Merval Pereira

Merval Pereira: Qual a escolha?

O presidente Jair Bolsonaro parecia estar ouvindo o panelaço que se espalhou por diversas cidades do país quando anunciou a demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Tenso, com o olhar paralisado, Bolsonaro demonstrou saber o passo que estava dando, talvez maior que sua perna, ao mudar, em meio à pandemia da Covid-19, um ministro que tem 75% de aprovação popular, e apoio dos presidentes da Câmara e do Senado.

Trocado por ciúmes de sua popularidade, e por uma insistência sem base séria para que o distanciamento social seja flexibilizado o mais rápido possível.

Mais tarde, chegando ao Palácio da Alvorada depois de um dos dias mais intensos de seu mandato, Bolsonaro respondeu algumas perguntas ainda com o mesmo olhar arregalado que denotava o temor pela decisão que tomara.

Tossiu, como já tossira durante seu pronunciamento, o que pode ser consequência do nervosismo da ocasião, e respirou fundo como se quisesse extrair força de dentro de si para enfrentar o problema que ele mesmo criara.

Afinal de contas, a retórica do novo ministro Nelson Teich não mudou tanto em relação à de Mandetta, embora tenha dado ênfase à retomada gradual das atividades econômicas. Mas, na prática, não parece próximo esse dia, pois Teich ressalvou que antes de tomar novas medidas, é preciso fazer testes, muitos testes, e entender melhor como o novo coronavírus atua na sua transmissão.

Como não temos dinheiro suficiente para fazer testes na maioria da população, como fez a Coréia do Sul, e nem mesmo acesso a compras no exterior desses testes, que estão em falta no mercado, a situação propícia para a reabertura não acontecerá tão cedo.

O novo ministro tem MBA em Gestão de Saúde pela Coppe e mestrado em Economia na Universidade de York. Hoje, é sócio da Teich Health Care, uma consultoria de serviços médicos. Portanto, sabe como lidar com a gestão de saúde, mas sua experiência até agora é com a medicina privada, que difere muito do Sistema Único de Saúde (SUS), sustentáculo do esquema público que coordena hospitais federais e municipais.

Foi como técnico respeitado que é na área de saúde que ele falou com base científica, o que deu a garantia de que qualquer mudança que for feita o será com bases técnicas, e não políticas.

Mas, como convinha a um ministro recém-chegado, deixou encaminhada uma solução que esteja ‘totalmente alinhada” com o presidente Bolsonaro. Claro que não poderia assumir afirmando que seguiria à risca o que o ministro demitido fazia.

Mas, colocando a ciência como parâmetro, deu esperanças de que não se fará uma mudança brusca, se é que haverá mudança a curto prazo. A visão empresarial do novo ministro, porém, deve lhe custar críticas.

Ontem já corria pelas redes um vídeo em que ele fala sobre como fazer escolhas, dado que os recursos para a saúde são limitados. E dá um exemplo perigoso, que pode fazer sentido numa planilha de custos, mas não na vida real em um governo que tem que ter uma visão humanista. Justamente essa falta de empatia é que marca o comportamento do presidente Bolsonaro nessa fase da vida brasileira.

Dizia Nelson Teich nesse vídeo: “Você tem uma pessoa que é mais idosa, tem uma doença crônica avançada, e ela teve uma complicação. Para ela melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que em um adolescente que está com um problema. O adolescente tem toda a vida pela frente, e o outro é uma pessoa idosa, que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha?”.

O raciocínio é semelhante ao de Bolsonaro, que já disse várias vezes, e repetiu ontem, que a morte é inevitável: “Deixem os pais, os velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar. Algumas mortes terão, mas acontece, paciência”, disse Bolsonaro certa vez.

A retórica, no entanto, não tem importância neste momento, e sim a prática. Será preciso aguardar as ações do novo ministro da Saúde para saber o rumo que o combate à Covid-19 tomará nessa segunda fase. Também o comportamento de Bolsonaro. Qual será a reação do novo ministro se o presidente voltar a circular pelas ruas, sem máscara, limpando o nariz com as mãos, tossindo, e cumprimentando os populares que se aglomeram a seu redor ? Qual será a escolha de Nelson Teich?


Merval Pereira: A falta que faz

Bolsonaro joga suas fichas na divisão entre Câmara e Senado para conseguir reduzir o plano de ajuda emergencial

Na falta de apoio de uma base parlamentar sólida, que nunca teve intenção de construir nesse pouco mais de um ano de governo, o presidente Bolsonaro joga suas fichas na divisão entre Câmara e Senado para conseguir reduzir o plano de ajuda emergencial a estados e municípios aprovado pela Câmara, que tem que passar também pelo Senado.

Se não houver uma negociação às claras, teremos um impasse inaceitável em momento de crise. A Câmara aprovou na noite de segunda-feira uma recomposição das perdas do ICMS e do ISS por parte da União estimada em R$ 89,6 bilhões em seis meses, mas o governo quer limitar a ajuda a a R$ 40 bilhões. À noite, o Ministério da Economia ofereceu outras vantagens para compensar esse limite.

O projeto emergencial relatado pelo deputado Pedro Paulo foi negociado com a equipe do ministério da Economia, e a possibilidade de aval da União para empréstimos aos estados e municípios, incluída originalmente, foi retirada do projeto para dar mais segurança de longo prazo ao governo, que temia mais um calote, como muitos já havidos e renegociados.

Essa era uma ajuda em aberto, que nada tinha a ver com os problemas pontuais causados pela Covid-19. A área econômica do governo via nessa reivindicação uma tentativa de governadores resolverem problemas anteriores ao novo coronavírus em condições especiais.

Se o Senado fizer alterações, o projeto voltará à Câmara, e teremos perdido dias preciosos em situação de emergência. O próprio Bolsonaro está tendo uma série de reuniões com líderes do Centrão para tentar reverter essa decisão da Câmara, e teve um encontro sozinho com o presidente do Senado, David Alcolumbre, que costuma atuar em parceria com o presidente da Câmara Rodrigo Maia, mas também deseja ser protagonista do jogo parlamentar.

