Merval Pereira
Merval Pereira: Vivandeiras
Bolsonaro foi enquadrado dentro das limitações constitucionais que ele rejeita, mas às quais teve que se submeter
A oficialização da ida para a reserva do General de Exército Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, publicada ontem, deixou o ministro interino da Saúde General de Divisão Eduardo Pazuello como único oficial-general da ativa no primeiro escalão do governo Bolsonaro. A crise, que já está sendo superada, devido à crítica contundente do ministro do STF Gilmar Mendes à ação do ministério da Saúde durante a pandemia, acabou envolvendo o Exército como instituição.
A saída de Ramos coloca mais pressão no debate sobre a presença de militares no governo, ainda mais porque Pazuello, como oficial de intendência já chegou ao topo de sua carreira militar, e não tem razão, a não ser as de coração, para continuar na ativa.
Pazuello só pode chegar a 3 estrelas, saindo ou ficando no ministério, porque ele é um general de intendência. Somente os oficiais de uma classificação chamada "armas combatentes" podem chegar a General de Exército, são de 4 estrelas. Ao todo são 16 Generais de Exército que formam o Alto Comando, chefiado pelo Comandante de Exército.
Pazuello formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras como Oficial de Intendência, e tem assumido postos importantes, ligados à sua especialidade, a logística. O general coordenou as tropas do Exército nas Olimpíadas do Rio em 2016 e a Operação Acolhida, que cuida de refugiados da Venezuela em Roraima, onde já havia sido Secretário de Fazenda no período em que houve uma intervenção militar no Estado.
O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, na entrevista que deu ao J10 da Globonews, deixou bem claras as diversas etapas de preparação dos oficiais do Exército, lembrando que o presidente Bolsonaro ficou menos tempo no Exército do que está na política, fazendo as etapas de preparação física, sem chegar à preparação cultural dos oficiais.
Essas diferenças de preparação e dedicação características da carreira militar é que causam desconforto por um militar da ativa estar atuando num posto civil, que tem uma carga política irrecorrível. O General Pazuello, por exemplo, é classificado como “político” na Wikipedia, e o General Mourão lembrou que só no Governo Castello Branco, ficou definida essa separação entre a atividade militar e a civil, justamente para não permitir a mistura da política dentro dos quartéis.
Castello Branco falava dos políticos que andavam atrás dos militares: “Como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”. O presidente Bolsonaro, considerado pelo General Geisel “mau soldado” devido às atividades de caráter sindicalista que exercia quando estava na ativa, tendo sido acusado por uma tentativa de ação terrorista para reivindicar aumento salarial, agiu como “vivandeira” durante este primeiro ano e meio de governo, chegando a ir às portas do Quartel-General do Exército em Brasília para participar de uma manifestação que pedia a intervenção militar no país.
Foi baseado nesse pretenso apoio dos militares que Bolsonaro berrou literalmente diante das câmeras um “basta” ao Supremo Tribunal Federal (STF) que parecia um ultimato. As manifestações a favor da intervenção militar usavam uma interpretação do artigo 42 da Constituição brasileira para legitimar suas reivindicações, e foi preciso manifestação do STF para deixar claro que qualquer intervenção desse tipo seria um golpe militar, não apoiado pela Constituição.
Ninguém mudou de voto ou posição por causa desse arreganho presidencial, e as instituições democráticas foram dando conta de acalma-lo. À medida que os fatos se sucediam e as ameaças de Bolsonaro se esvaziavam diante da realidade de que as instituições republicanas bloqueavam tentativas golpistas, o presidente Bolsonaro foi enquadrado dentro das limitações constitucionais que ele rejeita, mas às quais teve que se submeter.
Inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Tribunal Superior de Justiça (TSE) mostraram na prática que ninguém está acima das leis, e as investigações sobre a “rachadinha” do hoje senador Flavio Bolsonaro resistiram às tentativas de interferência na Polícia Federal e seguem seu curso, com disputas judiciais que, embora sujeitas a interferências políticas, são acompanhadas pela opinião pública e denunciadas quando surgem indícios de desvios.
Merval Pereira: Caiu a ficha
Governo está mandando sinais positivos diante das críticas, que anteriormente eram respondidas com grosserias e atitudes arrogantes
O vice-presidente Hamilton Mourão define sua presença à frente do Conselho da Amazônia como demonstração da preocupação do governo com o meio-ambiente.
Como ele também diz que pretende deixar até 2022 um sistema que reduza o desmatamento e as queimadas na região, é sinal de que caiu enfim a ficha do governo Bolsonaro, mesmo que o presidente ou seu (ainda) ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles não tenham mudado de ideia sobre o tema.
Acredito que não haja mais espaço para Salles neste momento do governo, em que o presidente Bolsonaro se curva às pressões internacionais dos investidores, à opinião pública nacional e internacional. A indicação do vice-presidente Hamilton Mourão para a Comissão da Amazônia mostra que o ministro não é a pessoa correta para estar na posição neste momento.
Mesmo que ambientalistas continuem achando a visão do governo restrita e inadequada, o fato é que ele está mandando sinais positivos diante das críticas, que anteriormente era respondidas com grosserias e atitudes arrogantes.
Nos depoimentos no Congresso, e nas entrevistas que deu à Globonews no J10 e ontem depois da segunda reunião do Conselho da Amazônia, Mourão disse claramente que o presidente mudou de posição, entendeu que não dá para não preservar a Amazônia e para não fazer uma política sustentável de meio ambiente.
Ricardo Salles fez o que o mandaram fazer, que coincide com o que ele pensa, só que agora essa política ambiental anacrônica já está atingindo a economia brasileira e a imagem do Brasil no mundo. O vice-presidente Mourão dá uma dimensão maior ao Conselho da Amazônia, que coordena as ações de vários ministérios na região. Mudou a situação do mundo e o governo está tentando se adaptar à realidade, assim como já está fazendo também na relação com os poderes Legislativo e Judiciário.
Mourão disse no Senado que o comitê do Fundo Amazônia responsável por aprovar novos projetos, extinto por Ricardo Salles em meados de 2019, voltará assim que houver “luz verde” de Noruega e Alemanha, países doadores do Fundo. A estrutura será a mesma de antes, com 27 membros, e o comitê terá um “caráter estratégico” para definir os projetos prioritários. As questões ambientais “não têm coloração ideológica”, para Mourão, para quem “(…) nós somos Partido Verde pra todo mundo”.
