Merval Pereira
Merval Pereira: Aras em xeque
Inábil no seu açodamento, Bolsonaro vem tornando pública sua proposta de “compensação” a Aras
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, tenta sair das cordas com retórica, não com atos. Disse, afinal, em nota que “sente desconforto” com a citação de seu nome para ocupar uma vaga no Supremo Tribunal Federal. O sujeito oculto da frase é o presidente Bolsonaro, que, inábil no seu açodamento, vem tornando pública sua proposta de “compensação” a Aras.
Na verdade, desconforto é o sentimento generalizado entre seus pares, e a opinião pública o identifica como o “Procurador-Geral de Bolsonaro”, conforme a pichação que acordou ontem na sede do Ministério Público em Brasília.
Ele é a peça-chave nos dois inquéritos que correm no STF envolvendo o presidente Bolsonaro, um sobre a interferência na Polícia Federal, e outro das fake news. Se Aras decidir pedir o arquivamento, não haverá denúncia, a não ser que o embate entre Executivo e Judiciário esteja tão radicalizado que, no caso das fake news, por exemplo, um dos ministros atacados, ou vários, entrem com uma “ação penal privada subsidiária da pública”, contestando a decisão do Procurador-Geral. Mas as provas não se perderão. Serão enviadas para a primeira instância, no caso dos que não têm foro privilegiados. E aos tribunais superiores, no caso de deputados estaduais e federais.
Certamente pela complacência de Aras, o presidente Bolsonaro se sinta tão à vontade para atacar os ministros do Supremo. Continua fustigando em especial o ministro Alexandre de Moraes, republicando nas redes sociais algumas de suas declarações anteriores, como se evidenciassem contradições do pensamento do relator do inquérito das fake news sobre as liberdades individuais.
Mais uma vez temos um problema de semântica, comum aos bolsonaristas radicalizados, e frequente no presidente. Quando Moraes fala em debate de ideias e liberdade de expressão, não está se referindo a mensagens de suas milícias digitais pregando o fechamento do Congresso e do Supremo, ameaçando de morte juízes e políticos que consideram inimigos, e defendendo intervenção militar.
Bolsonaro diz que quer armar o povo para defender a democracia, e dá como exemplo a reação armada contra ordens judiciais que proíbem pessoas de frequentar as praias no tempo de quarentena. Diz que respeita o sistema judicial, mas exorta seus seguidores a não obedecer “ordens absurdas”.
Se diz a favor da liberdade de imprensa, mas instiga seus militantes na porta do Alvorada a atacarem a imprensa profissional. E o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, o máximo que consegue propor é que os jornalistas finjam que não estão escutando as ofensas.
O que realmente incomoda o presidente é a possibilidade de sair de um dos inquéritos, especialmente o das fake news, uma impugnação de sua eleição, ou no STF ou, mais provável, do Tribunal Superior Eleitoral. O ministro Og Fernandes, relator dos casos de impugnação da chapa por irregularidades na campanha eleitoral no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já faz consulta para decidir se agrega as provas do inquérito de fake news do Supremo ao processo que corre no TSE. O prazo da quebra de sigilo estabelecido pelo ministro Alexandre de Moraes pega a campanha presidencial, o que pode trazer provas que se agreguem ao processo de impulsionamento ilegal de mensagens, com o financiamento das milícias digitais, a mídia que Bolsonaro tem a seu favor, conforme admitiu o próprio. Esses atos falhos, por sinal, vão surgindo à medida que a situação foge ao controle.
Ontem o assessor especial da presidência, Filipe Martins, acusado de fazer parte do “gabinete do ódio”, entregou-se ao responder a críticas no Twitter com uma série de compartilhamentos de mensagens idênticas, revelando ter uma multidão de robôs a seu dispor.
Merval Pereira: E daí?
A proximidade excessiva, quase obscena, de Aras com o presidente Bolsonaro traz o descrédito ao corpo de procuradores
O procurador-geral da República, Augusto Aras, não consegue nem mesmo entrar no elevador cheio na sede de Brasília da instituição que preside, tamanho o desconforto que está provocando entre seus pares.
A proximidade excessiva, quase obscena, com o presidente Bolsonaro, a quem cabe a Aras julgar no caso da interferência na Polícia Federal, traz o descrédito ao corpo de procuradores. Não é por acaso que surgiu o abaixo-assinado, com assinaturas de mais da metade dos componentes do Ministério Público, para tornar lei a praxe de o presidente da República ter que escolher de uma lista tríplice o ocupante do cargo.
Aras colocou-se à margem da corporação, não participando da disputa, atitude que agradou a Bolsonaro. Mesmo assim, a revolta interna o atinge, a ponto de ter havido uma reação branca dos procuradores, que se recusaram a ajudá-lo a escrever a manifestação da PGR contra o inquérito das fake news.
Em Brasília, já há quem o chame de procurador-geral do Bolsonaro. Ou quem diga que o governo tem hoje três pessoas exercendo o cargo de advogado-geral da União: o próprio, José Levi, o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, e o procurador-geral da República, Augusto Aras.
Os dois últimos, por sinal, disputando vagas no Supremo Tribunal Federal, a cenoura com que Bolsonaro lhes acena para conseguir que assumam tarefas incompatíveis com os cargos que ocupam. Por isso, há no Congresso uma movimentação para aprovar uma lei que impediria que o procurador-geral da República fosse reconduzido ao cargo, e também exigiria uma quarentena para que pudesse assumir cargo no governo depois de terminar seu mandato.
Mendonça, por exemplo, não seria o mais indicado para assinar a petição do habeas corpus para o ministro da Educação, Abraham Weintraub, no Supremo Tribunal Federal. Seria tarefa de José Levi, mas Bolsonaro queria que o ato tivesse uma demonstração política de repúdio à convocação de seu ministro e de todos os que foram alvo da ação da Polícia Federal na quarta-feira. É esse tipo de solidariedade política que Bolsonaro exigia, e nunca obteve, de Sergio Moro.
Aliás, este governo é tão disfuncional que, na fatídica reunião ministerial, Bolsonaro estranhou que ministros fossem elogiados enquanto ele recebia críticas da imprensa. Criou-se até uma campanha nas mídias sociais estimulando elogios ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, para que fosse demitido por ciúmes de Bolsonaro.