Além de o objeto do acordo ser uma redução da ajuda a estados e municípios, num ano em que estão marcadas as eleições municipais, a dificuldade está no histórico da relação de Bolsonaro com os parlamentares. Desde o princípio, o governo Bolsonaro tem tentado agir acima dos partidos políticos, e até mesmo os ministros do DEM, que formam a maioria entre os partidos, foram escolhidos à revelia, mais por interesses pessoais de Bolsonaro do que das legendas a que eventualmente pertencem.

Bolsonaro tentou fazer negociações transversais, temáticas, suprapartidárias, mas não conseguiu neutralizar as direções partidárias. Tentou controlar o partido de aluguel pelo qual disputou e ganhou a eleição, e não obteve sucesso. Hoje é um sem partidos, em busca de criar sua própria legenda.

Assim como não foram ouvidos na escolha, também não o são nas demissões, não havendo obstáculos políticos para a tomada de decisão. O ministro Ônix Lorenzoni, que não mantinha boa relação com o presidente da Câmara Rodrigo Maia, anda de lá para cá no governo - já foi chefe do Gabinete Civil, coordenador político e agora está no ministério da Cidadania - sem que o DEM seja ouvido nem cheirado.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, designado para o cargo graças ao apoio do governador de Goiás Ronaldo Caiado, pode ser demitido sem que o DEM tenha mudado de posição quanto a ele ou ao presidente. Ao romper com Bolsonaro, Caiado seguia uma posição pessoal, e não partidária, embora a relação de Rodrigo Maia com o governo seja tumultuada desde sempre, com pequenos períodos de calmaria.

Mais uma vez, Bolsonaro procura resolver suas questões partidárias com negociações individualizadas, mas precisará como nunca antes do Congresso para manter-se no cargo. A estruturação de uma rede de proteção parlamentar, embora imprescindível a curto prazo, não parece estar a alcance de Bolsonaro.

O presidente da Câmara ontem mesmo disse que o problema é que os políticos vão ao Planalto negociar, e na saída já estão sendo criticados nas redes sociais. Essas combinações pontuais podem até surtir efeito imediato, mas não fincam raízes, nem alimentam lealdade.

A falta de controle das redes sociais é problema grave para os parlamentares, pois o governo não tem capacidade, e às vezes nem vontade, de, depois de soltar suas feras virtuais, fazê-las recuar.


Merval Pereira: Presidente louco

A questão é a certeza de que, se demitir Mandetta, Bolsonaro nomeará quem pensa como ele sobre a Covid-19

Não é a primeira vez. Tivemos mesmo uma Rainha Louca, Maria I, Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Já tivemos presidentes considerados loucos. Um tinha olhar de doido, outro se comportava como tal. Mas Delfim Moreira, presidente entre 1918 e 1919, foi o único até agora a ser clinicamente considerado louco. Vice na chapa de Rodrigues Alves, Delfim Moreira assumiu a presidência por causa de sua morte, que teria sido vítima da gripe Espanhola.

Mas a loucura de Delfim Moreira era mansa. Às vezes colocava seu fraque, com todas as condecorações, preparado para uma solenidade que não havia. Certa vez, conta a lenda, foi visitado por Ruy Barbosa, mas ficou olhando atrás da porta, abrindo-a e fechando-a. O que teria feito Ruy Barbosa comentar: “Que estranho é o Brasil, onde até um louco pode ser presidente e eu não posso”, referindo-se à eleição presidencial que perdera.

Bolsonaro não sai à rua de fraque, mas provoca mais estragos apertando a mão de incautos. O Código Penal, no seu capítulo III, que trata “ Dos crimes contra a saúde pública”, o artigo 268 (infração de medida sanitária preventiva) define como crime “Infringir determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doenças contagiosas.”

Como o presidente da República encarna o próprio poder público, estamos numa dessas enrascadas que só acontecem abaixo do Equador. Da mesma gravidade de termos um presidente que luta contra determinações de seu próprio governo, representado nesse caso pelo ministério da Saúde.

Essa disputa que politizou o combate à Covid-19 continua em curso, e não se sabe onde vai parar. O tom da entrevista do ministro Luiz Henrique Mandetta ao Fantástico no domingo foi uma reação sua à humilhação pública a que o presidente o submeteu, desta vez em pessoa, na visita que fizeram juntos a um hospital de campanha que está sendo construído no interior de Goiás.

Diante da insensatez de Bolsonaro, de mais uma vez ir ao encontro de populares, apertar-lhes a mão e até beijar, tanto Mandetta quanto o governador Ronaldo Caiado, que, rompido com o presidente, deu-lhe álcool gel para passar nas mãos como boas vindas, sentiram-se afrontados. Caiado é médico e foi o principal avalista de Mandetta para a Saúde.

Uma semana depois da primeira crise, a possibilidade de Mandetta ser demitido por Bolsonaro voltou à cena política, e ainda está no radar de parlamentares e assessores palacianos. Os ministros militares, que da primeira vez intervieram para evitar a demissão, hoje já estariam com outro olhar, pois Mandetta teria quebrado a hierarquia ao criticar, mesmo indiretamente, o presidente da República.

A mudança em si não é uma questão, pois não há dúvida de que o presidente da República pode demitir e nomear quem ele quiser, muito embora o então presidente Temer não tenha conseguido nomear a deputada Cristiane Brasil para o ministério do Trabalho, porque ela respondia a processos no próprio ministério que dirigiria.

A questão da saúde agora é a certeza de que, se demitir Mandetta, o presidente Bolsonaro nomeará alguém que pensa como ele sobre o combate à Covid-19, provavelmente o deputado Osmar Terra, ou o presidente da Anvisa Antonio Barras Torres.

A nomeação em si pode não ser judicializada, mas as decisões que o novo ministro vier a tomar, sim. No momento em que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) Tedros Adhanon Ghebreyesus reafirma que o isolamento social é a única saída para combater a Covid-19, e que a retomada das atividades tem que ser planejada cautelosamente, qualquer mudança de política no sentido de encerrar o isolamento social provavelmente será contestada no Supremo Tribunal Federal (STF) ou no Congresso.

