Merval Pereira
Merval Pereira: Ópera bufa
O cavaleiro glorioso não passa de um mau soldado seguido por uma vivandeira de quinta categoria
O país virou uma grande ópera bufa, que não termina em tragédia, mas pode se transformar, como aconteceu com o gênero do século XVIII, que começou como um mero entretenimento no intervalo das óperas sérias e acabou ganhando autonomia.
Temos que torcer para que o governo Bolsonaro seja apenas o intervalo, o mais curto possível, que nos levará, aos trancos e barrancos, à peça principal. Os personagens cômicos da ópera bufa sempre existiram, mas saíram do baixo clero para o proscênio nessa quadra de pandemia e pandemônio.
Um Mussolini de hospício surge de repente num cavalo branco emprestado, fantasiado de presidente do Brasil, que mais e mais torna-se mesmo uma republiqueta de bananas. Um personagem do grande Chico Anysio, guiado pelo absurdo, vivia repetindo “Eu odeio pobre”. Pois temos até um ministro, Abraham Weintraub, supostamente da Educação, que disse na fatídica reunião ministerial de abril: “Eu odeio a expressão "povos indígenas”.
Os militares que abundam na estrutura burocrática de nosso serviço público acabam levando ladeira abaixo o prestígio das Forças Armadas que, inertes, não reagem a essa corrosão de imagem que já é registrada em pesquisas de opinião. Por falar nelas, quando, em um país sério, a possibilidade de um golpe militar se transformaria em conversa de botequim (quando os botequins estavam abertos) ?
Ou serviria para dar um ar de seriedade a uma militância de extrema-direita mais cênica do que real, mas nem por isso tolerável e menos perigosa, acampada sob a denominação genérica de 300 ? O nome vem do filme baseado em uma história em quadrinhos de Frank Miller, com o brasileiro Rodrigo Santoro no papel do rei persa Xerxes. Classificado como propagador da violência militar e da eugenia, o filme ficou marcado como de extrema-direita, o que justifica o nome do grupo de Sara Giromini, dita Winter, que nem chega perto dos 300 de Esparta na Batalha das Termópilas.
São alguns gatos pingados estimulados pela retórica agressiva do governo Bolsonaro, sendo o próprio presidente um propagandista do grupo. Na falta de material humano suficiente para tornar realidade suas bravatas, sobra à terrorista visão marqueteira para impressionar a opinião pública. Desde encenar na frente do Supremo Tribunal Federal uma patética mimetizacão da Klu Klux Klan, com seus capuzes e tochas acessas, outro símbolo da direita selvagem, até atacar o (STF) com fogos de artifício.
Foi tardiamente presa, menos pelo que pode fazer do que pelo simbolismo de suas ações midiáticas. Como se estivéssemos em uma ópera bufa, o cavaleiro glorioso não passa de um mau soldado seguido por uma vivandeira de quinta categoria. Ambos tornam vexaminosos os enredos em que se metem, e levam junto consigo a credibilidade das Forças Armadas. Pelo menos enquanto os militares que o cercam não forem desautorizados de representarem o Exército no apoio às loucuras de Bolsonero, como o apelidou a revista inglesa The Economist, representante maior do liberalismo econômico, e não um panfleto comunista.
O vice-presidente Hamilton Mourão, que tem o hábito de escrever e declarar uma coisa e depois explicar com seu oposto, disse que Bolsonaro não conta com as Forças Armadas para um autogolpe: “ (…) ele sabe que as Forças Armadas não o acompanharão em uma aventura dessa natureza. É isso que ele quis dizer”.
A exegese de Mourão seria importante se não estivesse banalizada pela sua própria incoerência, assim como o golpe militar está tão vulgarizado que já se tornou uma paródia de si mesmo. Está claro há muito tempo que é preciso desbaratar a rede que financia fake news, ataques à democracia e manifestações como as que foram feitas em frente ao Palácio do Planalto e ao QG do Exército.
É uma turma que trabalha com a intenção de pressionar o STF, o Congresso e outras instituições e nunca recebeu qualquer crítica do presidente Bolsonaro. E essa investigação vai acabar conectada ao inquérito das fake news no STF e do financiamento ilegal na campanha presidencial de 2018 que corre no TSE.
Nesse novo mundo pós-pandemia, o Brasil tornou-se um pária entre as nações ocidentais. Um país que, por incúria e negligência de um governante insano, se colocou no ranking dos mais atingidos pela pandemia, levando a que fronteiras sejam fechadas à sua gente e a seus produtos, já atingidos pela péssima fama das políticas ambientais do governo.
Merval Pereira: Fazer o que é certo
Temor do governo é que empresários bolsonaristas investigados sejam envolvidos na acusação de impulsionamento ilegal de WhatsApp durante a campanha presidencial
O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito das fake news em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF), encaminhará esta semana ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) os dados das quebras dos sigilos e das comunicações dos investigados relacionados com a campanha eleitoral de 2018.
A maior parte do material colhido anteriormente, neste ano de investigação, não tem a ver propriamente com a eleição presidencial, e já foi encaminhada à primeira instância. Empresários que sofreram busca e apreensão em suas residências e escritórios, o mais notório sendo Luciano Hang, são investigados pelo financiamento do chamado “gabinete do ódio”, que veicula, fake news através de uma ampla atividade nas redes sociais, e podem estar envolvidos também nos impulsionamentos ilegais de noticias pelo WhatsApp durante a campanha eleitoral, o que provaria o abuso do poder econômico a favor da chapa Bolsonaro-Mourão.
A alusão a “julgamentos políticos” inaceitáveis pelas Forças Armadas na estranha nota oficial que o presidente Bolsonaro emitiu na sexta-feira à noite, co-assinada pelo vice-presidente General Hamilton Mourão e pelo ministro da Defesa General Fernando Azevedo, é seu ponto mais delicado politicamente, pois se refere ao julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) da chapa presidencial vitoriosa.
No mesmo dia mais cedo saíram a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Fux, que formalmente desclassifica a interpretação de que o artigo 142 da Constituição dá às Forças Armadas o papel de poder moderador entre os Poderes, e a decisão do relator do TSE, ministro Og Fernandes, de compartilhar com o Supremo as provas do inquérito relatado pelo ministro Alexandre de Moraes sobre as fake news.
