Merval Pereira
Merval Pereira: O autogolpe
Assim como a lei não deixa defender nazismo em praça pública, não se pode defender intervenção militar
O depoimento do ex-ministro Sérgio Moro à Polícia Federal é como aqueles aftershocks, pequenos tremores de terra que acontecem depois de um grande terremoto, que foi o seu pedido de demissão do ministério da Justiça e Segurança Pública.
O terremoto tirou o chão do presidente Bolsonaro, que desde então está desvairado, sem controle de si e dos acontecimentos, que se sucedem sem que se possa saber aonde nos levarão.
Mas o aftershock, se não tiver o poder de provocar uma denúncia contra Bolsonaro, pela pouca disposição aparente do Procurador-Geral da República Augusto Aras, tem força política para desgastá-lo mais ainda.
Evidente a intenção de Bolsonaro de controlar a Polícia Federal do Rio, e seria óbvio que a investigação dos procuradores de Aras fosse na direção desses interesses, num Estado que é a base eleitoral dos Bolsonaro e tem sérios problemas de segurança pública, de crime organizado e milícias, público alvo da família presidencial em termos eleitorais.
Se o ex-ministro Moro não acusou Bolsonaro de crimes em seu depoimento, eles estão tão evidentes que o próprio Procurador-Geral os elencou quando pediu a abertura do inquérito. Caberia a ele investigar um a um para ver se ocorreram: obstrução de justiça, falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, corrupção passiva.
Na verdade, o único crime de deveria ser descartado seria o de denunciação caluniosa incluído contra Moro. Mas o depoimento é uma bomba política, que só desmoralizará quem não quiser investigar. O presidente Bolsonaro parece saber exatamente o que pode ser descoberto em uma investigação criteriosa, não apenas nesse inquérito, como nos dois outros que correm no Supremo Tribunal Federal (STF), sobre fake news e manifestações antidemocráticas.
A gritaria com que atacou os jornalistas ontem pela manhã na frente do Palácio da Alvorada mostra uma pessoa completamente desesperada, sem noção do que sejam instituições, nem a real separação de poderes e o papel de cada um deles. Não admite que o STF tenha a palavra final, mas tem. Descontrolado, conta com a leniência de militares inclusive da ativa, que trabalham com ele.
Toda vez que passa dos limites, o ministério da Defesa dá uma nota oficial colocando as coisas no seu devido lugar, mas sendo condescendente com o presidente, considerando que as manifestações são atividades políticas, e a livre expressão tem que ser protegida.
Mas não se pode proteger quem pede o fim da democracia. Isso não é política, é tentativa de golpe. Assim como a lei não deixa defender o nazismo em praça pública, não se pode defender intervenção militar.
Certos grupos militares têm tanto medo do comunismo que aceitam a ideia de que a atuação de Bolsonaro é no sentido de enfrentar comunistas, para não deixar o PT voltar ao poder, e assim vamos indo a uma situação limite.
Vai chegar o dia em que as notas oficiais dos militares serão dispensáveis, por não terem efeito prático no comportamento do presidente Bolsonaro. Não vejo no mundo ambiente para um golpe militar tradicional, mas constato que Bolsonaro está constrangendo os poderes que o limitam, com a compreensão de militares.
Tudo o que o Congresso faz é contra ele, no STF a mesma coisa. A imprensa profissional independente virou saco de pancadas de Bolsonaro e seu acólitos. Temo que Bolsonaro esteja indo para um caminho tipo Chavez na Venezuela, não botando tanque na rua, mas tentando controlar o STF, o Congresso e a imprensa.
Está cooptando o centrão, com métodos que já se mostraram prejudiciais ao país e à democracia, para tentar eleger o próximo presidente da Câmara ano que vem, na substituição de Rodrigo Maia, que tem sido um garantidor da independência da Câmara.
Se conseguir, unindo o centrão e outros que certamente aderirão - porque o poder atrai - pode controlar a Câmara pelos métodos da velha política. O presidente do STF, Dias Toffoli tem uma posição muito conciliadora com ele. Com a desculpa de querer agregar, fazer acordo para preservar a “governabilidade”, vai aceitando os avanços de Bolsonaro, que já cometeu crimes suficientes para ser impedido. Impeachment é solução democrática para evitar um autogolpe.
Merval Pereira: Insegurança institucional
A dificuldade que o IBGE está encontrando para acessar os números telefônicos de brasileiros para realizar pesquisas não presenciais por causa da Covid-19 é devida a sermos um país com alto índice de crimes digitais e termos um governo inconfiável institucionalmente, que confunde órgãos de Estado com os de governo.
Prova disso é o decreto de outubro do ano passado que instituiu o Cadastro Base do Cidadão, que será uma “base integradora” de dados pessoais de todos os brasileiros, com o objetivo de regulamentar o compartilhamento de dados entre diversos órgãos do governo.
Houve polêmica à época, pois especialistas apontaram o perigo de termos vagos no decreto, abrindo caminho para a utilização sem controle de dados, e descumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados que entrará em vigor em agosto deste ano.
Já existe no Congresso uma proposta para alterar o decreto governamental, dando segurança ao cidadão de que seus dados não serão utilizados indevidamente. O decreto não foi aprovado ainda devido à crise da Covid-19.
A presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra, está disposta a reescrever a instrução normativa que orienta o uso dos dados das operadoras telefônicas para a complementação da PNAD-Contínua e a PNAD Covid-19, explicitando o cumprimento de várias normas nacionais e internacionais de segurança de dados, exigidas pelos autores da ação de inconstitucionalidade acatada liminarmente pela ministra Rosa Weber que será julgada na próxima quarta-feira no plenário virtual do Supremo.
A maioria delas já é adotada pelo IBGE, e outras estão definidas na própria Medida Provisória, como nomeação de encarregado de proteção de dados, realização de auditoria externa, parâmetros de segurança, transparência e controle de acesso dos dados, anonimização, garantia do exercício dos direitos do titular dos dados, formas de descarte.
Definição do uso está dada na MP, assim como a limitação do período da utilização dos dados, até o fim da emergencia sanitária. Seria relativamente fácil, como se vê, garantir a segurança dos dados com as normas internas do IBGE. Elas têm regras rigorosas, e nunca houve desconfiança sobre o uso indevido dos dados.
