Merval Pereira
Merval Pereira: Reforma necessária
Agora que a reportagem da Rede Globo sobre funcionários fantasmas na Assembléia Legislativa do Rio foi indicada para o Emmy, o maior prêmio internacional da televisão, ao mesmo tempo que a investigação sobre o sistema de “rachadinha” salarial dos funcionários de diversos gabinetes de deputados estaduais, entre eles o hoje senador Flavio Bolsonaro, vai chegando a resultados concretos, é mais que hora de repisar a necessidade de uma revisão da organização dos gabinetes parlamentares em todos os níveis, do federal ao municipal.
Por sua própria natureza, a “rachadinha” demonstra que os parlamentares têm assessores em excesso, cujos salários são também supervalorizados diante do praticado pelo mercado profissional. O assessor Fabricio Queiroz era, segundo está sendo demonstrado nas investigações, o responsável por receber e redistribuir parte dos salários dos funcionários do gabinete de Flavio Bolsonaro.
O valor total da soma dos vencimentos mensais de cada gabinete da Assembléia Legislativa do Rio é de R$ 160 mil, para ser distribuído entre possíveis 40 assessores. Até mesmo auxílio-alimentação é fraudado, segundo denunciou o deputado Luiz Paulo. Segundo ele, seria melhor adotar o ticket-refeição, para evitar o que muitos servidores fazem: devolvem o dinheiro referente ao auxílio-alimentação aos deputados que os empregam, ou para a “caixa” do partido.
A reportagem da Globo mostrou que vários assessores não aparecem para trabalhar, alguns foram flagrados pela reportagem em casa em dia de semana, e uma funcionária mora em Orlando, na Flórida. Depois de a reportagem ser exibida, foram abertas duas investigações, uma da própria Assembléia e outra do Ministério Público estadual, e até agora, oito meses passados, nada foi resolvido. Marli Regina de Souza Costa continua vivendo na Flórida e, mesmo à distância, trocou de deputado, mantendo a mordomia de R$ 23 mil mensais.
Dois dos servidores denunciados aposentaram-se, ganhando mais do que na ativa e com uma vantagem, não precisam mais dar parte de seu salário para ninguém. Na Câmara dos Deputados em Brasília o valor mensal da verba de gabinete é R$ 111.675,59, e cada deputado pode contratar de 5 a 25 secretários parlamentares para “prestar serviços de secretaria, assistência e assessoramento direto e exclusivo nos gabinetes dos deputados, em Brasília ou nos estados”.
Foi num desses cargos que Nathalia Melo, filha de Queiroz foi registrada no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, embora trabalhasse no Rio como personal trainer. No Senado, a questão é mais complicada, um “emaranhado de leis” segundo o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, que impede que se tenha noção clara dos critérios e salários.
A Transparência Brasil dividiu estados e capitais em grupos de maiores e menores PIBs per capita, e confrontou os tamanhos das economias com os gastos parlamentares – que incluem salários, verbas e auxílios diversos a deputados estaduais e vereadores. “O que se revelou foi uma inversão lógica: segundo dados coletados junto a Assembléias e Câmaras, estados mais pobres gastam em média 20% mais do que os ricos; capitais mais pobres, 16% a mais”.
O Pará, por exemplo, que tem um terço do PIB per capita de São Paulo, gasta 30% a mais por deputado estadual. “A irracionalidade é a mesma quando se comparam as capitais: Natal tem a metade do PIB per capita de Curitiba, mas empenha com seus vereadores o dobro da capital paranaense. No entanto, as Câmaras Municipais destas gastam por vereador 16% a mais com salários, auxílios e verbas indenizatórias do que as capitais com os maiores índices de PIB per capita”.
O mesmo ocorre, segundo o relatório da Transparência Brasil, nas Assembleias Legislativas. Enquanto os 12 estados da base seus gastos com salários e verbas são 20% mais altos do que os dos 12 estados do topo.