Na reunião no Senado, Hamilton Mourão disse que operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) não podem ser a única opção para combater desmatamento e queimadas na Amazônia, mas admitiu que os militares podem ficar na região até 2022.
Pragmático, e demonstrando uma posição bem menos inflexível do que as autoridades da área adotavam, encorajadas pelo presidente Bolsonaro, Mourão já trabalha com uma possível vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, que aumentaria as pressões sobre o Brasil nas questões ambiental, indígena, de segurança pública.
O governo de Trump, que é o grande sustentáculo da política agressiva e retrógrada de Bolsonaro, sairia de cena, dando lugar a um seu antípoda, por conseguinte também do governante brasileiro. Para o vice-presidente, as relações do Brasil com os Estados Unidos devem mantidas “independentemente do governante”, pela posição americana "como líder do mundo ocidental”.
Foi na entrevista do J10, porém, que o vice-presidente aprofundou mais suas posições sobre temas atuais e polêmicos. Sobre o combate à Covid-19, foi claro: “Ter mais de 70 mil pessoas que já foram a óbito, você não pode ficar batendo palmas para isso e achar que é normal”. Ao mesmo tempo em que tratou de esfriar a polêmica em torno da palavra “genocídio” usada pelo ministro do Supremo Gilmar Mendes para criticar a política de saúde pública durante a pandemia, Mourão também defendeu a posição do presidente Bolsonaro.
Para ele, o presidente fez o que achou melhor dentro do seu ponto de vista, pode ter errado de acordo com os críticos, “mas tudo o que fez foi com a intenção positiva”. O vice-presidente, que é General da reserva, foi direto sobre a presença de militares, alguns da ativa, no governo Bolsonaro: “Não queremos trazer as Forças Armadas para dentro do governo. Não queremos a política indo para dentro dos quartéis e a discussão ‘eu apoio o presidente’, ‘eu sou contra o presidente'”.
Merval Pereira: Mudo, mas agindo
Bolsonaro continua a pôr o pensamento conservador mais retrógrado como essencial para escolher ministros
A mudez de Bolsonaro está inquietando a ala mais radical de seu governo, que se ressente dos embates diários patrocinados pelo presidente. Já há críticas ao que seria seu novo perfil, e o que se depreende disso é que esse grupo, majoritário nas redes sociais, contenta-se com barulho e confusão e nem nota que Bolsonaro continua a colocar sua ideologia e o pensamento conservador mais retrógrado como elementos essenciais para escolher ministros em várias áreas que considera urgente serem desparelhadas da esquerda.
Por isso o critério usado para a escolha está completamente em desacordo com o que o país precisa. A secretaria de Cultura, por exemplo, faz parte do ministério do Turismo, uma maneira de despreza-la. Tem um secretário – o quarto - escolhido apenas porque é bolsonarista de carteirinha, sem nenhuma relevância e experiência em gestão.
Na verdade, querem aparelhar a cultura e a educação com uma posição reacionária radical. Bolsonaro calado não chega a ser um poeta, mas não significa, porém, que seja outra pessoa, nem que tenha mudado de posição. Talvez tenha aprendido que criar tumulto só dificultava suas ações e expunha o governo a críticas permanentes.
O novo ministro da Educação, um pastor evangélico, pode ser considerado a Damares do setor. Já apagou vídeos onde defende que a mulher tem que obedecer ao marido, e que criança precisa sofrer para ser educada. É o tipo de pensamento retrógrado que vai se refletir nos programas educacionais do país.
O governo Bolsonaro não é uma solução contra o PT e a esquerda, é mais um problema, com sinal trocado. Seu recato deve-se à situação periclitante em que se encontra com seus filhos, todos cercados por inquéritos e processos que têm como desaguadouro final o Supremo Tribunal Federal (STF).
Bolsonaro não se manifestou sobre as declarações de Gilmar Mendes sobre o “genocídio” que tanto irritou os militares. O ministro é o relator da ação no STF do senador Flavio Bolsonaro para que seu foro privilegiado seja mantido. Mas também os militares não defenderam o governo Bolsonaro da acusação de genocídio.
Essa é uma briga que não vai muito longe, as partes em litígio estão dispostas a não agravar a situação. Mas existe uma tendência mundial de ver nas políticas do governo brasileiro de combate à Covid-19 uma atitude insensata contra as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma percepção de que o negacionismo de Bolsonaro provoca mortes. Também existe uma campanha internacional contra a politica indigenista brasileira, não poucas vezes classificada de “genocídio”.
A CNBB, referindo-se aos vetos presidenciais ao “Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos Territórios Indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais” diz que são “eticamente injustificáveis e desumanos, pois negam direitos e garantias fundamentais à vida dos povos tradicionais, como por exemplo o acesso a água potável e segura, (…) um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos”.
Ao abolir a obrigação de acesso à água potável e material de higiene, de oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, bem como outros aspectos previstos no projeto de lei aprovado pelo Congresso, como alimentação e auxílio emergencial, “os vetos violam o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1o, inc. III), do direito à vida (CF, art. 5o, caput), da saúde (CF, arts. 6o e 196) e dos povos indígenas a viver em seu território, de acordo com suas culturas e tradições (CF, art. 231)”.
Essa discussão vai ser diluída para dar lugar a uma mais ampla, sobre a necessidade de se ter um ministro da Saúde que possa fazer uma política que proteja mais a vida do cidadão. O próprio Exército está incomodado com o fato de um general da ativa estar à frente do ministério sem ser especialista. O problema é achar um médico com currículo respeitável e reconhecido no meio que aceite as teses do presidente, como receitar cloroquina como remédio para o SUS.