Nas pesquisas presenciais, todos os dados são coletados e o pesquisador sabe exatamente com quem está falando. Se algum pesquisador quisesse fazer algo de ilegal, saberia até mesmo como é a casa por dentro, pois até anos atrás era uma ação cidadã participar de pesquisas que permitem ao governo definir politicas públicas.
Nos últimos tempos, com o aumento do índice de criminalidade, tem sido mais difícil fazer as pesquisas domiciliares, porque as pessoas têm medo de abrir a porta. Por isso está havendo essa reação aqui, e não em outros países. Além da falta de confiança no governo.
A preocupação é o governo ter um instrumento que ninguém tem: todas as características do cidadão, e mais o número do telefone. A Receita sabe quanto um determinado cidadão ganha, mas não sabe se é negro ou branco, urbano ou rural, quantos filhos, se mora na favela ou no asfalto, se no interior ou capital. E não sabe o telefone.
O problema mais delicado, por isso, é o tamanho da amostra. O IBGE alega que tecnicamente é preciso ter uma base de 200 milhões de telefones para dar continuidade à pesquisa PNAD-Contínua que começou ano passado. Há juristas e especialistas em segurança de dados, no entanto, que consideram que esse volume de informação é desnecessário e perigoso de estar nas mãos do governo.
A estranheza tem a ver com inconfiabilidade do governo, não do IBGE. Se o governo quiser, poderá ter uma base de dados que ninguém tem para campanhas políticas direcionadas, mandar WhatsApp e SMS com fakenews à vontade. Por mais que a presidente do IBGE, Susana Cordeiro Guerra considere impossível isso acontecer, pelas barreiras de segurança impostas pelo próprio governo, além de ofensivo ao órgão e aos técnicos que o compõem, essa desconfiança é um fato, e denota o grau de insegurança institucional que vivemos. Ao mesmo tempo, deixar de fazer as pesquisas seria admitir a falência do Estado brasileiro.
Merval Pereira: Apagão estatístico
Mecanismos não presenciais alternativos estão sendo recomendados pela comunidade estatística internacional
Os tempos estranhos a que se refere o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello levam a que, no Brasil, a tecnologia não possa ser usada para auxiliar o combate à Covid-19. Políticos da esquerda e da direita usam a mesma alegação, proteção aos direitos individuais, para tentar impedir que os celulares sejam usados para monitorar o distanciamento social, no caso pioneiro de São Paulo, ou para fazer pesquisas do IBGE.
No caso do governador João Doria, ele foi acusado por partidos de direita, capitaneados pelo deputado Eduardo Bolsonaro, de promover uma invasão aos direitos individuais ao usar os celulares para identificar a mobilidade social nesses tempos de pandemia. Como vários países fazem, e até mesmo o próprio governo, cujo ministério de Ciência e Tecnologia havia feito um acordo com as operadoras telefônicas com o mesmo objetivo.
Nesta quarta-feira, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julga ação direta de inconstitucionalidade (ADI) da OAB e dos partidos PSDB,PSB, PSOL e PCB contra a medida provisória que permite ao IBGE usar a lista de assinantes das companhias telefônicas para fazer pesquisas neste período em que o distanciamento social exige a utilização de mecanismos não presenciais alternativos (telefone, vídeo, e-mail) para manter o fluxo de informações que evite o que já está sendo classificado de “apagão estatístico”, como alertaram vários ex-presidentes do IBGE em carta aberta.
Para a OAB, a MP viola dados sigilosos de brasileiros e não apresenta mecanismos de segurança para minimizar o risco de acesso e o uso indevido deles. Não apenas a salada de siglas chama a atenção, mas a incongruência, pois o PSDB é o partido que tem em João Doria seu principal líder. Nem Eduardo Bolsonaro tem razão em criticar o monitoramento celular para identificar aglomerações, nem tem sentido a ação do PSDB e demais partidos, liderada pela OAB.
Susana Cordeiro Guerra, presidente do IBGE, explica que crise do COVID-19 obrigou o IBGE a adiar o Censo Demográfico para 2021, e não está permitindo que seus entrevistadores percorram as residências coletando as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a PNAD, a principal fonte de informações do país sobre emprego, educação, renda e condições de vida da população brasileira.
O IBGE fez também um convênio com o Ministério da Saúde para pesquisa domiciliar especial sobre o COVID-19, instrumento fundamental para ajudar a planejar a saída do confinamento imposto pela crise sanitária.
Os problemas encontrados pelo IBGE, que já tinha obstáculos específicos de países em desenvolvimento, como o receio da violência que dificultava o contato do pesquisador nos domicílios e o acesso a certas áreas das cidades dominadas pela bandidagem, são comuns a mais de 200 países que têm institutos de estatísticas oficiais. Em Nova York, por exemplo, há políticos que, em vez de barrar as entrevistas por telefone, estão enviando cartas a seus eleitores pedindo que cooperem com os institutos oficiais de pesquisa.
Em diferentes continentes constata-se a reorganização dos institutos de pesquisa, com exemplos nas Américas (Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, EUA e México), na Europa (Espanha, Finlândia, França, Holanda, Itália, Portugal, Reino Unido e Suécia) na Oceania (Austrália). No período de 16 de março a 16 de abril de 2020, foram identificadas, segundo o IBGE, medidas comuns adotadas, entre elas: “adoção de modalidades alternativas de pesquisa, de acordo com a natureza e as características de cada operação, para substituir a coleta de campo nas pesquisas contínuas e as atividades presenciais de coleta de dados”.
Os mecanismos não presenciais alternativos estão sendo recomendados pela comunidade estatística internacional, enquanto a emergência mundial da saúde continuar: “uso de registros administrativos para produção de estatísticas, adoção de entrevistas por telefone, preenchimento de formulários pela web e/ou e-mail, entre outros, preservando o sigilo e o rigor técnico das estatísticas oficiais”.
Ter acesso à lista de assinantes das operadoras telefônicas é o mesmo que consultar os antigos catálogos telefônicos que a tecnologia tirou de circulação. Mas em qualquer país civilizado, é possível acessar o catálogo telefônico digital através da internet.