O humor tem sua razão de ser, mas, de repente, Weintraub, que estava sob críticas de alas do Planalto que o consideram, além de incompetente, um gerador de atritos com a sociedade, passou a ser um símbolo dos extremistas após ter dito na reunião que colocaria “os vagabundos do Supremo” na cadeia.
Temeu ser preso, exigiu uma proteção oficial, gerando o tal habeas corpus. Chamado a depor, ficou em silêncio, numa atitude de protesto, embora legal. Ganhou alguns meses de vida. Ontem, foi condecorado pelo presidente Bolsonaro com a Ordem do Mérito Naval, ao lado do procurador-geral da República (do Bolsonaro?), Augusto Aras.
A desenvoltura com que o presidente utiliza-se dos instrumentos institucionais para fazer política é surpreendente. Usa condecorações oficiais para mandar recados, vai a posse de procuradores sem ser convidado para elogiá-los numa tentativa de constrangê-los, coloca Augusto Aras oficialmente numa lista de nomes para o Supremo Tribunal Federal, humilhando-o publicamente. Distribui cargos a rodo para o centrão, sem o menor pudor.
Talvez esteja indo com muita sede ao pote, temendo que os inquéritos em andamento o peguem desprevenido no meio do caminho. Tal qual o governador do Rio, Wilson Witzel, seu antigo amigo e hoje inimigo figadal, Bolsonaro e seus filhos foram apanhados muito cedo pela Justiça. Como Michel Temer, terá que dedicar o resto do mandato a salvar a sua pele e a dos seus. E daí?
Merval Pereira: Caneta sem tinta
Os membros do Supremo riscaram uma linha de onde não admitirão passar os desmandos do presidente e seus seguidores
O presidente Bolsonaro conseguiu cimentar uma união interna no Supremo Tribunal Federal (STF) que já vinha sendo formada no cotidiano da Corte diante dos riscos à democracia desenhados pela retórica agressiva dos militantes bolsonaristas, em manifestações avalizadas pelo próprio presidente, e em atitudes agressivas das milícias, digitais ou não, contra seus membros.
Para além desse sentimento até mesmo de autopreservação, não fosse a ameaça à democracia, os ataques ao decano do STF, ministro Celso de Mello, tornaram-se exemplares da falta de limites desses militantes, que o decano classificou de “bolsonaristas fascistóides”.
Celso de Mello, aliás, já previa os problemas que a radicalização política poderia causar à democracia no país. Em 2018, com problemas de saúde que o impediam de se locomover normalmente, pensou em se aposentar. Começou mesmo uma conversa sobre seu substituto, e indicou indiretamente ao presidente Michel Temer que se sentiria feliz se a advogada-geral da União, Grace Mendonça, fosse indicada para sua vaga.
No final do ano, com a polarização política acirrada na campanha presidencial, ele avisou a Grace que continuaria até o final de seu período, e entrará na compulsória por fazer 75 anos, em novembro.
A operação de busca e apreensão da Polícia Federal de quarta-feira, que tanto incomodou o presidente Bolsonaro, estava prevista há pelo menos um mês, e só não foi realizada antes devido à pandemia, como noticiei na minha coluna “Golpe frustrado”, de 22 de abril.
Como já havia a perspectiva de que Bolsonaro estava tentando interferir na Polícia Federal na saída do então ministro da Justiça Sérgio Moro, o ministro Alexandre de Moraes determinou que fosse mantida a mesma equipe da PF que trabalhava no caso há um ano. Com isso, evitou que a operação pudesse ser inviabilizada por questões burocráticas ou vazamentos com viés político.
Os membros do Supremo riscaram uma linha de onde não admitirão passar os desmandos do presidente e seus seguidores. Em consequência, as duas novas tentativas do governo de reverter decisões do Supremo têm chances próximas de zero de vingar, tanto o habeas corpus a favor do ministro Abraham Weintraub, quanto o pedido de fim do inquérito sobre fake news feito pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras.
Há uma jurisprudência firmada de que o tribunal não deve receber pedido de habeas corpus contra atos de seus ministros. Quanto ao inquérito, mesmo os que, a princípio, consideraram que era uma demasia do presidente Dias Toffoli, hoje entendem que os fatos descobertos nas investigações justificam sua existência, indo muito além da auto defesa que parecia ser o objetivo inicial.
Trata de ataques à democracia. Além do mais, iniciado de maneira equivocada, esse inquérito foi colocado nos eixos muito devido às críticas que recebeu. O ministro Alexandre de Moraes comanda as investigações, e não julgará, o PGR Aras tem conhecimento delas e foi atendido na tese de que os deputados não deveriam ser alvos de busca e apreensão em suas residências.
A fala do presidente Bolsonaro ontem de manhã foi reveladora de seus intentos, mas ele não tem meios legais para afirmar que “acabou”, se referindo à ação da PF autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes contra as fake News. Não há nada que ele possa fazer contra o STF, que, como disse Rui Barbosa, tem o direito de errar por último.
É preocupante que ele não aceite limites que a democracia impõe, queixando-se de que sua caneta não tem tinta. Não imagino que tenha algum tipo de apoio fora dessas milícias digitais para tomar qualquer providência fora da lei. Vários militares, inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, reafirmaram ontem que não há possibilidade de golpes militares. Os comandantes das Três Armas não são tão condescendentes quanto seus colegas da reserva com relação às extravagâncias políticas do presidente Bolsonaro. Enquanto ficar na retórica, e não houver nenhuma medida prática para desautorizar o STF, vamos viver nesse clima de tensão permanente. Para parar o STF, nem mesmo mandando o soldado e o cabo, como disse o filho 03 Eduardo, para fechá-lo.
Merval Pereira: Sinais de alerta
A operação policial no Palácio Laranjeiras, residência oficial dos governadores do Rio, faz parte de um amplo mosaico de combate à corrupção que é bem vindo, mas traz consigo a desconfiança de que a Polícia Federal esteja sendo usada para objetivos políticos depois da mudança de chefia recente.