Foram movimentos isolados que se juntaram na leitura do governo de que estaria sendo orquestrado um “julgamento político” para impugnar a chapa Bolsonaro-Mourão. O presidente do TSE, ministro Luis Roberto Barroso, aproveitou uma entrevista a correspondentes estrangeiros para rebater indiretamente: “O TSE fará o que tem que ser feito”, disse ele, garantindo que o julgamento dos diversos processos contra a chapa de Bolsonaro será técnico, e não político.
Reconhecido como um juiz “consequencialista”, o ministro Barroso faz questão de distinguir essa característica, que ele não repudia, da tomada de decisão de acordo com a repercussão de seu voto. O “consequencialismo” não pressupõe abrir mão do que é certo ou errado para tomar uma decisão política. Como parte do pragmatismo, o consequencialismo apenas entra em cena se houver mais de uma possibilidade razoável sem ferir o direito de ninguém.
Nesses casos, as decisões podem levar em conta suas consequências. Antes disso, porém, ressalva Barroso, há o certo e o errado, que será sempre a base da decisão, como ele disse aos jornalistas estrangeiros. No Palácio do Planalto há a convicção de que está sendo armada uma decisão politica para tirar Bolsonaro do poder, e por isso a nota oficial foi assinada também pelo vice-presidente Mourão, uma informação de que o General não estaria disposto a fazer um acordo político para ficar no lugar do presidente em caso de impugnação.
O temor do governo Bolsonaro é que, como o ministro Og Fernandes disse em sua decisão de aceitar o compartilhamento de provas, é que empresários bolsonaristas investigados no inquérito do Supremo sejam envolvidos na acusação de impulsionamento ilegal de WhattsApp durante a campanha presidencial, pois o ministro Alexandre de Moraes pediu a quebra de sigilo recuando até julho de 2018.
O relator do TSE citou nominalmente Luciano Hang ao se referir aos recursos que financiam os mesmos grupos, que distribuem noticiais falsas (fake news) e o dos impulsionamentos ilegais a favor de Bolsonaro, ou contra seus adversários, durante a campanha presidencial de 2018. O ministro Og Fernandes abriu mão até mesmo de esperar a decisão do Supremo sobre a legalidade do inquérito das fake news, cujo julgamento se encerrará nesta semana, quando também expira o prazo de 15 dias dados à Polícia Federal para entregar os laudos.
Merval Pereira: Mais iguais
Não há mais caminho na Constituição para a interpretação intervencionista. Mas, claro que sempre é possível um golpe militar
O papel das Forças Armadas na nossa democracia continua dando assunto para o debate político, e o Supremo Tribunal Federal (STF), o intérprete definitivo da Constituição, se pronunciou novamente ontem através do ministro Luis Fux, que assumirá a presidência da Corte em setembro.
Respondendo a uma consulta do PDT, Fux disse, entre outras coisas: “A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República”.
Há, no entanto, quem tema que “esse famigerado artigo 142 ainda vai dar pano para manga”, como o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras. Ele escreveu um belo artigo recentemente no Globo fazendo um apanhado histórico do papel das Forças Armadas nas constituições brasileiras, onde ressaltou que desde 1891 existe a definição delas como “garantidoras dos poderes constitucionais”, aspecto que considera “ a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção”.
José Murilo me mandou um acréscimo de suas pesquisas sobre as FA nas constituições da Argentina, Uruguai e Chile, as outras três ditaduras da América do Sul, onde ele vê um “abismo de distância”. Nossos vizinhos, de fato, não definem um papel para as Forças Armadas. A Constituição argentina de 1994 diz apenas, em seu artigo 99: “O Presidente da República é o comandante-chefe das forças armadas da Nação”. A do Chile, de 2010, diz que “As FA dependem do Ministério da Defesa e “existem para a defesa da pátria e são essenciais para a segurança nacional”. A do Uruguai, de 1997, define: “O presidente da República tem o mando supremo de todas as Forças Armadas”.
Entendo o temor de José Murilo de Carvalho e tantos outros, mas, diante das diversas manifestações institucionais do Supremo, do Congresso, e de órgãos como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), acho que não há mais caminho dentro da Constituição para a interpretação intervencionista.
Mas, claro que sempre é possível um golpe militar. Quanto aos nossos vizinhos, sempre haverá quem diga que o presidente, sendo o comandante em chefe das FA, poderá decidir por uma intervenção militar. No Brasil, há ainda, pela primeira vez em 30 anos de democracia, essa indesejada mistura de militares com o governo.
O presidente Bolsonaro usa os militares como ameaça – “as Forças Armadas estão do meu lado”, - embora os militares que estão no governo sempre aleguem que não há ministro militar, há ministros que vêm da área militar, como outros são políticos, ou engenheiros, ou advogados.
Nesse caso, é indispensável que todos sejam da reserva e, sobretudo, que nunca mais vistam a farda, mesmo metaforicamente, muito menos para ameaçar as instituições. Não é o que acontece. O General Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, embora tenha anunciado a decisão de ir para a reserva, garante em entrevista à revista Veja que o Exército não dará um golpe, mas adverte: “o outro lado tem que entender também o seguinte: não estica a corda”.
Ele também se recusou a comentar o que considera “implausível”: o TSE cassar a chapa presidencial. Ontem, o relator dos processos, ministro Og Fernandes, aceitou que o STF envie as provas já coletadas no inquérito das fake news presidido pelo ministro Alexandre de Moraes para serem compartilhadas pelo TSE.
O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), se considerou com o direito de advertir que se o celular do presidente Bolsonaro fosse apreendido pela Polícia Federal poderia haver “consequências imprevisíveis”. Quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello convocou os três ministros militares do Planalto para depor, o aviso veio com um procedimento formal, que todo cidadão recebe da mesma maneira: se não comparecerem na data marcada, vão “debaixo de vara”.
Um linguajar próprio da Justiça que em nada rebaixa os convocados. Mas os militares ficaram irritadíssimos, como se mentalmente continuassem se considerando diferentes dos outros cidadãos. Acham que são mais iguais que os outros, como no livro “A Revolução dos Bichos”, do George Orwell.