Merval Pereira: Um presidente atordoado
A insistência em nomear Ramagem só confirma o que Moro alegou como motivo para sua saída do ministério
O presidente Jair Bolsonaro está dando munição contra ele mesmo para o inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) que investiga a denúncia do ex-ministro Sergio Moro de que ele tentou interferir nas ações da Polícia Federal, e por isso demitiu o delegado Maurício Valeixo para nomear Alexandre Ramagem, que foi chefe de sua segurança.
A insistência em nomear Ramagem, mesmo depois de o ministro Alexandre de Moraes ter suspendido sua posse, só confirma o que Moro alegou como motivo para sua saída do Ministério da Justiça.
O presidente Bolsonaro declarou que o caso quase gerou uma crise institucional, indicando que pensara em não respeitar a decisão do Supremo, ou em indicá-lo novamente, o que seria uma afronta ao Judiciário.
Ao mesmo tempo, duas investidas do presidente em outros órgãos de Estado, como o Exército e a Receita Federal, demonstram que ele não tem noção institucional dos limites que cada Poder tem entre si, e da diferença das políticas de Estado das do governo.
Os órgãos de Estado não são braços da ação política dos governos, são permanentes e devem ser guiados por atuação imparcial do ponto de vista político. Bolsonaro determinou ao secretário da Receita Federal, José Barroso Tostes Neto, uma anistia de dívidas tributárias das igrejas evangélicas devido a autuações pelo não recolhimento de tributos na distribuição de lucros e outras remunerações a seus principais dirigentes.
No Exército, ele determinou a revogação de três portarias sobre rastreamento de balas e munições. Nos dois casos, agiu como presidente da República para favorecer grupos de seguidores políticos, como as igrejas evangélicas e os clubes de tiro, os atiradores e colecionadores de armas.
O que estava ruim só piorou para o presidente Bolsonaro com o confronto que está alimentando com o Supremo Tribunal Federal (STF) por causa da liminar do ministro Alexandre de Moraes que suspendeu a posse do delegado Alexandre Ramagem na diretoria-geral da Polícia Federal. “Polícia Federal não é órgão de inteligência da Presidência da República”, ressaltou o ministro do STF em seu despacho concedendo a liminar.
Moraes atendeu a um pedido do PDT, que impetrou mandado de segurança no STF usando como argumento as declarações do ex-ministro da Justiça Sergio Moro sobre as tentativas do presidente da República de interferir politicamente na PF, pois Ramagem tem ligações pessoais com os Bolsonaro.
Para determinar a suspensão, o ministro alegou que “em tese, apresenta-se viável a ocorrência de desvio de finalidade do ato presidencial de nomeação do Diretor da Polícia Federal, em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.
O presidente Bolsonaro, depois de ter tornado sem efeito a nomeação de Ramagem, parece ter se arrependido e partiu para ataques pessoais a Alexandre de Moraes. Acusou-o de ter adotado uma decisão politica, e ressaltou que ele alegou “impessoalidade” para barrar a nomeação quando só teria sido nomeado ministro do Supremo por ser amigo do ex-presidente Michel Temer.
Propositalmente, Bolsonaro se referiu à “impessoalidade”, esquecendo-se de “moralidade” e do “interesse público”, que definem melhor a decisão. Como era de se esperar, provocou um movimento de solidariedade interna ao ministro Alexandre de Moraes, além de ter revelado um interesse exagerado na manutenção da nomeação.
A liminar concedida nem tocou na questão da amizade entre ele e Ramagem, mas sim na possibilidade de interferência na Polícia Federal. A razão do deferimento da liminar no mandado de segurança foi a possibilidade de haver um “desvio de finalidade” na nomeação, baseado nos relatos que o exministro Moro fez ao deixar o cargo.
Quanto à permanência do delegado Alexandre Ramagem na Abin, que Bolsonaro aponta como uma incoerência de Moraes, é preciso ressaltar duas coisas: o mandado de segurança não pediu nada em relação à Abin, por isso o STF não pode analisar. Além do mais, a Abin é órgão de assessoria de informação da Presidência da República, e não do Estado, como a Polícia Federal. O presidente pode nomear um amigo para o ministério, mas não para a PF ou outro cargo de Estado.
O presidente da República no Brasil é ao mesmo tempo chefe de Estado e chefe de governo. Mas é preciso saber não confundir as duas coisas.
Merval Pereira: Caminho pedregoso
Há políticos que chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar as instituições
Jair Bolsonaro está cumprindo uma espécie de via-Crucis a que é obrigado todo presidente que enfrenta um processo de impeachment sem que haja, no entanto, condições práticas de transformá-lo em realidade, embora todas as premissas estejam dadas.
A Covid-19, que o presidente tanto desdenhou, impede que o Congresso se reúna presencialmente para discutir o tema, e também faz com que as ruas vazias não reverberem o sentimento majoritário.
Bolsonaro deveria ser a favor do distanciamento social, que faz com que manifestações populares pedindo sua saída se transformem em panelaços quase diários. Simbólicos, porém ineficazes.
Se não houvesse esses obstáculos impostos por uma trágica pandemia, as ruas explodiriam diante do “E daí?” dito pelo presidente sobre as mais de cinco mil mortes de brasileiros, todos sem direito a velório, muitos enterrados em covas rasas.
A busca de apoio no Congresso, que todos os que sofreram impeachment fizeram e apenas Michel Temer concretizou, é uma dessas etapas, e nessa Bolsonaro tem desvantagem, pois sai de quase zero para conseguir uma maioria defensiva que evite o impeachment. Vai sair muito mais caro, e não há certeza de final feliz.
A cada bolsonarice que diz ou faz, abala a confiança que por acaso ainda exista em setores da classe média que o apoiou em 2018. Agora mesmo está fazendo mais uma de suas bravatas para agradar seu núcleo duríssimo de apoiadores quando diz que vai insistir no nome do delegado Alexandre Ramagem para chefiar a Polícia Federal.
De nada adiantaria recorrer, porque o recurso cairia para o mesmo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que suspendeu a nomeação por desvio de finalidade. Além disso, depois que a nomeação foi tornada sem efeito pelo próprio presidente, que devolveu Ramagem para a chefia da Abin, não haveria do que recorrer.
