudes de um presidente da República colocado no Palácio do Planalto por circunstâncias políticas, como um jabuti em cima de uma árvore.
Boa parte das mãos que o colocaram lá, no caso do nosso jabuti, já não o aparam. A ideia propagada de que representa mais de 57 milhões de eleitores que votaram nele é uma falácia, pois como dizia Tancredo Neves, voto você não tem, você teve.
A cada bolsonarice que faz, mais eleitores se descolam de seu compromisso eleitoral, como demonstram os panelaços diários. Uma característica de sua personalidade é a paranóia, e Mandetta caiu na sua malha fina.
Todo ministro que se destaca popularmente, e pode ter objetivos políticos, Bolsonaro trata de cortar-lhe as asas. Mandetta já foi deputado federal, tem ligações políticas importantes, e a aparição diária para dar informações sobre a atividade do ministério da Saúde no combate ao Covid-19 tornou-o figura popular e simpática.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, continua na mira de Bolsonaro pelo mesmo motivo. Ontem, vazaram comentários do presidente de que estava se considerando desamparado juridicamente por Moro. Sintomaticamente, quem foi falar sobre os aspectos jurídicos do combate ao Covid-19 foi o ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), André Luis Mendonça, “tremendamente evangélico” e também candidato a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF).
Também ontem, o Palácio do Planalto estabeleceu nova sistemática para as coletivas sobre a pandemia, reduzindo o ministro da Saúde a mais um dos muitos ministros que estão cuidando do assunto, a partir da coordenação do chefe do Gabinete Civil, General Braga Neto.
O ministro Mandetta, o último a falar, não deixou dúvidas sobre a manutenção da política de controle sanitário adotada desde o início da crise. O afastamento social continua sendo o comportamento recomendado por critérios técnicos, até que se tenha informações necessárias para organizar uma distensão gradual, até que a vida volte ao normal.
O mês de abril já está reservado, na visão técnica, para a quarentena de todos que não exerçam funções essenciais. Com habilidade, Mandetta passou as orientações sem aparentar que estava desautorizando a atitude do presidente ao visitar o comércio de algumas cidades satélites de Brasília. Mas ficou claro que o presidente exorbita, até quando defende o confinamento vertical de idosos e doentes.
O auge da demonstração de força do Planalto foi acabar com a entrevista, através da locutora oficial, no exato momento em que o ministro Mandetta teria que responder a uma pergunta direta sobre o que achou do passeio de Bolsonaro.
O adendo de que o ministro da Saúde continuaria na sala para fazer uma apresentação técnica sobre o panorama do Covid-19, mas não responderia a perguntas, foi a cereja do bolo.
Recado
O ministro Paulo Guedes manda um recado informando que, ao contrário do que escrevi, o presidente Bolsonaro o consultou sobre o Aumento do valor de R$ 600 do voucher para os informais, cabendo ao líder do governo na Câmara Vitor Hugo , após confirmação com ele, anunciar a decisão do Presidente.
Merval Pereira: Ações desencontradas
O ministro Mandetta está querendo se equilibrar entre o lado técnico e o político, e só faz aumentar a incerteza
O ação desagregadora do presidente Jair Bolsonaro torna-se mais grave neste momento em que é necessário que o país tenha um rumo no combate à pandemia do Covid-19. Bolsonaro toma decisões sem consultar seus ministros mais afeitos aos problemas, como Paulo Guedes, da Economia, e Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, e provoca crises intestinas que se refletem em decisões postergadas ou desencontradas.
Quando resolveu aumentar para R$ 600 o voucher para os informais para não deixar que o presidente da Câmara Rodrigo Maia, que propusera aumentar de R$ 200 para R$ 500, saísse como o grande benfeitor dos pobres, Paulo Guedes não foi consultado.
Quando fez o pronunciamento defendendo o fim da quarentena horizontal, também não falou com Mandetta. Paulo Guedes foi para o Rio depois de conflitos com Bolsonaro sobre o montante de gastos na crise, situação aparentemente superada como demonstra o vídeo que Guedes gravou, engajando-se na política de Bolsonaro.
O ministro Luiz Henrique Mandetta está querendo se equilibrar entre o lado técnico e o político, e só faz aumentar a incerteza a respeito das diretrizes do governo. Ontem, em seu pronunciamento depois de uma reunião no Palácio da Alvorada com o presidente Bolsonaro e outros ministros, Mandetta não mudou nenhuma orientação, como exige sua equipe técnica, mas acenou com mudanças a curto prazo, o que não parece viável.
Para agradar o presidente, voltou a defender a tese de afrouxamento da quarentena, e chamou os meios de comunicação de “sórdidos”. Mas desaconselhou as carreatas a favor da volta à normalidade, e não mudou a politica vigente.
O clima de desobediência civil espraia-se pelo país, e as ruas continuam vazias depois do pronunciamento estapafúrdio do presidente Bolsonaro defendendo o fim do isolamento social prescrito por cientistas e pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o melhor meio de conter a disseminação do novo coronavírus.