Merval Pereira: A caminho da reserva
Saúde passou a ser exemplar da ‘militarização’ do governo, tendo sido nomeados no último mês 30 assessores militares
A autocrítica do General Mark Milley, chefe do Estado Maior Conjunto, principal autoridade militar dos Estado Unidos, por ter participado de uma caminhada com o presidente Donald Trump de cunho político, vem a calhar diante da incorporação de militares, da ativa e da reserva, no governo do presidente Bolsonaro.
“Minha presença naquele momento, e naquele ambiente, criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna”, disse o general Milley. O mesmo desconforto sentiu o General de Exército da ativa Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, ao participar de uma manifestação política em frente ao Palácio do Planalto no domingo dia 17.
Convocado pelo presidente Bolsonaro, assim como outros ministros, o General Ramos compareceu “disfarçado”, com um boné da Harley Davidson e óculos escuros, e ficou no alto da rampa, sem participar da manifestação. Mas naquele dia o presidente resolveu chamar todos os ministros para próximo dele, e apresentou um a um à multidão, levantando seus braços.
Sua presença na rampa do Planalto tinha um inescapável sentido político e foi muito criticada pelo fato de ser um General da ativa. Foi a última vez em que Ramos participou de uma manifestação, e começou a pensar em ir para a reserva.
Vem conversando com o presidente Bolsonaro desde então, e diz que sua decisão pessoal já foi tomada, mas está na “fase de possibilidade de ir para a reserva”, pois ainda não se acertou com o presidente. Ele prefere continuar ajudando no Governo, mas estar na reserva.
O General americano Mark Milley gravou um vídeo para ser exibido na abertura do ano letivo da Universidade Nacional de Defesa onde diz: “ Como oficial da ativa, foi um erro com o qual aprendi, e espero sinceramente que todos nós aprendamos com ele. Nós, que usamos as insígnias de nossa Nação, que viemos do povo, devemos sustentar o principio das Forças Armadas apolíticas, que tem raizes firmes na base da nossa República”.
O governo Bolsonaro tem cerca de 3 mil militares, da ativa e da reserva, em seus quadros, oito militares como ministros efetivos e um interino, o General Eduardo Pazuello, há quase um mês à frente do ministério da Saúde. General da ativa, Pazuello só não foi efetivado porque os ministros militares que têm gabinete no Palácio do Planalto aconselharam o presidente a não fazer isso, pois os problemas da pandemia de Covid-19 cairiam no colo dos militares.
Bolsonaro encontrou uma maneira indireta de fazer o que quer, transformando essa interinidade em atividade permanente. Os militares sempre defenderam a tese de que não existem ministros militares, mas ministros que têm origem militar, assim como outros são engenheiros, advogados, ou mesmo políticos.
Mas o fato é que, assim como o PT aparelhou o governo nos seus 15 anos com sindicalistas e políticos fisiológicos do centrão, Bolsonaro está aparelhando o seu com o mesmo tipo de políticos e militares. O ministério da Saúde passou a ser exemplar dessa “militarização” do governo, tendo sido nomeados nesse último mês cerca de 30 assessores militares, alguns em postos chaves do ministério, que perdeu muitos técnicos de qualidade nesse período.
O General Luiz Eduardo Ramos é o encarregado dos contatos políticos do Governo e tem um bom relacionamento com eles desde que, como Comandante Militar do Leste, com sede em São Paulo, mantinha encontros periódicos com parlamentares da região. Hoje, atua diretamente em negociações politicas, inclusive com governadores.
A última “missão” de peso de que participou foi organizar a reunião de Bolsonaro com os governadores que marcou um breve interregno no conflito entre Brasília e os Estados.
Na ocasião, ele comemorou o sucesso do encontro classificando-o de “histórico”. O General Ramos concorda em tese com o General americano Mark Milley, por isso está trabalhando junto ao presidente Bolsonaro para ir para a reserva sem deixar suas funções na Secretaria de Governo. Ele é amigo de Bolsonaro há décadas, diz que considera importante estar no governo neste momento, mas acredita que, indo para reserva, preserva o “meu Exército, que tanto amo e servi”.
Merval Pereira: Ponto final
Poder Moderador só existiu na Constituição de 1824 e restou superado com Constituição Republicana, diz Barroso
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luis Roberto Barroso deu ontem o primeiro pronunciamento oficial da Corte negando a função de Poder Moderador das Forças Armadas. Ao não dar seguimento a mandado de injunção que pedia a regulamentação do artigo 142 da Constituição, utilizado por seguidores de Bolsonaro para justificar uma eventual intervenção militar em caso de ameaça à democracia, o ministro Barroso aproveitou para reforçar formalmente o que já havia sido dito por organizações da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e pelo Congresso.
Agindo dessa maneira, Barroso replicou a atitude do juiz John Marshall, da Suprema Corte dos Estados Unidos, o primeiro a definir, em 1803, a capacidade da Suprema Corte de fazer o controle constitucional das leis, no caso mais famoso do constitucionalismo mundial.
Em uma discussão sobre a nomeação de um juiz feita pelo presidente anterior, o juiz Marshal decidiu que a lei em que se baseava a nomeação era inconstitucional e, portanto, ele não poderia ser nomeado. Ao mesmo tempo em que afirmava o poder da Suprema Corte de determinar a constitucionalidade das leis, que até aquele momento não tinha esse papel, não criava um conflito entre Poderes.
Aqui também, ao definir que o artigo 142 não requer regulamentação, Barroso formalizou um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema, encerrando a discussão. Barroso marca posição referindo-se ironicamente a um “terraplanismo constitucional” dos que interpretam a Constituição erroneamente, e afirma que qualquer tentativa de usar medidas extraordinárias sem seguir os trâmites constitucionais configura crime de responsabilidade.
“Nos quase 30 anos de democracia no Brasil, sob a Constituição de 1988, as Forças Armadas têm cumprido o seu papel constitucional de maneira exemplar: profissionais, patrióticas e institucionais. Presta um desserviço ao país quem procura atirá-las no varejo da política”, afirmou Barroso.