Como alertou o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, o que o presidente não pode fazer é adotar uma política genocida. Nesse caso, teremos uma crise institucional encomendada.


José Casado: Uma aposta em Bolsonaro

A médica que morreu do vírus do qual desdenhou

‘O coronavírus vai invadir o Brasil”, ironizou numa rede social às 16h32m de quinta-feira, 12 de março. Atendia à incitação do presidente para protestos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal.

O sorriso largo no rosto cheio indicava uma mulher de bem com a vida. Aos 65 anos, viu em Jair Bolsonaro a referência da sua identidade política.

Visitava a filha em Fortaleza. Médica há 40 anos, trabalhava no interior e duvidava da “pandemia” anunciada na véspera (11/3), pela OMS. Existiam 83 casos no país, nenhum no Ceará. E Bolsonaro falava em “muita fantasia” (10/3), insistindo: “Outras gripes mataram muito mais” (11/3).

Celebrou o presidente na catarse antipolítica (15/3) organizada por grupos autoproclamados de direita. Às 13h41m do dia seguinte, repetiu a “lógica” presidencial: “Existem vírus muito mais potentes e que matam muito mais (H1N1 por exemplo) e ninguém está nem aí... Porque será??????” E acrescentou:

“Nenhuma morte ainda registrada do coronavírus no Brasil, mas a imprensa já matou quase a metade da população.” Mais tarde foi anunciada a primeira morte. Bolsonaro vangloriava-se: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar.”

Seguiu para casa, em Iguatu, a 370 quilômetros, na beira do Jaguaribe. A cidade foi fundada por pecuaristas expulsos do litoral açucareiro no início do século XVII. Tem 102 mil habitantes e é um polo educacional.

Na sexta (27/3), antes de voltar ao Posto de Saúde da Família de Gadelha, na zona rural, anunciou uma carreata no Recife, a 670 quilômetros de distância: “Todos precisam que o Brasil volte a funcionar, já!” Bolsonaro insistia: “Outros vírus já mataram muito mais.”

Atravessou os dias seguintes na batalha contra a Covid-19. Já não era médica, mas vítima. Lucia Dantas de Abrantes morreu na sexta (10/4). O presidente já tem novo “diagnóstico” da pandemia, adequado à sua luta contra o ministro da Saúde: “Está começando a ir embora.” Ontem, o número de mortos ultrapassou 1,3 mil.


Merval Pereira: Barreira legal

O STF tem sido uma barreira de contenção a ações autoritárias do governo nesses tempos da pandemia de Covid-19

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido uma barreira de contenção a arroubos autoritários do governo nesses tempos da pandemia da Covid-19. Várias decisões já foram tomadas para definir os limites de atuações dos governos estaduais e municipais na implementação de medidas mais rigorosas de isolamento social, mesmo à revelia do governo federal.

O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, defende que a segurança jurídica de decisões urgentes seja garantida, mesmo que prazos e exigências legais sejam alteradas pela situação excepcional. Somente um ministro, Ricardo Lewandowski, não entendeu o momento especial que vivemos e barrou com burocracia sindicalista a permissão para que as empresas entrem em acordo com os empregados para cortes salariais equivalentes à redução da carga horária de trabalho.

A exigência de intermediação de sindicatos para esses acordos têm criado problemas para as empresas que já os formalizaram, inclusive aumentado os seus custos, pois há sindicatos cobrando taxas de empregados e empregadores para homologar os acordos trabalhistas. Na quinta-feira, o plenário do Supremo decidirá essa questão.

O vice-presidente do STF, Luiz Fux, que assumirá a presidência em setembro, tem se posicionado em entrevistas e artigos a favor da necessidade de “sensibilidade judicial superior ao mero dogmatismo jurídico”.

O valor da saúde pública, e a prevalência da ciência em momento sem precedentes, devem guiar as ações judiciais, defende Fux, que cunhou a máxima “coronavírus não é Habeas Corpus” para chamar a atenção do perigo que as decisões genéricas de soltura de presos por causa do novo coronavírus representam para a sociedade.

Essa atitude pode criar uma “política criminal perversa e de danos irreversíveis”. Segundo o ministro Luiz Fux, cada magistrado deve levar em conta as consequências de sua decisão, pois a liberação de presos de periculosidade real é moralmente indesejada pela sociedade.

Exemplo de contenção foi a decisão do ministro Luis Roberto Barroso, que proibiu o governo federal de veicular a campanha publicitária "O Brasil não pode parar", incentivando a população a retornar à vida normal, pois a situação é "gravíssima" . Na avaliação de Barroso, a propaganda “desinforma” as pessoas.

"Em momento em que a Organização Mundial de Saúde, o Ministério da Saúde, as mais diversas entidades medicas se manifestam pela necessidade de distanciamento social, uma propaganda do governo incita a população ao inverso. Trata-se, ademais, de uma campanha 'desinformativa': se o poder público chama os cidadãos da "Pátria Amada" a voltar ao trabalho, a medida sinaliza que não há uma grave ameaça para a saúde da população e leva cada cidadão a tomar decisões firmadas em bases inverídicas acerca das suas reais condições de segurança e de saúde", alertou Barroso.

Também o ministro Marco Aurélio Mello estabeleceu que governadores e prefeitos têm autonomia para determinar restrições à locomoção das pessoas em Estados e municípios, tornando sem valor uma medida provisória do governo que estabelecia que somente as agências reguladoras federais poderiam editar restrições à locomoção dos cidadãos.
Na disputa de Bolsonaro com os governadores, venceram esses, com o apoio do STF, fazendo com que as medidas de restrição à circulação ganhassem força, embora o governo federal também possa tomar decisões sobre o tema, considerando que, diante da pandemia do coronavírus, deve-se “ter a visão voltada ao coletivo”.

