Merval Pereira
Merval Pereira: Da noite para o dia
Por mais que queira mostrar-se contido, apaziguador, negociador, o verdadeiro Bolsonaro sempre prevaleceu
Além da nomeação do novo ministro da Educação, que teria um perfil técnico, ao contrário do guerrilheiro de direita Weintraub de triste memória, há comentários insistentes em Brasília de que o presidente Bolsonaro, nessa fase de calmaria pós prisão do Queiroz, tiraria do governo outros dois ministros problemáticos, o das Relações Exteriores Ernesto Araujo e o do Meio-Ambiente Ricardo Salles.
Seriam medidas saneadoras, para melhorar a imagem do governo, sobretudo externamente. Bom se fosse verdade. Mas não acredito, simplesmente porque os ministros citados, e outros, não fazem o que fazem por que querem, mas porque representam uma visão de mundo que é de Bolsonaro.
Seria preciso mudar o software que comanda o retrocesso nessas e em outras áreas, não apenas o hardware. Por mais que queira mostrar-se contido, apaziguador, negociador, o verdadeiro Bolsonaro sempre prevaleceu, não dando margem a uma mudança de comportamento por ter sido eleito presidente do Brasil.
Se tivesse capacidade para fazer esse jogo político, Bolsonaro teria pelo menos tentado. Como fez Lula ao ser eleito. Alguém imagina Bolsonaro convidando para sua equipe um ícone da esquerda, como Lula fez ao colocar no Banco Central o banqueiro internacional Henrique Meirelles, que havia acabado de ser eleito deputado federal pelo arqui-inimigo PSDB?
O primeiro governo Lula foi de continuidade do de Fernando Henrique não por convicção pessoal, mas por esperteza. Ele entendeu que, tendo sido eleito pelo centro, não teria espaço para exercer um governo de esquerda radical.Tanto que não colocou no ministério figuras carimbadas do pensamento econômico da esquerda, como Aluizio Mercadante ou Guido Mantega, que só virou ministro no último ano do primeiro mandato, com a saída de Palocci do governo.
Só no segundo mandato, reeleito apesar do mensalão, sentiu-se forte o bastante para colocar em prática, mesmo assim cautelosamente, a política econômica “de esquerda”, que gerou a “nova matriz econômica” de Mantega no governo Dilma, começo do fim do lulismo no poder.
Bolsonaro, ao contrário, não quer entender que se elegeu não porque era um radical de direita, mas porque foi quem conseguiu encarnar eleitoralmente o antipetismo que dominava o eleitorado. Sem que isso signifique que todos os antipetistas sejam radicais de direita. Como se Lula tivesse achado que o Brasil tinha ido para a esquerda com sua eleição.
As escolhas de Sergio Moro para a Justiça, e Paulo Guedes para a economia, serviram para contentar o eleitorado de centro-direita que o elegeu, mas ele quis dar a seu governo a marca do radicalismo em setores fundamentais como Educação, Meio-Ambiente, Relações Exteriores, Cidadania.
Como ele mesmo disse, antes de construir teria que desconstruir. E pôs-se a desconstruir a Educação, procurando confrontar o que considerava “um antro esquerdista”. Nada de programas, nada de projetos para o futuro. Até o momento, só trabalho ideológico de uma direita radical.
Ao mesmo tempo, rebaixou a Cultura a uma secretaria ligada hoje ao ministério do Turismo, e passou a desmontar toda uma estrutura cultural que estaria ligada à esquerda intelectual. Nunca levou em conta a importância econômica da cultura, nem seu papel fundamental no “soft power” brasileiro para a imagem do país no exterior.
Nas Relações Exteriores, nunca essa imagem esteve tão corroída por posições equivocadas e minoritárias num mundo globalizado, tanto pela política externa quanto devido ao Meio-Ambiente. Confrontos com a China, nosso maior parceiro comercial, por questões ideológicas, tão equivocadas quanto as dos governos petistas em relação aos Estados Unidos.
Ser contra a ONU, a OMS e outros organismos internacionais corresponde à visão de mundo de Bolsonaro, que considera o “globalismo” uma esquerdização do planeta.
As ONGs do meio-ambiente seriam uma consequência dessa política planetária que tem por objetivo ocupar a nossa Amazônia. As reservas indígenas seriam territórios a serem usados para essa internacionalização de nossas riquezas naturais.
Isso tudo para dizer que se, por acaso, Bolsonaro colocar pessoas equilibradas e sensatas nesses e em outras ministérios, eles não durarão, assim como não duraram Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich na Saúde. Ninguém muda da noite para o dia.
Merval Pereira: Como farsa
Estratégia deu certo para Lula, que se reelegeu em 2006, mas Bolsonaro não conta a economia a seu lado
O comportamento do presidente Jair Bolsonaro desde a prisão de seu amigo Fabricio Queiroz assemelha-se ao de Lula depois do escândalo do mensalão em 2005. A estratégia deu certo para Lula, que se reelegeu em 2006 mas, diferentemente, Bolsonaro não conta com a economia a seu lado. Naquele ano as exportações bateram recorde, o Real valorizou-se, a inflação ficou sob controle. A economia mundial estava crescendo, e o Brasil, apesar da crise política, conseguiu captar dinheiro no exterior.
As denúncias de corrupção não causaram grandes danos imediatos à popularidade de Lula, que tinha um índice de ótimo ou bom de 36%, mas em dezembro daquele ano de 2005 o Datafolha já registrava que esse índice caíra para 28% da população, o menor nível desde seu primeiro dia no Palácio do Planalto.
No dia em que o publicitário Duda Mendonça confessou na CPI dos Correios que recebera dinheiro ilegal em um paraíso fiscal como pagamento da propaganda para a campanha presidencial que elegeu Lula em 2002, houve choro no Congresso, e daí nasceu o Psol, com dissidentes do PT.
Foram meses com o fantasma do impeachment rondando o Palácio do Planalto, e houve até mesmo uma tentativa de acordo, levada a cabo pelos ministros Antônio Palocci, da Fazenda, e Marcio Thomaz Bastos, da Justiça, para que a oposição não insistisse no processo, com o compromisso de Lula desistir da reeleição.
A oposição, na definição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não tinha “gosto de sangue” na boca e temeu a ameaça de que os chamados “movimentos sociais” sairiam à rua para defender o mandato de Lula. O próprio Fernando Henrique dizia que não era inteligente criar um “Getúlio vivo”, referindo-se ao episódio do suicídio de Getúlio Vargas, que reverteu o estado de espírito da população a favor do presidente morto.