Na reforma administrativa que se pretende fazer, este seria um tema prioritário, não apenas para impedir que esse sistema de “rachadinha” se perpetue com o desvio do dinheiro público para os partidos políticos ou o bolso do parlamentar. Também como exemplo de que prevalecerá entre os representantes do povo a postura ética que lhes é exigida pelos cargos para os quais foram eleitos.
Merval Pereira: Apoio incipiente
O presidente Bolsonaro criou um monstro que pode engoli-lo, o Congresso. Revitalizado no início do governo, quando o presidente ainda tentava governar sem os partidos, imaginando que o poder do Executivo era insuperável, o Congresso, com especial atuação da Câmara presidida por Rodrigo Maia, assumiu a direção dos trabalhos de aprovação das reformas.
Chamou a si a tarefa de reformar a Previdência Social, mesmo atrapalhada pela ambiguidade de Bolsonaro, que até o último minuto incluiu categorias que lhe são caras nas exceções da nova legislação.
Até fazer o acordo com o Centrão, renegando tudo o que dissera na campanha eleitoral e nos meses iniciais de seu governo, Bolsonaro recebeu dos parlamentares demonstrações cabais de que sem eles não governaria.
A recente votação do veto ao aumento de servidores públicos enquanto perdurar a pandemia da Covid-19 demonstra bem como a relação do presidente com uma base parlamentar ainda incipiente pode trazer novos problemas para o governo.
Teve que contar com o presidente da Câmara para organizar sua base para derrotar a decisão do Senado, que derrubara o veto do presidente. Mas criou diversos atritos com os senadores, a começar com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que não quis presidir a reunião do Congresso porque já imaginava que o governo poderia ser derrotado e não queria se indispor com o governo, com cujo apoio conta para poder se reeleger.
Agora, com os ataques do ministro da Economia, Paulo Guedes, aos senadores que votaram pela derrubada do veto, Alcolumbre já não pode se omitir, pois nada importa o apoio de Bolsonaro se os senadores não quiserem reelegê-lo. “Aqui não tem voto de cabresto”, avisou um senador, referindo-se tanto a Bolsonaro quanto a Alcolumbre.
Para manter seu prestígio interno, Alcolumbre terá que colocar seu prestígio externo em jogo. A boca grande do ministro Paulo Guedes mais uma vez o coloca em confrontação com o Congresso, mas desta vez também o presidente Bolsonaro não quer afrontar seus novos aliados.
Quando Paulo Guedes ou outro ministro agredia o Congresso, recebia palmas do presidente Bolsonaro. Foi assim que o ex-ministro Abraham Weintraub começou sua derrocada, flagrado dizendo que mandaria para a cadeia “todos aqueles vagabundos”, a começar pelo Supremo.
Dito em reunião fechada, não haveria problema. Tendo o ministro Celso de Mello mandado divulgar o vídeo da reunião, tornou-se insustentável sua permanência no cargo. Desta vez, Guedes errou no timing político. Chamar os senadores que derrubaram o veto de “criminosos” foi um excesso, mesmo que se leve em conta que estava tomado por uma “santa indignação”, um sentimento justo diante da irresponsabilidade de permitir aumentos nesta crise econômica que tentamos atravessar.
O problema é que quem fala muito corre o risco de dar bom dia a cavalo, já diz o ditado popular. Guedes fala muito, e nem ele nem o governo são coerentes na maior parte das vezes. Os senadores já ressuscitaram na internet pelo menos duas declarações do ministro da Economia defendendo que os servidores que estão na frente de combate à Covid-19 seriam exceções no congelamento dos salários.
O veto do presidente foi contrário ao combinado com os parlamentares, e por isso formou-se um ambiente propício à sua derrubada. Muitos senadores espalharam que Bolsonaro queria o veto, o que parecia plausível diante das suas incoerências. Bolsonaro chama seus novos parceiros do Centrão de sócios. “Sócios no bom sentido”, alertou, assim como avisa, quando diz que ama um homem, que “é um amor hétero”.