Se não encontrar um substituto ideal para Ramagem, Bolsonaro tem duas opções: ou deixa como interino o delegado Disney Rossetti, que Moro gostaria de ver substituindo Mauricio Valeixo, ou tenta encontrar alguém que aceite o cargo, o que está sendo difícil.
Há na corporação o temor de que qualquer delegado que seja nomeado terá pela frente um presidente ávido por informações sobre inquéritos em andamento, especialmente os que se referem a membros de sua família. Ou forçar uma nova investigação sobre o atentado que sofreu, como se uma grande conspiração estivesse protegendo os supostos mandantes do crime.
Provavelmente somente depois que o inquérito aberto a pedido do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, sobre interferência de Bolsonaro na Polícia Federal denunciada pelo ex-ministro Sérgio Moro terminar é que poderá novamente nomear Ramagem para o cargo, caso não exista nenhuma denúncia contra o presidente da República.
O presidente Bolsonaro manteve a nomeação de Ramagem para a Polícia Federal, mesmo sabendo que havia o risco de ela ser barrada, porque quer um delegado no cargo de diretor-geral da Polícia Federal que passe informações para ele. Mas a PF não é órgão da presidência da República, precisa ter autonomia para as investigações.
Mas enquanto as instituições estiverem funcionando e puderem barrá-lo, a democracia está preservada, apesar de todo o tumulto que ele provoca. É preciso ficar atento, porque há casos de políticos autoritários que chegaram ao poder pelo voto, como na Venezuela, e conseguiram controlar as instituições.
Boa parte do aumento das mortes pela Covid-19 deve-se ao comportamento do presidente, que vai para a rua desmoralizar o distanciamento social, entra em disputa com o ministério da Saúde e quer impor a adoção de remédios dos quais não se sabe o efeito. Bolsonaro vive num mundo próprio, paranóico, isolado da realidade.
O que obriga seus ministros a fazerem papeis ridículos como o atual da Saúde, Nelson Teich, que só faz repetir, como disse ontem, que “estamos navegando às cegas”. Não é culpa dele, é a verdade que se repete em todos os países. O problema é que Teich fica impossibilitado de terminar sua frase, dizendo aos brasileiros: “Porque não sabemos nada, a única coisa a fazer é ficar em casa”.
Merval Pereira: Homicídios voltam a crescer
Situação de 20 estados já indica que deve haver um crescimento entre 7% e 8% nos dois primeiros meses deste ano
No momento em que o presidente Bolsonaro se envolve em mais uma polêmica armamentista, revogando portarias do Exército que instituíam normas mais eficazes para controle e rastreamento de armas e munição, o governo vai se deparar com a notícia de que os homicídios voltaram a crescer em todo o país.
Dados de janeiro e fevereiro analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram a tendência de crescimento. Os números não estão fechados ainda, mas a situação de 20 estados já indica que deve haver um crescimento entre 7% e 8% nos dois primeiros meses deste ano.
O envolvimento do Exército em questões políticas, pois o presidente Bolsonaro anunciou pelo Twitter a decisão de mandar revogar as portarias, atendendo a pressões da indústria armamentista apoiada pela bancada da bala na Câmara, já incomoda ala de militares, que consideram que o trabalho técnico do Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados interessa à proteção da sociedade como um todo, e não a um grupo especifico, como disse em sua carta de despedida o General de brigada Eugênio Pacelli Vieira Mota, que foi para reserva logo depois do cancelamento das portarias.
Rastreamento de armas e marcação de munições para que possam ser identificadas interessa ao Judiciário, para esclarecimento de crimes, interessa ao combate às milícias. Num país em que 80% das mortes são por armas de fogo, é fundamental que o Estado tenha capacidade de rastrear armas e munições.
Ao mesmo tempo, o Ministério Público Federal quer incluir o caso no inquérito que foi aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as denúncias do ex-ministro Sergio Moro sobre interferências ilegais do presidente Bolsonaro na Policia Federal. Esse seria um outro exemplo de interferência, desta vez no Exército. Aliás, Bolsonaro acusou Moro de ser “desarmamentista” no seu pronunciamento sobre sua demissão.
O maior problema que os críticos vêem é a repolitização dos quartéis com a chegada ao governo de vários oficiais-generais, alguns inclusive da ativa, como Luiz Eduardo Ramos na Secretaria de Governo e o almirante Flavio Rocha na Secretaria de Assuntos Estratégicos. O fato de oficiais-generais da ativa fazerem parte do governo é simbólico dessa mudança, e grande número de militares em vários escalões do governo, indicam que o Exército voltou ao centro da política.
Recentemente, houve um princípio de desentendimento entre a ala de militares com gabinete no Palácio do Planalto e o ministro da Economia Paulo Guedes, em torno do programa Pró-Brasil, uma proposta incipiente de retomada econômica feita sem a participação da equipe de Guedes.
O ministro da economia aparentemente venceu o primeiro round, depois de estar quase fora do governo, mas terá ainda que enfrentar resistências da política. Os partidos que formam o centrão estão interessados no plano dos militares de retomada de obras públicas, e se incomodam com a insistência de Guedes de manter o controle dos gastos dentro do possível na situação de crise social em que vivemos devido à pandemia da Covid-19.
A tese de que o momento é de o governo gastar é tentadora para políticos fisiológicos, e faz sentido para militares com uma visão estatista da economia. A mistura de militares nacionalistas com políticos da estirpe de Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto é outro estranhamento para os que não vêem com bons olhos a participação de militares na atividade politica. O pragmatismo prevalece na saída de Sergio Moro, que tinha o apoio dos militares.
Há os que consideram que os militares estão desfazendo um trabalho de 30 anos, em que foram “o grande mudo”, granjeando respeito da opinião pública. Inicialmente, os militares que aderiram mais diretamente à candidatura de Bolsonaro achavam que ele, por ser popular, abriria espaço para os militares voltarem à vida pública com um selo de legitimidade da eleição presidencial. O problema é que funções de governo são essencialmente políticas, e as Forças Armadas são instituições de Estado, de acordo com a Constituição. Quando a política entra por uma porta, a hierarquia sai pelo outro.