O mesmo temor de um impeachment contra Bolsonaro provocar reação de seus seguidores, ou dos militares que se transformaram em uma teórica força política de apoio ao governo, faz com que a questão ainda esteja fora de cogitação imediata. A pandemia da Covid-19, que ajudou a piorar a imagem do presidente Bolsonaro interna e externamente, ao mesmo tempo impediu que os protestos contra seu governo se materializassem nas ruas.
O PT em 2005 ainda dominava as manifestações populares, mas Bolsonaro hoje já perdeu essa hegemonia. É muito provável que quando a vida voltar ao normal, com o Congresso atuando presencialmente, o debate político se acirre e transborde para manifestações populares além da bateção de panelas nas janelas durante a quarentena.
O programa Bolsa Família, que teve início em 2004 ajudou a garantir a popularidade de Lula entre os mais carentes, especialmente no nordeste, mas Bolsonaro não tem dinheiro para criar o Renda Brasil, que seria uma versão ampliada do programa implantado pelo PT.
O auxílio emergencial, que será prorrogado para mais dois meses, tem ajudado a compensar a perda de apoio entre as classes média e alta, mas seu fim pode criar uma fragilidade no apoio das classes C e D. A crise econômica provocada pela Covid-19, com previsão de queda do PIB de cerca de 9% este ano, não ajudará o governo, ao contrario do que aconteceu com Lula, que conseguiu em 2005 um aumento no nível de empregos e um crescimento econômico de cerca de 2,5%, que, embora baixo, é um sonho inatingível neste momento.
O apoio do Centrão, negociado à base de troca de favores, tem a mesma origem. Lula recusou no início de seu governo um acordo com o PMDB, e só depois do escândalo do mensalão a presença do partido tornou-se oficial no primeiro escalão.
Os partidos que formam o centrão, na sua maioria, estavam envolvidos no esquema do mensalão, enquanto o PMDB, por não fazer parte do governo, ficou de fora das acusações. Hoje, ao contrário, Bolsonaro fez um acordo direto com o Centrão, apesar do passado que condenara durante a campanha presidencial.
Lula chegou ao governo indo para o centro. Bolsonaro chegou à presidência na radicalização política de direita, para se contrapor ao Lula radical de esquerda. Depois de um ano e meio no mesmo diapasão radical de direita, Bolsonaro quer se transformar em moderado, para superar as relações com grupos extremistas e milicianos. Passamos do mundo do crime para o submundo do crime. É a tragédia se repetindo como farsa.
Merval Pereira: Pouco tempo
A tentativa de escapar da primeira instancia é tão evidente que sua defesa já tentava mudar o foro para o Supremo, alegando que Flávio Bolsonaro fora eleito senador. O STF recusou
As chances de o senador Flavio Bolsonaro conseguir que seu processo sobre a “rachadinha” continue na segunda instância no Rio de Janeiro são próximas de zero. O decano do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, defensor intransigente do fim do foro privilegiado, foi sorteado para relatar uma ação do partido Rede contra a decisão do TJ do Rio, - ele deve ficar também com a ação do Ministério Público do Rio -, mas qualquer dos ministros atuais tem a mesma posição, alguns até mais drásticas.
O ministro Marco Aurélio Mello, na reunião de maio de 2018 que decidiu, por unanimidade, restringir o foro privilegiado para deputados federais e senadores, parecia estar adivinhando a polêmica decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que devolveu o processo do senador Flavio Bolsonaro para a segunda instância do Poder Judiciário, contrariando a jurisprudência definida naquela sessão.
Ao apoiar o voto de relator Luis Roberto Barroso, divergiu quanto ao que chamou “perpetuação do foro”. Queria que ficasse explícito que, caso a autoridade deixe o cargo, a prerrogativa cessa e o processo-crime permanece, em definitivo, na primeira instância da Justiça.
Na semana passada, quando da decisão do TJ do Rio, Marco Aurelio reagiu indignado: “É o Brasil do faz de conta. Faz de conta que o Supremo decidiu isso, mas eu entendo de outra forma e aí se toca. Cada cabeça, uma sentença”. Na mesma linha, depois de ajustar seu voto à maioria, o hoje presidente do Supremo Dias Toffoli propôs naquela ocasião estender a todas as autoridades que tenham prerrogativa de julgamento em instâncias superiores, inclusive ministros do Supremo e do Ministerio Público, a restrição ao foro privilegiado.
Foi acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes, que queria até a edição de uma súmula vinculante considerando inconstitucionais dispositivos de constituições estaduais que estendessem a prerrogativa de foro a autoridades em cargo similar ao dos parlamentares federais. Pouco tempo depois, o STF considerou inconstitucional uma decisão do Tribunal de Justiça do Maranhão que estendia a diversas autoridades o foro privilegiado.
Naquele 3 de maio de 2018, o Supremo decidiu, de acordo com o relator, ministro Luis Roberto Barroso, que o foro por prerrogativa de função conferido aos deputados federais e senadores se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas.
Em seu voto, Celso de Mello declarou-se a favor do fim de todas as prerrogativas em matéria criminal, que é o caso de Flavio Bolsonaro, por entender que todos os cidadãos devem estar sujeitos à jurisdição comum de magistrados de primeira instância,. Já no início do julgamento do chamado mensalão ele havia defendido que a questão do foro privilegiado merecia uma nova discussão.
A nova interpretação da Constituição foi um marco na restrição do foro, fazendo uma atualização dos procedimentos adotados anteriormente, quando o foro privilegiado protegia para sempre seu detentor, mesmo quando ele já não exercia a função que lhe dava essa prerrogativa especial, como acontece hoje com o senador Bolsonaro.
A tentativa de escapar da primeira instância é tão evidente que sua defesa já tentara anteriormente mudar o foro para o Supremo, alegando que Flavio Bolsonaro agora fora eleito Senador. O STF recusou essa manobra. Essa dança das instâncias judiciais, aliás, era uma truque muito usado pelos parlamentares, que a cada nova eleição conseguiam mudar o foro para a primeira instância, levando a que o processo voltasse sempre à estaca zero, até a prescrição.
Por isso, a decisão do Supremo naquela sessão de 2018, por proposta do relator Luis Roberto Barroso, foi de que, na publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.
Era comum a renúncia do parlamentar quando o processo chegava na fase final, para que ele retornasse à primeira instância. Flavio Bolsonaro está fazendo o inverso, quer sair da primeira instância, onde as investigações já estão avançadas, para tentar anular todas as provas já obtidas nesses dois anos de investigações. Só que lhe resta pouco tempo.