Bolsonaro e suas contradições profundas.
Confissão
A decisão do Senador Flavio Bolsonaro de não aceitar a acareação com seu suplente Paulo Marinho sobre a acusação deste de que recebeu informações antecipadas sobre a Operação Furna da Onça e demitiu seu amigo Fabrício Queiroz para tentar apagar os rastros da “rachadinha” que ele comandava, demonstra receio de cair em contradição e ser pego na mentira. Uma confissão de culpa indesmentível.
Merval Pereira: Outros recados
O Supremo Tribunal Federal (STF) marcou de maneira expressiva, por 9 votos a 1, sua posição em defesa do Estado de Direito ao proibir o ministério da Justiça, com evidente efeito para todos os demais órgãos do governo Bolsonaro, de fazer dossiês “sobre a vida pessoal, escolhas pessoais ou políticas e práticas cívicas exercidas por opositores ao governo”, seguindo o voto da relatora, ministra Carmem Lucia.
Mas, ao mesmo tempo, o julgamento serviu para demonstrar que continuamos nos guiando por regras de compadrio e leniência, esta por parte do Procurador-Geral Augusto Aras. Os ministros que criticaram tão duramente os dossiês não aceitaram investigar o ministro da Justiça e Segurança Pública André Mendonça ´(foto) por ter mandado fazê-lo, aceitando a cândida explicação de que ele só teria começado a ser feito no dia 24 de abril, por coincidência o dia em que o ministro anterior, Sérgio Moro, pediu demissão do cargo.
Como é humanamente impossível que um dossiê iniciado num dia determinado estivesse, meses depois, tão recheado de informações, parece claro que essa explicação merece pelo menos ser investigada. Se o dossiê é obra do ex-ministro Sergio Moro, desafeto do presidente Bolsonaro, por que André Mendonça não denunciou sua existência assim que tomou conhecimento dele pela imprensa?
Se não foi ele o autor da ordem, por que não suspendeu o dossiê assim que a imprensa denunciou sua existência? Por que, considerando grave a existência de tal dossiê, ao demitir o servidor responsável Secretaria de Operações Internas (Seopi) não renegou publicamente a prática de espionagem? Por que passou dias negando sua existência, e até mesmo se recusou a entregá-lo à ministra Carmem Lucia, alegando cinicamente que ela não havia pedido, só o fazendo depois que o Congresso o pressionou?
Só existe uma explicação para o que aconteceu: no interregno entre a saída de Moro e a chegada de Andre Mendonça, alguém iniciou o dossiê e o foi alimentando aproveitando-se do vácuo de poder. Se aconteceu assim, e Mendonça explicou aos ministros do STF, nós os cidadãos, deveríamos ter sido avisados.
O Supremo, que deu duros recados ao presidente Bolsonaro em seus votos a favor dos direitos do cidadão, mandou também outro, talvez tão importante quanto para nosso futuro: pode nomear André Mendonça para a próxima vaga do ministro Celso de Mello que ele será recebido muito bem.
Quem resumiu o pensamento da Casa foi o presidente de saída Dias Toffoli em seu voto contra o dossiê elaborado no Ministério da Justiça sobre antifascistas: “Como presidente do STF, registro a atuação de sua excelência: (André Mendonça, ministro da Justiça) atuou da maneira mais correta, deu toda a transparência a esse STF”. Toffoli afirmou sobre o dossiê que “Governos anteriores tinham, ministros da Justiça anteriores tinham”, sem, no entanto, dar notícia de onde tirou essa informação.
O único que fez uma acusação sem insinuações foi o ministro Gilmar Mendes, que afirmou, atribuindo indiretamente o dossiê a Sérgio Moro: “A produção desses relatórios tem ocorrido durante grande parte do tempo de instalação do atual governo, não se tratando apenas de atos especificamente praticados na atual gestão da pasta da Justiça”.