O ministro Gilmar Mendes também se manifestou diversas vezes pelas redes sociais, inclusive na crise entre Bolsonaro e o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Segundo ele, o presidente da República tem todo o direito de demitir ministros de Estado, se considerar conveniente, mas não pode adotar “políticas genocidas”.


Merval Pereira: Jim Jones tupiniquim

Bolsonaro será responsabilizado pessoalmente pelo aumento das mortes. Não é possível ter um presidente que estimula a população a se arriscar numa pandemia

O presidente Jair Bolsonaro está cavando um abismo a seus pés lutando contra a realidade trágica da Covid-19. Não há saída honrosa para ele diante da perspectiva de recessão econômica - o ministro da Economia Paulo Guedes já teme um PIB negativo de 4%, há bancos prevendo até 6% - e de um dramático número de mortes, que já está na casa do milhar antes de um mês de quarentena.

As demonstrações diárias de irresponsabilidade acintosa vão ganhando perigosos ares de desequilíbrio comportamental que, em vez de aumentar suas chances de concorrer à reeleição, vão lhe retirando essa possibilidade, reduzindo seu apoio a um grupo de fanáticos.

A mais recente pesquisa DataFolha mostra que 17% dos eleitores que votaram em Bolsonaro no segundo turno estão arrependidos, o que quer dizer que cerca de 10 milhões de pessoas o abandonaram, fazendo com que tivesse hoje, teoricamente, menos votos do que obteve no primeiro turno.

Não quer dizer, porém, que todos os que não se declararam arrependidos estejam contentes com o governo Bolsonaro. Muitos, certamente, não se arrependeram porque consideram que o principal papel de seu voto foi derrotar o PT.

Pesquisas de opinião pública mostram que Bolsonaro mantém um apoio em torno de 30% da população, o mesmo índice que o PT costumava ter antes de chegar ao poder, igual ao percentual de votos que o candidato petista Fernando Haddad obteve no primeiro turno.

Não há indicações de que o PT tenha mantido seu nível de apoio de lá para cá, e o desgaste de Bolsonaro é nítido. Por isso a polarização contra o PT é bom, teoricamente, para os dois, mas especialmente para Bolsonaro se ele já não tivesse provado que não é apenas um antipetista, mas um desequilibrado, técnica e emocionalmente incapaz de enfrentar crises como a que atravessamos, e moralmente corrupto.

Não acredito que o PT tenha, nesses anos recentes, recuperado a imagem de honestidade e credibilidade que conseguiu introjetar no eleitorado, e acho, portanto, que uma repetição da polarização dificilmente acontecerá. Os extremos já se mostraram incapazes de dar uma solução para o país.

O desgaste de Bolsonaro só se acentuará nos próximos anos, já que ele é incapaz de ser outra pessoa. Já era assim antes da campanha, mas era o que tinham os que queriam alijar o PT. O centro político foi incapaz de apresentar uma alternativa ao eleitor de centro-direita que demonstrasse viabilidade eleitoral, diante da radicalização que tomou conta da eleição.

Abre-se um caminho largo até 2022 para candidatos de centro se firmarem no cenário político nacional, e os governadores, que são protagonistas dessa guerra contra a Covid-19, podem colher resultados positivos, como já demonstram as pesquisas de opinião e as redes sociais. Por isso, a cada vez que surge um político que se destaque, passa a ser potencial candidato a presidente: é assim com Mandetta, é assim com Moro.

O comportamento do presidente Bolsonaro, ao sair às ruas em Brasília, é acintoso, atitude que não pode ser vista como normal. Por causa desse comportamento, nossa política de isolamento social está começando a afrouxar, a ser rompida por grupos incentivados pelo presidente.

Não é assim que a economia vai melhorar, e esse afrouxamento provocará mais mortes, mais sofrimento. Não é à toa que a embaixada alemã está recomendando a seus cidadãos que regressem ao seu país.

Bolsonaro será responsabilizado pessoalmente pelo aumento das mortes. Não é possível ter um presidente que estimula a população a se arriscar numa pandemia, como um líder místico levando seus seguidores para o suicídio coletivo. Bolsonaro, nosso Jim Jones tupiniquim, será o PT da próxima eleição, aquele a quem será preciso afastar do poder.


Merval Pereira: Combate virtual

Ministros e políticos montaram seus próprios esquemas digitais para se contraporem aos bolsonaristas

“Quem com ferro fere, com ferro será ferido”, uma citação bíblica tornada ditado popular, tão ao gosto do presidente Bolsonaro, pode explicar o que está acontecendo na disputa pelas redes sociais, fundamentais na estratégia política do presidente Bolsonaro, ou melhor, de seu filho 02, o vereador especialista digital Carlos Bolsonaro.

De tanto apanharem nas redes sociais da milícia digital dos Bolsonaro, comandados pelo “gabinete do ódio” que funciona dentro do Palácio do Planalto, ministros e políticos em geral resolveram montar seus próprios esquemas digitais para se contraporem à ação dos bolsonaristas.

Quando querem “fritar” algum ministro, eles começam pelas redes sociais, geralmente comandados pelo guru Olavo de Carvalho. Foi assim que caíram os ministros Gustavo Bebianno e Santos Cruz, que costuma chamar de “gangue digital” os seguidores de Bolsonaro que atuam nas redes sociais como verdadeiras milícias.

A ponto de terem criado mensagens fakes onde o então ministro criticava o presidente no WhattsApp. Santos Cruz provou que era uma montagem, mas já era tarde. O falecido Bebianno também caiu, depois de uma fritura intensa, por causa de uma discussão no WhattsApp.

O ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, depois de quase ter sido demitido pelo presidente no início da semana, ganhou cerca 100 mil seguidores no Twitter, Facebook e Instagram em um só dia, segundo dados da Bites Consultoria especializada nesse acompanhamento digital.

Na quarta-feira, Mandetta participou de uma “live” da cantora sertaneja Marília Mendonça que chegou a ter mais de 3,2 milhões de visualizações ao mesmo tempo. No sábado anterior, atraindo a fúria do presidente Bolsonaro, Mandetta havia aparecido também na “live” de Jorge e Mateus, que teve 3,1 milhões.