Merval Pereira: Presidencialismo inepto
O próprio presidente admitiu que lhe faltava ‘tinta na caneta’, o que significa que estava bloqueado
A dificuldade que o presidente Bolsonaro encontrou para nomear o substituto de Sérgio Moro no ministério da Justiça é mais uma demonstração do que o cientista político Octavio Amorim Neto, da FGV do Rio, chama de “degradação do presidencialismo”. O próprio presidente admitiu que lhe faltava “tinta na caneta”, o que significa que estava bloqueado por circunstâncias políticas que o impediam de nomear seus preferidos.
Temia que o Judiciário ou o Congresso barrassem a nomeação de Jorge Oliveira para o ministério e do delegado Ramagem para a Polícia Federal, por serem amigos de seus filhos, que são objeto de investigações.
Os presidentes eleitos a partir de Dilma Rousseff em 2014, passando por Michel Temer e chegando até Bolsonaro hoje encontraram dificuldades para governar diante de crises com o Legislativo e o Judiciário.
Cercados por processos de impeachment, os dois primeiros viram seus poderes serem desidratados por decisões como a de fevereiro de 2016, quando Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal, suspendeu, em decisão monocrática, a nomeação do ex-presidente Lula para o cargo de ministro-chefe da Casa Civil.
Em janeiro de 2018, o juiz Leonardo da Costa Couceiro, titular em exercício da 4ª Vara Federal de Niterói, decidiu suspender a nomeação de Deputada Federal Cristiane Brasil para chefiar o Ministério do Trabalho de Temer, decisão avalizada pelo STF.
Octavio Amorim Neto lembra que o presidencialismo é um regime que investe o Poder Executivo na “pessoa” do Presidente da República, que é, simultaneamente, chefe de Estado e de governo. “Donde decorre que atributos da personalidade presidencial são fatores muito relevantes para o bom funcionamento do presidencialismo”.
Ministros precisam da confiança presidencial – não da parlamentar – para serem nomeados e mantidos nos seus cargos, gerando grande potencial de conflito entre Legislativo e Executivo, “sobretudo quando o presidente reivindica para si uma legitimidade superior à do Poder Legislativo por ter sido sufragado pela maioria popular, como alertou o grande politólogo espanhol Juan Linz”.
Quanto aos atributos da personalidade presidencial, Octavio Amorim Neto lembra que em quatro das oito eleições presidenciais diretas realizadas desde 1989, “escolheram-se pessoas ineptas para o exercício vertical e horizontal do Poder Executivo: Fernando Collor em 1989, Dilma Rousseff em 2010 e 2014 e Jair Bolsonaro em 2018”.
No Brasil, tivemos o impeachment de Collor e Dilma e tentativas de impedir Temer. Não apenas no Brasil isso ocorre, pois nos Estados Unidos, desde Nixon, que renunciou para não ser punido pelo Congresso, já tivemos tentativas de impeachment de Bill Clinton e recentemente de Trump.
Se o impeachment fosse tratado como um instrumento normal do presidencialismo democrático, sem essa carga golpista que carrega, seria a versão do voto de desconfiança do parlamentarismo, que não provoca crises institucionais graves.
Mas o cientista político Octavio Amorim Neto, mesmo reconhecendo que o uso do impeachment “começa a assemelhar-se ao voto de desconfiança no parlamentarismo”, considera que o recurso a esse procedimento continua a ser traumático pelas seguintes razões:
1) Porque significa contrariar a vontade popular expressa na eleição presidencial, o único pleito de base territorial exclusivamente nacional no Brasil (deputados e senadores têm base territorial estadual);
2) A suspensão do mandato presidencial é, simultaneamente, um processo jurídico e político, sendo, portanto, muito mais complicado do que um voto de desconfiança; e
3) Por conta do seu caráter complicado e da exigência de maioria qualificada de 2/3 para ser aprovado pelo Congresso, a destituição legal de um presidente implica a mobilização de um enorme e desgastante esforço político, o qual toma muito tempo.
Neste momento em que a principal ação do país deveria ser enfrentar a Covid-19, não é hora de entrarmos em nova crise institucional, como advertiu ontem, depois de dias de silêncio, o presidente da Câmara Rodrigo Maia.
Em suma, diz Octavio Amorim Neto, “o presidencialismo tem sido degradado pela frequente eleição de presidentes ineptos e pela ação direta do Legislativo e do Judiciário. Ou paramos de degradar nosso sistema de governo ou é melhor trocá-lo por outro”.
Íntegra do artigo no Boletim Macro, do IBRE-FGV, de abril
Merval Pereira: Meses decisivos
Os três inquéritos do STF têm a possibilidade de montar um quadro bastante claro da atuação dos Bolsonaro na política brasileira
Nos últimos cinco meses deste ano fatídico, entre julho e novembro, viveremos tempos decisivos na política brasileira, com definições fundamentais envolvendo o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso, desde a realização das eleições municipais até os inquéritos envolvendo o presidente Bolsonaro e seu entorno.
O ministro Celso de Melo, decano do STF, se aposenta em novembro com uma última missão delicada institucionalmente, a relatoria do inquérito sobre as acusações do ex-ministro Sérgio Moro ao presidente Bolsonaro, que ele deve aceitar na segunda-feira.
Em julho, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), hoje presidido pelo ministro do Supremo Luis Roberto Barroso, tem que decidir sobre a realização das eleições municipais em outubro, pois a data limite para a realização das convenções é dia 5 de agosto e a propaganda eleitoral começaria no dia 15.
Em setembro, o ministro Dias Toffoli será sucedido na presidência do STF pelo ministro Luis Fux, e os dois gostariam de ser o presidente quando os inquéritos sobre fake news e organização de manifestações antidemocráticas, relatados pelo ministro Alexandre de Moraes, chegarem ao final. Toffoli abriu o inquérito das fake news há um ano, sob criticas generalizadas, e quer mostrar que tinha motivos para tal.
Nesses meses, portanto, estaremos decidindo o futuro imediato da política brasileira. Os inquéritos relatados pelo ministro Alexandre de Moraes são os que incomodam o presidente Bolsonaro, de acordo com as mensagens reveladas pelo ex-ministro Sérgio Moro.
Alexandre de Moraes tomou uma atitude nesta semana que já havia sido adotada pelo ministro Luis Roberto Barroso em inquérito contra o então presidente Michel Temer: determinou que a equipe da Polícia Federal que já trabalha com ele seja mantida nas investigações, mesmo com a troca do diretor-geral da Polícia Federal.