A Justiça impediu que continuasse a ser veiculado o vídeo, produzido dentro do Palácio do Planalto, pedindo o fim do confinamento, e a polícia proibiu carreatas previstas para ontem em diversos pontos do país.
Enquanto o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta se encarrega da politicagem palaciana, seus técnicos reafirmam as recomendações sanitárias, sem alterar a política de contenção da pandemia, segundo declarações do secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo dos Reis.
Ontem, o ministério da Saúde enviou para todos os secretários estaduais recomendações que reforçam as medidas, como proibição de aglomerações em shows, cultos, futebol, cinema e teatros. No dia anterior, o presidente Bolsonaro defendera a volta dos jogos de futebol, com público reduzido.
O documento traz medidas mais severas, e prevê o fechamento das escolas e universidade até o fim de abril, podendo a recomendação ser estendida a maio. Mandetta não desautorizou as diretrizes, mas disse que estão em discussão.
Parece querer ganhar tempo com essa postura dúbia, na melhor das hipóteses para organizar melhor o sistema de saude publica para enfrentar o pico da crise, esperado para os próximos meses. Na hipótese mais cruel, está apenas manobrando para continuar sob os holofotes.
Várias entidades nacionais estão conclamando à desobediência civil, diante das evidências internacionais de que o melhor caminho científico está sendo ignorado pelo presidente. CNBB, OAB, ABI, SBPC, Academia Brasileira de Ciências soltaram uma nota conjunta defendendo o confinamento, e classificando as atitudes do presidente Jair Bolsonaro de “campanha de desinformação” e “grave ameaça à saude dos brasileiros”.
O presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Alberto Beltrame, afirmou que a entidade não apoia "qualquer recuo no sentido de afrouxamento de isolamento, e sim uma transição na direção de sua ampliação, na medida da necessidade". Isso porque o mês de abril está sendo considerado crucial para controlar a Covid-19.
Merval Pereira: Sem controle
É preciso definir qual limite que o hoje presidente brasileiro pode ir até que seja bloqueado pelas armas da democracia
Como expressar o desalento de ter na presidência da República, especialmente num momento de grave crise como esse, uma pessoa capaz de dizer essa frase em público:“Alguns vão morrer? Vão morrer, ué, lamento. Essa é a vida, é a realidade. Nós não podemos parar a fábrica de automóveis porque tem 60 mil mortes no trânsito por ano, está certo?”.
Há certas coisas que se pode pensar, mas nosso superego impede que digamos em voz alta devido a um processo civilizatório a que somos submetidos no convívio social, como já ensinou Freud. Mas Bolsonaro, como já ficou provado em outras ocasiões, não tem superego.
A comparação com os automóveis parece ser uma fixação desse governo, e a falta de empatia, permanente. No início do mandato, quando se discutia a liberação da posse de armas pelos cidadãos, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, também usou a comparação de automóveis com as armas.
Mais limitado, o também ministro Ônix Lorenzoni comparou os revólveres com os liquidificadores. O objetivo era o mesmo de hoje do presidente Bolsonaro, relativizar as eventuais mortes ocasionadas pelas decisões governamentais. Embora estudos mostrem que a liberação das armas para os cidadãos provoca mais mortes do que proteção, desta vez é mais grave, pois há um conjunto de evidências científicas, como o estudo divulgado pelo Imperial College of London, que demonstra que a diferença entre o isolamento social rigoroso e uma estratégia mais branda de proteção seletiva sobre os idosos e os doentes pode significar até 1 milhão de vidas perdidas a mais em pouquíssimo tempo no caso do Brasil.
Há uma ressalva fundamental no nosso caso: o estudo foi feito com base no que está ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos, e não leva em conta a existência de favelas, a falta de abastecimento de água ou saneamento, e outras mazelas com que as populações mais carentes convivem.
Os estudos do Imperial College of London foram responsáveis pela mudança de atitude do governo de Boris Johnson, que tentou uma abordagem menos drástica da crise do Covid-19 imaginando que a população ganharia anticorpos para combater o novo vírus, e teve que desistir devido ao aumento exponencial de casos de contaminação e mortes.
Temos também o caso que já se tornou clássico da Itália, - e dentro dela de Milão, - que tentou minimizar os efeitos da pandemia e acabou se tornando o epicentro de uma tragédia humanitária. Como já temos esses exemplos, a posição do presidente brasileiro torna-se ainda mais inaceitável.
De nada nos servirá que ele venha dentro de um mês se desculpar (se é que é capaz disso) como fez o prefeito de Milão, que ontem, diante da catástrofe que se abateu sobre seus cidadãos, admitiu publicamente que desprezou os perigos da Covid-19.
Mais grave é que o grau de irresponsabilidade é tamanho que o governo brasileiro é capaz de encomendar e distribuir pelos canais das redes sociais vídeos defendendo que o país não pode parar, mesmo slogan publicitário de Milão, e, diante da repulsa que geraram nos cidadãos de bem, alegar que não foram aprovados pela Secretaria de Comunicação, e, portanto, não são oficiais.