As atuações do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, e do advogado-geral da União, José Levi do Amaral, foram na mesma linha, a de negar a existência de tal dossiê que acabou sendo muito real para os ministros do Supremo. A alegação foi de que não havia nenhuma investigação criminal em curso, mas apenas informações públicas coletadas para prevenção da segurança governamental.
O Procurador-Geral chegou a argumentar que as informações coletadas no dossiê não prejudicaram ninguém, como se isso fosse o bastante para inocentar o governo Bolsonaro. Quanto às informações serem públicas, mas organizadas em fichários com os nomes dos cidadãos, significa não apenas que elas estavam sendo seguidas, como que os serviços de informação continuam usando a imprensa como fonte primária. Os arquivos do SNI também tinham recortes sobre as pessoas investigadas, e nem por isso elas deixaram de sofrer perseguições, prisões e torturas.
Como advertiu a ministra Carmem Lucia “(…) Não compete a ninguém fazer dossiê contra quem quer que seja ou instalar procedimento de cunho inquisitorial. O Estado não pode ser infrator. O abuso da máquina estatal para escolher informações de servidores contrários ao governo caracteriza desvio de finalidade.”
Merval Pereira: Manobra interrompida
As decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux e Celso de Mello sobre o julgamento de Deltan Dallagnol pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), marcado para ontem, mas suspenso, dão uma visão menos política e mais técnica das disputas sobre os procedimentos da Operação Lava-Jato.
Por isso, é apressado tirar-se alguma conclusão sobre os efeitos da decisão de ontem sobre sua posição futura, se participar do julgamento da Segunda Turma do STF sobre a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos julgamentos do ex-presidente Lula. Mas é possível fazer-se a ilação de que sua posição de exigir provas evidentes para uma decisão exclui a utilização das reportagens do Intercept Brasil baseadas em informações roubadas dos celulares de procuradores de Curitiba, pois são provas ilegais.
Já iniciado, esse julgamento conta com dois votos dados a favor de Moro, os dos ministros Edson Fachin e Carmem Lucia. O ministro Gilmar Mendes, que pediu vistas e decidirá quando o tema voltará à pauta, e Ricardo Lewandowski devem votar a favor de Lula, ficando para o decano o desempate.
Mas ele se aposenta em novembro, e se até lá a ação não for julgada, a Segunda Turma poderá decidir com apenas quatro ministros, e o empate favorece Lula. Ou o então presidente Luiz Fux poderá designar algum ministro para o lugar de Celso de Mello.
Seria feio julgar assunto tão delicado e polêmico sem a turma completa. Existe também a possibilidade de o futuro novo ministro ocupar o lugar do decano na Turma, mas essa substituição demorará muito, pois haverá necessidade de o indicado ser sabatinado pelo Senado.
A decisão de Celso de Mello suspendendo o julgamento é magnífica, pois define o papel do MP como defensor da sociedade que não pode ser calado, fala sobre manobras que impediram o exercício pleno da defesa do chefe dos procuradores da Operação Lava-Jato em Curitiba, inviabilizando o devido processo legal, e ressalta a importância singular do Ministério Público: “(…) a Constituição da República atribuiu ao Ministério Público posição de inquestionável eminência político-jurídica e deferiu-lhe os meios necessários à plena realização de suas elevadas finalidades institucionais, notadamente porque o Ministério Público, que é o guardião independente da integridade da Constituição e das leis, não serve a governos, ou a pessoas, ou a grupos ideológicos, não se subordina a partidos políticos, não se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem, não importando a elevadíssima posição que tais autoridades possam ostentar na hierarquia da República, nem deve ser o representante servil da vontade unipessoal de quem quer que seja, sob pena de o Ministério Público mostrar-se infiel a uma de suas mais expressivas funções, que é a de defender a plenitude do regime democrático”.