Merval Pereira: O pós-Bolsonaro
Diante da polêmica sobre o papel das Forças Armadas num regime democrático, o que deve um presidente de origem civil fazer com a questão militar? Esse é o tema sobre o qual se debruça o cientista político da Fundação Getulio Vargas do Rio Octavio Amorim Neto, num artigo para o boletim do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre). Ele leva em conta o pós-Bolsonaro, seja com a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE, ou com a derrota de Bolsonaro, ou Mourão ( em caso de impeachment) em 2022.
Como até hoje não houve força política para retirar da definição do papel das Forças Armadas a responsabilidade pelas “garantias dos poderes constitucionais”, como sugere o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras, Octavio Amorim Neto vislumbra outras possibilidades "de mais rápida e fácil implementação, todas tendo como norte a retirada dos militares da arena política e o reforço da orientação das Forças Armadas para atividades relacionadas à defesa nacional”.
O cientista político lembra que na Estratégia Nacional de Defesa havia a promessa de realizar “estudos sobre a criação de quadro de especialistas civis em Defesa, em complementação às carreiras existentes na administração civil e militar, de forma a constituir-se numa força de trabalho capaz de atuar na gestão de políticas públicas de defesa, em programas e projetos da área de defesa, bem como na interação com órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e técnico”.
Passados doze anos, o país dos concursos públicos ainda não conseguiu realizar o concurso para o quadro de especialistas civis em Defesa, critica Octavio Amorim Neto, que no longo prazo, “permitiriam democratizar as relações civis- militares em seu ponto nevrálgico, o Ministério da Defesa”.
Haverá certamente, admite Octavio Amorim Neto, muita resistência ao quadro de especialistas civis por parte das Forças Armadas, “uma vez que o Ministério da Defesa deixará de ser quase que completamente mobiliado por oficiais da Marinha, Exército e Força Aérea, tal qual se verifica hoje". Para aplacar essa resistência, o cientista político da FGV-Rio diz que um novo presidente de origem civil não deverá contingenciar o orçamento de investimento da Defesa, “de modo que as Forças Armadas possam ter a garantia de que conseguirão concluir seus principais projetos dentro dos prazos planejados”: aquisição de caças pela FAB – Projeto FX-2; programas de desenvolvimento de submarinos e o programa nuclear da Marinha – Pro-sub e PNM; despesas com a aquisição de cargueiros táticos de 10 a 20 toneladas e o programa de desenvolvimento de cargueiro tático de 10 a 20 toneladas – Projetos KC e KC-X; despesas com o programa de implantação do sistema de defesa estratégico – Astros 2020; despesa com a aquisição de blindados Guarani pelo Exército; e as referentes à implantação do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras – Sisfron.
“Será uma conta salgada, sobretudo para um país que estará em profunda crise econômica e social, mas pagá-la é condição necessária para que a Forças Armadas possam se concentrar em suas funções precípuas”, ressalta Amorim Neto, que recorda uma afirmação recente de Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa, segundo quem cabe ao poder político definir a Política Nacional e a Estratégia Nacional de Defesa, os objetivos, estrutura e meios das nossas Forças Armadas.
Mas, ressaltou Jungmann, “o poder político, não o faz, se aliena. A Política e Estratégia vigentes, elaboradas em 2016 quando era Ministro da Defesa, foram votadas na Câmara e no Senado sem audiências públicas, sem emendas, debates e por órgãos governamentais e a sociedade, integrando os pontos de vista político e voto simbólico”.
Octavio Amorim Neto afirma em seu trabalho que os líderes do Congresso deverão imprimir plena chancela parlamentar ao emprego das Forças Armadas em atividades intimamente relacionadas à defesa nacional. Para ele, “é absolutamente vital” que as lideranças democráticas do país comecem a pensar seriamente sobre a questão militar no pós-Bolsonaro, sob pena de termos que conviver com os fantasmas do pretorianismo por um longo tempo. “É ingenuidade ou desconhecimento da história achar que o encerramento dos mandatos de Bolsonaro e Mourão resolverá o problema”.
Merval Pereira: Os caminhos da Justiça
Bolsonaro sabe o que está em jogo, sabe o que pode sair dali. Sabe o que fez no passado, ele seus filhos, o Queiroz
O julgamento de ontem do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mostra como são difíceis, e muitas vezes tortuosos, os caminhos da Justiça. A transferência da primeira instância para o Órgão Especial do TJ da competência para julgar o caso de Flavio Bolsonaro, acusado de ser o chefe de uma quadrilha que cometeu peculato com o dinheiro público - a vulgarmente chamada “rachadinha”, quando um parlamentar fica com parte do salário dos funcionários de seu gabinete - beneficiou o filho do presidente por um lado, mas não anulou as provas já obtidas durante a fase em que a primeira instância cuidou do caso.
A defesa queria duas coisas: tirar o caso do juiz Itabaiana e anular todas as provas obtidas nas investigações. Teve vitória parcial, e se alguém foi beneficiado foi Flavio Bolsonaro, pois existe uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) de que quando o parlamentar perde o mandato, seu caso vai para a primeira instância.
A alegação de que Flavio Bolsonaro era deputado estadual quando cometeu o suposto crime, e por isso é beneficiado pelo foro privilegiado, é uma dessas interpretações distorcidas que, com os recursos, acabará sendo anulada no Supremo.
A decisão que limitou o foro privilegiado teve como relator o ministro Luis Roberto Barroso numa Ação Penal, que não produz efeito vinculante, o que quer dizer que não há obrigatoriedade de os desembargadores aderirem a ela, embora fosse recomendável.
No entanto, com a decisão de passar para a segunda instância, pela lógica todo o processo anterior deveria ter sido anulado, e o inquérito começaria da estaca zero, o que não aconteceu. Pode vir a acontecer quando a defesa de Flavio Bolsonaro recorrer ao Órgão Especial, órgão máximo do Tribunal de Justiça do Rio, formado por 25 desembargadores. Mas pode também o Órgão Especial considerar que a primeira instância é que é competente para julgar o caso, seguindo a jurisprudência do STF.
Isso tudo para dizer que Bolsonaro acusar o Judiciário de perseguir sua família por questões políticas não resiste a uma análise isenta. Desde a prisão do seu amigo Fabrício Queiroz, acusado de ter parte com às milícias e ser o coordenador da “rachadinha”, Bolsonaro está completamente diferente, a começar pela feição. Sua postura no vídeo da saída do Weintraub, no mesmo dia da prisão do Queiroz, mostra como está impactado com a notícia, que o envolve diretamente, porque seu amigo foi preso na casa de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaro.