Para quem tem dentro do Palácio do Planalto um chamado “gabinete do ódio”, que opera nas sombras para disseminar boatos e fake News, esta não é uma postura surpreendente. O que é preciso definir, de acordo com as instituições que zelam pela democracia brasileira, como o sistema Judiciário, e o Congresso, é qual o limite que o hoje presidente brasileiro pode ir até que seja bloqueado pelas armas da democracia.
Bolsonaro já nem mesmo se dá ao trabalho de tentar disfarçar seus objetivos. Perguntado pelo apresentador José Luis Datena se estaria disposto a dar um golpe, em vez de negar peremptoriamente, Bolsonaro respondeu: “Quem quer dar um golpe não vai falar que vai dar”.
Como sempre, sem superego.
Merval Pereira: Contradições paralisantes
Há contradições internas no governo Bolsonaro que emperram a tomada de decisões. Além dessas, há ainda disputas ideológicas que levam a decisões políticas nada baseadas em fatos comprováveis. O voucher previsto para os trabalhadores em situação vulnerável, como os que trabalham por conta própria, ainda não saiu do papel, mas já está sendo alvo de disputa politica.
O primeiro intuito do governo era distribuir R$ 200, a oposição propôs R$ 300 e o presidente da Câmara elevou a proposta para R$ 500. Ontem à tarde, o presidente Bolsonaro revelou que pensa em distribuir R$ 600 para cada vulnerável. Não há conta feita, apenas disputa política. Ainda bem que essa disputa favoreceu os mais pobres.
A injeção de dinheiro para as empresas continuarem abertas, garantindo empregos na transição do confinamento para a tentativa gradual de volta à normalidade, também continua empacada. Dias atrás o empresario Abilio Diniz anunciou em um fórum de debates que o ministro da Economia Paulo Guedes havia lhe garantido que injetaria R$ 600 bilhões com o intuito de preservar empresas e empregos, mas até agora não se tem uma decisão.
As medidas esbarram muito na concepção econômica da equipe, que quer a volta às atividades normais até o dia 7 de abril. Um sinal de que o desencontro dentro do governo é grande e uma disputa entre as equipes técnicas da Saúde e a da Economia. A decisão de usar a cloroquina ou hidroxicloriquina apenas em casos graves de Covid-19 foi considerada equivocada pela equipe econômica, que teme que o tratamento dos infectados se prolongue mais do que o necessário.
O próprio presidente Bolsonaro levou à reunião do G-20 a discussão sobre esse medicamento, que ele ordenou ser fabricado pelo Exército para aumentar a produção. Apesar dos resultados positivos já alcançados, no mundo e aqui, não há ainda indicações seguras sobre se seu uso nos casos de Covid-19 pode provocar efeitos colaterais.
A permissão para suspender os contratos de trabalho por quatro meses sem pagamento de salário é outro exemplo de preocupação econômica acima da humanitária. A desculpa é que se tratou de um erro de digitação, mas na verdade houve a supressão da compensação financeira que seria dada a esses demitidos, e a exigência de garantia de emprego na volta.
Agora o governo pensa em nova medida, mas apenas por dois meses, e com todas as garantias. Assim como está difícil a equipe econômica virar a chave para se tornar pelo menos temporariamente keynesiana, com o Estado assumindo um papel mais decisivo na preservação dos empregos e dos investimentos, também será difícil aos técnicos da saúde mudarem o posicionamento caso o ministro Luiz Henrique Mandetta decida aderir formalmente ao pensamento do presidente Jair Bolsonaro.
Trocar a equipe com a mudança do ministro em meio à crise será uma perigosa manobra. Mas mudar as diretrizes sob as ordens do mesmo ministro também provocara uma reação interna na equipe de Saúde.
O presidente da República não tem como obrigar Estados e Municípios a aderirem a uma proposta dele fora de uma negociação política. A inclusão dos templos religiosos e das loterias nas atividades essenciais é uma decisão que certamente será contestada na Justiça.
Também no caso das escolas, governadores e prefeitos é que têm a prerrogativa legal de abrir e fechá-las. Também no transporte público, o presidente precisa negociar. O discurso de Bolsonaro, que vai na contra mão do mundo inteiro, inclusive dos Estados Unidos - que são o espelho dele - por enquanto é só isso, discurso político, sem norma jurídica, e não muda decisão nenhuma.
As orientações do ministério da Saúde é que vão prevalecer, e estamos diante de um impasse. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que até outro dia merecia os aplausos da população, tenta se equilibrar diante de um presidente que tem um discurso contrário às orientações dadas até o momento. Se conseguir retardar as posições de Bolsonaro, convencê-lo de que é possível uma saída programada, que minimize os problemas do cidadão, estaremos num bom caminho. Evidente que não se pode ficar trancado em casa por três, quatro meses. Mas é preciso um prazo para ver a linha de comportamento do coronavírus, e fazer análise estatística para basear as decisões.