Na sua decisão, ele ressalta que “o Poder Moderador só existiu na Constituição do Império de 1824 e restou superado com o advento da Constituição Republicana de 1891. Na prática, era um resquício do absolutismo, dando ao Imperador uma posição hegemônica dentro do arranjo institucional vigente. Nas democracias não há tutores”.
Para Barroso, “nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao artigo 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica. Interpretações que liguem as Forças Armadas “à quebra da institucionalidade, à interferência política e ao golpismo chegam a ser ofensivas”, diz Barroso.
Depois de fazer um apanhado histórico sobre as diversas constituições do Brasil, desde a de 1824 que definiu o papel moderador do Imperador, até a de 1988, Barroso define que “finalmente o Brasil fez sua transição para um Estado Democrático de Direito. Nessa medida, submeteu o poder militar ao poder civil, e todos os Poderes à Constituição”.
Barroso lembra que, desde então, “passaram-se mais de 30 anos, dois impeachments presidenciais, uma intervenção federal, inúmeras investigações criminais contra altas autoridades (inclusive contra Presidentes da República), sem que se tenha cogitado jamais da utilização das Forças Armadas ou de um inexistente poder moderador”.
Todas as crises institucionais experimentadas pelo país, ao longo dos governos democráticos anteriores foram solucionadas sem rupturas constitucionais e com respeito ao papel de cada instituição – e “não se pode afirmar que foram pouco relevantes”, afirma Barroso. “Portanto, a menos que se pretenda postular uma interpretação retrospectiva da Constituição de 1988 à luz da Constituição do Império, retroceder mais de 200 anos na história nacional e rejeitar a transição democrática, não há que se falar em poder moderador das Forças Armadas”.
Merval Pereira: Provas compartilhadas
Na frente do prédio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em Brasília, onde se desenrolam os processos para impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão sob diversas alegações, dois grupos se manifestavam ontem. De um lado, a turma do Bolsonaro, comandada pela ativista Sara Winter. De outro, o grupo da oposição, aparentemente liderado pelo PT.
Ambos com pouca gente, diga-se de passagem, o da oposição menor. Gilberto Carvalho, ex-ministro de Lula e seu braço direito, pegou o megafone e começou a esbravejar contra o “golpe” sofrido pela ex-presidente Dilma, e a defender ao mesmo tempo a cassação do mandato de Bolsonaro e Mourão.
Foi tiro e queda, esvaziou-se a manifestação oposicionista. Esse fato fortuito é exemplar de uma situação política apodrecida, que levou à irrelevância de Lula na atual quadra brasileira. Como Bolsonaro, Lula só pensa naquilo, a eleição de 2022. Mas quer que os partidos continuem a girar em torno dele, o sol oposicionista.
Um desejo irrealizável pelas leis em vigor, pois foi condenado em segunda instância e é inelegível. A presidente do PT, Gleisi Hoffman, já lançou a candidatura de Lula, e José Dirceu, mais pragmático, mas igualmente fora da realidade, defende o que chama de “chapa imbatível”, com o governador petista da Bahia Rui Costa para presidente e Flavio Dino, governador do Maranhão do PCdoB, como vice. Uma tentativa de manter o PCdoB como satélite do PT.
No domingo, num programa especial da Globonews de Miriam Leitão, ficaram frente a frente três líderes da oposição a Bolsonaro: Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, Marina Silva, do Rede e Ciro Gomes do PDT. Debateu-se uma aliança oposicionista que unisse vários partidos, aliança essa que o PT já se recusou a aderir, alegando que não poderia conviver com quem trabalhou pelo “golpe” contra Dilma, nem assinar um mesmo documento que o ex-ministro Sérgio Moro.
No programa da Globonews, Ciro Gomes tomou a iniciativa de se reaproximar do ex-presidente Fernando Henrique, a quem criticou regularmente nos últimos anos, depois de terem sido companheiros de partido e de governo. Num momento como o que enfrentamos, com crises para todos os lados, é indispensável que os líderes políticos se unam em tono do que os agrega, como a oposição de Bolsonaro.
Mas os dois populistas, Bolsonaro e Lula, se retroalimentam, e precisam um do outro. Não creio, porém, que depois dessa experiência com o governo Bolsonaro, e com a debilidade política do PT, tenham chance novamente de dividir o eleitorado.
O julgamento da chapa Bolsonaro -Mourão, ontem no TSE, foi o primeiro dos muitos que vão acontecer e deve ser arquivado, porque a questão é frágil. Trata-se de um site “Mulheres contra Bolsonaro” que foi invadido por hackers e teve o nome mudado para “Mulheres a favor de Bolsonaro”.
É muito subjetivo determinar se foi o candidato quem mandou invadir o site, e o relator do caso, ministro Og Fernandes, votou pelo arquivamento. O ministro Facchin quer continuar a investigação. Assim como esse, outros processos também são frágeis.
O fundamental para o TSE é definir se essas ações mudaram o resultado das eleições. Nesse sentido, o único processo que vai dar discussão é o de impulsionamento de mensagens no WattsApps, mentirosas ou favoráveis a Bolsonaro. Impulsionamento na campanha eleitoral é ilegal - não se pode mandar a mesma mensagem para milhares pessoas porque é caro e caracteriza abuso de poder econômico.
Além disso, quando impulsiona mensagens mentirosas, outro candidato está sendo prejudicado. O compartilhamento de provas encontradas no inquérito do Supremo que já investiga fake news há um ano, se autorizado, pode robustecer esse processo no TSE, e a quebra de sigilo dos empresários envolvidos no apoio ao governo Bolsonaro nas redes sociais pode levar à criminalização desse apoio, comprovando o abuso do poder econômico.
O presidente do TSE, ministro Luis Roberto Barroso, já avisou que a esperança de grupos de que o TSE possa resolver uma questão politica que está posta, com a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão, é infundada. O Tribunal não agirá politicamente, garante. O julgamento deve acontecer ainda este ano, o que, no caso de impugnação da chapa, obrigaria a uma nova eleição direta para presidente da República. Se acontecer depois do segundo ano de mandato presidencial, a eleição seria indireta. O TSE pode também impugnar apenas a candidatura de Bolsonaro, e nesse caso assumiria o restante do mandato o vice Hamilton Mourão.