O julgamento de ontem era sobre casos que já haviam sido julgados; estava tudo marcado para punir Dallagnol, com uma série de irregularidades sendo aceitas como normais. O ministro Luiz Fux, vendo que estava sendo preparada uma armadilha, anulou uma advertência contra Dallagnol imposta anteriormente, que seria um agravante contra o procurador.
Irritado com a decisão de Celso de Mello, mas sem referir-se diretamente ao caso, o Procurador-Geral da República Augusto Aras, que está empenhado em controlar a Operação Lava-Jato, fez um pronunciamento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pedindo “mais respeito” à suas decisões, e às do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), lembrando que “não há ninguém acima da Constituição”.
Ao contrário, o que estava em curso era uma reação política. O relator do processo, Bandeira de Mello, foi chefe de gabinete do senador Renan Calheiros, autor de uma das acusações. As cartas estavam marcadas, e é uma vergonha para o Conselho Nacional do Ministério Público.
Foi montado um circo para dar “uma lição” na Lava-Jato através de sua figura mais proeminente hoje. Acredito que, a partir de agora, o caso seguirá dentro dos parâmetros normais e assim, não há por que retirar Deltan Dallagnol da função de coordenador da operação Lava-Jato.
Nada grave aconteceu para que ele fosse punido dessa maneira. Não é possível transformar em bandidos os juízes e procuradores que desvendaram o maior esquema de corrupção do país.
Merval Pereira: Dallagnol na mira
Dando seqüência à tentativa de desconstruir a Operação Lava-Jato, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) julgará na terça-feira casos envolvendo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba. Não são os primeiros, nem serão os últimos casos, pois ao longo de seu trabalho à frente da força-tarefa de Curitiba Dallagnol já teve cerca de 50 reclamações disciplinares contra si, a maior parte vinda de investigados e réus e seus aliados.
Apenas duas delas, e sempre por opinião, mereceram advertências. Por isso, é estranho que na reunião de terça exista a possibilidade de afastamento cautelar devido a um procedimento disciplinar por remoção compulsória por interesse público, impetrado pela senadora Katia Abreu, investigada pela Lava-Jato. Até hoje, foram poucos os afastamentos a bem do interesse público, e ambos por questões totalmente diversas das que Dallagnol está sendo acusado.
Um por trabalho ineficiente em defesa do consumidor, e outro por assédio moral e outras faltas funcionais. Ambos ao fim de um processo em que houve possibilidade de o acusado apresentar sua defesa, não de maneira cautelar. O afastamento cautelar de Dallagnol feriria de morte a garantia de inamovibilidade de integrantes do Ministério Público, o que afetaria a independência do órgão e levaria uma insegurança funcional nos demais membros do órgão investigador, que ficariam expostos à retaliações políticas.
Outro que apresentou Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra Dallagnol foi o senador Renan Calheiros, que pede sua punição por ter defendido a votação aberta para a eleição da presidência do Senado, afirmando que a eleição de Calheiros seria prejudicial ao combate à corrupção. O plenário do CNMP já rejeitou a mudança da caracterização da fala como atividade político-partidária, e negou o afastamento cautelar de Dallagnol pedidos ainda em 2018.
O relator é Luiz Fernando Bandeira de Mello, braço-direito de Renan Calheiros no Senado, onde atua até hoje como secretário-geral da Mesa Diretora. Por essa relação, um grupo de senadores pediu que ele fosse considerado suspeito para relatar os casos. Vários deles já foram julgados em outras reclamações disciplinares e considerados legítimos, como as palestras remuneradas que Dallagnol deu, ou o acordo da força-tarefa com a Petrobras envolvendo a restituição bilionária de multa paga nos Estados Unidos e que ficaria no Brasil com a criação de uma fundação para combate à corrupção.
Uma fundação polêmica, que acabou anulada pelo Supremo, mas, alega a defesa de Dallagnol, aprovada por diversos órgãos como uma solução jurídica legítima. Além disso, há uma questão técnica importante, que pode inviabilizar o julgamento.