Merval Pereira: Um presidente sozinho
Um movimento de desobediência civil está instalado no país desde o primeiro panelaço, que foi se espalhando por estados e regiões
O presidente Bolsonaro, por escolha própria, está completamente isolado. Não tem partido, não tem o apoio dos governadores, não tem diálogo dentro do Congresso. Já não governa mais. Um movimento de desobediência civil está instalado no país desde o primeiro panelaço, que foi se espalhando por estados e regiões à medida que ele se demonstrava inapto para exercer a presidência da República, especialmente num momento de grave crise de saúde pública como o que estamos vivendo. Os governadores, em maior ou menor grau, já anunciaram que não seguirão as orientações do governo se colidirem com as normas da Organização Mundial da Saúde. A população, mostram as pesquisas, apoia essa prudência.
Como é espontâneo por sua natureza tosca, Bolsonaro revelou em entrevistas o que lhe aflige, o efeito da crise econômica que certamente virá recair sobre o seu governo. Não se mostra capaz de enxergar além do horizonte puramente eleitoral, e isso demonstrou ontem na reunião de governadores do sudeste, ao levar a discussão para o campo politico-eleitoral, descompensado com as críticas que acabara de receber de maneira dura, mas respeitosa, do governador de São Paulo João Doria.
Que Doria é candidato a presidente da República em 2022, ninguém desconhece. Mas, no momento, ele está se comportando como um líder diante da crise da Covid-19 que se abate principalmente sobre o Estado que governa. Bolsonaro, mesmo que vislumbre por trás dessa postura de Doria uma máscara que procura esconder sua intenção eleitoral de se contrapor a ele, mostrou-se um desastrado ao escancarar sua irritação diante de um adversário que sabe jogar o jogo político, expondo suas deficiências.
A preocupação de Bolsonaro tem razão de ser, pois com seu comportamento irresponsável diante da crise, está se abrindo um amplo caminho para o tal candidato de centro que se apresente como alternativa aos radicalismos de esquerda e direita.
Doria está aproveitando o momento para demonstrar uma capacidade de gestão que o credencia a se apresentar como essa alternativa. Cada vez mais fica claro que a preocupação de Bolsonaro com a economia do país não tem nada a ver com o bem-estar do povo, mas com a necessidade de mostrar melhorias econômicas que respaldem sua candidatura à reeleição.
A mesma situação em que se encontra hoje o presidente dos Estados Unidos, que disputará a reeleição ainda este ano. Ao mimetizar Trump, mas sem o dinheiro que o presidente americano tem a seu dispor, o presidente Bolsonaro assumiu um risco que não poderia, e precipitou-se.
O próprio Trump, ao anunciar que gostaria de ver as atividades econômicas voltando à normalidade pela Páscoa, deu-se um prazo para avaliar a situação. Bolsonaro, não. Assumiu a decisão de acabar com a quarentena imediatamente, no segundo dia de sua implantação em todo o país.
A questão não é se teremos que suspender esse confinamento, mas quando, e através de qual planejamento. Esse é o grande tema em discussão pelo mundo, mas nós no Brasil ainda não chegamos ao pico da crise da Covid-19, e tememos que ela se alastre perigosamente quando atingir as comunidades mais carentes.
Os governadores do país todo, de diversos partidos políticos, estão mobilizados mais ou menos na mesma direção, baseados nas recomendações do ministério da Saúde, que até hoje segue as orientações da Organização Mundial da Saúde. O ministro Luiz Henrique Mandetta há alguns dias já dava mostras de que tentava evitar que o presidente Bolsonaro se desagradasse de seu sucesso junto à opinião pública.
Ontem, depois de ter sido desautorizado em transmissão nacional de radio e televisão, Mandetta deu um jeito de se aproximar ainda mais das posições de Bolsonaro, e se afastar da imagem técnica que dava segurança à população. Falou mais alto o diploma de deputado federal do que o de médico, e Mandetta se aproxima da desmoralização.
Que só não é total porque ficou de estudar a proposta de Bolsonaro. Espera-se que aproveite sua última chance para apresentar ao presidente um planejamento tecnicamente coerente para uma saída cautelosa da política de confinamento.
Merval Pereira: Transparência, presidente
Parece absurda a decisão do presidente Jair Bolsonaro de não apresentar o atestado de que não se contaminou com o Covid-19, apesar de 25 pessoas de sua comitiva aos Estados Unidos terem testado positivo. Alegar que é uma decisão de cunho pessoal não é desculpa para um funcionário público, especialmente tratando-se do presidente da República.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também errou ao dizer que as informações pertencem aos pacientes. Pode até ser, mas não quando esse paciente é o presidente da República. Temos no Brasil dois exemplos na nossa historia recente recente: o então ministro da Justiça do governo Geisel, Petronio Portela, tido como um potencial candidato à presidência da República na ocasião, escondeu um ataque cardíaco e acabou morrendo.