Mas é preciso levar em conta que é muito difícil anular uma chapa presidencial eleita por 60 milhões de votos. A não ser que o excesso de provas torne inevitável a decisão.
Merval Pereira: Cada um conta
Brigar com os números é uma tendência de todo governo autoritário ou populista, controlar a narrativa também
Seria uma grande notícia se o presidente Bolsonaro tivesse tomado a decisão de que não aceita mil mortes todos os dias, em consequência da Covid-19 e, ordenasse uma reunião de emergência para analisar que medidas teriam que ser tomadas na área da Saúde para evitar que esse número trágico se repetisse.
Sim, ele decidiu que não queria mais ver o anúncio de mais de mil mortos por dia, ou um morto por minuto. Mas não tomou medidas na área sanitária. Simplesmente decidiu maquiar as estatísticas para nunca mais ouvir o Papa Francisco lamentar no Angelus o fato “terrível” de morrerem mil pessoas por dia no Brasil.
Brigar com os números é uma tendência de todo governo autoritário ou populista, controlar a narrativa também. Stálin mandava apagar das fotos seus antigos aliados caídos em desgraça. O mais incrível é que o governo tem um ponto importante nessa discussão.
Se o número de mortes em 24 horas inclui as mortes ocorridas anteriormente, cujo diagnóstico de Covid-19 só agora foi confirmado, o total de mortes diárias está distorcido, embora o que importa, a soma total de mortos não mude. Se houvesse a separação das mortes nas 24 horas, e as confirmadas entre as que estavam na fila de suposição, a informação seria também correta, e a estatística mais esclarecedora.
Não está acontecendo, mas as mortes diárias podem, teoricamente, estar caindo, e as confirmadas crescendo, pois não temos testagem para determinar a Covid-19 em todos os pacientes.
O ministério da Saúde está uma confusão só.Agora prometem que vão dar as mortes notificadas no dia junto com a data em que ocorreram. Sem explicar como.
Acontece que o padrão é internacional, embora alguns Estados brasileiros separem os dados. O que importa é que o número de mortos anunciado naquele dia seja a soma dos mortos nas últimas 24 horas com a das mortes confirmadas. Mas o governo não faz a soma, nem apresenta os dois números separados. Simplesmente some com parte dos dados.
O que revela mais uma vez a insensibilidade de Bolsonaro é que o presidente só se mexe para esconder fatos, nunca para solucionar problemas que aparecem no decorrer dessa trágica pandemia. Usa a desculpa de que o Supremo Tribunal Federal (STF) delegou aos Estados e Municípios o combate à Covid-19, o que não é verdade.
Se quisesse, o governo federal poderia combinar com governadores e prefeitos conceitos de uma política comum, e cada um adaptaria as orientações às características de sua localidade. Políticas de compra de material médico, por exemplo, são típicas de uma ação governamental centralizada.
O fato é que, manipulando ou não os dados, o Brasil caminha para se tornar o segundo país com mais mortes no mundo. Como chegamos ontem a 37.312 mortes, segundo o consórcio da imprensa, provavelmente ultrapassaremos o Reino Unido, que tem cerca de 40 mil mortos, nessa trágica disputa.
Mesmo na contagem proporcional, por milhão de habitantes, o Brasil não está tão bem como querem os apoiadores de Bolsonaro. Em relação à América do Sul, por exemplo, o número de mortos pela Covid-19 é quase três vezes maior que o registrado nos demais países somados, cerca de 70% do total, embora o país tenha perto da metade da população total da região.
Em relação à Europa, o Brasil está em melhores condições do que a Espanha, que tem 597 mortos a cada milhão de habitantes, seguido pelo Reino Unido com 587, Itália com 557, França com 445 e Estados Unidos com 326. Temos 160 mortes a cada milhão de habitantes, mas há diferenças preocupantes.
Uma taxa de idosos, acima de 65 anos, os mais frágeis diante do vírus, de menos de 10%, enquanto na Europa o índice médio é de 20%, e ainda não chegamos ao pico da epidemia, enquanto na Europa ela já está decadente. Além do mais, pesquisadores do Portal Covid-19 Brasil, união da Universidade de São Paulo (USP) com a Universidade de Brasília (UnB), calculam que o número real de infectados no Brasil chega a ser 10 vezes maior do que o divulgado, variando entre 4,6 e 6,5 milhões, o que significa que devemos ter muito mais mortes em decorrência da Covid-19, com subnotificações. As mortes oficialmente por problemas respiratórios cresceram assustadoramente.
Sobretudo, é preciso entender que os mortos não são apenas números estatísticos. São seres humanos, e cada um conta.
Merval Pereira: Manipulação de dados
Seremos um dos únicos países do mundo em que a curva dos infectados será derrubada por uma canetada
Teremos em poucas dias mais confusão estatística provocada pela obsessão do governo Bolsonaro de manipular os números oficiais. O aumento das queimadas na Amazônia e na Mata Atlântica foi negado pelo ministério do Meio-Ambiente, a ponto de haver uma intervenção no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), até que a realidade ficou patente.
Agora, teremos várias contagens dos mortos e infectados pela Covid-19, pois o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Congresso estão dispostos a colher os dados diretamente das fontes estaduais para obter um número mais próximo da verdade possível, enquanto o ministério da Saúde pretende esconde-los.
O governo é tão desorganizado que deixou evidente desde o inicio sua intenção de não revelar os dados da Covid-19 para grande parte da população, depois que os ministros técnicos - Luis Henrique Mandetta e Nelson Teich - saíram por absoluta impossibilidade de trabalhar.
Atrasou a divulgação dos dados para que eles não fossem anunciados pelo Jornal Nacional, mas quando a má-fé ficou evidenciada, o jornalismo da Rede Globo decidiu noticiar os números oficiais na hora em que fossem divulgados, o que fez com que a novela fosse interrompida para o anúncio, com uma audiência muito maior.