O fato de que esta é a segunda vez em pouco tempo que um governador do Rio recebe a visita da Polícia Federal em sua casa - o outro, Pezão, foi levado preso de lá - diz muito sobre a deterioração da política do Estado, onde milicianos e trambiqueiros de diversos naipes dominam os serviços terceirizados, especialmente os da Saúde, numa perversão que não parou no governo Sergio Cabral.
Os trambiqueiros são os mesmos, Mario Peixoto tinha ligação antiga com o governo anterior, e já na campanha sua presença no entorno de Witzel foi denunciada pelo também candidato Romário. Milícias disputam os poderes entre si, federal e estadual.
Os indícios contra o governador do Rio, Wilson Witzel, sempre foram muito fortes desde o inicio, quando ele desmontou o sistema unificado de polícias do Rio na Secretaria de Segurança organizado pelo militares durante a intervenção, e voltou a aceitar indicações políticas para o comando de batalhões, segundo informações das autoridades da época. O interventor foi o General Braga Neto, que hoje ocupa o Gebinete Civil da presidência de Bolsonaro.
Mas o presidente Bolsonaro festejar com risadas e dar os parabéns à operação da Polícia Federal tem o mesmo efeito dos cumprimentos e elogios ao procurador-geral da República, Augusto Aras, ao visita-lo de surpresa para elogiar de corpo presente os “formidáveis” membros do Ministério Público.
Com atitudes como essas, Bolsonaro pressiona publicamente órgãos de Estado que são autônomos e precisam demonstrar essa condição em situações delicadas, como, por exemplo, recolher o celular de uma autoridade. Ontem, os celulares e computadores do governador do Rio Wilson Witzel foram confiscados pela PF com a autorização do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Por que então é considerado pelo governo federal uma ofensa a simples menção à possibilidade de confiscar o celular do presidente da República, a ponto de o General Augusto Heleno dar-se ao desplante de soltar nota oficial, respaldada pelo ministro da Defesa, ameaçando com uma crise institucional “de consequências imprevisíveis”?
O mesmo General, juntamente com seus colegas de farda Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos, sentiu-se ofendido quando o mesmo ministro Celso de Mello convocou-os para deporem como testemunhas e, no documento de convocação, havia o aviso de praxe de que se não comparecessem no dia marcado poderiam ser levados a depor coercitivamente debaixo de vara.
Todo cidadão brasileiro recebe intimações nesses termos, por que os generais não poderiam também serem tratados como cidadãos comuns? Sentem-se “mais iguais que os outros”, lembrando George Orwell na Revolução dos Bichos? Essas suspeitas tornam nubladas operações que podem ser corretas, no meio de uma confusão política enorme.
Que o Palácio do Planalto sabia da operação no fim de semana parece não haver mais dúvidas, e não apenas porque a deputada Carla Zambelli deu com a língua nos dentes e antecipou em entrevista operações contra governadores.
Assessores próximos do presidente da República comentaram com amigos a possibilidade de prisão de Witzel no sábado. A suspeita de que a nova direção da Polícia Federal está satisfazendo a “curiosidade” do presidente Bolsonaro, especialmente no Rio de Janeiro, é o efeito colateral dessa ação, o que pode ser mortal para a nossa democracia.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, soltou ontem uma nota oficial sóbria mas enérgica, cujo núcleo é a defesa da tese democrática de que ordem judicial se cumpre, e que a relação entre os poderes não pode estar ameaçada por sentimentos espúrios.
É preciso decifrar em que pé está a interferência de Bolsonaro diretamente na Polícia Federal, especialmente no Rio. Muita coincidência que tudo em primeiro lugar aconteça no Rio. A primeira decisão do novo diretor da PF foi a troca do superintendente do Rio, a primeira operação foi aqui também. É preocupante imaginar que o presidente esteja constrangendo Polícia Federal, procuradoria-geral da República e Ministério Público. Pode ser perigoso para a democracia.
Merval Pereira: O cão de guarda
É da vigilância cidadã da imprensa que fugia Salles, que já havia mentido ao rejeitar as denúncias de ONGs
A mais explícita prova da importância do jornalismo profissional para a saúde da cidadania quem forneceu foi o ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles no seu pronunciamento na reunião ministerial cuja integralidade a Nação, embasbacada, pôde ver e ouvir semana passada, no desdobramento do processo aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar a denunciada interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal.
A bem da verdade, tenho que ressaltar que Salles foi apenas imprudente e, ao fazer o elogio da esperteza a serviço da imoralidade na ação pública, destacou a importância da suposta “tranquilidade” que a vigilância da imprensa dava ao se concentrar na cobertura da Covid-19 para abrir caminhos a medidas que, em tempos normais, encontrariam obstáculos na reação da opinião pública, e dos sistemas Judiciário e Legislativo, alertados pela imprensa.
Disse ele, como se desse instruções a comparsas sobre como bater a carteira dos desavisados: “ (…) pra isso, precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid-19, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento, simplificando normas. (…) Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos”.
É justamente essa a atribuição da imprensa, fazer com que a Nação saiba os projetos e desígnios do Estado, e possa debatê-los. Era isso, exatamente, que o ministro não queria que acontecesse. A “opinião pública” surgiu através principalmente da difusão da imprensa, como maneira de a sociedade civil nascente se contrapor à força do Estado absolutista e legitimar suas reivindicações no campo político.
Não é à toa, portanto, que o surgimento da “opinião pública” está ligado ao Estado moderno, que pressupõe transparência do poder público, e não manobras sub-reptícias que, se precisam da escuridão para serem efetivadas, é porque beneficiam algum setor, e não a sociedade.
É por isso que o papel da imprensa profissional é o de ser o cão de guarda da sociedade, segundo definição clássica do presidente dos Estados Unidos Thomas Jefferson, que dizia que, para cumprir essa missão, a imprensa deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar.
A diferença entre figuras como Bolsonaro e Jefferson está não apenas aí, mas também. No sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende da informação. “Uma nação conversando consigo mesma” é a definição de jornalismo do teatrólogo americano Arthur Miller, enquanto para Rui Barbosa, a imprensa é a vista da nação. “Através dela, acompanha o que se passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe onde lhe alvejam ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que ameaça”.