Tancredo Neves, já eleito presidente, mas temeroso de que os militares tentassem não largar o poder, escondeu uma dor que o levou ao hospital na véspera da posse. O que parecia uma diverticulite, acabou se mostrando um tumor, que o matou.
O governador de São Paulo, João Doria, mostrou o atestado de que seu exame deu negativo, assim como o prefeito paulistano Bruno Covas. Em qualquer país do mundo a saúde do chefe do governo é fato relevante, e esconder doenças geralmente é fatal para as pretensões de qualquer candidato presidencial nas democracias ocidentais, quanto mais quando no exercício do cargo.
É atitude costumeira em regimes autoritários ou ditaduras, que dependem da idolatria da imagem de seus líderes para se sustentarem. O caso mais recente é o de Hugo Chávez na Venezuela, que escondeu um câncer durante meses, que acabou matando-o.
O presidente Bolsonaro não se negou a revelar detalhes sobre a facada que o vitimou na campanha eleitoral, e já mostrou até mesmo o corpo com cicatrizes na televisão, numa atitude inusitada. O próprio Bolsonaro revelou, em entrevistas diversas, que não dorme direito desde que levou a facada, que tem pesadelos, às vezes chora à noite.
Foram revelações íntimas de um chefe do governo que passaram a ideia de um homem angustiado com sua saúde, mas revelavam também um presidente transparente, o humanizaram diante da população.
Todas as operações a que foi submetido foram anunciadas com detalhes, e uma possível nova cirurgia já foi admitida por ele mesmo. Seria inconcebível que essa atitude desabrida só tenha acontecido porque a facada lhe angariou simpatias, e sua vitimização pode lhe trazer ganhos eleitorais.
O Hospital das Forças Armadas em Brasília entregou às autoridades do Distrito Federal, por decisão da Justiça, a relação de todos os pacientes que testaram positivo pelo novo coronavírus, mas estranhamente deixou dois nomes de fora da lista, o que só faz aumentar a suspeita de que alguma coisa está sendo escondida do povo brasileiro.
Evidentemente que se o presidente Bolsonaro sabia que estava infectado ao sair abraçando seguidores e tirando selfies naquele domingo das manifestações bolsonaristas a seu favor, a irresponsabilidade terá sido muito maior do que se imagina.
Para agravar as desconfianças, que só existem pela falta de transparência, seu filho Eduardo Bolsonaro foi acusado por jornalistas da rede Fox de televisão dos Estados Unidos de ter dado uma primeira informação de que seu pai testara positivo para o Covid-19. Ele desmentiu posteriormente e tudo parece ter sido um mal entendido, possivelmente por causa do idioma, que ele não domina tão bem quanto apregoa.
Seria gravíssimo se o desmentido tiver sido sido feito para acobertar a verdade sobre a doença de seu pai. O presidente também colabora com a desinformação ao comentar que talvez tenha sido contaminado pelo novo coronavírus e nem mesmo notou, o que é possível mas pouco provável num grupo em que 25 pessoas foram contaminadas, a maioria por ter viajado com Bolsonaro no mesmo avião presidencial em que o secretário de comunicação Fabio Wajngarten, esse sim, irresponsavelmente, voltou ao Brasil já com os sintomas de ter sido contaminado pelo Covid-19.
Esperemos que a boa notícia de que o presidente não se contaminou com o novo vírus não seja desmentida pelos fatos. Nesse caso, Bolsonaro terá cometido o maior erro político de sua vida, que pode custar caro. A confiança do brasileiro em suas ações, que está em baixa segundo várias pesquisas de opinião, será inevitavelmente trincada.
Merval Pereira: Comédia de erros
Pensar em flexibilizar o fim do confinamento é precipitado, diante da crise que ainda enfrentaremos
O presidente Bolsonaro tem culpa de não ter lido o texto da Medida Provisória que permitia às empresas suspender por até quatro meses os contratos trabalhistas, sem necessidade de pagar o salário desse período.
Quando se deu conta do estrago que a decisão faria, com trabalhadores em casa sem o salário para sustentar a família, suspendeu a medida provisória que havia promulgado na noite de domingo e até a manhã de ontem defendia.
Mas na defesa, Bolsonaro mostrou que a ideia era outra: “Ao contrário do que espalham, (a MP) resguarda ajuda possível para os empregados. Ao invés de serem demitidos, o governo entra com ajuda nos próximos 4 meses, até a volta normal das atividades do estabelecimento, sem que exista a demissão do empregado”.
Só que não havia esse compromisso do governo no texto da medida provisória, muito menos a garantia dos empregos suspensos. A explicação oficial foi “um erro de digitação”, como justificou o ministro da Economia Paulo Guedes. Erro que também ele não notou antes do protesto de sindicatos e políticos.