A jogada seguinte foi anunciar que os números oficiais seriam revisados, sob a alegação do governo de que são maiores que na realidade. O ministério da Saúde tentar camuflar os dados de infectados e mortos pelo Covid-19 é de uma ousadia poucas vezes vista.
O único plano para combater o novo coronavírus é uma oficialização da subnotificação que, como se sabe, é muito grande no Brasil, quantificada por especialistas em pelo menos cinco vezes o número oficial.
Além de alterar os critérios, o governo já mudou a tabela de divulgação dos dados, omitindo o total geral de mortos e infectados pela doença. Seremos um dos únicos países do mundo em que a curva dos infectados será derrubada por uma canetada, como se isso resolvesse os problemas da população.
Nos igualaremos a países como a China, a Rússia, a Coréia do Norte, a Bielorrússia, cujos dados oficiais são ridicularizados mundialmente. A ideia foi do secretário de ciência e tecnologia do Ministério da Saúde, Carlos Wizard, que, ignorando a subnotificação existente, quer acabar com o que considera ser uma supernotificação, alegando que os governadores aumentam as notificações para aumentar as verbas publicas que recebem para combater a Covid-19.
Sua declaração foi considerada pelo conjunto dos secretários de saúde dos Estados “grosseira, falaciosa, desprovida de qualquer senso ético, de humanidade e de respeito, merece nosso profundo desprezo, repúdio e asco”. O ministro do TCU Bruno Dantas, baseado no fato de que em matéria de saúde há uma obrigação do Estado de divulgar estatísticas que viabilizem decisões de políticas públicas, está entrando em contato com os tribunais de contas estaduais para viabilizar uma contagem que seria consolidada pelo TCU, cujo presidente José Múcio já autorizou o trabalho conjunto.
Cada TCE pode requisitar, sob pena de multa aos gestores, os dados das secretarias estaduais. A divulgação local também pode ser feita por cada TCE e a nacional (que nada mais é do que a soma dos dados estaduais) pela própria ATRICON, a associação que congrega ministros do TCU e conselheiros de TCEs de caráter nacional.
A ideia é bastante simples, mas precisa do engajamento dos tribunais de contas estaduais, porque são eles que têm poder para requisitar os dados das secretarias de saúde dos Estados, e não existe subordinação entre eles e o TCU.
Diante do perigo que é o país não ter os indicadores corretos para realizar as politicas públicas adequadas, pior mesmo é não ter ter um ministro da Saúde há 22 dias. Tendo um General como interino na pasta todo esse tempo, no auge da pandemia, Bolsonaro resolveu imitar seu “amigo, irmão” Trump e está em litígio com a Organização MUndial de Saúde. Ao criticar seu diretor-geral Tedros Adhanon Ghebreyesus, saiu-se com essa:” Nem médico é”.
Merval Pereira: Os tropeços de Bolsonaro
Seu desapego às consequências da pandemia tira-lhe mais apoios do que a insistência em reabrir a economia
A compostura do presidente Bolsonaro não é nem de uma pessoa normal, quanto mais a de um presidente da República. Não falar sobre a nossa tragédia sanitária no dia em que chegamos a um morto por minuto, mesmo ao inaugurar um hospital de campanha construído para enfrentar a pandemia, é sinal de desumanidade incomparável. Tropeçou física e metaforicamente nos seus próprios erros.
O que ele não entende é que seu desapego às consequências da pandemia tira-lhe mais apoios do que a insistência em reabrir a economia, supostamente preocupado com os que precisam trabalhar para ganhar a vida. Mas o risco de aumento do número daqueles que perdem a vida por estarem na rua trabalhando na informalidade é muito maior do que a alegada possibilidade de morrerem de fome.
O absurdo é que o governo não esteja totalmente mobilizado para essa tragédia nacional. E não temos nem ministro da Saúde. O próprio presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, espelho para Bolsonaro, criticou a maneira como o Brasil está enfrentando a pandemia da Covid-19, dando como exemplo do que não deve ser feito a Suécia, elogiada por Bolsonaro, e o nosso país.
Trump fez uma conta aterradora. Disse que se os Estados Unidos tivessem agido como o Brasil, milhões de americanos teriam já morrido. Isso num país em que mais de cem mil pessoas já morreram, mais do que em todas as guerras em que os Estados Unidos se meteram depois da Segunda Guerra Mundial.
Esse número macabro também nos assombra. Caminhamos para ter mais mortes do que na Guerra do Paraguai ou na Gripe Espanhola. E estamos disputando uma corrida insana para superarmos os Estados Unidos em número de mortos.
Em vez de preocupar-se com a realidade atual, Bolsonaro tenta armar uma realidade futura que ele não sabe nem mesmo se poderá desfrutar. Refiro-me à sua obsessão pela reeleição em 2022, que ele acredita estar pavimentando com a retomada da economia, como se por si só ela representasse bons ventos adiante.
Esquece-se de que o número crescente de mortes pela Covid-19 será um árduo fardo para carregar nas costas até as eleições, se é que seu mandato durará até lá. A questão do impeachment hoje parece mais de quando, e não de se, como se refere à ruptura democrática seu filho 03.
O que os Bolsonaro querem é preparar o ambiente para que, caso amanhã as manifestações contra o governo sejam muito grandes, possam reprimi-las com a Força Nacional, que nunca foi chamada para reprimir, ou ao menos velar pela segurança das marchas a favor de Bolsonaro, carregadas de cartazes incitando o ódio e o fechamento do Congresso e do Supremo, excessos da liberdade de expressão que não estão protegidas pela lei.
Finge estar preocupado com o embate entre prós e contras ele, mas xingar os contrários de terroristas e vândalos é tentativa de criar ambiente que permita acionar a Força Nacional e dizer que está sendo atacado. É uma atitude política óbvia. Tomara que domingo seja tudo calmo.
Algumas lideranças que estão se manifestando publicamente contra o governo sugerem evitar manifestações neste momento, e esse apelo — sensato — deve diminuir o número de pessoas nas ruas. Pessoalmente, prefiro que não houvesse nada por enquanto, e que as manifestações começassem quando voltarmos à normalidade, com o Congresso funcionando.