As investigações já estão bastante avançadas, o que garantirá que o segundo inquérito também ganhará agilidade e poderá fazer uso de informações que não diziam respeito ao Supremo, escopo restrito do primeiro inquérito.
O chamado “gabinete do ódio”, instalado no Palácio do Planalto sob a orientação do vereador Carlos Bolsonaro e inspiração do guru Olavo de Carvalho, está sendo identificado como a origem das fake news e, ao que tudo indica, tem ligações estreitas com a organização das manifestações que pedem a intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
O novo inquérito, que caiu pelo sorteio eletrônico para o ministro Celso de Melo relatar, é outro fator relevante nessa crise politica, e investigará as supostas tentativas do presidente Bolsonaro de obter informações da Polícia Federal com o objetivo de interferir nas investigações.
A ilação imediata, que terá que ser apurada, é que o presidente pretende, ao nomear o diretor-geral da PF, controlar os inquéritos que envolvem seus filhos. Os três são investigados sobre a disseminação de fake news, funcionários fantasmas e rachadinhas do salário de funcionários.
Mas Bolsonaro se preocupa com deputados bolsonaristas investigados pelo inquérito relatado por Alexandre de Moraes, e no final os três inquéritos do STF têm a possibilidade de montar um quadro bastante claro da atuação dos Bolsonaro na politica brasileira.
A eleição municipal deste ano é outra peça importante deste enorme quebra-cabeças que esta sendo montado. O ministro Luis Roberto Barroso está consultando epidemiologistas para tentar ter uma ideia se em julho já haverá condições de autorizar as convenções partidárias devido à crise da Covid-19.
Ele trabalha com a ideia de não adiar as eleições, mas se for necessário, apenas por um ou dois meses, para que não seja necessário prorrogar mandatos. Barroso, apesar da “avassaladora” crise que reúne em uma só crises na saúde pública, na politica e na economia, continua otimista, pois vê as instituições brasileiras sustentando a democracia, em especial o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e as Forças Armadas, vacinadas contra o vírus do golpismo.
Merval Pereira: Interesses escusos
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, relator no Supremo Tribunal Federal (STF) de determinar que os delegados que já estão trabalhando no inquérito sobre fake news há um ano permaneçam na investigação, mesmo com a mudança do diretor-geral da Polícia Federal, é uma demonstração de que a intenção de desmobilizar as investigações pode estar por trás da decisão de Bolsonaro.
As mensagens de WhattsApp apresentadas pelo Jornal Nacional provam que o ex-ministro Sérgio Moro foi assediado pelo presidente Bolsonaro, que baseou a decisão de substituir o diretor-geral da Polícia Federal Mauricio Valeixo na necessidade de interferir no inquérito que corre em segredo de Justiça há um ano no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as fake news, e que será acompanhado agora pelo outro inquérito pedido pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras, que terá o mesmo relator, o ministro Alexandre de Moraes.
Tendo sido juiz por mais de 20 anos, Moro foi cuidadoso ao fazer denúncias graves ontem contra Bolsonaro, quando anunciou sua demissão do cargo. Há uma série de acusações que podem ser feitas contra o presidente Bolsonaro, desde falsidade ideológica por ter publicado no Diário Oficial um documento com a assinatura de Moro, negada por ele, até obstrução de Justiça.
Há diversos patamares de gravidade nessas acusações, e certamente a que mais repercutirá no Supremo é a tentativa de interferir no inquérito sobre fake news que corre por lá. Pela natureza de seu temperamento, era previsível que Moro tivesse onde se apoiar para comprovar as acusações, mas evitou fazer ilações sobre os motivos do interesse do presidente Bolsonaro na substituição do superintendente da PF no Rio de Janeiro, por exemplo.
Ao se queixar de que a PF se interessava mais sobre o crime da vereadora Marielle do que com o atentado que sofreu, Bolsonaro demonstrou que não faz diferenciação entre o público e o privado, e se incrimina ao admitir que pediu que a PF ouvisse um miliciano acusado pelo assassinato de Marielle, para exonerar de culpa seu filho 04, Jair Renan, que namorara a filha do policial preso.
O presidente considera normal dar ordens diretas à PF, mas o correto legalmente seria fazer uma petição através de um advogado. Os diversos crimes que cometeu, segundo o ex-ministro Sergio Moro, serão investigados no Supremo Tribunal Federal no inquérito pedido pelo Procurador Aras. Mas Moro, não sendo mais ministro, será investigado por possível denunciação caluniosa na Justiça de primeira instância.
O ex-ministro Sérgio Moro não tinha outra escolha: ele não queria abrir mão da bandeira de combate à corrupção. Saindo do jeito que saiu, escancarando suas divergências com Bolsonaro, ele consegue se redimir de momentos em que evitou, por estratégia política, se confrontar com o presidente.
As denúncias de Moro terão sérias consequências. O agora ex-ministro foi perfeito ao pedir demissão, alegando uma série de ilegalidades cometidas pelo presidente Bolsonaro no exercício do mandato, que terão consequências jurídicas e políticas do quilate da gravidade do que foi relatado.
Moro conseguiu denunciar com muita tranquilidade e frieza, fazendo um balanço de tudo o que realizou, seus ganhos e avanços no combate à corrupção, e terminou dizendo que onde quer que esteja, estará à disposição do país, se colocando como possível alternativa a algum cargo público ou até à presidência da República.
Se Bolsonaro colocar, como está sendo especulado, o ministro Jorge Oliveira na Justiça e Segurança Pública e o delegado da ABIN na PF, estará criando mais um caso grave. Oliveira é quase da família dele, e o delegado foi levado pelo filho Carlos para o governo, para montar esquema de informação paralelo dentro do Palácio do Planalto, segundo denúncia de Gustavo Bebiano. O interesse de Bolsonaro por informações e relatórios de inteligência dá validade a essa antiga denuncia do falecido Bebianno.
Merval Pereira: Da colisão à coalizão
Os movimentos do Palácio do Planalto para abrir uma brecha na estrutura de apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com vistas a eleger seu sucessor no início do ano que vem, é uma mudança radical de posição do presidente Bolsonaro que pode ter consequências fundamentais na sucessão presidencial de 2022.