Nos bastidores, há quem culpe assessores do ministro Paulo Guedes pelo “esquecimento” de incluir no texto esses compromissos do governo federal, que fazem toda diferença. Uma comédia de erros derivada de uma visão economicista da situação, misturada a um populismo rasteiro por parte do presidente Bolsonaro.
Ele ainda ontem insistia em que “a vida das pessoas está em primeiro lugar”, mas com um porém: “a dose do remédio não pode ser excessiva, de modo que o efeito colateral seja mais danoso que o próprio vírus.” Semelhante ao que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, um espelho para Bolsonaro, escreveu ontem no Twitter: “Não podemos deixar que a cura seja pior do que o problema”. Ele sugeriu que ao final dos 15 dias de isolamento social imposto, o governo pode rever essa decisão.
O presidente dos Estados Unidos, que no início da crise tinha uma posição negacionista como a de Bolsonaro, mudou radicalmente ao sentir que a crise era muito maior do que imaginava. Agora, diante da previsão de catástrofe econômica, ameaça voltar a uma posição mais economicista do que humanitária.
Nos Estados Unidos, com capacidade inigualável de injetar dinheiro na sociedade para mitigar os efeitos da crise, esse debate ainda é possível, embora muitos economistas importantes digam que não é preciso colocar a economia em oposição à defesa da vida.
Entre nós, então, com a deficiência de infraestrutura de saúde acrescida à situação precária em que vive a maioria da população, pensar em flexibilizar o fim do confinamento é precipitado, diante da crise que ainda enfrentaremos, especialmente quando o vírus chegar nas favelas das grandes cidades.
A postura leniente do presidente Bolsonaro, no entanto, tem constrangido até mesmo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, repreendido por ter abordado o possível colapso do sistema de saúde como tema urgente neste momento. A tal ponto que o ministro, que tem recebido o apoio e o agradecimento da população por seu trabalho sério e ponderado, sentiu-se obrigado a fazer um elogio público ao comportamento do presidente da República.
Ontem, circulou na internet um vídeo do ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, que voltou ao cargo de deputado federal, mas é candidato potencial ao ministério da Saúde, até mesmo por ser médico. Terra garante que, com exceção dos idosos e dos portadores de doenças pré-existentes, os demais cidadãos deveriam ter uma vida o mais normal possível, pois o vírus tem um ciclo de vida de 13 semanas que independe do confinamento.
Ele considerou “um absurdo” fechar lojas e shoppings, e disse que a economia vai ficar “destruída” e, com a falta de arrecadação, vai faltar dinheiro para manter o sistema de saúde eficiente. O que, ai sim, poderá provocar mortes.
Música para os ouvidos de Bolsonaro, tanto que o ministro Mandetta ontem, no Palácio do Planalto, pediu “calma e planejamento” para paralisações das atividades econômicas para coibir a disseminação do novo coronavírus. “Há lugares que pararam tanto que não tinham mecânicos para a manutenção de determinadas máquinas hospitalares, necessidades prementes que temos no dia a dia de unidades de saúde, de unidades de manutenção de água e esgoto”.
Merval Pereira: Três cenários para a crise
O mais provável é uma continuidade do Brasil atual. A realidade finalmente se impõe, mas ‘à brasileira’
Diante da crise desencadeada pela pandemia da Covid-19, o economista Claudio Porto, fundador da Macroplan, consultoria especializada em análise prospectiva e estratégia, realizou na segunda semana de março sondagem junto a um grupo de 150 pessoas de todo o país, entre eles economistas, sociólogos, cientistas políticos, engenheiros, gestores sênior de empresas pesquisadores e professores de universidades.
O propósito era detectar a percepção sobre a situação da economia e da política brasileiras para este ano. O cruzamento das respostas propiciou à Macroplan a criação de três cenários. No denominado “A reconquista da normalidade”, o melhor, mas de menor probabilidade, em face da intensidade da crise, o Governo assumiria um comportamento cooperativo como seu novo padrão de relacionamento político-institucional, uma reviravolta surpreendente, mas positiva, no que tem pronta resposta dos principais atores políticos.
Impactos positivos diretos são produzidos nos graus de acerto, nos níveis de confiança e na melhoria e aceleração das medidas de combate às crises da saúde pública, da economia e das maiores vulnerabilidades sociais.
A melhoria do cenário externo também ajuda. Na visão da Macroplan, aceleram-se a velocidade e intensidade das boas respostas sanitárias e aos estímulos econômicos com propagação global. Como resultado, os impactos da crise na economia brasileira são intensos, mas de duração moderada. O segundo semestre é de ampla recuperação.
O cenário mais provável é o que foi denominado “Aos trancos e barrancos”, cuja probabilidade, que era de 35% no inicio da sondagem, passou ao final para 60%, à medida que a situação se agravava.
Esse cenário mostra uma continuidade do Brasil atual. A realidade finalmente se impõe, mas “à brasileira”, como define o estudo, isto é, pela metade, alternando momentos mais ou menos preocupantes. A mudança de comportamento dos principais atores do Governo Federal, o chamado “núcleo duro”, incluindo o próprio presidente Bolsonaro, é apenas temporária.