Desde então, está calado, evita fazer aqueles mini comícios na saída do Alvorada, baixou a crista, como se diz de um energúmeno que se submeteu à realidade. Todos seus seguidores também reduziram muito os ataques, e com ele calado, o clima político mudou muito.
Bolsonaro não passa da retórica, nunca teve um gesto para unir as pessoas, sempre trabalha na desunião, na disputa política, na guerra. E todo dia tinha assunto novo, um ataque a alguém, a alguma instituição. Ao contrário, ontem amanheceu propondo novamente a união entre os Poderes. Esse estender de mão é consequência do impacto que foi para Bolsonaro pessoalmente a prisão do Queiroz.
Ele sabe o que está em jogo, sabe o que pode sair dali. Sabe o que fez no passado, ele, seus filhos, o Queiroz, ele sabe que os inquéritos no STF são fortes, está ficando cada vez mais claro que a interferência na Polícia Federal existiu, e que o interesse era evitar processos contra o filho Flavio senador e a prisão de Queiroz. Além do caso do impulsionamento de WhattsApp no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Só há dois problemas para esse novo acordo proposto: o primeiro é a pessoa do presidente, que não é nem controlável, nem confiável. Depois, a cabeça dele não vai mudar - a busca do poder sem limitações, de que o Executivo tem que comandar, que o Legislativo e o Judiciário o impedem de governar. Ninguém ganha espírito democrático tendo sido autoritário a vida inteira.
Qual é a solução para esse caso? Que Bolsonaro esqueça a tese de golpe, esqueça a tentativa de controlar outros Poderes, se adapte à democracia representativa, ao presidencialismo de coalizão e faça acordos com partidos políticos no Congresso dentro da legalidade. Mas entendendo que isso não absolve o Queiroz, nem o Flavio, nem o Jair de nada do que fizeram.
Merval Pereira: O investigado
Como presidente, Bolsonaro não tem o direito de desrespeitar as leis, nem deveria ter sido poupado pelo governador Ibaneis de multa
A falta de noção do que seja público ou privado marca a gestão do presidente Bolsonaro e de muitos de seus assessores diretos, como aquele coronel que deu uma coletiva usando um broche na lapela com uma caveira cravada por um espada, símbolo do Comando das Forças Especiais do Exército. Ou de seu chefe, o ministro de facto da Saúde General Eduardo Pazuello que, ao identificar-se como militar da ativa, pontificou: “Cumpro ordens. Missão dada é missão cumprida”.
Foi assim que o uso da cloroquina foi estimulado no serviço público de saúde mesmo depois de não indicado por organizações médicas internacionais, ou o número de mortos pela pandemia foi manipulado.
A mais recente demonstração de que o presidente da República tem uma visão distorcida de sua autoridade está no anúncio de que a Advocacia-Geral da União (AGU) vai recorrer da decisão da Justiça Federal de exigir que Bolsonaro use máscara em espaços públicos no Distrito Federal, obedecendo a uma lei local. A alegação é “preservar a independência e a harmonia entre os Poderes".
Coloca-se assim o presidente acima dos demais cidadãos que residem no Distrito Federal, como se tivesse prerrogativas além das que lhe concede a situação temporária de ser presidente da República. Às vezes, não tem nem mesmo os mesmos direitos, como no caso em que a Justiça o obrigou a revelar seus exames médicos, a bem da informação completa ao público. Como presidente da República, Bolsonaro não tem o direito de desrespeitar as leis, nem deveria ter sido poupado pelo governador Ibaneis Rocha da multa a que todos os que circulam sem máscara na cidade estão sujeitos.
A decisão tem ainda uma exemplar demonstração do que deve ser uma República. Quem impetrou o pedido foi um advogado, em uma ação civil pública, e o juiz Renato Borelli definiu como “desrespeitoso” o ato de andar em público na pandemia sem proteção "colocando em risco a saúde de outras pessoas", expondo-as "à propagação de enfermidade que tem causado comoção nacional".
Por falar em comoção nacional, no dia em que o país alcançou o triste recorde de mais de 50 mil mortes, deixando para trás o Reino Unido e tornando-se potencial candidato a superar os Estados Unidos no número de mortes, o presidente Bolsonaro foi ao Rio para participar do funeral de um paraquedista que morrera durante um treinamento.
Morte que provocou justa comoção na comunidade militar da qual Bolsonaro faz parte, como ex-paraquedista do 8 Grupo de Artilharia de Campanha. Nenhum gesto institucional, porém, foi feito pelo presidente diante do morticínio provocado pela Covid-19.
Essa permanente exigência de singularidade diante da lei fez com que ele se recusasse, em tese, a entregar seu celular se requisitado pelo Supremo nas investigações sobre interferência na Polícia Federal, para proteger sua família e amigos ( leia-se Flavio, o filho, Queiroz, o amigo) em que aparece como investigado, não testemunha. É também nesse inquérito que surge agora um novo empecilho.
O ministro Celso de Mello, relator do inquérito do STF, está estudando se Bolsonaro pode responder às perguntas da Polícia Federal por escrito. Essa não deveria ser nem mesmo uma questão, pois o próprio ministro Celso de Mello já deixou claro que, no seu entendimento, essa prerrogativa se aplica somente quando essas autoridades ( presidente, vice-presidente, deputados e senadores) estiverem na condição de vítimas ou testemunhas, o que não é o caso de Bolsonaro.
O presidente da República é formalmente investigado no inquérito. “Com efeito, aqueles que figuram como investigados (inquérito) ou como réus (processo penal), em procedimentos instaurados ou em curso perante o Supremo Tribunal Federal, como perante qualquer outro Juízo, não dispõem da prerrogativa instituída pelo art. 221 do CPP, eis que essa norma legal – insista-se – somente se aplica às autoridades que ostentem a condição formal de testemunha ou de vítima”.
Nessa condição, deveria depor na sede da Policia Federal, como fez o ex-ministro Sergio Moro, outro investigado no inquérito. Provavelmente, para não criar atritos entre o Judiciário e o Executivo, a decisão deve ser um depoimento pessoal no local e hora em que o presidente escolher. Um detalhe insignificante aparentemente, mas é assim que as determinações legais e as instituições vão se apequenando diante do autoritarismo do líder temporário do Executivo. Bolsonaro já disse: Eu sou a Constituição”
Merval Pereira: Descarbonários
O próprio setor agropecuário terá que certificar a produção, assumir um compromisso de moratória de queimadas
O que o governo Bolsonaro acusava de “ecoterrorismo” acabou se concretizando. O aumento do desmatamento e a política de direitos humanos em relação aos povos indígenas provocaram carta de um grupo de investidores internacionais, que gere US$3,75 trilhões, a seis embaixadas brasileiras na Europa, além de Estados Unidos e Japão.