Merval Pereira: Crítica a Bolsonaro, não aos militares
É inegável que os erros cometidos no combate à pandemia atingem a imagem do Exército
Quem deveria estar processando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes por tê-lo acusado de genocídio era o presidente Jair Bolsonaro, não as Forças Armadas. Quando disse que o Exército se associou ao genocídio, em crítica à maneira como o governo vem tratando da pandemia do Covid-19, o ministro alega que estava justamente alertando que os malefícios das decisões governamentais cairiam inevitavelmente na conta dos militares, pois estamos, há meses, na maior crise sanitária já registrada no século, sem ministro da Saúde.
A pasta está sendo comandada por um General de Brigada da ativa, Eduardo Pazuello, e é inegável que os erros cometidos atingem a imagem do Exército. O debate sobre genocídio tem cunho político, apesar de existirem queixas em tribunal internacional acusando o presidente Bolsonaro de genocídio contra os povos indígenas muito antes da pandemia, pela política de fim da demarcação das reservas e permissão para garimpo em terras indígenas.
Com a Covid-19, justamente devido à falta de proteção durante a pandemia, essas acusações foram reforçadas. Há também acusações de crimes contra a humanidade devido às políticas de combate à Covid-19 contrárias às orientações da Organização Mundial de Saúde. O próprio ministro Gilmar Mendes já teve conversas pessoais com o presidente Bolsonaro advertindo-o de que a política de meio ambiente coloca o Brasil em posição fragilizada na Europa, e alcança ainda a política indigenista brasileira, que é classificada por ONGs e organismos internacionais de genocida.
Em uma dessas conversas, Gilmar Mendes chegou a lembrar que o caminho está aberto para uma denúncia no Tribunal Penal Internacional, em Haia. O ministro Gilmar Mendes preocupa-se com a imagem do Brasil na Europa, onde se encontra no momento. “Brasil se tornou tóxico”, lamenta.
Sua crítica ecoou um sentimento que existe nas Forças Armadas, de que militares da ativa não deveriam ocupar postos civis, e por isso o General Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, anunciou que foi para a reserva este mês.
A crítica do ministro tem o mesmo sentido das que advertiam os militares palacianos de que não deveriam avalizar as manifestações antidemocráticas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo. Sobrevoar as manifestações de helicóptero junto ao presidente Bolsonaro, como fez o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, passa a ideia errônea de que estava ali apoiando uma manifestação política, o que não poderia fazer.
Na live em que fez essa crítica que levou as Forças Armadas a uma representação junto à Procuradoria-Geral da República, o ministro Gilmar Mendes ouviu o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta fazer duras acusações ao desmonte do ministério da Saúde, citando que já estão alocados lá mais de 20 militares, que substituíram os quadros técnicos que estavam à frente das ações contra a pandemia.
Os ministros militares e o da Defesa tiveram a anuência do presidente Bolsonaro para fazer a representação contra o ministro do STF, e esta crise representa mais um passo na confrontação do governo Bolsonaro com o Judiciário.
O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, já provocara a irritação dos militares, e do próprio Bolsonaro, ao comparar o período que vivemos no governo Bolsonaro, sem citá-lo diretamente, àquele em que Hitler destruiu a ordem democrática da Constituição de Weimar.
Esse confronto teve seu ponto alto quando o STF decidiu que governadores e prefeitos têm autonomia para definir suas políticas contra a Covid-19. Com isso, o presidente Bolsonaro perdeu a capacidade de impor suas ideias de como combater a pandemia, especialmente o uso da cloroquina e seus derivados, e a abertura mais rápida da economia.
A presença de um general da ativa à frente do ministério da Saúde seria, na percepção de Gilmar Mendes, uma maneira de Bolsonaro usar as Forças Armadas como um escudo para suas decisões que se tornaram exemplares de como não agir no momento da maior crise de saúde pública que já tivemos.
Merval Pereira: O Tempo da Ciência
É preciso reverter o processo de desindustrialização do Brasil e recuperar os laboratórios da instituições de pesquisa
Convidei o presidente da Academia Brasileira de Ciências, o físico Luis Davidovich, professor titular da UFRJ, a utilizar a coluna para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico. Ninguém melhor do que ele para ressaltar a importância da ciência, especialmente nos dias de pandemia que atravessamos.
“A crise global provocada pela COVID-19 tem dado à ciência um papel de destaque, associado à esperança de que surja um remédio ou vacina que mitigue os efeitos da pandemia. Coloca em evidência, também, o amplo desconhecimento sobre os métodos e o tempo da ciência. O medo da doença transforma-se em pânico diante do inimigo invisível e estimula o consumo de medicamentos ineficazes ou ainda não suficientemente testados. Setores da sociedade recusam-se a aceitar as recomendações da ciência, acusando-a de ser permeada de críticas internas e de constantemente modificar conceitos anteriores, o que é exatamente sua característica intrínseca, fonte da sua força e da sua evolução.
A ciência avança através do debate constante, de perguntas e hipóteses bem definidas e do cuidadoso exame dos métodos utilizados. Ela não apregoa uma verdade atemporal, pois isso iria contra sua grande motivação: a busca da verdade. Ao enfrentar desafios, como a atual pandemia ou a física do microcosmo, usa o conhecimento anterior, revê conceitos e produz novas ideias. Que podem demandar tempo para serem aplicadas: os pioneiros da física quântica, no início do século 20, não tinham ideia das aplicações revolucionárias que viriam nas décadas seguintes: o laser, os chips de computadores, os aparelhos de ressonância magnética nos hospitais, o GPS.
Se o tempo para produzir e testar uma vacina é cerca de um ano e meio, que parece infinito diante do avanço da pandemia e dos prejuízos à economia, o tempo para construir uma sólida base cientifica é bem maior. As pesquisas na área da saúde no Brasil vêm de longe, da criação da Fiocruz em 1900 e do Instituto Butantan em 1901. A formação continuada de pessoal qualificado, desde então, permitiu que o Brasil assumisse liderança internacional nas pesquisas sobre a Zika e que tivesse a infraestrutura para testar vacinas contra a COVID-19. A fundação, em 1887, do Instituto Agronômico de Campinas, foi um primeiro passo para a criação, em 1927, da Embrapa, que através de suas pesquisas revoluciona a agropecuária nacional. Ao longo de décadas, consolida-se também o pensamento na área de ciências humanas e sociais, permitindo entender melhor e buscar soluções para um país que padece de forte desigualdade, obstáculo ao seu pleno desenvolvimento.