É dessa vigilância cidadã que fugia Ricardo Salles, que já havia mentido oficialmente ao rejeitar as denúncias de ONGs de que o desmatamento da Amazônia estava crescendo muito, depois que justamente ele, aproveitando que o país está preocupado com as vidas que estão sendo ceifadas pela Covid-19, afrouxou as normas de fiscalização na região.
Como demonstrou o ministro do Meio Ambiente, o jornalismo continua sendo um espaço público em torno do qual se forma o consenso para a construção da democracia, e é através dele que a sociedade opina e recebe informações que lhe permitirão tomar posição diante de decisões do governo.
Recentemente, o chefe do Gabinete do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, depois de se queixar da imprensa, disse que o governo tem as redes sociais para defende-lo das críticas. Confundiu militância política e fake news com informação com credibilidade. Assim como Bolsonaro confunde os organismos oficiais de inteligência e informação com seu sistema particular que, por ser clandestino e ilegal, não tem credibilidade. O bom jornalismo depende da credibilidade de quem o faz, e essa credibilidade está posta em xeque pelas milícias digitais a serviço do governo, qualquer governo.
Merval Pereira: Coprolalia
O presidente Bolsonaro, na verdade, tem uma fixação com figuras escatológicas, especialmente quando está pressionado. O mais deprimente é ver-se como ministros procuram aproximar-se do presidente através de um linguajar vulgar
O grande escritor brasileiro Rubem Fonseca, notável por sua capacidade de relatar cruamente a violência física ou verbal de seus personagens que espelham uma sociedade corrompida moralmente, escreveu um livro de contos cujo título, “ , Secreções, excreções e outros desatinos”, trata de temas escatológicos em diversas dimensões.
Até mesmo chegou a criar uma palavra, “copromancia”, que dá nome a um dos contos, para definir a capacidade de fazer previsões analisando as próprias fezes. Lembrei-me dele vendo o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro, ao ouvir uma frase que, a princípio, não fez o menor sentido.
Referindo-se aos inimigos que estariam prontos a avançar sobre a democracia brasileira, Bolsonaro disse a certa altura: “O que eles querem é nossa hemorroida, a nossa liberdade”. A boca suja do presidente Jair Bolsonaro não chamou a atenção apenas dos brasileiros, ganhou dimensões internacionais. Os principais jornais do mundo noticiaram a dimensão politica do vídeo, que estava em jogo, mas deram destaque ao linguajar presidencial.
Bolsonaro falou cerca de 30 palavrões diferentes, e outras palavras chulas ou com sentido dúbio, como no caso da “hemorroida” colocada em uma frase aparentemente por ato falho, ou como uma metáfora que precisa ser explicada por uma mente pervertida.
Um amigo mais benevolente acha que o presidente quis dizer “hemorragia”, no sentido de os inimigos quererem vê-lo sangrar, mas confundiu-se. Mesmo nesse caso, a confusão seria uma revelação de preocupações mais profundas de uma pessoa que sempre se revela disposto a brandir sua masculinidade em tom de brincadeira, salientando que seu abraço é hétero, que sua amizade por outro homem é hétero.
A compulsão por obscenidades, seja através de gestos ou de palavrões, mesmo em situações sociais impróprias, é uma característica de um tipo raro da síndrome de Tourette que se chama “coprolalia”. Assim como “copromancia” inventada por Rubem Fonseca, a “coprolalia” usa o prefixo grego “copro”, que se refere a fezes, para definir essa incontinência verbal.
O presidente Bolsonaro, na verdade, tem uma fixação com figuras escatológicas, especialmente quando está pressionado. O mais deprimente é ver-se como ministros procuram aproximar-se do presidente através de um linguajar vulgar, como Paulo Guedes, da Economia, que em meio a uma exibição patética de lustro intelectual, falava palavrões desnecessários, ou o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, sentado em frente ao presidente, concordava balançando a cabeça acintosamente e, na sua hora de falar, misturou bravatas com expletivos de baixo calão.
Na sexta-feira à noite, ao chegar ao Palácio Alvorada, o presidente parou para falar com seguidores, e fez um longo relato sobre a crise com o ex-ministro Sérgio Moro. Exaltado, continuou falando palavrões, mesmo sabendo que a entrevista poderia estar sendo transmitida ao vivo.
Falou “no rabo de maus brasileiros”, vangloriou-se de que o vídeo fora, na sua visão, “um traque”, e saiu-se com essa: “A montanha pariu um oxiúro”. Referia-se a um verme de cerca de 15 milímetros, que cresce no intestino dos mamíferos, incluindo os humanos. O principal sinal do oxiúro no corpo é uma coceira anal intensa.
Freud dividiu a sexualidade infantil em várias fases, sendo uma delas a anal, quando as crianças aprendem a controlar os esfíncteres da bexiga e do intestino. A não superação desse estagio pode gerar personalidades distorcidas.
Já houve tentativas de explicar o comportamento anormal de Bolsonaro de diversas maneiras. Eu mesmo já escrevi sobre a possibilidade de ele sofrer de uma síndrome pós-traumática depois da facada que recebeu durante a campanha. Assim como o presidente americano Donald Trump já foi considerado louco, também Bolsonaro é visto assim.
Mas psicanalistas o definem como sociopata. E a mania de falar palavrão pode significar apenas que é uma pessoa mal educada.
Merval Pereira: Vergonha nacional
O vídeo mostra um governo completamente insensível à grave crise de saúde pública que vivemos
Todo mundo sabe que o presidente Bolsonaro interveio na Polícia Federal, e é preciso ser um nefelibata para acreditar que essa intervenção não tinha intenções não republicanas. Mas, como tudo na vida, depende de quem quer ver e escutar. Agora, é a vez do atual Procurador-Geral, Augusto Aras, querer ou não ver e ouvir.
Se, como tudo indica, ele decidir arquivar o processo, sem oferecer a denúncia, estará fazendo como o Centrão, que provavelmente protegerá Bolsonaro como protegeu Temer, em troca de cargos no governo. Fechando os olhos para as evidências, sem se esforçar para juntar dois mais dois.