Quem era o antipolítica até domingo, quando anunciou em alto e bem som no fatídico comício com reivindicações antidemocráticas em frente ao QG do Exército que não queria negociação nenhuma e que “o povo está no poder”, agora aparece no noticiário como aliciador do apoio de figuras como Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto, emblemáticas da “velha política”.
O ministro da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos, que faz a coordenação parlamentar do Planalto, nega o caráter de “é dando que se recebe” das negociações, e o ministro-chefe do Gabinete Civil, Braga Neto garante que não é o interlocutor de Rodrigo Maia.
Tudo indica, porém, que foi o próprio presidente Bolsonaro quem desencorajou a tentativa de aproximação com o presidente da Câmara, que considera agora seu principal adversário político. O objetivo de Bolsonaro ao tentar montar uma maioria de apoio dentro do Congresso, coisa a que ele se recusava desde o início do governo, é de impedir qualquer tentativa de pedido de impeachment, e, ao mesmo tempo, organizar uma base de apoio para a reeleição, cooptando parlamentares para seu futuro partido em coalizão com a base do Centrão.
Bolsonaro tenta assim sair da rota de colisão para assumir um presidencialismo de coalizão que repudiava até então. Por isso, nega em público o que faz em privado, pois seus apoiadores nas redes sociais estão mentalmente organizados para repudiar os políticos e não aceitarão, por exemplo, o deputado Arthur Lira como candidato do governo para a presidência da Câmara, pois responde a acusações de corrupção.
O deputado Marco Feliciano, pastor licenciado, é outro potencial candidato desse grupo do centrão que pode abandonar Rodrigo Maia para aderir à coalizão bolsonarista em troca de cargos. O passo arriscado que Bolsonaro vai levá-lo a um caminho que já foi percorrido por muitos presidentes que quiseram interferir na eleição da presidência da Câmara e perderam.
Exemplos recentes há muitos, a começar por Fernando Henrique, que montara na Câmara um rodízio entre PSDB, PFL e PMDB que foi quebrado pelo tucano Aécio Neves, que superou Inocêncio de Oliveira do PFL, que seria o presidente da vez.
Em 2005, em plena crise do mensalão, Severino Cavalcanti, então deputado federal do baixo clero, derrotou o candidato do presidente Lula, Luis Eduardo Greenwald. Em 2014, depois que o PMDB fechou a reeleição da chapa Dilma-Temer, a presidente tentou interferir na eleição da Câmara em favor de Arlindo Chinaglia, do PT, e acabou derrotada pelo peemedebista Eduardo Cunha, que acabou sendo o responsável pela aceitação do pedido de impeachment de Dilma Rousseff.
A disposição aparente de Bolsonaro de entrar nesse jogo de influência pode levar ao acirramento das relações entre o Palácio do Planalto e a Câmara, além de criar condições para eventuais escândalos. O difícil vai ser Bolsonaro ganhar a confiança dos parlamentares, pois eles sabem que as milícias digitais não dão descanso.
O movimento para que tanto Rodrigo Maia quanto Davi Alcolumbre se elejam mais uma vez, o que é vedado pelo regimento interno das duas Casas, perde a força diante da crise que o país vive. Maia já havia dispensado essa proposta, que precisa de uma mudança constitucional para ser feita, mas ainda há muitos parlamentares que queriam garantir sua permanência.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, continua empenhado nessa mudança, e também está se aproximando de Bolsonaro. Tanto Arthur Lira quanto Marcos Pereira eram deputados candidatos da base que apóia Rodrigo Maia. Com esse espaço que abriram na dissidência, Maia também ganha mais espaço para consolidar sua base. Provavelmente vai tentar um candidato que una os partidos de centro-direita com os da esquerda, para derrotar Bolsonaro.
Esclarecimento
Os ministros da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva, e da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, ambos da ativa, enviaram mensagens negando que tenham sido convidados pelo presidente Bolsonaro para comparecerem à manifestação antidemocrática realizada domingo na frente do Quartel-General do Exército em Brasília. Está registrado.
Merval Pereira: Golpe frustrado
O presidente Bolsonaro tentou dar ares de apoio dos militares à sua presença na manifestação antidemocrática que avalizou no domingo em Brasília, mas soube, antecipadamente, que a área militar se incomodava com a escolha como moldura de uma ação política o Forte Apache, como é conhecido o Quartel-General do Exército.
Ele convidou para acompanha-lo os ministros da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, que recusaram, por considerarem que a presença deles sugeriria que o Exército avalizava a manifestação.
Por ser político, os generais consideram que Bolsonaro tem o direito de participar de manifestações políticas, mas, diante da repercussão negativa, avaliaram que o presidente deu um passo em falso ao convalidar as reivindicações antidemocráticas.
Por isso, tiveram uma reunião com ele na noite do mesmo domingo, onde ficou combinado que Bolsonaro falaria no dia seguinte para desfazer o clima político tenso, e à noite o ministério da Defesa deu uma nota oficial garantindo que as Forças Armadas obedecem à Constituição.
A frase proferida por Bolsonaro na manhã de segunda feira - “Já estou no poder, por que daria um golpe?” - foi dita a ele na reunião de domingo.
A investigação já em curso no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as fake news cruzará inevitavelmente com o novo inquérito aberto sobre as manifestações antidemocráticas, pois tudo indica que os mesmos que orquestram as notícias falsas contra os que consideram adversários políticos são os que organizam e financiam essas manifestações que pedem a intervenção militar e o fechamento do Supremo e do Congresso.
A piada do dia entre os parlamentares é que os sorteios no Supremo Tribunal Federal (STF) estão sendo feitos pela mão de Deus, como o gol do Maradona. O inquérito sobre as manifestações antidemocráticas caiu, no sorteio eletrônico, para o ministro Alexandre de Moraes, o mesmo que já preside o inquérito sobre as fake news contra o STF. E o pedido do deputado Eduardo Bolsonaro para impedir a prorrogação da CPI das Fake News no Congresso foi para o ministro Gilmar Mendes, um dos mais ferrenhos combatentes das fake news, e que tem assumido publicamente posições vigorosas contra as reivindicações ilegais de intervenção militar. A tal ponto que retuitou uma declaração de outro ministro do STF, Luis Roberto Barroso, não exatamente seu amigo, repudiando os que pedem a volta do AI-5 e da ditadura militar.