A institucionalização da ciência brasileira ocorre no pós-guerra, com a criação do CNPq e da CAPES, em 1951, da FINEP, em 1967 e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), em 1969. Iniciativas visionárias, pois estruturam a pós-graduação nacional, fomentam projetos importantes em centros de pesquisa, universidades e indústrias, apoiados pelo FNDCT, e formam, com bolsas do CNPq e da CAPES, pesquisadores, engenheiros e profissionais da saúde, que contribuem para o avanço do conhecimento e a economia do país.
Esse notável arcabouço, iniciado no final do século 19, permite agora buscar soluções para a atual crise sanitária, social e econômica, que pega a ciência e a indústria no contrapé. É preciso reverter o processo de desindustrialização do Brasil e recuperar os laboratórios das instituições de pesquisa, prejudicados por sucessivos cortes orçamentários. E enfrentar novos desafios, que mudem o perfil da economia brasileira, como o uso sustentável da biodiversidade para insumos de um complexo industrial da saúde. O FNDCT é um instrumento valioso para a reconstrução do país, mas seus recursos, contingenciados neste ano em mais de 85%, precisam ser liberados.
No pós-guerra, investimentos na ciência e na indústria foram fundamentais para o desenvolvimento nacional. É hora de repensar o país e planejar, com ousadia e criatividade, o pós-pandemia. Que terá que ser, mais que nunca, no Brasil como no mundo, o tempo da ciência”.
Merval Pereira: Caso exemplar
Sistema de escolha dos ministros do STF pode ser deturpado , assim como o do procurador-geral da República
O habeas-corpus dado pelo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) João Otavio Noronha ao Queiroz, amigo dos Bolsonaro, e à sua mulher, foragida da Justiça, não foi surpresa para ninguém, apesar de ele já ter recusado nada menos que sete habeas-corpus anteriormente para presos que argumentavam com o perigo de se contaminarem com a Covid-19, razão alegada para conceder a graça a Queiroz.
Já era consabido que ele está empenhado em se colocar para o presidente Bolsonaro como alternativa confiável à vaga no Supremo Tribunal Federal que se abre em novembro com a aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello.
Antes, depois que Noronha derrubou uma decisão que obrigava Bolsonaro a apresentar seus exames médicos, o presidente elogiou Noronha em discurso, dizendo que tinha sido “um amor à primeira vista”.
As freqüentes decisões a favor do presidente, a dos exames acabou derrotada no STF, e o habeas-corpus de Queiroz, que causou incômodo entre seus pares, pode ser derrubada pelo relator Felix Fischer, têm uma razão de ser. João Otávio Noronha fará 65 anos em agosto do ano que vem, idade máxima para ser indicado para o Supremo.
Portanto, a próxima vaga é a chance que tem de ser indicado, pois o ministro Marco Aurélio se aposenta só em agosto de 2021. Já houve um caso em que o ministro tomou posse dias antes de fazer 65 anos, mas foi preciso um malabarismo para realizar o sonho.
Carlos Alberto Direito também provinha do STJ e precisou que o ministro Sepulveda Pertence antecipasse a aposentadoria para que pudesse tomar posse antes de fazer 65 anos, o que aconteceu a 5 de setembro de 2007, três dias antes da data fatal.
O caso de João Otavio Noronha é exemplar de como o sistema de escolha dos ministros do STF pode ser deturpado, assim como o do Procurador-Geral da República Augusto Aras, outro que disputa uma vaga no STF. Por isso há diversas propostas de mudanças, desde a fixação de um mandato para os ministros, até a maneira de escolha.
Há um projeto já em discussão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado que propõe não apenas um mandato de 10 anos como que o presidente escolha o novo ministro através de uma lista tríplice com nomes indicados pelo STF, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Procuradoria-Geral da República.
Embora muitos considerem que é preciso alterar os critérios da escolha e o período da atuação dos ministros no STF – atualmente há uma idade limite de 70 anos -, na opinião do advogado e professor Álvaro Palma de Jorge, co-fundador da FGV Direito-Rio, que acaba de publicar o livro “Supremo interesse, a evolução do processo de escolha dos ministros do STF”, temos desenvolvido bem esse processo, que é semelhante ao da Suprema Corte dos Estados Unidos, com a diferença de que lá o mandato é vitalício.
O autor faz um balanço da evolução do sistema, e adverte que os Estados Unidos levaram um século para chegar ao sistema de sabatina no Senado “ao atual estágio de complexidade”. Ele vê uma transformação saudável no nosso sistema de escolha, com a “paulatina inclusão informal da participação popular nesse processo”.
Para Álvaro Palma Jorge, o papel do Senado tem se aprimorado nas sabatinas recentes, justamente porque o Supremo é hoje “protagonista da vida jurídica, cultural, econômica, política e regulatória nacional”. Além do mais, o Senado já não desempenha mais sozinho o escrutínio dos indicados ao Supremo: “Tem junto consigo o cidadão, que pergunta, sugere, critica. Tem junto a academia, que analisa e oferece sugestões.Tem junto a pressão de entidades de direitos humanos. Tem defensores e críticos do nome indicado. Tem a imprensa. Tudo como deve ser”.
Assim como nos Estados Unidos, aqui também as mudanças eleitorais se traduzem em mudanças de jurisprudência, embora com uma freqüência às vezes indesejável no nosso caso, pois a rotatividade do nosso sistema é maior.
Por isso o presidente Bolsonaro quer garantir vagas para ministros conservadores, um pelo menos “terrivelmente evangélico”, na tentativa de alterar decisões da maioria progressista que domina hoje o STF. É impossível, porém, garantir o voto de um ministro que tem garantias de independência, inamovibilidade, irredutibilidade de salários. O próprio mensalão, e depois o petrolão, mostraram, inúmeras vezes, que os ministros e as ministras do STF podem, com suas decisões, surpreender e até desagradar a quem os indicou.