Nela, advertem que o que classificam de “desmantelamento” de políticas ambientais e de direitos humanos poderá levar empresas expostas a eventual desmatamento em suas operações no Brasil e cadeias de fornecedores a enfrentar dificuldade crescente para acessar os mercados internacionais.
Essa preocupação não é por desinformação, como quer o presidente Bolsonaro, mas pelo excesso de informações, pois como diz a presidente do partido Rede Sustentabilidade, Marina Silva, a mais importante líder ambientalista do país, “os satélites não mentem”.
Ela teme que a situação se agrave com a União Europeia se juntando aos Estados Unidos na questão ambiental com o democrata Joe Biden derrotando Trump nas próximas eleições presidenciais. Há poucos dias, Marina participou de um webinar organizado em parceria com a Climate Alliance, a Rainforest Foundation Norway e a Society for Threatened Peoples, com deputados do parlamento europeu Kathleen Van Brempt e Anna Cavazzini, representantes de povos indígenas e de ONGs dedicadas aos direitos humanos e ao clima, intitulado “Como a Europa pode apoiar o Brasil na atual crise humanitária e ambiental?”
Marina fez uma ressalva: “Nem todo setor produtivo pode ser colocado na mesma vala comum”. E nem o governo brasileiro representa hoje a maioria do povo. Na webinar, ela falou sobre a necessidade de ajuda internacional ao país, e ontem me detalhou a proposta.
Pela gravidade da situação, avalia que será preciso tomar “medidas de emergência”, e como o governo não merece confiança, esta tarefa terá que ser cumprida pelo próprio setor agropecuário: certificar a produção, assumir um compromisso de moratória de queimadas, um programa de baixo carbono e rastreabilidade, tudo com marcos temporais e supervisionado por um comitê de acompanhamento da sociedade civil.
Alfredo Sirkis, que foi coordenador da campanha presidencial de Marina Silva, marca essa luta ambiental com o lançamento de um novo livro, em versões ecologicamente corretas: e-book, audiobook e impressão sob encomenda. Um dos fundadores do Partido Verde brasileiro há 35 anos, depois de ter sido vereador, secretário municipal, deputado Federal, Alfredo Sirkis hoje preside o Centro Brasil do Clima, que representa a fundação do ex-vice-presidente dos Estados Unidos e Prêmio Nobel da Paz Al Gore.
“Descarbonário” é uma bela sacada semântica que relembra seu livro de memórias guerrilheiras “Os carbonários”, lançado há 40 anos, e sua crença atual, a necessidade de descarbonizar o planeta. A narrativa se encerra na última semana de 2018, quando entregou, na qualidade de secretário executivo do Forum Brasileiro de Mudança do Clima, ao então presidente Michel Temer, o documento “Mudanças Climáticas: riscos e oportunidades para o Brasil”.
Hoje, o antigo carbonário define-se como “centro radical” e rejeita cabalmente a esquerda autoritária, leninista ou populista, e a direita reacionária ou fascistoide”. Ele, que foi vereador e deputado federal ao lado de Jair Bolsonaro, considera que, por perceber que uma parte dos ambientalistas era de esquerda, “em sua sesquipedal desinformação, passou a catalogar a questão ambiental e climática na “caixinha” do comunismo e a se identificar com todo grupo de atividade devastadora que avalia como progresso: grilagem, garimpo ilegal, invasão de terras indígenas, poluição.”
Desenvolveu uma antipatia visceral “por uma causa cujos pioneiros, ironicamente, foram ilustres militares, como o marechal Candido Rondon, o major Francisco Archer ou o almirante Ibsen de Gusmão.
Para Alfredo Sirkis, é besteira frequentemente repetida dizer que a mudança climática ameaça o planeta. “Quem está seriamente ameaçado é o Homo sapiens habitante do planeta”, que pode ter “como sina a de outras espécies dominantes no passado, como os dinossauros”.
Merval Pereira: Um outro lado
Flávio Dino acha que, se a eleição fosse hoje, o centro político ganharia, diferentemente do que aconteceu na eleição que Bolsonaro venceu
A visão do governador do Maranhão, Flavio Dino, de que a eleição municipal pode se transformar, pelo menos nas capitais, num plebiscito sobre o governo Bolsonaro, sem necessariamente significar com isso que a esquerda possa ser considerada vencedora, mostra bem a abertura política de seu pensamento.
Ao falar ontem na live promovida pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) em uma grande concertação das lideranças nacionais a favor da democracia, mostrou-se respeitoso em relação ao ex-presidente José Sarney, principal líder político maranhense cujo grupo derrotou nas eleições de 2014 e 2018, depois de décadas de prevalência sarneysista no Estado.
O governador Flávio Dino colocou Sarney como presença certa na mesa de negociações, juntamente com outros ex-presidentes da República, dando a seu adversário político regional a dimensão nacional que tem e a que ele, Dino, pode ser alçado como expoente da nova esquerda nacional, que se desvincula da relação carnal com o PT que marcou a trajetória do PC do B até a eleição de 2018, quando apoiou Fernando Haddad.
O petismo, no entanto, não pretende abrir mão da parceria com o PC do B, mais especificamente de Flavio Dino, a quem o líder petista José Dirceu já atribui o papel de vice-presidente “numa chapa imbatível” com o petista governador da Bahia Rui Costa na cabeça da chapa, naturalmente.
Dino não renega o PT, e atribui a uma tática momentânea de Lula a recusa de fazer parte de uma grande aliança de forças de oposição a Bolsonaro. Mas deixa claro que a coligação automática com o PT não são favas contadas na eleição de 2022. Se a eleição fosse hoje, ele acha que o centro político ganharia, diferentemente do que aconteceu na eleição que Bolsonaro venceu.
Não se refere ao Centrão parlamentar, mas a um grupo heterogêneo, que representa a maioria hoje no país, que a esquerda deveria procurar para acordos eleitorais, pelo menos nos segundos turnos das eleições municipais este ano e, quem sabe, na de 2022.