No dia seguinte, Bolsonaro deu a declaração de que muitos ministros estão virando estrelas, e que o dia deles iria chegar. A mesma empresa Bites mostra que o número de tuítes em defesa do ministro chegou a quase 500 mil, enquanto os ataques nas redes sociais a ele foram compartilhados apenas 81 mil vezes.

O ministro Sérgio Moro, da Justiça e Segurança Pública, entrou no início do ano no Instagram, e hoje tem mais de 1 milhão de seguidores. No Twitter, ele ultrapassou 2 milhões de assinantes.“São instrumentos para divulgar as ações do Ministério da Justiça e da Segurança Pública e para colher opiniões a esse respeito”, alega, mas de fato as redes sociais têm servido de pára-raios em meio às crises.

Quando Bolsonaro foi a um ato contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal em frente ao Palácio do Planalto, em meio à pandemia do coronavírus, o número de opositores do presidente nas redes sociais superou o de apoiadores. Segundo a mesma consultoria Bites, 1,4 milhão de perfis do Twitter atacaram o presidente, enquanto 1,2 milhão o defendeu, em pesquisa realizada entre 15 e 26 de março.

Nesse período, o presidente intensificou críticas aos governadores, especialmente aos do Rio, Wilson Witzel e o de São Paulo João Dória. Em contraposição a Bolsonaro a partir da defesa do isolamento social, os governadores se fortaleceram nas redes sociais, aponta o levantamento.

A popularidade virtual dos governadores João Doria (PSDB-SP), Wilzon Witzel (PSC-RJ) aumentou, mesmo que Bolsonaro continue disparado no Índice de Popularidade Digital da consultoria Quaest, que agrega informações do Twitter, Facebook, Instagram e, mais recentemente, também analisa YouTube, Google Trends e acessos a Wikipedia.

Em março, Bolsonaro caiu de 83,1 para 69,1 (o IPD varia de 0 a 100) – queda de 16,8%. Mesmo em patamar abaixo do presidente, os governadores tiveram altas importantes: Doria cresceu 66,1% e Witzel, 39,6%. A posição dos governadores trouxe também vantagens na popularidade digital para os governadores do Maranhão, Flavio Dino, do Pará Helder Barbalho, Comandante Moisés de Santa Catarina, Camilo Santana. Do Ceará, entre outros. De vários partidos, mas unidos em torno do isolamento horizontal.

Segundo a consultoria Bites, o mais importante não é uma eventual queda do presidente Bolsonaro nas redes sociais, mas o crescimento de uma onda oposicionista sem liderança no universo digital, especialmente no Twitter.


Merval Pereira: Vendedor de ilusões

Ao falar na televisão que a cloroquina pode salvar milhares de vidas, presidente está jogando um lance perigoso

A retomada da retórica moderada do presidente Bolsonaro no seu pronunciamento de ontem à noite não é uma garantia de que o bom senso permanecerá prevalecendo, mas dá um fôlego para o verdadeiro objetivo, que é o combate ao Covid-19 dentro de nossas possibilidades de país emergente e em grave situação financeira.

Ainda mais que o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta dá sinais públicos de querer, de sua parte, não melindrar seu chefe, garantindo que é “Jair Messias Bolsonaro quem comanda esse time”. Além dos aspectos emocionais dessa disputa anacrônica, no entanto, há questões de fundo importantes, como o debate sobre o uso de cloroquina.

A prova de que a retórica moderada nem sempre reflete posições sensatas, ao levar para um pronunciamento oficial à Nação a ideia de que a cloroquina pode salvar milhares de vida, o presidente Bolsonaro mais uma vez interfere na condução da politica de saúde pública ditada pelos organismos internacionais, seguida pelo ministério da Saúde.

O importante no momento é não politizar o Covid-19, como disse o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) Tedrosn Ghebreyesus sobre a ameaça do presidente dos Estados Unidos Donaldo Trump de parar de contribuir financeiramente com a OMS, pois o organismo teria se tornado sinocêntrico, dando mais importância às informações vindas da China.

Trump, em tuíte, insinuou que a OMS, ao desaconselhar fechar o país à China no início da crise, quando ainda não havia sido declarada uma pandemia, teria segundas intenções. Da mesma maneira, a politização do combate ao novo coronavírus permitiu que o próprio Trump, coadjuvado pelo presidente brasileiro, fizesse durante muito tempo propaganda da cloroquina como um remédio milagroso, sendo que Bolsonaro chegou a levar para uma conferência virtual do G-20 caixas do remédio, quando ainda não há comprovação oficial da eficácia do medicamento.

Já há um consenso de que o uso em casos graves nos hospitais é permitido, mesmo sem confirmação científica. Como todos estão usando a cloroquina, fica difícil saber o alcance de sua eficiência, pois pode ser acompanhada de vários outros medicamentos, e em diversas dosagens. O importante é que não é possível ainda anunciar a cloroquina como o caminho para a cura, e torna-se irresponsável essa tentativa de levar à opinião pública uma solução que não existe, como Bolsonaro fez ontem em seu pronunciamento.

O desafio feito aos médicos David Uip e Roberto Kalil Filho pelo próprio presidente através do WhatsApp é exemplar do que não deve ser feito, uma disputa política com o governador de São Paulo João Doria que não leva a lugar nenhum. David Uip, coordenador da equipe de combate ao coronavírus em São Paulo, recusou-se a confirmar se foi usada a cloroquina em seu tratamento, enquanto Kalil Filho admitiu.

Este último, inadvertida ou propositalmente, ao cair na armadilha de Bolsonaro, foi usado pelo presidente em seu pronunciamento como avalista do uso da cloroquina em todos os estágios da doença. A politização dessa situação inusitada, que a ninguém dá, até o momento, o direito de ter certezas absolutas, só faz agravar o quadro geral.