O inquérito das fake news já existe há um ano no Supremo, e recebeu muitas críticas pela maneira como foi criado, em regime de sigilo como o de agora, e sem a participação da Procuradoria-Geral da República. Está mais avançado do que o Procurador-Geral atual, Augusto Aras, gostaria.
Ele pediu a abertura de um inquérito para investigar os atos antidemocráticos, mas excluiu o presidente Bolsonaro do rol de suspeitos de os incentivarem, provavelmente para cacifar-se à vaga do Supremo que se abre em novembro com a aposentadoria do ministro Celso de Mello.
Mas bastará um parlamentar, ou associação da sociedade civil, requisitar ao ministro Alexandre de Moraes que inclua Bolsonaro no inquérito que o pedido será encaminhado pelo Supremo à PGR, criando um constrangimento que possivelmente impedirá a não aceitação.
O inquérito do ministro Alexandre de Moraes já tem uma relação de 10 a 12 de deputados bolsonaristas, mais empresários, que tiveram o sigilo quebrado, e a Polícia Federal estava a ponto de fazer busca e apreensão em seus endereços quando veio a quarentena.
Com o novo inquérito, dificilmente vai dar para parar a investigação, que já teria identificado o chamado “gabinete do ódio” que funciona no Palácio do Planalto como a origem das fake news, e poderão surgir dados que liguem esse grupo palaciano, coordenado pelo vereador Carlos Bolsonaro, à organização dessas manifestações ilegais.
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, conversou ontem com o ministro Alexandre de Moraes e deverá receber um relatório sobre as investigações das fake news no início da próxima semana.
A investigação original é sobre o STF, mas há indícios de que está tudo ligado. A Polícia Federal deve manter os mesmos policiais que já estão trabalhando no inquérito das fake news, para dar mais agilidade às investigações.
Merval Pereira: Instituições funcionam
Constituição prevê o direito ao trabalho e uma série de garantias para a proteção do emprego, o objetivo da MP
Duas das instituições mais atacadas pelo presidente Bolsonaro nos últimos dias, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso, deram ontem demonstrações de que atuam nesse momento dramático do país sem viés ideológico, ajudando o governo a enfrentar a Covid-19.
O Supremo aprovou por maioria ampla (7 a 3) a permissão de acordos individuais entre empregados e empregadores sem a participação dos sindicatos. O Senado, por sua vez, aprovou a proposta de emenda constitucional (PEC), que já havia sido aprovada pela Câmara, que institui o chamado “orçamento de guerra”, que dá licença ao governo de gastar verbas não previstas no orçamento-geral da União no combate à Covid-19. Acertos terão que ser feitos, pois o Senado alterou o texto que veio da Câmara, mas nada que a inviabilize,
Bolsonaro, que acusara quinta-feira o presidente da Câmara de conspirar para derrubá-lo, recebeu poderes nunca antes dados a um presidente da República, e por iniciativa do próprio Rodrigo Maia.
Pelo “orçamento de guerra”, o governo não terá as limitações da Lei de Responsabilidade Fiscal, e o Banco Central fica autorizado a comprar e vender títulos públicos nos mercados financeiros de empresas que necessitem ajuda, sem passar pelo mercado bancário. Uma maneira de injetar dinheiro com rapidez nas empresas privadas, sem entraves que a legislação atualmente impõe.
Já o Supremo terminou ontem o julgamento da legalidade da medida provisória que criou o "Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda", que permite a empregados e empregadores negociarem a suspensão temporária do contrato de trabalho, ou a redução equivalente de remuneração e horas trabalhadas, durante a pandemia da Covid-19, sem a participação dos sindicatos.
O relator, ministro Ricardo Lewandowski, havia votado na véspera reafirmando o teor da liminar que concedera, dando aos sindicatos o poder de rever acordos individuais.
O governo temia tanto a derrota que o Advogado-Geral da União, André Mendonça, na hora de defender a legalidade da medida provisória editada pelo governo, acabou admitindo que o ministro Lewandowski tinha razão, acatando a tese do relator.
Fez isso porque temia que prevalecesse no plenário uma posição mais radical ainda, defendida pelos ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que consideraram integralmente inconstitucional a medida provisória, anulando inclusive todos os cerca de 2 milhões de acordos que já haviam sido firmados.
O ministro Alexandre de Moraes, que tem tido uma ação assertiva nesse período e, junto com o ministro Marco Aurelio Mello, deu autonomia a estados e municípios para definirem os programas de distanciamento social horizontal, - o que irritou o presidente Bolsonaro - votou pela revogação da liminar e abriu caminho para uma vitória ampla do governo. Foi acompanhado também por Marco Aurelio.
Os sete votos favoráveis seguiram o raciocínio de Moraes de que a medida objetivava a manutenção dos empregos nesse momento de crise: “Esse acordo é excepcional, é temporário, só pode ser aplicado nesse período de 90 dias de calamidade pública. A ‘ratio’ da norma é a manutenção do trabalho, é uma opção ao desemprego, é a valorização da manutenção desse direito social, trabalho”.
O ministro Luis Roberto Barroso ressaltou em seu voto, já prenunciando uma posição a favor das decisões técnicas e não políticas, que a medida provisória é fruto de uma cão conjunta de profissionais de diversas áreas: economistas, médicos, gestores públicos e profissionais do Direito. Para o ministro, há necessidade no momento de "autocontenção" do Judiciário e deferência para com as decisões que foram tomadas por pessoas que têm expertise nos assuntos.
Barroso lembrou ainda que a Constituição prevê o direito ao trabalho e uma série de garantias para a proteção do emprego, o objetivo da medida provisória. O ministro Luiz Fux ressaltou a importância dos acordos entre trabalhadores e empregadores, lembrando que a conciliação "otimiza os relacionamentos".
A ministra Carmem Lucia ressaltou, como já havia feito anteriormente Fux, a insegurança jurídica que provocaria a exigência de submeter os milhões de acordos já realizados à avaliação de sindicatos. Já Gilmar Mendes reforçou que a medida é um esforço para que os empregos sejam preservados, em meio a uma situação excepcional. "É uma crise que nossa geração jamais viu", disse.