Que, aliás, Dino não tem certeza se ocorrerão no prazo certo, e se ocorrerão. Não falou explicitamente, mas estava se referindo à possibilidade de um impeachment ou até mesmo da impugnação da chapa presidencial pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ele se disse “preocupado” com a situação política, e não menosprezou a força dos bolsonaristas, lembrando que esse radicalismo de direita tem raízes fortes no país. As relações externas do Brasil no governo Bolsonaro, por exemplo, ele considera desastrosas, fugindo à tradição de multilateralismo do Itamaraty.
Criticou a submissão aos Estados Unidos, inclusive abrindo mão de relações proveitosas com a China, nossa principal parceira comercial. Chamou atenção especialmente para nossas exportações agropecuárias, que estão prejudicadas pela questão ideológica, não apenas políticas, mas também ambientais.
O governador do Maranhão considera um erro grave dos militares (não todos, ressalva) colocarem-se como parte do governo Bolsonaro, pois, na sua visão, as Forças Armadas têm que estar fora de governos, como organizações de Estado e, por isso, permanentes, longe das disputas políticas. Muito mais quando a relação dos Bolsonaro com a milícia vai ficando evidente.
No plano econômico, definiu como equívocos ideológicos considerar que o Estado tem que ser o principal responsável por tudo, e também os que defendem que os mercados, por si sós, resolverão todos os problemas.
Numa visão muito próxima da social-democracia, Flávio Dino quer o investimento privado impulsionando o crescimento econômico, mas com o Estado direcionando esses investimentos com uma visão social.
Compreende o papel da livre iniciativa no capitalismo, e a considera indispensável, mas lembrou a importância do SUS na atual pandemia para dizer que, se não fosse a estrutura pública montada a partir da Constituição de 1988, teríamos tido muito mais problemas, pois o sistema privado de saúde não pode dedicar seus esforços prioritários onde não há lucro, como no caso dos leitos de UTI para tratamento da Covid 19.
Merval Pereira: Guerra fria
Gestos em direção ao STF feitos por Bolsonaro não têm o poder de paralisar as investigações que envolvem seu círculo íntimo
Os gestos do presidente Bolsonaro em direção ao Supremo Tribunal Federal (STF) têm pouca chance de reverter o relacionamento institucional entre os dois Poderes por uma razão simples: eles não têm o poder de paralisar as investigações que envolvem Bolsonaro ou seu círculo íntimo, e nem isso pode ser objeto de proposta de negociação. Seria ofensivo.
Espera-se uma reação menos biliosa por parte do presidente caso alguma decisão judicial nos próximos dias, o que não é improvável, mexa com seu humor. O que é classificado de “guerra fria institucional” pelos enviados especiais do Palácio do Planalto a São Paulo para uma conversa apaziguadora com o ministro do STF Alexandre de Moraes é, na verdade, a irresignação do presidente Bolsonaro com as decisões judiciais que lhe são desfavoráveis, o que não tem solução a ser pactuada.
Os enviados foram o ministro Jorge Oliveira, chefe do Gabinete Civil, o ministro da Justiça André Mendonça (ambos candidatos a vagas no Supremo) e José Levi, Advogado-Geral da União. Obviamente, não conversaram sobre investigações ou casos específicos, focando o diálogo na necessidade de acabar essa “guerra fria institucional”.
Ficou combinado que cada um exercerá suas funções sem agressões institucionais, mas o apaziguamento depende mais do presidente, que considera toda ação que atinja seus filhos ou seguidores parte de uma conspiração contra ele. Foi essa, aliás, a intenção de outro ministro do Supremo, Gilmar Mendes, ao conversar com o Comandante do Exército Edson Pujol. Mostrar que o STF apenas cumpre seu papel de guardião da Constituição
Os três emissários do Planalto fazem parte do grupo considerado dos que prezam a institucionalidade, e com a saída do ministro da Educação ,Abraham Weintraub, parecem prestigiados. Mas, com Bolsonaro, nunca se sabe. A expressão dele ao lado de Weintraub, que tomou a iniciativa de anunciar a própria saída, mostrava um homem claramente constrangido, e as possíveis razões disso são ruins para ele.
Se for devido à prisão, naquele mesmo dia, do Queiroz, têm-se a dimensão do estrago feito. Mas há outras especulações. Podia estar incomodado por ter que demitir Weintraub, ou insatisfeito por ter que dar, pela pressão das redes sociais, uma saída honrosa a ele, ou o prestígio virtual de Weintraub já o contraria.
Como Weintraub pretende assumir papel relevante nas redes sociais, ao lado do ideólogo de Virginia agora que estão juntos nos Estados Unidos, pode ser que o eventual atrito aumente. Mas esses problemas tornaram-se pequenos diante do que tem pela frente na Justiça.
O futuro presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, nega que tenha sido procurado por interlocutores do governo para uma tentativa de aproximação, que de resto acha desnecessária, pois considera a relação institucional entre os Poderes natural.
Mas os que conhecem o ministro Fux consideram difícil que ele recebesse o presidente e sua comitiva na visita extemporânea ao Supremo, como Bolsonaro fez com um grupo de empresários sem ter marcado previamente com o presidente Dias Toffoli. São espíritos distintos.
Toffoli mais propenso a tentar um pacto de governabilidade entre os três Poderes que foi implodido pelo estilo totalitário de Bolsonaro. Até mesmo pela experiência anterior, o futuro presidente Fux não repetiria o gesto, mesmo porque o presidente Bolsonaro entendeu o pacto como sinal de que o Judiciário e o Congresso não o incomodariam, o que se mostrou um ledo engano de sua parte.
Além de tudo, há um componente nessa equação de paz que não está sob controle: as milícias digitais, que o governo diz não controlar. Como as investigações estão caminhando na direção de exibir os coordenadores e os financiadores desses grupos, e o próprio presidente estimula as manifestações com motes antidemocráticos de fechamento do Congresso e do STF, ficará muito difícil desvincular o presidente e seu círculo íntimo dos agressores.
O recado que o presidente tem recebido dos contatos com ministros do Supremo pode ser resumido à resposta do ministro Luis Roberto Barroso a um interlocutor que o procurou para saber se o presidente tinha o que temer em relação ao inquérito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que preside. Disse Barroso: “Só se tiver feito alguma coisa errada”.
Merval Pereira: Malabarista chinês
Que a vaca foi para o brejo, ninguém duvida. A questão agora é calcular a distância do brejo e a velocidade da vaca
O silêncio eloquente do presidente Bolsonaro sobre a prisão de seu amigo de longuíssima data Fabrício Queiroz explicita a gravidade da situação. A depender do que os investigadores da Polícia Federal encontrarem nos celulares e documentos apreendidos em Atibaia, a situação pode levar a crise institucional a um desfecho que se prevê desde os primeiros escândalos do governo Bolsonaro.