Parece não haver clareza para o presidente do que nos espera pela frente, se compararmos nosso quadro atual com o dos países que já passaram, aparentemente, pelo pico da crise. Ainda estamos em meio à subida dos gráficos, e já temos cidades como Manaus, em região afastada dos grandes centros do sudeste mais afetados até o momento, com seu esquema de saúde colapsado pela amplitude da crise.

Bolsonaro, ao falar na televisão, que a cloroquina pode salvar milhares de vidas, está jogando um lance perigoso. Vendendo ilusões, pretende aparecer como o salvador da pátria. E pobre do país que precisa de salvadores da pátria, parafraseando Brecht. Favorável ao uso do medicamento nos momentos iniciais da doença, como alguns, de maneira minoritária, defendem, Bolsonaro atropelou a política oficial e deu falsas esperanças a milhares de brasileiros que ainda o levam a sério.


Merval Pereira: Sobre o Poder

Não é bom um presidente tutelado por militares. Mas também não é bom um que coloca em risco a população

O livro “A cadeira da águia”, do escritor mexicano Carlos Fuentes, tem uma ótima citação de Stálin que serve como uma luva na disputa em curso entre o presidente Bolsonaro e seu ministro da Saúde Mandetta. Digo “em curso” porque não acredito que o presidente Bolsonaro se recolha diante da impossibilidade de impor sua vontade. Tentará novamente.

Na década de 30 do século passado, relata Carlos Fuentes, um assessor do líder soviético gritou ao ser elogiado por seu trabalho: “Por favor, não me elogiem! Não me mandem para a Sibéria”. A insegurança de líderes autoritários, sejam de esquerda ou de direita, é recorrente na história da civilização, e estamos vendo uma repetição dessa eterna disputa de poder, real ou imaginária.

Muitos ministros de Bolsonaro se incomodam com os elogios, pois sabem que podem ter problemas com o capitão. Para compensar, alguns começam a elogiar Bolsonaro e a concordar com ele pelas redes sociais, que é onde o registro vale de verdade para o presidente e seus acólitos.

Esse temperamento inseguro do presidente tem rendido comentários e memes nas mesmas redes sociais, tão valorizadas pelo próprio presidente, que revelam a percepção das angústias de Bolsonaro. O que mais esteve presente nas redes durante essa crise foram brincadeiras sobre os ministros mais criticados de seu governo, como o da Educação Abraham Weintraub, o chanceler Ernesto Araújo ou o do Meio Ambiente Ricardo Salles.

“Se começarmos a elogiar o Weintraub, será que ele cai?”, é um exemplo do humor cáustico das redes sobre o comportamento nada errático do presidente, que protege os que são “perseguidos” pelos “jornalistas esquerdistas”, e coloca na sua mira os ministros que são elogiados. Se seus “inimigos” gostam deles, é porque não são confiáveis.

O caso do ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antonio é o mais enigmático de todos os que Bolsonaro protege. Acusado de crime eleitoral como coordenador de um esquema de candidaturas “laranjas”, ele jamais foi incomodado por Bolsonaro, que se jacta de não aceitar corrupção em seu governo. O fato de a acusação se referir à período anterior ao seu mandato presidencial não explica essa leniência, pois quando escolhido o ministro já respondia a esses questionamentos.

O fato é que o presidente Bolsonaro lida diariamente com essas angústias que lhe comem as entranhas, situação exacerbada depois que levou a facada durante a campanha eleitoral. Na ocasião, seu filho Carlos já tuitara dizendo que havia gente no entorno de seu pai que queria sua morte com objetivos políticos, referindo-se claramente ao vice Hamilton Mourão.

Essa paranóia alimentada pela mente tumultuada de Carlos e seus dois irmãos persegue o presidente, e é impossível imaginar que possa ser tutelável. O general Vilas Boas, que uma vez me disse que o candidato Bolsonaro era “incontrolável”, recentemente foi mais cerimonioso numa entrevista e disse que “ninguém tutela o presidente”.

De fato, não é bom um presidente tutelado por militares. Mas também não é bom ter um presidente que coloca em risco a população que governa com decisões sem bases legais ou jurídicas. Não se elege um ditador, mas um chefe de Estado que aceita as regras do jogo democrático. Nela, os poderes se contrapõem e se controlam mutuamente.

Não aceitar essa premissa, e tentar mudar as regras do jogo que o colocaram no poder através de manipulação da opinião pública, coloca o presidente eleito em uma rota de ilegalidade que em algum momento vai cobrar consequências.

Um artigo importante, assinado por um grupo de juristas no Globo Online de ontem, define bem os limites presidenciais numa democracia: “Um presidente da República está limitado pela ciência — porque está limitado pela realidade. Não pode decretar que o sol nasça no poente e se ponha no nascente. Não pode negar evidências científicas seguras, tampouco orientar que sua administração assim o faça”.

Isso quer dizer que o presidente Bolsonaro não pode nem decretar que a terra é plana, embora possa acreditar nisso, nem dar fim à quarentena sem apoio de bases cientificas. Uma frase atribuída ao chefe do gabinete Civil do governo Geisel, Golbery do Couto e Silva, define bem a situação: “Há três tipos de poder, o que você acha que tem, o que os outros acham que você tem, e o que realmente você tem.”


Merval Pereira: Sem tinta

Alcolumbre ligou para o Planalto para avisar que demissão de Mandetta provocaria uma reação do Congresso

Funcionou, não sem um estresse desnecessário, a tutela branca dos ministros militares que ocupam os gabinetes do Palácio do Planalto. Foram eles, mais o Congresso e o Supremo, que deram respaldo à permanência do ministro Luiz Henrique Mandetta no ministério da Saúde, depois que o presidente mandou aprontar um decreto demitindo-o.

Mais uma vez o presidente Bolsonaro criou um clima de instabilidade no país a troco de nada. Ou melhor, a troco de demonstrar infantilmente o poder de sua caneta presidencial, e o que conseguiu foi explicitar que lhe falta tinta para usar a caneta, como havia ameaçado na véspera.