Mas outros acham que não se pode deixar Bolsonaro avançar, e é preciso ir logo para a rua. Há especulações de que o que Bolsonaro quer mesmo é encontrar um atalho no seu caminho para a reeleição para ganhar poderes num estado de sítio provocado por distúrbios nas ruas.
A mesma tática foi tentada pela ex-presidente Dilma Rousseff, que chegou a consultar os ministros militares sobre a decretação de um estado de sítio antes da votação do impechament que acabou tirando-a do governo. Os ministros deixaram claro que não apoiariam tal decisão, e o golpe teve que ser abortado.
Esperemos que esses mesmos militares que continuam a liderar as Forças Armadas, uns ainda na ativa, outros na reserva mas em postos importantes dentro do governo Bolsonaro, sejam coerentes com atitudes do passado e reajam à tentativa de controlar os protestos oposicionistas através de golpes de força.
Merval Pereira: Nas ruas
Partidários dos movimentos contra o governo acham que não é o momento de protestos nas ruas, por causa do coronavírus
Em tempos de pandemia, a pulsão individual tem que ser controlada pela realidade, o que é difícil de acontecer. Nos deparamos, então, com situações excêntricas que definem quem está ao lado de quem.
Partidos políticos de oposição pedindo para o povo não ir às ruas protestar contra o governo de Bolsonaro? O próprio presidente incentivando manifestações populares, quebrando o distanciamento social e abraçando seus seguidores?
Partidários dos movimentos da sociedade contra o governo acham que não é o momento de fazer protestos nas ruas, por causa do coronavírus. E, ainda por cima, há o perigo de pessoas se infiltrarem para fazer baderna e dar razão a Bolsonaro.
Mesmo assim, várias manifestações estão programadas para o próximo domingo, e deve haver confronto, apesar de o presidente Bolsonaro ter pedido aos seus seguidores para não se manifestarem no mesmo dia que os opositores. Tentou parecer magnânimo: “Deixem as ruas para eles”.
Está sendo apenas realista, já viu que as ruas não são suas, como chegaram a comemorar seus seguidores em frente ao Palácio do Planalto numa daquelas domingueiras a cada dia mais esvaziadas.
Novamente o “nós contra eles” incensado pelo ex-presidente Lula, que levou três semanas para aderir ao movimento pelo impeachment de Bolsonaro, e agora renega a frente ampla que se tenta construir contra o governo porque não aceita estar junto de pessoas que não o consideravam um preso político, mas um político preso, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ou o ex-ministro Ciro Gomes.
Parece que não aprendeu com a derrota de 2018, ou quer repetir a dose em 2022, achando que fazendo a coisa errada seguidamente acaba dando certo no final. Não dá. Einstein já ensinou: “A definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente e esperar resultados diferentes”.
Petistas menos inflexíveis aderiram a diversos movimentos, mas barraram a assinatura de Sérgio Moro. Essa é apenas uma das grandes diferenças que separam Mandela de Lula, apesar da tentativa de igualá-los: Mandela juntou-se a Frederik de Klerk, presidente do governo sul-africano que o manteve na cadeia por 30 anos, para assinar o fim o apartheid. Na Espanha pós-franquista, o líder conservador Adolfo Suarez e o socialista Felipe Gonzalez não deixaram de ser adversários para assinar os Pactos de Moncloa.
Claro que não estamos nem perto desses marcos históricos, mas pela instransigência demonstrada por uma parte petista da esquerda, não chegaremos lá. Bolsonaro criticou – com razão – a baderna que aconteceu em Curitiba, em protesto contra o racismo e o fascismo, mas, sem razão, chamou os manifestantes de “terroristas”.
Ontem, um deputado governista quis propor uma lei que criminalizasse quem queimar a bandeira nacional, como aconteceu em Curitiba. O presidente da Câmara Rodrigo Maia perguntou: “E quem leva cartazes e faixas defendendo o fechamento do Congresso vai ser criminalizado também?”.
Essa é a questão central do “nós contra eles” tão ao gosto de Bolsonaro e Lula, ambos com popularidade decadente. Classificar de “terroristas” os manifestantes contrários, mas incentivar que seus apoiadores a se armarem para “defender a democracia”, é uma “bolsonarice” típica.
O melhor exemplo é o acampamento dos 300 em Brasília, comandado pela militante Sara Winter, que posa armada com revolver e metralhadora e está sendo investigada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no inquérito das fake news.
Em meio a esse pandemônio político, Bolsonaro anunciou que vai flexibilizar a posse e o porte de armas. São demonstrações de agressividade perigosas num momento como o que estamos vivendo, em que o presidente perde a capacidade de ser intermediário, um negociador entre as partes, porque está envolvido com um lado da questão, e o incentiva a se manifestar e a se armar.
Merval Pereira: Inverdade sabida
Fake news nada tem com a liberdade de expressão, como afirmaram Bolsonaro e seus seguidores, diz Ayres Britto
Outro dia um aluno confrontou o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) Ayres Britto com uma frase sua: “Não é por temor do abuso que se vai proibir o uso”. Britto criticava as fake news, e o aluno considerava uma incoerência com o que defendera em 2009, quando foi o relator de um processo em que o então deputado Miro Teixeira pedia a revogação da Lei de Imprensa, da época da ditadura militar, por não se coadunar com a Constituição democrática de 1988.
A Constituição previa, por exemplo, a pena de prisão para jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação. Ayres Britto deu um voto que se tornou símbolo da defesa da liberdade de expressão. Por isso mesmo, ele se considera em condições de afirmar que fake news nada tem com a liberdade de expressão, como afirmaram o presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores que estão sendo investigados no inquérito das fake news aberto no Supremo, com o ministro Alexandre de Moraes como relator.
Conforme escreveu naquele seu voto, “quem quer que seja pode dizer o que quer que seja”, mas, esclarece, “nesse plano de informação tida como verídica, correta”. E se responsabiliza pela consequência de suas palavras. A Constituição fala sobre liberdade de informação, mas sobre algo existente ou que já existiu, explica Ayres Britto: informação para se inteirar das coisas, ou transmiti-las; o direito de informar e ser informado, no pressuposto da factualidade, da veracidade. Sair à cata da informação por conta própria. Prospecção, investigação.