O caminho para o impeachment parece ser inevitável, já está marcado no GPS político, só não se sabe a velocidade em que isso se dará. Que a vaca foi pro brejo, ninguém duvida. A questão agora é calcular a distância do brejo e a velocidade da vaca. O centrão é especialista nesses cálculos, e tudo indica que seus membros vão partir com mais sede ao pote para aproveitar o que resta do governo.
Engano achar que alguém compra o centrão. Só aluga, e sem multa rescisória. Foi assim com Dilma, quando a situação ficou insustentável do ponto de vista político e econômico. O governo Bolsonaro caminha para essa impossibilidade diante da tragédia econômica de uma queda do PIB de 10%, cuja recuperação exigirá um esforço nacional de anos seguidos, impossível de se obter em um governo beligerante e errático como o que temos, com um presidente incapaz de unir até mesmo os seus.
A partir da crise, após a reforma da Previdência, as demais reformas perderam o timing político, ainda mais em ano de eleição. A situação é tão difícil que nem mesmo as condições mínimas para implementar um novo pacote social existem. Os governantes anteriores ao PT já haviam criado diversos programas sociais, e a união de todos eles no Bolsa Família, sob o comando das prefeituras, foi uma jogada eleitoral proposta pelo então ministro Patrus Ananias, para substituir o fracassado Fome Zero, coordenado por Frei Betto, que tinha uma visão menos eleitoral e mais de ativismo político, uma tentativa de empoderar os líderes comunitários em substituição aos políticos locais.
O potencial dessa união de programas, que Ruth Cardoso preparava com o cadastro único e sem concessões políticas, alavancou o petismo, especialmente no Nordeste. Bolsonaro anseia agora criar o Renda Brasil, que seria o seu Bolsa Família ampliado, o que certamente daria uma alavancada em seu projeto político, mas a pandemia da Covid-19 estragou seus planos.
A distribuição da renda complementar de R$ 600,00 sustentou sua popularidade que começava a decrescer. Mas somente o Renda Brasil permanente pode lhe garantir a fidelidade desse eleitorado que não é dele. Mas a crise econômica dificilmente dará espaço para tal. Seria preciso um malabarista chinês para conseguir deixar no ar sem cair pratos tão diferentes no peso e no tamanho quanto centrão, acampamento 300 do Brasil, milicianos, rachadinha, economia liberal, democracia, militares, populismo. Bolsonaro é mais parecido com um rinoceronte em casa de louças.
Os apoios encarecem de um lado, e dão certo medo de outro. O risco ficou maior porque o presidente está fragilizado e a caminho de um impedimento. A investigação sobre Queiroz não vai parar no esquema de rachadinha, mas avançar para outras questões, como a relação com milicianos.
Após a prisão de Fabricio Queiroz, o presidente Bolsonaro está claramente na defensiva. Para se ter uma ideia das dificuldades, uma pergunta básica que não quer calar em Brasília: se Queiroz não estava sendo perseguido, por que estava escondido?
Um comentário povoa as investigações: quando foi encontrado, parecia estar em cárcere privado. Três inquéritos no Supremo Federal (STF) são direta ou indiretamente ligados a ele e agora as investigações sobre a ligação com Queiroz com sua família. Vai aparecer uma série de informações que formarão um quadro muito perigoso para qualquer pessoa, ainda mais para um presidente da República. O quebra-cabeça está ganhando forma, e nada ajuda Bolsonaro. Mesmo que não possa ser julgado por atos cometidos antes do mandato, as revelações que as investigações possam revelar vão deixa-lo enfraquecido politicamente, na popularidade e no apoio no centrão que, quando chega na beira da cova, não salta junto com o caixão
Merval Pereira: Os Bolsonaro
Situação fica muito mais complicada para a família, e o cerco vai se fechando em torno dos Bolsonaro
O “physique du rôle” do advogado Frederick Wassef o faria um ator indicado para filmes de gângster. Conheci-o fortuitamente num vôo de Brasília para o Rio, e a conversa começou com um mal-entendido. O cara que se sentou ao meu lado na primeira fila era espaçoso, correntes de ouro, e muito falante, não largava o celular, sem atender aos pedidos da aeromoça para desliga-lo, pois iriamos decolar.
Pedi então que o desligasse, pois estava colocando em risco os demais passageiros. Ele pediu desculpas, olhou para mim e perguntou: “Você é o Merval Pereira?”. Quando confirmei, ele abriu os braços: “Você ia brigar com um fã seu?”. Respondi rapidamente: “Brigar com você? Você é muito mais forte que eu. Só queria que o avião não caísse”.
Como não podia deixar de ser, começou a puxar conversa, bravateando sua relação íntima com os Bolsonaro. Queria dar uma entrevista à Globo. Nunca mais nos falamos, e passei a seguir suas peripécias apenas pelos jornais, até ontem, quando Fabricio Queiroz foi preso em sua casa em Atibaia.
Bonequinhos do mafioso Tony Montana, do filme Scarface , com roteiro de Oliver Stone, decorarem uma prateleira apoiando um cartaz a favor do AI-5, é só um detalhe a mais para significar ironicamente a relação mafiosa entre os dois e, por tabela, com os Bolsonaro. Não sei se os bonequinhos já faziam parte da decoração da casa, ou se Queiroz os levou para seu exílio dourado em Atibaia.
Mas, em qualquer caso, têm um simbolismo banal, mas muito expressivo. Contra as bravatas do presidente Bolsonaro, fatos. A ligação de Queiroz com o advogado Wassef, que se gaba de ser amigo íntimo do presidente e de seus filhos, só confirma os laços de juramento de sangue, bem ao estilo mafioso, que o une à família Bolsonaro.
Sumido há mais de ano, Queiroz sempre esteve sob a proteção dos Bolsonaro, na pessoa de Wassef, que volta e meia estava no Palácio da Alvorada dando conta dos processos em que atua em defesa dos membros do clã e, sabe-se agora, outras cositas más. Enquanto o país inteiro perguntava onde estava o Queiroz, os Bolsonaro sabiam perfeitamente. Esconder um fugitivo cujos crimes de que é acusado são ligados diretamente ao filho do presidente, envolvendo também o próprio Bolsonaro, que empregou em seu gabinete de deputado federal milicianos e seus parentes, alguns merecedores de homenagens como medalha de mérito, não é pouca coisa.