O presidente tantas fez que acabou perdendo as condições práticas de governar. Seus desejos, no mais das vezes voltados para seu beneficio pessoal, não do país, encontram cada vez mais barreiras pela frente. Só são respeitados entre seus filhos, e naquele núcleo radicalizado que alimenta as redes sociais com intrigas e difamações, além de falsificações, como fizeram com o ministro Mandetta.

Criaram um perfil falso na internet onde o ministro da Saúde criticava o presidente Bolsonaro, dando motivos para sua quase demissão. O mais curioso é que Bolsonaro parece até mesmo acreditar nas falsidades criadas pelo “gabinete do ódio”, que trabalha dentro do Palácio do Planalto sob o comando de seu filho 02, o vereador Carlos Bolsonaro, que abandonou sua função no Rio para aboletar-se em um gabinete palaciano para aconselhar seu pai.

Volta e meia Bolsonaro tem que retirar de seu twitter notícias que lá publicam e se revelam mais tarde mentiras. Durante todo o dia de ontem os mercados financeiros registraram a instabilidade provocada por palavras do próprio presidente desde a noite de domingo. Se não fossem as instituições funcionando, e os militares atuando nos bastidores, teríamos agora uma mudança radical na conduta do ministério da Saúde no combate à Covid-19, que causaria uma crise institucional grave, das muitas que já foram armadas pelo próprio Bolsonaro, contra seu próprio governo.

O presidente do Senado David Alcolumbre telefonou para o Palácio do Planalto para avisar que a demissão de Mandetta provocaria uma reação do Congresso. Na noite de domingo, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, deu uma entrevista dizendo que Bolsonaro seria responsabilizado pessoalmente por mudanças no combate à Covid-19 que não obedecessem às orientações da Organização Mundial de Saúde.

Vários ministros do Supremo, inclusive seu presidente Dias Toffoli, deram declarações a favor do isolamento horizontal. O que poderia ser um motivo de satisfação para Bolsonaro, ter montado um ministério com algumas pessoas técnicas de valor reconhecido pela opinião pública, que é o caso de Luiz Henrique Mandetta, torna-se um tormento quase infantil, uma inveja do sucesso de seus ministros poucas vezes vista.

Um exemplo recente foi o de Itamar Franco, que, depois de várias tentativas, acertou na escolha de Fernando Henrique para o ministério da Fazenda. Mesmo aconselhado por vários assessores contra aspectos do Plano Real, Itamar sempre acabou respeitando a orientação técnica da equipe, mesmo que às vezes fosse preciso que o próprio Fernando Henrique interviesse para desfazer intrigas e maledicências.

A relação de Itamar e Fernando Henrique sempre foi tumultuada, especialmente quando o sucesso do Planalto Real era atribuído a Fernando Henrique, e não a ele. A ponto de Itamar, tendo sido eleito governador de Minas Gerais, dar um calote na dívida, quase desmontando o Plano Real no início do segundo governo de Fernando Henrique.

Hoje estamos em uma crise mundial de saúde, e somos obrigados a assistir a picuinhas de um presidente que já não tem condições plenas de governar porque toma decisões estapafúrdias, sem base técnica ou legal.

Ao insistir no uso da cloroquina sem que haja comprovação científica de sua validade, e colocar no seu gabinete de crise técnicos que pensam diametralmente oposto ao que a Organização Mundial de Saúde recomenda, o presidente Bolsonaro está apenas criando uma nova crise na saúde, que pode dificultar a luta contra a Covid-19. Como diz o ministro Mandetta, é preciso ter paz para enfrentar essa guerra” .


Merval Pereira: Estado inteligente

Países poderosos e vulneráveis se deram conta de que dependem muito mais da China do que é desejável

Parece haver consenso em torno da ideia de que o mundo será outro depois da crise do Covid-19, não apenas porque a humanidade deu-se conta de sua fragilidade, e da necessidade de solidariedade nas relações sociais, como os problemas sociais, em maior ou menor escala, foram escancarados.

O capitalismo terá que rever conceitos, em busca de uma economia mais sustentável e menos desigual. E mesmo as relações internacionais serão alteradas, pois o mundo de repente despertou para uma realidade preocupante: a China produz 90% dos equipamentos de saúde, criando um mercado internacional selvagem de compra de produtos essenciais (máscaras, ventiladores) em que o peso do dinheiro vale mais que vidas humanas em países periféricos como o Brasil. Coisa parecida acontece em outros setores.

Os países, dos mais poderosos como os Estados Unidos, aos mais vulneráveis, se deram conta de que dependem muito mais da China do que é desejável, e terão que mudar suas relações geopolíticas, cuidando de setores essenciais, não apenas a saúde, mas também estratégicos como a Defesa, o Meio-Ambiente, a agricultura.

Ciência e Tecnologia tiveram suas importâncias realçadas durante a crise, e a reação do presidente Bolsonaro às advertências dos cientistas, tentando confrontar a doença primeiro com negacionismo, depois com orações e jejuns, mostra bem como estamos ameaçados de um retrocesso profundo em um setor que merece muito mais importância do que recebe e precisa.

O economista José Roberto Afonso, do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), um dos formuladores da Lei de Responsabilidade Fiscal e, agora, do orçamento de guerra montado pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia, escreveu um artigo onde sugere que seja criado um “seguro destrabalho” , diante do fato de que o novo coronavírus só criou isolamento físico, pois já existia o social e até econômico para enorme parcela da população brasileira, que não tinha emprego e nenhuma proteção social.

José Roberto Afonso lembra que o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), organizado no pós-guerra em torno de um elemento essencial, o salário, já não reflete a realidade atual. Porque o emprego já deixou de ser sinônimo de trabalho há alguns anos, e em todo o mundo, devido à revolução tecnológica em curso.