No bloco de direitos sobre a comunicação humana na Constituição, está dito que é livre a liberdade de expressão: da atividade intelectual, artística, cientifica; de comunicação. “Fake News não é nada disso. É o contrário, é desinformação. Não é categoria jurídica nem como pensamento, nem como informação”.
Para Ayres Britto, a Constituição pré-exclui a figura das fake news de qualquer bem jurídico por ela protegida: “Não é abuso da liberdade de expressão, porque o abuso pressupõe o uso válido. Eventualmente você se excede, extrapola, e prejudica a imagem de terceiros, prejudica a honra de terceiros, a vida privada. Na fake news, não há abuso, há fraude, estelionato comunicacional”.
No Código Penal, ressalta Britto, é falsidade ideológica, uma mentira intencional, um engodo. “Omitir a verdade ou dar uma declaração que se sabe falsa”. Para ele, seria educativo colocar os autores de fake news como fora da lei. “Se conceituarmos cada qual dos bens jurídicos tutelados pela Constituição, - informação, expressão, pensamento -, não há lugar para a fake news”.
Ayres Britto preocupa-se com o que chama de “falta de qualificação jurídica das fake news”, que para ele é “uma inverdade sabida, uma inverdade autodefinida, e ainda assim o sujeito propaga”. A verdade sabida é a que não precisa ser provada, é pública e notória.
O projeto que tramita no Congresso sobre fakenews foi adiado para a próxima semana, pois o Senado não encontrou consenso em vários pontos. Um dos mais em disputa é a definição justamente do que seja “desinformação”.
Outro ponto de discórdia é a obrigatoriedade de o usuário se identificar de alguma maneira, para impedir o anonimato, que é proibido pela Constituição. O uso de verbas públicas para promover qualquer ação proibida pela lei será classificado como improbidade administrativa, ponto que hoje está em debate pela denúncia do Globo de que o sistema de comunicação da presidência da Republica usou a propaganda oficial para financiar os blogs acusados de distribuição de fake news.
O ponto crucial é a responsabilização das plataformas pelas mensagens que reproduzirem. No momento, pelo marco civil, a rede social só precisa retirar a notícia denunciada como falsa quando receber uma notificação judicial. Na proposta que está sendo debatida, após exame das mais de 60 emendas, o relator dispõe que, para pedir a retirada de uma mensagem de uma rede social, o usuário tem que notifica-la juntando um comprovante de que entrou na Justiça.
Caminhamos para um avanço na contenção das fake news, sem instituir uma censura impossível e indesejada nos novos meios.
Merval Pereira: A sociedade se movimenta
São importantes as manifestações desses diversos grupos pedindo um basta à tentativa de romper com a democracia
Surgiram neste final de semana os primeiros sinais de que a sociedade civil, mesmo que ainda desorganizada devido à pandemia, se movimenta para tentar barrar as investidas autoritárias do presidente Bolsonaro e seus seguidores.
Provavelmente, a persistência dos bolsonaristas nos ataques às instituições que são a base da democracia, Legislativo, Judiciário e imprensa profissional, levou a esse levante quase simultâneo que produziu manifestos de juristas, intelectuais, personalidades de diversos setores, juízes, promotores, procuradores, todos preocupados em defender a democracia.
Não são apenas notas de protesto, comuns em situações de confronto, mas exposições de pensamentos de setores fundamentais numa sociedade democratica. Até mesmo nas ruas, que deveriam estar desertas diante da tragédia da Covid-19, houve confrontos entre os que se autointitularam democratas contra os apoiadores de Bolsonaro, o que evidencia bem a postura de cada grupo.
Uma novidade dessa movimentação é que torcidas organizadas de times de futebol, como Corinthians, Palmeiras, Flamengo, e outros apareceram no Rio e São Paulo como forças políticas contrárias ao governo Bolsonaro, o que parece ser uma tendência, já cristalizada na Argentina, por exemplo, onde os “barra bravas” são uma forca de apoio ao peronismo de esquerda, alimentados sobretudo nos últimos anos do kirchnerismo.
Essa mistura de torcidas organizadas com política é preocupante, diante da violência que caracteriza esse tipo de manifestação, especialmente na cultura da América Latina. Outra consequência é que vai ficar mais difícil para o presidente Bolsonaro frequentar estádios de futebol, como gosta de fazer.
O manifesto do “Estamos Juntos”, que já tem mais de 200 mil assinaturas, é amplo, pretende unir “Esquerda, centro e direita” para defender “a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia".
O movimento “Basta!”, de juristas e advogados, coloca-se contra os ataques de Bolsonaro às instituições democráticas e acusa o presidente de já ter cometido crimes de responsabilidade, o que pode levar a um pedido de impeachment na Câmara dos Deputados em Brasília. Uma característica desses manifestos é a fixação de que o governo Bolsonaro, embora eleito legitimamente, não representa hoje a maioria da população.
Mesmo que ainda representasse a maioria que o elegeu presidente da República, não tem o direito de não respeitar as minorias e negar-se ao diálogo, necessário na democracia. “#Somos 70 PorCento” é o nome de um desses movimentos, que define os que, na mais recente pesquisa DataFolha, consideram o governo Bolsonaro ruim, péssimo ou regular.
Os manifestos de juizes, promotores e procuradores focam na defesa do Estado de Direito, denunciando abusos e manifestações “autoritárias e antidemocráticas”. O próprio Procurador-Geral da República, Augusto Aras, foi levado a assinar um manifesto dos Procuradores-Gerais do Brasil afirmando que o Ministério Público “cumprirá com seus deveres constitucionais na salvaguarda da ordem jurídica que sustenta as instituições do País”.
Augusto Aras é peça chave nos dois processos contra o presidente Jair Bolsonaro que correm no STF. A pressão no Ministério Público, tanto externa como interna, pode ter resultado, sobretudo a pressão da opinião pública pode ter efeito sobre o PGR que, até agora, só tinha a do presidente. São importantes as manifestações desses diversos grupos pedindo um basta à tentativa de romper com a democracia. A sociedade, que tem a maioria na oposição ao governo, começou a se movimentar, e é uma tendência que vai crescer nos próximos meses.