Merval Pereira: Gabinete do ódio
A decisão do Facebook confirmou que ações ilegais são cometidas dentro do Palácio do Planalto
O “gabinete do ódio”, que durante anos foi dado por bolsonaristas como uma fake news, materializou-se ontem, como nomes e datas, na ação internacional do Facebook que tirou do ar uma rede composta por 88 contas, páginas e grupos que atuavam em conjunto no Facebook e também no Instagram, empresas do mesmo grupo, todos com ligações com o presidente Bolsonaro, seus filhos, e políticos aliados.
A decisão do Facebook confirmou que ações ilegais são cometidas dentro do Palácio do Planalto, com um grupo de assessores pagos para disseminar notícias falsas. Um dos objetivos do Facebook é tentar mudar a imagem da companhia, percebida por parte de anunciantes importantes e da sociedade internacional como veículo conivente com a difusão de mentiras e campanhas de ódio.
Vários dos implicados, nominados pela investigação do Digital Forensic Research Lab, são assessores especiais do presidente Jair Bolsonaro e têm gabinete perto do presidente. Outros são assessores, ou ligados a Carlos e Flavio Bolsonaro.
A confirmação da atuação do grupo, que já era reconhecida nos meios políticos e está sendo investigado pela CPI das Fake News na Câmara e por um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre mensagens antidemocráticas e ameaças a ministros da Corte, pode ter desdobramentos em outro inquérito, no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
As informações colhidas pela CPI e pelo Supremo podem ser compartilhadas no TSE num dos inquéritos contra a chapa Bolsonaro-Mourão, que apura o impulsionamento de mensagens falsas pelo WhattsApp durante a campanha eleitoral. Como o WhattsApp é também do grupo dirigido por Mark Zuckerberg, é provável que essa varredura também seja feita para banir do aplicativo de mensagens as contas falsas, os robôs e os impulsionamentos em massa, proibidos tanto pela legislação eleitoral brasileira quanto pelas normas do aplicativo.
Contas da presidente do PT, Gleisi Hoffman, no WhattsApp, usadas para distribuir mensagens políticas em massa, foram desativadas pelo WhatsApp justamente porque ela utilizava impulsionamentos ilegais para essa atividade política. Ela contratou com o dinheiro partidário uma empresa especializada em impulsionamentos em massa pelo WhattsApp, mas não foi acusada de disseminar fake news.
A investigação encomendada pelo Facebook revelou que esse grupo de bolsonaristas foi formado em 2018, o que leva a crer que atuaram durante a campanha presidencial. O inquérito das fake news do Supremo, cujo relator é o ministro Alexandre de Moraes, pediu a quebra de sigilo bancário e telefônico de diversos investigados a partir de 2018, justamente para abranger o período da campanha eleitoral.
O cruzamento dessas informações provavelmente dará indicações da atuação desse grupo que ficou conhecido como componentes do “gabinete do ódio”, e pode comprovar que a campanha bolsonarista utilizou os novos meios de comunicação para difundir notícias falsas contra seus adversários.
Além de ter utilizado impulsionamentos de mensagens através de artifícios como robôs ou contas-fantasmas para burlar a fiscalização. O avanço das investigações, tanto internamente quanto no exterior, levou a protestos de seguidores de Bolsonaro, e o deputado federal Otoni de Paula, a propósito da prisão do blogueiro Oswaldo Eustáquio, chamou o ministro do Supremo de “esgoto do STF” e “canalha”, entre outras ofensas.
Reações como essas, espalhadas pelas redes sociais, apenas confirmam a índole desses seguidores de Bolsonaro que estão sob investigação. O cerco está se fechando em diversas instâncias, e os grupos que espalham fake news pelos novos meios estão sob escrutínio dos órgãos de fiscalização.
O caráter odiento da política bolsonarista está sendo contido pelas instituições brasileiras e pela exigência internacional de uma democracia responsável e ética. Assim como os anunciantes do Facebook, os investidores internacionais também pressionam os países a seguirem uma política humanista em relação às minorias, como os indígenas, e ao meio-ambiente. No mundo pós-pandemia, talvez uma possível derrota de Donald Trump nos Estados Unidos reduza o espaço para os radicalismos.
Merval Pereira: Menor que a cadeira
Momento seria oportunidade de ouro para Bolsonaro se redimir de sua atuação pífia diante da pandemia
O anúncio de que o presidente Bolsonaro foi infectado pela Covid-19 traz em si mesmo diversas facetas dele: irresponsabilidade, falta de compaixão, negação da gravidade da pandemia, desdém indicando falta de entendimento do que seja a presidência do Brasil.
Não apenas aproveitou a ocasião para reafirmar a indicação de cloroquina e seus derivados para tratamento da doença, como fez um vídeo em tom amolecado tomando o remédio e sugerindo-o para a população que precisar. Parecia um verdadeiro garoto propaganda do remédio, cuja fabricação obrigou o Laboratório do Exército a aumentar, além dos milhões de comprimidos que recebeu como “doação” dos Estados Unidos depois que o FDA proibiu sua utilização.
A gravidade do comportamento é que o uso da cloroquina já foi desaconselhado por estudos de diversos países, e organismos com credibilidade como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Federal Drug Administration (FDA), agência regulatória americana, o hospital Albert Einstein em São Paulo, o Instituto do Cérebro no Rio.
Todos suspenderam o uso da cloroquina para tratamento da Covid-19 depois de demonstrado que, além de não ser eficaz no combate ao novo coronavírus, a cloroquina pode causar efeitos colaterais graves, como arritmia cardíaca.
A irresponsabilidade marcou também o anúncio de que havia testado positivo para Covid-19. Embora estivesse de máscara a maior parte do tempo, o presidente tocou o microfone das televisões escolhidas para ouvir seu anúncio, aproximou-se dos repórteres e tirou a máscara em determinado momento.
Voltou a mostrar falta de empatia e desinformação ao afirmar que a Covid-19 “é como a chuva, vai molhar todo mundo”. A inevitabilidade da morte, sempre lembrada por Bolsonaro diante da tragédia humanitária que o país enfrenta, não significa que ela não deva ser retardada o mais possível, através de uma vida saudável e dos meios de atendimento à população mais carente.
Desde o início da pandemia o presidente Bolsonaro tentou mostrar-se inatingível pelo vírus, expôs-se e expôs seus admiradores ao contágio até mesmo na segunda-feira, quando voltava dos exames já com os primeiros sintomas. Bolsonaro foi conversar com o pequeno grupo que o esperava no Alvorada, quando deveria ter passado direto para não correr o risco de contaminar alguém.