O “pacto de sangue que os une pode ser quebrado, principalmente se a mulher de Queiroz, contra quem há um mandado de prisão, vier se juntar a ele na cadeia. Várias mensagens de seu esconderijo, que, se sabe agora, nem tão clandestino era para a família Bolsonaro, foram enviadas por Queiroz, se dizendo abandonado.
Esse sentimento pode ser decisivo agora, que a polícia do governador João Doria, em parceria com o MInistério Público do Rio, encontrou-o em um sítio em Atibaia, no interior de São Paulo, local de outro sítio envolvido em caso político-criminal de nossa história recente.
Estão começando a surgir os fatos que tornam inócuas as bravatas de Bolsonaro. Já o eram anteriormente - como se diz, cão que ladra não morde -, pois ele sempre esbravejou, mas acabou acatando as ordens da Justiça. Com a prisão de Queiroz, a situação fica muito mais complicada para a família, e o cerco vai se fechando em torno dos Bolsonaro.
Os fatos, ao contrário, vão se clareando, mostrando que estava sendo protegido pelos Bolsonaro, e o advogado Wassef, figurinha fácil nos Palácios, era a ligação entre eles. A casa era um simulacro de escritório de advocacia, o que mostra a má fé do advogado, provavelmente para se valer da inviolabilidade garantida por lei para esse tipo de imóvel.
Wassef também mentia quando dizia publicamente não saber do paradeiro de Queiroz, enquanto o escondia há um ano em sua casa. Queiroz leva diretamente os Bolsonaro aos milicianos – que eles empregaram e condecoraram diversas vezes. Enquanto deputado, Bolsonaro deu medalha para o capitão Adriano, miliciano morto na Bahia recentemente. Queiroz empregou a mulher e a filha do miliciano no escritório dos Bolsonaro. Tinha até um serviço de vans em Rio das Pedras, tradicional reduto de milicianos do Rio. A rachadinha é apenas um dos problemas deles. É uma situação muito delicada, como nunca vimos antes, o envolvimento da família presidencial com criminosos, com milicianos.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello esclarece que não votou no mérito do habeas-corpus pedido em favor do ex-ministro Abraham Weintraub. Posicionou-se apenas pelo cabimento do habeas-corpus.
Merval Pereira: No rastro do dinheiro
Dificilmente será superada a crise entre o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF). Sobretudo porque não há nenhuma serventia em fazer acordo com os demais poderes da República, pois Bolsonaro acha que o Executivo tem que se sobrepor, e almeja que os outros se imbuam dessa secundariedade para que o deixem trabalhar sem limitações institucionais.
É seu entendimento autoritário do que seja democracia representativa. Vários acordos já foram feitos, pactos firmados, e Bolsonaro continua o mesmo, a ponto de o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, o mais empenhado nesse pacto de governabilidade, ter desabafado em sua mais recente manifestação, dizendo que não é mais possível aceitar “dubiedades” de Bolsonaro e Mourão.
Outra impossibilidade é o presidente renegar as atitudes insanas dos extremistas que o apoiam. Bolsonaro trata o pessoal do acampamento “300 do Brasil” como a sua base, e as operações da Polícia Federal contra eles, pedidas pelo Procurador-Geral da República Augusto Aras e aprovadas pelo ministro Alexandre de Moraes, são consideradas uma ação direta contra o governo, desnecessária já que os extremistas não são em grande número.
Essa leniência com esses malucos, mesmo que ainda não tenham passado da pirotecnia para atentados reais, só transmite a ideia de que eles têm a complacência do governo, que os considera seus aliados. Os blogueiros das fake news são “a mídia que eu tenho”, confessa Bolsonaro, tornando crível o financiamento oficial dessa máquina de destruir reputações.
O lado do presidente e sua trupe já está determinado por gestos e, principalmente, pela falta de crítica aos ataques ao Supremo Tribunal Federal e ao Congresso. O autoritarismo que esses comportamentos revelam, porém, não passam despercebidos pelos ministros do Supremo, especialmente quando a crítica passa também a ser pessoal, e não apenas às decisões de seus ministros, em termos apropriados a uma relação civilizada. Não é o caso do ataque desclassificado ao decano da Corte, ministro Celso de Mello, por um abaixo assinado de militares da reserva e poucos e desconhecidos civis. Nem dos ataques e ameaças pessoais que esses grupos fazem abertamente pela internet, sem receio de pagar por seus crimes por se sentirem respaldados.
Foi esse estado de coisas que fez com que Celso de Mello, na reunião ontem da segunda Turma do STF, se pronunciasse: “É inconcebível que ainda sobreviva no íntimo do aparelho de Estado brasileiro o resíduo de forte autoritarismo, que insiste em proclamar que poderá desrespeitar, segundo sua própria vontade arbitrária, decisões judiciais”.
Chamando a Suprema Corte de “a sentinela das liberdades”, Celso de Mello disse que é preciso resistir com armas da lei “(…) porque sem juízes independentes, jamais haverá cidadãos livres neste país”.
O comentário foi em resposta à ministra Carmem Lucia, presidente da Segunda Turma, que abriu a sessão com uma defesa da democracia, afirmando: “Somos nós, juízes constitucionais, a quem incumbe o dever de, em última instância judicial, não deixar que o Estado Democrático de Direito se perca, porque todos perderão. Atentados contra instituição, contra juízes e contra cidadãos que pensam diferente volta-se contra todos, contra o país”.
O objetivo do inquérito do STF é conter a propagação de fake news, e os ataques e ameaças aos ministros. É claro para todos que Bolsonaro tem apoio das chamadas milícias digitais. Ele próprio já disse que eles “são a mídia que eu tenho”. Jamais abriu a boca para criticá-los – até para o ministro Weintraub, que disse e repetiu que os vagabundos do Supremo deveriam ir pra cadeia, está procurando uma saída honrosa.
As investigações do STF descobrirão quem financia esses movimentos e se, como tudo indica, já estavam organizados antes da eleição e ajudaram ilegalmente a campanha de Bolsonaro e Mourão. Se ficar provada a conexão dos mesmos grupos durante a campanha, é financiamento ilegal. É um caixa 2 duplamente ilegal, porque agora o dinheiro privado é proibido por fora e por dentro nas campanhas.
Não adianta dizer que não admite julgamentos políticos, como se uma decisão contrária fosse política, e a favor, “justa”. Não há outra alternativa dentro da legalidade a não ser aceitar decisões dos tribunais superiores. Como disse o ministro Luis Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a um interlocutor de Bolsonaro que lhe perguntou se o presidente tinha motivos para se preocupar com o julgamento: “ Só se tiver feito alguma coisa errada”.