Já Mariana Mazzucato, professora da UCL de Londres, no International Media Call virtual do Forum Econômico Mundial, falou sobre o novo papel do Estado, que ela espera ver surgir dessa crise mundial. Rebatendo a ideia de que a crise de saúde, com suas consequências econômicas, mostrou a necessidade de um Estado forte, ela diz que o que procura não é o Estado mínimo ou máximo, mas o “Estado inteligente”:

“Não é apenas porque o Estado está tendo que intervir maciçamente na economia que vamos mudar o conceito de fazer política econômica no capitalismo”. Ela diz que o Estado tem que injetar dinheiro na economia numa situação dessas, “mas temos que ver em que condições isso será feito”.

Precisamos montar uma economia mais sustentável, para que não tenhamos novos problemas mais adiante. “Por exemplo, as companhias aéreas que precisarão de dinheiro do governo têm que assumir o compromisso de reduzir a emissão de gás carbônico. Empresas que serão auxiliadas têm que garantir os empregos”.

Precisamos definir que tipo de instituições estatais nós queremos. “As empresas privadas mandam seus executivos para o exterior para fazer cursos de especialização, de gerência. Precisamos que os Estados atuem com inteligência, organizando suas estruturas com uma visão mais ampla de sua função dentro de um Estado moderno”.

Mariana Mazzucato acha que os Estados podem se reorganizar, as empresas privadas têm que trabalhar com os organismos estatais para que o país obtenha um resultado mais inteligente de seus setores. “O Estado tem que atuar ativamente para coparticipar da criação do mercado, e não esperar que os problemas aconteçam, e só então intervir”.

Para ela, essa crise não é desconectada do jeito que o capitalismo produz o alimento que consumimos, e os produtos que usamos. “Está diretamente ligada à crise climática. Precisamos criar uma simbiose entre os setores publico e privado, para que a economia esteja preparada para a próxima crise, que sempre virá”. (Amanhã, o “seguro-destrabalho”)


Merval Pereira: Um presidente cercado

Vivemos situação impar na história recente, a de um presidente que para sobreviver precisa desmontar o próprio governo. Para seu desespero, Bolsonaro hoje tem pelo menos três ministros indemissíveis. Aos superministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, juntou-se nessa crise do Covid-19 o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Guedes, porque representa a garantia de um caminho seguro na Economia, por mais que possam haver discordâncias pontuais sobre sua atuação. Nossa economia não resistiria à demissão do Posto Ipiranga, cuja presença na equipe do candidato Bolsonaro certamente foi fundamental para o apoio de uma classe de eleitores que normalmente não escolheria o capitão sem saber que estaria no comando da economia.

Se não tivesse anunciado com antecedência a presença de Paulo Guedes em sua equipe, o candidato do PSDB Geraldo Alckmin, com Arminio Fraga a apoiá-lo, teria mais chances.

O ministro da Justiça Sérgio Moro tem outra razão para ser indemissível: desde que foi escolhido, com Bolsonaro já eleito, transformou-se na garantia de que o novo governo combateria a corrupção na linha da Operação Lava Jato. De lá para cá, mesmo tendo recuado em alguns momentos do confronto com uma linha mais radical de Bolsonaro, e de ter sido exposto a uma campanha de descrédito claramente política, Moro conseguiu manter-se símbolo do combate à corrupção, mais popular do que Bolsonaro, o que incomoda sobremaneira um presidente inseguro.

Para cúmulo do azar de um presidente paranóico, em plena crise do novo coronavírus surge como guardião da saúde pública o ministro da Saúde Luis Henrique Mandetta, em contraposição involuntária ao próprio presidente, que tomou para si o papel de inimigo da ciência, relativizando a maior crise que o mundo já enfrentou em décadas recentes.

Em momento tão grave, o presidente Bolsonaro tem dado mostras de desequilíbrio emocional perigoso, que emperra a ação de seu próprio governo. Ao postar ontem o vídeo de uma senhora pedindo o exército nas ruas para reabrir o comércio e os negócios, Bolsonaro mostra que quer forçar uma confrontação com setores da sociedade civil e de próprio governo que são hoje majoritariamente favoráveis ao isolamento horizontal.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já proibiu o governo de fazer propaganda que fuja à orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do seu ministério de Saúde, mas o presidente não se emenda. Vai contra o próprio ministro da Saúde, fazendo reuniões paralelas sem convidar Mandetta.

Para mediar essa relação conflituosa, o ministro do Gabinete Civil, General Braga Neto, assumiu a coordenação do ministério durante a crise, cabendo a ele o papel de interventor informal do governo. Garante que não haja contestações formais ao presidente, mas assegura que a orientação oficial seja dada por Mandetta, dentro de critérios técnicos, e não políticos.

Bolsonaro atua de maneira paralela, criando seus próprios factoides e ameaçando com decretos que não se concretizam porque seriam o fim do equilíbrio institucional. No espaço cada vez mais reduzido em que atua, porém, ele faz estragos.

É o caso da ordem que deu para que todos os servidores do Palácio do Planalto que estão em regime de trabalho domiciliar voltassem a seus postos, o que provocou a renúncia de um chefe de setor burocrático que se recusou a colocar seus subordinados em perigo.

Em entrevista ao programa Os Pingos nos Is, da Jovem Pan, Jair Bolsonaro voltou a criticar o isolamento horizontal, que Mandetta reafirmou precisar ser intensificado pela falta de material hospitalar, e defendeu uma “forma diferente” de isolamento.

Bolsonaro, que anteriormente já havia ameaçado com um decreto reabrindo todo o comércio e foi obrigado a recuar, ontem disse que tem um projeto de decreto “pronto na minha frente, para ser assinado se preciso for, considerando atividade essencial toda aquela exercida pelo homem ou pela mulher, através da qual seja indispensável para levar o pão para casa.”

Segundo ele, “entre morrer de vírus e de fome, depressão e suicídio, eu, como chefe de Estado, tenho que decidir. (...) vou assinar”. Se esse momento chegar, estaremos diante de uma crise institucional e humanitária sem precedentes, com o presidente da República usando seus poderes contra a saúde pública.

Esclarecimento
O ex-prefeito Eduardo Paes diz, com números, que a realização das Olimpíadas de 2016 no Rio não atrapalhou a Saúde na cidade do Rio de Janeiro.

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