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é composto por 14 membros, e é preciso maioria absoluta para aprovar uma remoção por interesse público. No momento, no entanto, existem somente 11 conselheiros em atividade, pois três indicações estão paradas no Senado para aprovação, o que desequilibra a composição do Conselho, pois o Ministério Público fica sub representado.
Há, portanto, uma discussão preliminar que deve ser enfrentada no julgamento de terça-feira: sem sua representação integral, o CNMP pode julgar uma ação dessa envergadura, raramente usada para punir procuradores? A não nomeação de dois representantes do Ministério Público por questões internas do Senado, como a paralisação dos trabalhos devido à pandemia, não é motivo para adiar a decisão? Há ainda a posição do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que abriu guerra declarada contra a Operação Lava-Jato.
Nas votações anteriores, os procuradores sempre tiveram o voto do Procurador-Geral da República, o que não é garantido desta vez. Todas essas circunstâncias formam um quadro que indica, no mínimo, que o julgamento desta terça-feira não está organizado dentro dos melhores padrões, e pode levar insegurança a todos os membros do Ministério Público.
O procurador Deltan Dallagnol é a face mais exposta da Lava-Jato em atividade em Curitiba. O interesse público é o fortalecimento do combate à corrupção, que fica fragilizado se do julgamento sair uma decisão que cheire a mais uma ação contra a Operação Lava-Jato.
Merval Pereira: Do bolso ao cérebro
Ao mesmo tempo em que é surpreendente para quem o rejeita, e esses são menos do que já foram, passando de 44% para 34%, a melhora de Bolsonaro na pesquisa Datafolha é explicável. Vale lembrar que essa recuperação de popularidade é em relação à própria performance, mas ele continua sendo mal avaliado em relação aos outros presidentes no mesmo período de governo, só superado por Collor, o que não quer dizer nada se levarmos em conta o confisco da poupança.
O presidente Bolsonaro confiscou nossa auto-estima como povo, transformando o país num pária internacional, mas está recuperando eleitorado em várias frentes, até nas classes mais educadas e mais ricas, porque parou de fazer confusões diárias, reduzindo o grau de incerteza em que acordávamos todos os dias.
Esse apoio tem se mostrado resiliente tanto quanto o ministro da Economia Paulo Guedes, que foi a razão de boa parte do eleitorado, especialmente no Sul e Sudeste, apostar nesse azarão que se mostrou o único viável para derrotar o PT e, ao mesmo tempo, retomar uma política econômica liberal que havia sido perdida desde a saída do PSDB do poder em 2002.
Mas esse apoio provavelmente será revertido caso o ministro Paulo Guedes saia do governo, ou se ficar sem forças para barrar as manobras para furar o teto de gastos, e outras ações que abalam a credibilidade financeira do país.
O impressionante é que esse eleitorado, a suposta elite nacional, não tenha reagido às mais de 100 mil mortes pela Covid-19, preferindo a tese bolsonarista de que a economia tinha que ser reaberta mesmo sem segurança. Mais inexplicável do que a aceitação da volta ao trabalho dos precarizados e desempregados, de menor renda, que dependeram do auxílio emergencial e do funcionamento da economia para sobreviver. A conversa de Bolsonaro de que estava mais preocupado com a vida dos cidadãos, e por isso queria abrir tudo, bateu forte nesse eleitorado.
Acredito que possa acontecer com Bolsonaro o mesmo que aconteceu com Lula: vai perder as classes média e alta, ganhar nas regiões menos favorecidas, como Norte e Nordeste, e continuar competitivo. Lula perdeu o apoio desse eleitorado por causa do mensalão, mas se firmou no nicho nordestino devido ao Bolsa-Família, que agora Bolsonaro quer tomar dele com o Renda Brasil.