No princípio mais cooperativo, a previsão da Macroplan é que haverá sucessivas recaídas de confrontação, com resposta semelhante dos políticos. A instabilidade do relacionamento continua como “o novo normal”. Os impactos imediatos são positivos - mas não se sustentam por muito tempo.
Os níveis de confiança se mantém baixos, e as medidas de combate às crises da saúde pública e da economia são insuficientes, deteriorando vulnerabilidades sociais.
Externamente, não há novidades, especialmente no relacionamento com a China, com tensão permanente, que varia apenas nos níveis de ‘esticamento da corda’. Isso ocorreria mesmo com a melhoria do cenário global. Como resultado, os impactos da crise na economia brasileira são intensos e de duração prolongada. 2020 é mais um ano perdido.
O pior cenário, que Claudio Porto considera improvável, é “A marcha da insensatez”. Uma ruptura em relação ao Brasil atual, com uma escalada desenfreada de autoritarismo populista. Os laços de coesão social, já enfraquecidos, se rompem numa espiral ascendente de polarização.
As lideranças mais conservadoras e suas bases de apoio acentuam seu comportamento de confrontação e a tensão crescente – política e social – caminham para tornar-se “o novo normal” com impactos negativos no combate às crises da saúde pública e da economia.
Externamente, a novidade é uma piora progressiva no relacionamento do Brasil com a China, a Europa e alguns países ‘inimigos’ nas Américas. Isso ocorre mesmo com a progressiva melhora do cenário global.
Como consequência, teríamos a saída dos ‘liberais de raiz’ da equipe econômica, fazendo com que os impactos da crise brasileira tornem-se intensos e de duração prolongada, com uma ruptura progressiva nas instituições políticas.
As eleições municipais de 2020 poderiam ser adiadas a pretexto de defesa da saúde pública, enquanto uma minoria ativa da população segue nas ruas pedindo “intervenção militar já”.
Merval Pereira: Aos trancos e barrancos
Quase totalidade dos consultados está muito pessimista quanto aos impactos do coronavírus sobre a economia
A inquietação da sociedade brasileira segue em progressão geométrica, qual o corona vírus Covid-19, e a insatisfação com a ação do governo, especialmente do presidente Jair Bolsonaro, que volta e meia tenta minimizar a gravidade da situação, começa a se manifestar nas redes sociais e em panelaços, por enquanto ainda restritos a capitais.
Para mapear expectativas relativas à intensidade e à duração dos impactos da crise global provocada pela Covid-19 sobre a economia brasileira, o economista Claudio Porto, fundador da Macroplan, consultoria especializada em análise prospectiva e estratégia, conduziu na segunda semana de março sondagem junto a um grupo de 150 pessoas de todo o país, entre eles economistas, sociólogos, cientistas políticos, engenheiros, gestores sênior de empresas pesquisadores e professores de universidades.
O resultado desta sondagem evidencia que a quase totalidade dos consultados está muito pessimista quanto à intensidade dos impactos do Corona vírus sobre a economia brasileira: 86% acreditam que será alta ou muito alta. Já quanto a duração da crise, a convergência é menor: 59% acreditam que será muito curta ou curta, enquanto 41% acreditam que será longa ou muito longa.
A combinação das respostas obtidas sobre a intensidade dos impactos do corona vírus e sua duração configura, segundo a Macroplan, quatro probabilidades distintas: a) “impactos de alta intensidade, mas de curta duração” (expectativa de 51%), b) “alta intensidade e longa duração (35%), c) “baixa intensidade com longa duração” (8%) e d)“impactos de baixa intensidade e curta duração ( 6%).
Diante de uma conjuntura muito volátil, na qual os fatos e as percepções mudam com grande rapidez, a sondagem da Macroplan captou como as expectativas tornaram-se mais pessimistas com o passar dos dias, em 17 e 18 de março, quando o panorama para “Impactos de alta intensidade e de longa duração” alcançou 60% de probabilidade, e os de curta duração foram ‘zerados’.
Apoiado nos cruzamentos de percepções da sondagem realizada pela Macroplan e com base em análises dos panoramas macroeconômico, político-institucional, social e da saúde pública, o economista Claudio Porto, da Macroplan, antecipa três cenários plausíveis para o Brasil em 2020, considerando, contudo, que o quadro atual é de muita incerteza e impede qualquer previsão mais assertiva, especialmente aquelas baseadas apenas em modelos matemáticos e preditivos.
No cenário “A reconquista da normalidade”, o melhor, mas de menor probabilidade, a realidade finalmente se impõe a todos os atores políticos. O núcleo duro do Governo muda em face da intensidade da crise, assume um comportamento cooperativo como seu novo padrão de relacionamento político-institucional, uma reviravolta surpreendente, mas positiva, no que tem pronta resposta dos principais atores políticos.