Em termos jurídicos, já há quem diga que não há substância no vídeo da reunião para acusar frontalmente o presidente da República de crime de responsabilidade, embora ele tenha dito alto e bom som que interviria nos ministérios, e especificou: “Eu não posso ser surpreendido com noticias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações”.
Como foi por isso que o ex-ministro Sergio Moro deixou o cargo, (e a reunião antes de seu fim), é óbvio que a nomeação do novo diretor-geral da Polícia Federal tinha o objetivo de permitir que o presidente Bolsonaro não seja “surpreendido por notícias”.
Ato contínuo, a imediata nomeação do novo superintendente da PF no Rio só confirma os interesses específicos do clã Bolsonaro para proteger, como o próprio presidente admitiu, sua família e seus amigos.
Pela denúncia do ex-aliado Paulo Marinho, o então deputado estadual Flavio Bolsonaro não foi surpreendido pelas notícias em relação à Operação Furna da Onça, e pôde proteger o amigo do seu pai Fabrício Queiroz, demitindo-o antes que a PF chegasse. Se quiser investigar, o Ministério Público chegará aos culpados.
O que o vídeo revela é uma paranóia de Bolsonaro por informações clandestinas como se fosse seu direito absoluto. A certa altura ele diz “o meu serviço de informações particular funciona”. Logo no início do governo, quando era ministro secretário-geral da Presidência, o falecido Gustavo Bebiano, segundo relato do próprio, viu o 02 Carlos com um amigo delegado da Polícia Federal no Planalto, e soube que estavam propondo a criação de um sistema paralelo de informações para abastecer o presidente Bolsonaro.
Ele contava que dissuadiu o presidente, argumentando que aquela montagem poderia gerar um pedido de impeachment. Meses depois, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse ao General Augusto Heleno que alguns deputados o haviam procurado para se queixar de que estariam sendo gravados em conversas no Palácio do Planalto, ou quando se comunicavam com alguém de lá.
O boato de que esse sistema paralelo estava em plena atividade corria pelo Congresso. O General Heleno tratou de acalmar Maia: “Isso já acabou”. Acabou?
O vídeo mostra um governo completamente insensível à grave crise de saúde pública que vivemos. Somente o então ministro da Saúde Nelson Teich falou sobre a pandemia, passando a reunião inteira de boca aberta, parecendo bestificado com sua primeira e única reunião ministerial.
O resumo dessa ausência de empatia pode ser dado pela fala sabuja do presidente da Caixa Econômica Federal Pedro Guimarães, que se coloca como uma alternativa a Paulo Guedes. Ele disse que na sua Caixa “não tem essa frescura de home office” e que se pegar a Covid-19 tomará “um litro de hidroxicloroquina”. Mais subalterno não é possível. O cinismo do ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles merece destaque, considerou a pandemia uma oportunidade para "passar a boiada" enquanto a imprensa está distraindo o povo com a cobertura do coronavírus. É o que está fazendo, e as queimadas na Amazônia estão aumentando, CQD.
Ver aquele colegiado dirigindo os destinos da Nação é triste: Damares dizendo que vai mandar prender governadores, Weintraub pedindo a prisão dos Ministros do Supremo; Bolsonaro falando palavrão como vírgula, chamando dois governadores de bosta e estrume; lembrando Chavez falando sobre o povo armado. Coroando tudo, a bravata do General Heleno, do GSI, ameaçando o Supremo com “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” se o celular do presidente Bolsonaro for requisitado. Em qualquer país civilizado, esse vídeo seria impensável. É o registro histórico de um governo que nos envergonha a todos.
Merval Pereira: Cloroquina nele!
Se não há estudos conclusivos, e se o remédio usado no combate à Covid-19 pode causar até morte, por que ampliar seu uso no serviço público de saúde?
Nos anos 1970 chegou ao Brasil uma figura polêmica internacional, o futurólogo Herman Kahn, físico, matemático, escritor e estrategista militar, que trabalhou no projeto da Bomba H e foi consultor de diversos governos dos Estados Unidos. Considerado um gênio, dirigiu o Hudson Institute e foi da RAND Corporation. Obeso, seu peso de 150 quilos só era menor do que seu QI 200.
Foi o criador da tese da “destruição mútua assegurada”, MAD, que garantia que um ataque da União Soviética geraria uma reação da mesma proporção, base da estratégia dos Estados Unidos durante a Guerra Fria.
Pois Herman Kahn chegou ao Brasil para expor um projeto chamado “Grandes Lagos”, percebido como um primeiro passo para a internacionalização da Amazônia tanto pela esquerda brasileira quanto pelos militares. Uma barragem no Baixo Amazonas transformaria a bacia amazônica em um lago gigante que desenvolveria o comércio com outros países, facilitando o transporte de minérios e outras comoditties.
A revolta foi tamanha que uma foto sua saindo da piscina do Copacabana Palace, com aquele corpanzil, foi usada para um grande outdoor com as palavras: “Ciclamato nele!”. Foi um outdoor criado pelo publicitário Marcus Pereira. O jornal O Pasquim, à época, fez muitas críticas ao futurólogo americano. Naquele momento, pesquisas indicavam que o adoçante com ciclamato fazia mal à saúde.
Hoje, Bolsonaro mereceria um meme com a frase: “Cloroquina nele!”. O protocolo para o uso da cloroquina desde os primeiros sinais da Covid-19, assinado pelo ministro interino da Saúde General Eduardo Pazuello sem a validação de médicos, pode ser considerado uma ameaça à saúde pública, e certamente será questionado nos tribunais, sobretudo no Supremo Tribunal Federal que, aliás, ontem começou a tomar posição sobre tema análogo, a Medida Provisória que busca isentar de culpa o agente público que cometer erros durante o período da pandemia.
Ao assinar o Termo de Ciência e Consentimento para uso da cloroquina no tratamento da Covid-19, o paciente confirma que sabe que o medicamento pode agravar sua condição clínica. Está lá escrito: “Compreendi, portanto, que não existe garantia de resultados positivos, e que o medicamento proposto pode inclusive agravar minha condição clínica, pois não há estudos demonstrando benefícios clínicos.”