Mesmo quando anunciou que está infectado, Bolsonaro não poderia tê-lo feito de forma presencial. Bastaria um comunicado oficial do Palácio do Planalto ou, se quisesse comunicar pessoalmente o fato, poderia ter usado as lives tão famosas que faz.
Seu “amigo” Donald Trump usou o caso como exemplo “do que está acontecendo” no Brasil. A doença de Bolsonaro traz também mais esse estrago político, reafirmando a situação descontrolada da pandemia entre nós. Sem ministro da Saúde, o país vai cavando sua própria cova como o que tem mais mortos por dia, e caminha resoluto para ter o maior número total de mortos.
Os brasileiros já estão proibidos de viajar não apenas para a Europa e os Estados Unidos, mas também para alguns de nossos vizinhos sul-americanos. Trump nos Estados Unidos deu uma recuada estratégica quando viu o tamanho da tragédia, embora continue não usando máscara e tenha anunciado que estava tomando cloroquina como preventivo. Boris Johnson, na Inglaterra, teve uma atuação de estadista, depois de menosprezar os riscos e sair às ruas abraçando e cumprimentando seus simpatizantes, como um Bolsonaro descabelado.
Apanhado pelo vírus, esteve quase à morte e, ao retornar são e salvo ao dia a dia de primeiro-ministro de um país que enfrenta uma crise sanitária sem precedentes, caiu em si e pediu desculpas por ter desprezado os riscos.
O momento seria uma oportunidade de ouro para Bolsonaro se redimir de sua atuação pífia diante da pandemia, e unir os brasileiros nessa guerra que ainda está longe de terminar. Mas ele não tem esse tamanho, é menor que a cadeira de presidente da República.
Merval Pereira: Equilíbrio artificial
Presidente tenta se equilibrar em uma slackline muito estreita, entre a harmonia com os demais Poderes e sua base mais dura
Se não fizer coalizão, não governa, comentou o vice-presidente Hamilton Mourão. Mas se não satisfizer seu núcleo duro de seguidores, os 15% de radicais que reclamam dos acordos políticos, Bolsonaro também não governará. Foi para agradar seus radicais que chegou ao governo anunciando que não queria saber da “velha política”, como se fosse um novato naquele terreno.
Tentou negociar por temas com as bancadas evangélica, a da bala, a do agronegócio, e assim por diante. Não deu certo, pois o apoio suprapartidário não tinha condições de se impor em cada partido, cujas direções definem as posições a serem seguidas. Tentou governar pelas redes sociais, encurralando seus adversários, mas só conseguiu acirrar os ânimos com o Judiciário, especialmente o Supremo Tribunal Federal (STF), e o Legislativo.
Promoveu manifestações antidemocráticas, tentou criar um clima golpista que amedrontasse os demais Poderes, mas se isolou politicamente, revelando que seus radicais não estavam com essa força toda, nem as Forças Armadas estavam dispostas a bancar sua aventura totalitária.
À medida que seguidores começaram a ser presos por ações criminosas e ameaças a autoridades, e seu grande amigo Fabricio Queiroz reapareceu graças à Polícia Federal, que o encontrou na casa do advogado Frederick Wassef, a arrogância de Bolsonaro começou a dar lugar a um silêncio obsequioso.
O inquérito contra seu filho Flavio Bolsonaro no Ministério Público do Rio de Janeiro segue, e voltará para a primeira instância em agosto, quando o STF reafirmar a restrição ao foro privilegiado. Os do STF que o envolvem diretamente ou seus seguidores, também prosseguem, com provas sendo acumuladas. E o do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tem o poder de impugnar a chapa presidencial.
O presidente está tentando se equilibrar em uma slack line muito estreita, entre a harmonia com os demais Poderes, e manter sua base mais dura, que reservou Saúde e Educação como áreas prioritárias para uma atuação ideológica. O caso do ministro da Educação é exemplar.
Para conter os olavistas, responsáveis pelos primeiros escolhidos, os militares palacianos foram buscar um militar que já lá estava, Carlos Decotelli. Que não chegou a tomar posse devido a polêmicas com seu currículo. O centrão então ocupou o espaço e indicou Renato Feder, Secretário de Educação do governo do Paraná, um técnico com ligações com o PSD, que foi bombardeado pelos militares, pelos laços políticos, e pelos olavistas, por não ser “ideológico” o suficiente.
Na Saúde, dois ministros técnicos saíram por não admitirem tentativas de intervenção ideológica nos ministérios. À falta de outro nome técnico e terrivelmente ideológico, Bolsonaro deixou no lugar, interinamente com ares de permanente, um General de Brigada, Eduardo Pazuello, especialista em logística, que considera estar cumprindo uma missão: “Sou militar da ativa. Missão dada é missão cumprida”.
Foi assim que o governo aprovou o uso de cloroquina para tratamento da Covid-19, que nenhum médico aceitara avalizar. Desta vez, os militares palacianos foram contra a permanência do General da ativa no cargo de ministro, com receio correto de que os problemas da pandemia cairiam na responsabilidade do Exército. Bolsonaro arranjou uma solução que não afrontou os militares, mas não resolveu a situação na Saúde. Estamos em plena pandemia sem ministro efetivo, com conhecimento de causa, há mais de mês.
Na Educação, não consegue nomear uma pessoa técnica após a saída do famigerado Abraham Weintraub. A guerra ideológica foi tão grande que Feder viu que o futuro para ele não era nada brilhante, e desistiu do convite.
Os militares têm um nome, Anderson Correia, diretor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), de grande reputação na área de engenharia. Mas há uma dificuldade, ele não aceitaria ser ministro sem poder desmanchar a estrutura montada lá pelos ministros anteriores, olavistas de carteirinha.
Para escolher o novo ministro, Bolsonaro se vê entre três grupos: os radicais, o centrão, e os militares, que não querem políticos e são contra os olavistas. Vai ser difícil para ele se equilibrar entre o seu verdadeiro eu, que é radical e completamente sem controle, e o moderado, que negocia com os poderes, impossível de dar certo de tão artificial.