“Aos trancos e barrancos” é , segundo a Macroplan, o cenário mais provável (probabilidade média de 35% - mas de 60%, considerando os últimos dias da sondagem), e configura uma continuidade do Brasil atual.
A realidade finalmente se impõe ao conjunto de todos os atores políticos, mas “à brasileira”, pela metade, alternando mais com menos. O núcleo duro do Governo Federal muda de comportamento, mas apenas temporariamente. No princípio, mais cooperativo, mas com sucessivas recaídas de confrontação, no que tem resposta semelhante dos principais atores políticos.
O pior cenário, e que Porto considera como improvável, é “A marcha da insensatez”. Uma ruptura em relação ao Brasil atual, com uma escalada desenfreada de autoritarismo populista. Os laços de coesão social, já enfraquecidos, se rompem numa espiral ascendente de polarização. (Amanhã, detalhes de cada cenário)
Merval Pereira: O dízimo de Bolsonaro
Bolsonaro mostra com frequência assustadora não ser capaz de ocupar a Presidência, ainda mais neste momento
Ninguém sabe como isso vai terminar, mas torna-se assunto inevitável a possibilidade de Jair Bolsonaro vir a ter interrompido de alguma maneira seu mandato presidencia por absoluta incapacidade, não apenas de gestão, mas psicológica. Pode ser por uma licença de saúde, uma renúncia, ou um impedimento político.
O assunto já era freqüente em reuniões de parlamentares, autoridades e empresários em Brasília e nos centros de decisão do país. Com a mais recente demonstração de irresponsabilidade no domingo, o tema ganhou dimensões alarmantes, a ponto de o próprio Bolsonaro, sentindo o cheiro de queimado, ter declarado que seria “golpe” isolar o presidente.
Por “isolar”, compreenda-se a prescrição médica determinada por seu próprio governo, até que fique garantido que não está contaminado pelo novo coronavírus. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que corre o risco de entrar na lista negra de Bolsonaro pelos elogios que vem recebendo por sua ação sensata e eficiente durante a crise, foi cuidadoso ao dizer que participar de manifestações não era “adequado”. Lembrou que o ministério por enquanto estava apenas fazendo recomendações, que devem ser seguidas, mas não são compulsórias. Referindo-se indiretamente ao comportamento irresponsável do presidente.
Mas “isolar” o presidente pode significar também tocar o país sem depender dele, com os setores mais responsáveis do governo e os demais Poderes tomando as decisões necessárias. Ignorando quem deveria estar na liderança de um gabinete de emergência para enfrentar as crises de saúde pública e econômica, e, ao contrário, está à frente de intrigas palacianas e teorias conspiratórias que corroem sua mente e atrapalham a prevenção pelo mau exemplo.
O fato é que Bolsonaro mostra com freqüência assustadora não ser capaz de ocupar a presidência da República, ainda mais num momento como o que vivemos, que exige discernimento, exemplo, liderança, capacidade de mobilização para atuação em comunidade.
A realidade mostrada cotidianamente pelos meios de comunicação pelo mundo é tão dura que a censura mental que Jair Bolsonaro quer impor não resiste a ela, ao menos para a maioria dos brasileiros que já não o leva a sério diante da variedade das demonstrações de que não tem condições de estar onde uma maioria hoje inexistente o colocou.
Um presidente eleito por voto popular desgasta sua legitimidade sempre que demonstra não ter condições morais ou psicológicas de cumprir o papel para o qual foi escolhido.
Talvez se fosse exigido um teste psicológico dos candidatos, assim como se exige não condenação em segunda instância, vários não estariam aptos a participar da eleição, evitando-se assim problemas como o que levou uma deputada como Janaina Pascoal, do antigo partido de Bolsonaro e cotada para ser sua vice, a pedir o afastamento dele da presidência da República.
A frase de Bolsonaro ao ser contestado por vários setores da sociedade por ter saído do isolamento a que está submetido para cumprimentar populares com calorosos apertos de mãos, e beijos e abraços, é exemplar de sua visão egocêntrica: “Se me contaminei, a responsabilidade é minha”.
Não seria problema apenas dele, já que ocupa o lugar de quem deveria dar o exemplo, liderar o país diante de um ambiente de guerra. Mas a questão é mais ampla: antes de se contaminar, Bolsonaro colocou em risco centenas de populares que, incentivados por ele, se submeteram à exposição do Covid-19 nas manifestações contra o Congresso e o Supremo.
Sobretudo, à contaminação por ele próprio, que ainda fará um teste definitivo para ver se não foi atingido pelo novo coronavírus na viagem aos Estados Unidos em que nada menos que 13 pessoas da comitiva testaram positivo.
A atitude de Bolsonaro diante da grave ameaça à saúde pública no país é similar a um de seus maiores apoiadores, o autoproclamado Bispo Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, que divulgou que o Covid-19 era uma invenção de satanás.
Assim como Macedo não quer perder o dízimo com os templos cheios de incautos fiéis, também Bolsonaro não quer perder o seu dízimo, que são os votos.