Se não há estudos conclusivos, e se o remédio, usado no combate da Covid-19, pode causar até morte, por que ampliar seu uso no serviço publico de saúde?. E como exigir de um paciente, ou de seu parente ou responsável, que não assuma esse risco quando está à beira da morte?
Ontem, no inicio do julgamento da constitucionalidade da polêmica Medida Provisória que é vista como uma tentativa de livrar autoridades, sejam da área administrativa ou da saúde, em caso de fraudes em licitações como já ocorrem hoje, ou de erro médico na administração de remédios como a cloroquina, o relator do caso no STF, ministro Luís Roberto Barroso, deu o caminho que parece será seguido pela maioria.
Defendeu a punição para agentes públicos cujas decisões não sigam critérios científicos, ou não observem os princípios da precaução e da prevenção, tanto em relação à vida e à saúde da população quanto às decisões econômicas, como Barroso deixou claro ao ser questionado pelo ministro Ricardo Lewandowski.
O relator sugeriu, especialmente no que se refere à definição de “erros grosseiros”, os seguintes acréscimos à Medida Provisória, sem invalidá-la “1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias, internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”.
A questão da cloroquina está bem encaminhada no Supremo Tribunal Federal, seguindo jurisprudência ditada por decisão da ministra Rosa Weber relativa ao uso do amianto.
Merval Pereira: O cerco se fecha
Denúncia de Marinho reforça relato de Moro, de que governo estava querendo usar PF do Rio para receber informações
Os indícios de que o então senador eleito Flavio Bolsonaro recebeu mesmo um aviso de um delegado de que uma operação da Polícia Federal alcançaria seu chefe de gabinete Fabricio Queiroz e parentes dele parecem confirmados quando se nota a data da exoneração dele e de sua irmã, justamente entre o primeiro e segundo turno da eleição geral de 2018, quando teria acontecido o aviso.
O suplente de Flávio no Senado e candidato a Prefeito do Rio Paulo Marinho, que foi um dos principais apoiadores de Bolsonaro na campanha presidencial, deu detalhes e nomes do enredo, e diz ter como provar toda a sequência da trama, como passagens de avião, reserva de uma sala no hotel Emiliano em São Paulo, e talvez até conversas de WhatsApp.
A investigação do Ministério Público não é difícil com essas indicações. O hotel deve ter em vídeo a entrada dos participantes da reunião em que a estratégia para salvar Flavio foi traçada, e é simples confirmar se no dia indicado o chefe de gabinete de Flavio, e ele próprio, estavam em São Paulo, onde teriam se encontrado com advogados.
Um deles, que Paulo Marinho teria indicado, Ralph Hage Vianna, confirmou que foi procurado para defender Queiroz, mas não assumiu o caso. Segundo Marinho, porque Flavio Bolsonaro conseguiu outro advogado. A confirmação dos detalhes da reunião não pode ser feita por advogados, que são proibidos de revelar suas reuniões com clientes, mas basta fazer como Hage Vianna, ou dizer que não pode comentar, que a confirmação está implícita.
Paulo Marinho pode também relatar todos os detalhes que quiser sem ferir nenhuma norma legal, e caberá aos advogados desmentir qualquer falha de narrativa, ou não comentar. Nos dois casos, estarão confirmando a reunião.
Essa nova denúncia do empresário Paulo Marinho reforça o relato do ex-ministro Sergio Moro, de que o governo há muito tempo estava querendo usar a Polícia Federal do Rio de Janeiro para receber informações, e dificulta muito a ideia do procurador-geral da República, Augusto Aras, se é que ela existe, de arquivar o processo.
Não é possível que tantas pontas indicando o mesmo caminho não signifiquem que pelo menos esse assunto precisa ser investigado. Na dúvida, Aras tem que optar pela sociedade e apresentar a denúncia.
O delegado Alexandre Ramagem, que Bolsonaro colocou na direção-geral da Abin e queria ver chefiando a Polícia Federal, trabalhou na operação Furna da Onça, onde surgiram os dados financeiros que incriminam Queiroz. Por coincidência, ou não, esse mesmo delegado Ramagem foi designado para a segurança do presidente eleito Bolsonaro.
É preciso saber se foi mesmo coincidência, ou se Bolsonaro já tinha boas recomendações anteriores de Ramagem, e o escolheu.
O ministro Celso de Melo, relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF) deve autorizar até sexta-feira - “até antes” - a divulgação do vídeo da reunião do dia 22. O mais lógico seria divulgar, se não a íntegra, uma parte significativa do vídeo que se possa ter a noção do contexto das falas do presidente.
Falta ênfase aos dois trechos que a Advocacia-Geral da União (AGU) pinçou do vídeo original para transcrever, e, sobretudo, a situação de fala, que é justamente o contexto em que foram ditas.
Samba do governo doido
Por quê alguém que não é um especialista em educação pode querer ser indicado para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que tem um caixa de mais de R$ 50 bilhões? Se não é por expertise, também não é por ideologia, pois circula um vídeo em que o deputado Wellington Roberto, do PL, que indicou o advogado Garingham Amarante Pinto, comemora uma tentativa frustrada de soltar Lula em 2018, encerrando a fala com um sonoro : “Lula livre!”.
Em outra área, mas circunstancialmente mais importante, há um psiquiatra de olavistas, Italo Marsili, sendo sugerido para o Ministério da Saúde. Sua expertise para o cargo é seguir literalmente a linha de Bolsonaro, inclusive na linguagem, sobre a Covid-19, considerando que a doença, “uma porra de um viruzinho”, “não é letal”.
Dr Ray, que também se candidata à vaga, parece um Jatene perto dele. A única vantagem é que, sendo psiquiatra, Marsili poderia fazer jornada dupla no Palácio do Planalto. Mas, pelo currículo, segundo especialistas, falta-lhe expertise para isso também.
Merval Pereira: Novilingua bolsonarista
À medida que a crise avança, conceitos democráticos vão sendo deformados, e palavras, distorcidas pelo governo federal, como na novilíngua de ‘1984’, obra de George Orwell
À medida que a crise avança, vamos assistindo à involução dos hábitos e costumes republicanos, tendo o presidente Jair Bolsonaro como protagonista e ministros como coadjuvantes de uma tragédia, onde os conceitos democráticos vão sendo deformados e palavras distorcidas, a exemplo da “novilingua” criada pelo escritor inglês George Orwell na novela 1984, na qual o autoritarismo muda o sentido das palavras para melhor acomoda-las a seus interesses.