Merval Pereira: Os inocentes
“Os inocentes do Leblon”, poesia de Carlos Drummond de Andrade de 1940, poderia ter sido escrita ontem, quando os bares do bairro carioca encheram-se de “inocentes” sem medo do amanhã. Aglomerados, sem máscara, “os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram/mas a areia é quente, e há um óleo suave/ que eles passam nas costas, e esquecem”.
Excitados pela liberação açodada e irresponsável dos bares e restaurantes por governantes fracos e oportunistas, os inocentes saíram às ruas para comemorar o quê? Quase 70 mil mortes? Mais de um milhão e meio de contaminados pela Covid-19?
Em vários lugares do mundo, e não apenas no Leblon, multidões saíram às ruas depois de pelo menos três meses de quarentena, e muitos locais já estão tendo que retroceder, com certas áreas na Espanha, e o toque de recolher imposto em Miami.
Em Paris, um festival de música que atraiu milhares de jovens pode ter provocado um aumento da contaminação. Estados Unidos, México e Brasil são responsáveis por mais da metade das mortes mundiais por Covid-19, não por acaso governados por dirigentes negacionistas.
Em plena ascensão da praga, o presidente Bolsonaro dá-se ao desplante de vetar a obrigatoriedade de máscaras no comércio e nas igrejas, e governadores populistas mudam de posição pensando na eleição de novembro.
Como será “o mundo pós-pandemia”? O advogado e escritor José Roberto Castro Neves reuniu um grupo de especialistas para imaginarem o que acontecerá em seus respectivos campos de atuação, e o resultado, editado pela Nova Fronteira, já está nas livrarias.
São prognósticos otimistas, outros nem tanto, em áreas como Medicina, Economia, Humor, Educação, Meio-Ambiente, Cinema, Saúde, e assim por diante. Coube-me escrever sobre política, não a partidária, mas a que rege nossa vida em sociedade.
Fui otimista, mas diante dos roubos de respiradores, de obras superfaturadas em hospitais de campanha, dos primeiros comportamentos no pós-pandemia antecipado, temo ter sido ingênuo. Aí vão alguns trechos:
“A natureza produziu uma cruel metáfora ao nos enviar um vírus mortal que sufoca ao mesmo tempo que provoca uma limpeza no meio-ambiente pela necessidade de ficarmos em casa para tentar salvar-nos.
(…) A peste escancarou também a extrema pobreza e, sobretudo, a desigualdade com que convivemos cotidianamente como se fossem coisas da vida. Milhões de “invisíveis” surgiram do nada para assombrar os governantes, que não os detectavam nem mesmo nos programas sociais.
(…) Se a palavra “política”, do grego “politéia”, que trata das relações sociais na “polis” (Cidade-Estado), define a atuação das diversas camadas de uma sociedade nessa perspectiva, é plausível imaginar que uma sociedade que tenha passado pelo choque que a nossa está passando reveja suas prioridades e torne-se mais interessada em temas que têm sido relegados, como saneamento básico, saúde pública, educação.
(…) Não ser contaminado pela Covid-19 depende de uma decisão individual, mas também do entendimento de que, se protegendo, protegem-se também as demais pessoas que nos circundam.
(…) Entre nós, temas incontornáveis passam a ser o sistema de saúde pública como o SUS, um avanço democrático que mostrou ser essencial no combate à Covid-19, mesmo com suas deficiências e limitações, que devem ser corrigidas a partir do financiamento público reforçado.
(…) A inevitabilidade da morte não significa que ela não deva ser retardada o mais possível, através de uma vida saudável e dos meios de atendimento à população mais carente. A valorização da ciência e da tecnologia é inevitável como política pública de um mundo pós-pandemia.
(…) não haverá espaço para políticas retrógradas e fisiológicas se quisermos participar de um mundo que ganhará uma ressignificação depois do sofrimento provocado por um vírus que nos mostrou nossa pequeneza diante do universo, ao mesmo tempo em que a grandeza do ser humano emergiu da solidariedade planetária.
Merval Pereira: Qual caminho?
Escolha do quarto ministro da Educação de sua gestão pode ser também a definição do que será o governo Bolsonaro
A escolha do quarto ministro da Educação de seu governo pode ser também a definição do que será o governo Bolsonaro no tempo que lhe resta. Esse tempo não depende unicamente dele, mas o comportamento, digamos assim, recatado dos últimos dias pode lhe dar mais fôlego, ou pelo menos não apressar o fim do mandato.
Amordaçado pelas circunstâncias nada favoráveis depois da prisão de Queiroz e do processo contra seu filho Flávio, o presidente encontra-se fragilizado diante da mudança de postura. A escolha de Renato Feder, atual secretário de Educação do Paraná, leva em conta aspectos técnicos que não agradam a setores importantes de apoiadores, embora cada um tenha razões distintas para esse incômodo.
Os militares têm candidato próprio, o reitor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) Anderson Ribeiro Correia, e consideram que a escolha de um secretário com ambições políticas será prejudicial. Esses assessores palacianos, que ganharam mais espaço nos últimos tempos, querem um governo, se não de “notáveis”, como na tentativa de salvar Collor do impeachment, pelo menos técnico, e não militarizado.
A escolha do reitor do ITA junta essas duas coisas: dirige uma instituição de ensino militar de alta qualificação, e não é militar. A excelência do ITA vem de sua reconhecida qualidade de ensino, sendo uma instituição em que não é preciso querer ser militar para nela ingressar.
Os evangélicos querem alguém da mesma linha política que Bolsonaro vinha mantendo no MEC desde o início de seu governo, mas Anderson Correia também é evangélico. Não parece ser do tipo histriônico de um Weintraub, embora já o tenha elogiado em tuíte que depois apagou. Os olavistas fazem campanha contra Fader por ter financiado João Dória na eleição para governador de São Paulo, e tanto evangélicos quanto olavistas o “acusam” de ser ligado a Jorge Paulo Lehman, que tem interesse em projetos educacionais, como se isso fosse defeito. Querem que o sucessor de Weintraub seja um de seus assessores, de igual calibre ideológico.