Nesse mundo distópico, o ministério da Verdade cuidava de criar a realidade, controlar a verdade oficial. Palavras ganham sentido inverso do original, ou simplesmente desaparecem por desnecessidade, como “liberdade”. Um lema resume o sentido da “novilingua” orwelliana: “Guerra é paz, escravidão é liberdade, ignorância é força”. Hoje, no Brasil, quando Bolsonaro está muito irritado com sua segurança pessoal, ele promove o chefe do setor.
Orwell escreveu 1984 pensando nos regimes comunistas, mas o autoritarismo de direita tem os mesmos vícios de distorcer os fatos a seu favor. A mais recente demonstração de como é possível torcer o sentido das palavras para tentar mudar a realidade é a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que nunca proferiu o nome da “Polícia Federal” na já famosa reunião ministerial em que foi acusado pelo ex-ministro Sergio Moro de tê-lo ameaçado de demissão.
Depois de idas e vindas, com versões que contradiziam o presidente, até mesmo do ministro Luiz Eduardo Ramos, a transcrição oficial do áudio feita pela Advocacia-Geral da União (AGU) revela que, sim, o presidente se referiu à Polícia Federal. Confrontado com a realidade, o que faz Bolsonaro? Explica na “novilingua”: “Está a palavra PF. Duas letras. (…) Tem a ver com Polícia Federal, mas é a reclamação PF no tocante ao serviço de inteligência”.
Faz lembrar o conto de Machado de Assis “A Sereníssima República” , no qual relata uma disputa entre os candidatos Nebraska e Caneca, onde o vencedor seria sorteado em um saco contendo duas bolas com os nomes dos concorrentes. A bola sorteada tinha o nome de Nebraska, mas sem a letra final “a”. Caneca, o derrotado, impugnou o resultado, e pediu que um filólogo analisasse a situação.
O professor fez malabarismos de pseuda filologia até que transformou o nome “Nebraska” em “Caneca”, revelando o verdadeiro vencedor do sorteio. E ainda esnobou os ouvintes: “ (…) é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas”.
Também o ministro Braga Neto, Chefe do Gabinete Civil, utilizou-se da “novilingua” para explicar o inexplicável: “O presidente respeita a ciência, mas ele tem visto radicalismos”. Esse seria o caso de um “duplipensar”, palavra que Orwell criou em 1984 para definir a possibilidade de um indivíduo ter pensamentos contraditórias entre si.
O ministro da Economia Paulo Guedes, que aderiu ao histrionismo bolsonariano, explicou em “novilingua” o direito que ele acha que o presidente Bolsonaro tem de se infectar: “É um direito dele ser infectado, porque ele não está infectando ninguém.”
O vice-presidente General Hamilton Mourão, em recente artigo, criticou a imprensa: "Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação." Outros ministros, como Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos, vêm batendo na mesma tecla, pedindo noticias boas para contrabalançar as más, e querendo que as 15 mil mortes de brasileiros sejam noticiadas como meros números proporcionais ao tamanho de habitantes dos países, como se transformar vidas humanas em meras estatísticas reduzisse o estrago. Mesmo assim, São Paulo tem mais mortes que a China, e Recife mais mortos que a Argentina.
Na verdade, repetem a famosa situação do ditador Costa e Silva que, ao queixar-se de um dono de jornal de críticas demasiadas, ouviu a explicação: “São criticas construtivas”. E respondeu: “Eu gosto mesmo é de elogios construtivos”.
Não conhecem a máxima: notícia é tudo aquilo que o governo não quer ver publicado. O resto é propaganda.
Merval Pereira: O risco da democracia
O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, e os ministros militares estão sendo lenientes com Bolsonaro
A versão mais recente do Palácio do Planalto sobre o vídeo da reunião ministerial em que o presidente Bolsonaro ameaçou demitir o então ministro Sergio Moro dá conta de que o presidente se queixava da segurança pessoal dele e de sua família. Sem saber o contexto em que se deu a discussão, pois o vídeo ainda não foi liberado, pode-se afirmar, no entanto, que Moro seria o interlocutor errado, pois a segurança do presidente e família é feita pelo Exército e pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e o responsável é o General Augusto Heleno, que estava na reunião e não foi admoestado pelo presidente.
Além do mais, quem foi demitido foi o diretor-geral da Polícia Federal, e por tabela o ministro Sergio Moro. Outro ponto interessante é que o delegado Alexandre Ramagem, que foi indicado por Bolsonaro para chefiar a Policia Federal, era o chefe da Abin. Portanto, se a queixa de referia à segurança pessoal, cuja responsabilidade era de Ramagem, por que indicá-lo para a PF? .
A exibição integral da reunião ministerial servirá para confirmar a acusação de Moro ao deixar o ministerio da Justiça, como também para se constatar de que maneira o presidente Bolsonaro conduz os destinos do país. Pelos relatos, um autoritarismo sem controles, e um ambiente de desrespeito a seus ministros que, para agradar o presidente, não apenas aceitam os maus tratos como tentam imitá-lo, usando palavras chulas e atacando sem distinção países e instituições.
O presidente Bolsonaro quer constranger as forças democráticas que impõem limites a qualquer presidente da República, porque quer fazer um governo mais liberado dessas limitações, um perigo, porque é exatamente o que Hugo Chavez fez na Venezuela, constranger até controlar os Poderes, e usar a democracia direta para impor as suas vontades.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, e os ministros militares estão sendo lenientes com Bolsonaro e, nessa toada, começaremos a abrir mão dos freios que a democracia representativa impõe ao presidente.
O presidente da Câmara Rodrigo Maia claramente não quer aparecer como o grande inimigo de Bolsonaro, o homem que vai autorizar o impeachment, e o STF, embora tenha tomado decisões ultimamente seguras e restringido abusos, através de seu presidente está condescendente com as atitudes de Bolsonaro. Muito preocupante nesse sentido a entrevista que deu ao programa Roda Viva, onde tentou explicar a ida de Bolsonaro ao STF.
Disse que não se sentiu constrangido, e que entende perfeitamente que Bolsonaro governa para os seus, para os radicais que o elegeram, que tenta trazer radicais para o centro, e que nunca fez nada de concreto contra a democracia. Disse também que as pessoas querem uma democracia mais direta, o que chamou de “uberização da política”, e o que está em jogo é a democracia representativa. É aí que mora o perigo, é exatamente o que o Chavez fez na Venezuela.
Na democracia direta, é possível manipular plebiscitos, consultas, referendos, e o presidente começa a ser autorizado a fazer coisas que o STF e o Congresso não autorizariam. O ministro Luis Fux vai assumir a presidência do STF em setembro, e espero que tenha visão de Estado maior do que a que Toffoli está demonstrando.
Pesquisa de ontem da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) e MDA diz que aumentou o nível de pessoas que consideram o governo ruim ou péssimo, mas Bolsonaro mantém os 30 por cento favoráveis. Ontem, por exemplo, fez manifestação contra a ideologia de gênero nas escolas. No meio dessa pandemia que cresce brutalmente, no dia em que chegamos ao nível de 800 mortes diárias, e a mais de 12 mil mortos durante a pandemia. Faz isso apenas para alimentar os seus radicais, o núcleo duro de seus eleitores, e se manter competitivo em 2022.
Se o Congresso estivesse reunido presencialmente, acho que o ambiente político estaria muito mais conturbado, porque ele registra a pulsão da sociedade. Mas do jeito que está, funcionando virtualmente, e o isolamento social fazendo com que só maluco vá para a rua se manifestar, a maioria do povo brasileiro, que condena o governo Bolsonaro, está sem poder se manifestar, o que é um perigo para a democracia representativa.
Merval Pereira: Luvas de pelica
Bolsonaro não realizou o churrasco devido à péssima repercussão do gesto de indiferença à morte
A decretação pelo Congresso e Supremo Tribunal Federal de luto oficial por três dias por termos atingido a fatídica marca de mais de 10 mil mortos devido à Covid-19 é o segundo tapa com luva de pelica que o presidente Bolsonaro recebe esta semana. Enquanto isso, ele andava de jet ski no Lago Paranoá.
O primeiro desferiu o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, que se portou com altivez diante da afronta que o presidente fez ao praticamente invadir a sede do STF para pressioná-lo pelo fim do isolamento, justamente no dia em que o país registrava mais de 700 mortes por dia e chegava ao número macabro de 10 mil mortos, indiferentes para o presidente.
Toffoli salientou o bem que o isolamento social tinha trazido ao país, reduzindo o número de mortes, e sugeriu com enorme presença de espírito que o governo coordenasse uma ação conjunta de diversos ministérios para traçar planos de combate à Covid-19 juntamente com Estados e Municípios que, pela Constituição, são os responsáveis pelas ações regionais.
Bolsonaro, como sempre, fez aquela exibição para tirar de seu colo os mortos que seu egocentrismo provocou. Os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e o do Senado, Davi Alcolumbre, fizeram o que os que dirigem o país sem olhar apenas seus umbigos devem fazer em momentos de comoção nacional.
Nada mais do que prestar solidariedade à família dos mortos, em vez de programar churrasco que, se realizado, seria mais afrontoso ainda por usar um imóvel do Estado brasileiro para uma confraternização aviltante.
O presidente acha que o povo que deveria presidir é composto de imbecis, pois desmente até mesmo o que os vídeos com suas falas atestam. Dizer que o churrasco era uma fake news de “jornalistas idiotas” é típico de uma pessoa com comportamento antissocial e amoral, incapaz de aprender com as próprias experiências.
Ele não realizou o churrasco porque foi obrigado a cancelá-lo devido à péssima repercussão de mais esse gesto amoral de indiferença diante da morte de brasileiros que, infelizmente e muito por causa dele, está longe do fim. Até mesmo porque o presidente da República se esmera em dar exemplos cotidianos que incentivam o não cumprimento das medidas de proteção recomendadas pelas autoridades médicas do Brasil e do mundo.
Com isso, dá margem a que aliados seus como o pastor Valdomiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, venda por mil reais sementes de feijão supostamente milagrosos contra a Covid-19. Mais ou menos o que Bolsonaro fez irresponsavelmente durante semanas seguidas ao receitar a cloroquina como a solução para os pacientes da pandemia, que se demonstrou inócuo em testes científicos.
Não há um governante sério no mundo que assuma posição tão absurda quanto Bolsonaro. Iguala-se a ele o presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, que prescreve vodka e sauna para combater a Covid-19, enquanto exige que todos trabalhem normalmente.
Mas Lukashenko é um ditador há 26 anos à frente da presidência da Bielorrússia, e Bolsonaro é um aspirante a ditador num país em que as instituições democráticas vão resistindo às suas investidas cada vez mais frequentes.
A sorte dos democratas, que são a maioria da população, é que Bolsonaro e seus seguidores mais fanáticos cometem tantos erros que eles mesmos vão criando obstáculos em seu caminho insensato. Nossa situação é tão dramaticamente ridícula que vizinhos como o Paraguai, Uruguai e Argentina fecham-nos suas fronteiras para evitar o contágio.
No meio médico internacional já somos classificados como o país que mais fica a dever no combate à Covid-19, e estamos atingindo recordes trágicos de mortes, com uma previsão de superarmos até os Estados Unidos em número de mortos este ano.
Ao mesmo tempo em que nossa imagem como país vai ladeira abaixo, Bolsonaro volta-se para fazer acordos ilegítimos que tentam salvar seu pescoço. Os manifestantes, bizarros mas perigosos, que mais uma vez aviltaram o Congresso e o Supremo na Praça dos Três Poderes, e o notório Roberto Jefferson bancando o xerife com uma espingarda em punho, defendendo o fechamento do Supremo e o controle de empresas jornalísticas, é o fim que Bolsonaro merece. Sua tábua de salvação é o lumpesinato e o baixo clero do Congresso, onde ele e seus filhos sempre chafurdaram.
Talvez as luvas de pelica sejam insuficientes para contê-los.