O presidente Bolsonaro, desde que teve que deixar amortecido seu gênio “incontrolável” para se enquadrar nas normas e regras democráticas, procura um caminho intermediário entre os bolsonaristas radicais – que representariam apenas cerca de 15% do seu eleitorado segundo o Datafolha – e outros setores que o apóiam, como empresários e políticos do centrão.
Nesses setores, Feder tem boa acolhida, mas ao convidá-lo o presidente Bolsonaro pediu que só aparecesse em Brasília na segunda-feira. Provavelmente para testá-lo na frigideira da opinião pública durante o fim de semana. Renato Feder ficou numa situação constrangedora, preterido na escolha para o ministério da Educação após ter sido recebido pelo presidente Jair Bolsonaro.
Pareceu que não tinha passado no teste. Pelo menos é uma pessoa que se dedica à educação, e o seu pensamento econômico e político combina com o liberal do ministro da Economia Paulo Guedes. É co-autor de um livro sobre como se livrar do peso do Estado para o país se desenvolver, e cita muito Margareth Tatcher, Ronald Reagan e outros liberais.
Escreveu esse livro quando tinha menos de 30 anos, e hoje reescreve seus pensamentos com menos liberalismo e mais realismo. Bom, porque ao se referir à sua proposta polêmica sobre financiamento da educação através de vouchers do governo, para permitir que os alunos menos favorecidos pudessem cursar escolas privadas de boa qualidade, usou uma frase infeliz para defender a superioridade da iniciativa privada sobre a governamental. Disse que assim como é melhor a iniciativa privada fritar hambúrgueres, a mesma coisa acontece com a educação.
Ele defendia um caminho até a privatização total do ensino, inclusive das universidades, tese que já abandonou. Hoje, diz estar convencido de que o ensino público pode ser de qualidade, e se preocupa com problemas concretos, como evasão escolar, melhoria do aprendizado que se refletiria favoravelmente nos exames internacionais como o Pisa, onde o Brasil invariavelmente vai mal, melhoria da gestão das escolas.
Seria representante de uma ala ideológica não radicalizada, ao contrário de seus antecessores, responsáveis por uma inércia educacional nesses primeiros meses de governo Bolsonaro que só fez piorar o estado já precário de nossa educação.
Merval Pereira: Desmilitarização
O núcleo duro da ala militar quer firmar a ideia de que não existem ministros militares, mas de origem militar
A prisão de Fabrício Queiroz foi a gota d´água que faltava para que o bom senso prevalecesse no entorno do presidente Bolsonaro, levado a um silêncio obsequioso diante da realidade que lhe batia à porta do Palácio do Planalto.
Os ministros de origem militar, que no início do governo eram vistos como anteparos aos arroubos totalitários da ala radical do governo, venceram pela exaustão. Uns, como o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Augusto Heleno, abandonaram a moderação para aderir à radicalização. Outros, como o General Santos Cruz, não resistiram às intrigas palacianas e deixaram o governo.
O núcleo duro da ala militar permanece firme no desejo de desmilitarizar sua presença para firmar a idéia de que não existem ministros militares, mas de origem militar. Um que foi para a reserva no dia 1º deste mês foi o General Luiz Eduardo Ramos. Ele já havia anunciado sua decisão dias antes, como registrado aqui na coluna, maturada desde o dia em que recebeu críticas de diversos setores, inclusive militares, por ter participado de uma daquelas manifestações políticas em frente ao Palácio do Planalto, onde a defesa de medidas antidemocráticas, como intervenção militar, eram feitas abertamente.
Sentiu-se incomodado, admitiu que como General de Exército da Ativa, recém-saído do Comando Militar do Leste, membro do Alto Comando do Exército, mesmo se não houvesse a defesa de ações totalitárias, que minimizou como sendo de uns poucos, não deveria participar de manifestações políticas. Conversou com o presidente, que se disse contrário, mas realizou seu desejo para poder ajudar o governo mais à vontade, como revelou em entrevistas.
O general Braga Netto, da Casa Civil, está na reserva já há algum tempo, tendo permanecido na ativa durante curto período como ministro, e o ministro da Defesa, General Fernando Azevedo pretende evitar situações dúbias como a que o levou a sobrevoar de helicóptero junto com o presidente Bolsonaro uma manifestação política, como se a estivesse apoiando, quando alega que estava ali para averiguar as condições de segurança da Praça dos Três Poderes.
A vontade é de não misturar mais, ou não dar motivos para que assim sejam percebidas, as ações de ministros de origem militar com a dos militares da ativa. Por isso, há uma tentativa de homogeneizar o comportamento, fazendo com que sigam o exemplo o ministro interino da Saúde, General de Brigada Eduardo Pazzuello e o chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) Almirante de Esquadra Flávio Rocha, que foi promovido este ano, quando já trabalhava no Palácio do Planalto.
Foram muitas idas e vindas nesse primeiro ano e meio de governo, em que os assessores mais próximos ganharam ou perderam importância ao sabor dos ventos políticos, que radicalizaram como quando Bolsonaro decidiu enfrentar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), ou amainaram como agora, quando a força das decisões institucionais prevaleceu sobre o espírito “incontrolável” do presidente.
Os vários inquéritos no Supremo abrangendo não apenas seus seguidores mais radicais, alguns presos, mas ele próprio, os inquéritos do Ministério Público e da Polícia Federal sobre seus filhos Flavio e Carlos, a prisão do Queiroz na casa do advogado da família, tudo levou a que Bolsonaro se dispusesse a arrefecer os ânimos, aceitando finalmente, não se sabe até quando, que não tem condições políticas para tentar enquadrar as instituições que lhe limitam o poder presidencial, como acontece nas democracias.
Uma vitória marcante dos assessores militares foi acabar com o cercadinho em que apoiadores de Bolsonaro constrangiam os jornalistas e incentivavam as bravatas do presidente. Hoje, ele os recebe separadamente, nos jardins do Alvorada, e seus arroubos ficam restritos a essa platéia.
Os relatos são de que o presidente oscila, há dias em que está mais calmo, outros mais agitado. Essa situação serviu também para confirmar o que os ministros de origem militar sempre garantiram: não existe possibilidade de as Forças Armadas apoiarem uma aventura ditatorial.