O auxílio emergencial, que o Congresso turbinou para R$ 600 quando Guedes queria dar apenas R$ 200, trouxe a Bolsonaro um alívio e uma certeza de que esse é o caminho para a reeleição. Mas o fiscalismo de Paulo Guedes não serve nesse modelo. O eleitorado que votou por ver no atual ministro da economia uma garantia de que as reformas seriam feitas vai refluir.
Boa parte achava que Guedes ia mandar em Bolsonaro, que gostava de alardear que não entendia nada de economia, que estava terceirizando para o seu Posto Ipiranga as decisões. Mas agora que o presidente descobriu que pode mandar, com apoio do centrão, acostumado a gastos do governo, a não perder os cargos das estatais, e dos militares, dificilmente vai ser controlado.
Golbery do Couto e Silva, o feiticeiro do governo Geisel, dizia a respeito de Figueiredo que quando o presidente eleito sobe aquela rampa do Palácio do Planalto, com todas aquelas honras e cornetas, chega lá em cima convencido de que está lá por mérito próprio. E sempre tem um áulico para dizer que ele tem razão. Bolsonaro, a esta altura, deve estar convencido de que já entende de economia o bastante para, pelo menos, buscar novos conselheiros.
Como o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, de quem o próprio Guedes lhe falou maravilhas na aprovação da reforma da Previdência. Bolsonaro aprendeu a comer pelas beiradas nessa nova fase, e deixou de bravatear sua força. Foi passando as boiadas, em silêncio, e, bom cabrito, já não berra ao ser derrotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ou pelo Congresso.
O teto de gastos vai sendo minado dia sim, outro também, na dubiedade que o caracteriza. No Congresso, vai para frente e para trás na relação com o presidente da Câmara Rodrigo Maia, hoje o único apoio que Guedes tem para resistir aos desenvolvimentistas irresponsáveis. Mas, e se Rodrigo Maia sair da presidência, terá condições de eleger um sucessor tão comprometido com as reformas e o controle fiscal, ou o Centrão fará o sucessor?
Como escrevi no início, a melhora de Bolsonaro é explicável.Um velho adágio político diz que a decisão do eleitor para votar passa primeiro pelo bolso, depois pelo estômago, em seguida pelo coração e, por fim, pelo cérebro.
Merval Pereira: Da boca pra fora
Assim como continua dizendo que é a favor do combate à corrupção, depois de forçar a saída do ministro Sérgio Moro, também Bolsonaro jura que é a favor do teto de gastos, e garante que o equilíbrio fiscal é o objetivo de seu governo. Conversa mole. O objetivo de Bolsonaro sempre foi a reeleição, que esconjurou durante a campanha.
Foi contra a corrupção da boca para fora, porque lhe rendia votos, e hoje ajuda a desconstruir a Operação Lava-Jato e o ex-ministro Moro. As trapalhadas do Queiroz e os gastos em dinheiro vivo da família mostram que há anos o mesmo sistema de rachadinhas irriga as contas de seus membros. Era a pequena corrupção, a corrupção do baixo clero, como a do ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti, que achacava o dono do restaurante da Casa.
Nunca foi liberal, nem a favor de privatizações, mas percebeu na aproximação com Paulo Guedes que essa era uma escolha que lhe garantiria o apoio do empresariado e do setor financeiro, dava credibilidade à sua candidatura.
Passada mais da metade do segundo ano de governo, Bolsonaro vai mudando de casca, largando pelo caminho promessas, aliados, posições, para proteger os seus e alimentar o eleitorado que depende do governo para sobreviver. Projetos de resgate da pobreza? Só a ampliação do Bolsa-Família. Mudanças estruturais? Desde que não prejudiquem seus potenciais eleitores.
À medida que vai se arrastando seu mandato, mais perto da eleição, menor a vontade de mexer em velhas estruturas corporativas, como a dos servidores públicos. Lula foi mais prudente, embora também tenha perdido o ânimo para continuar a reforma da Previdência depois dos primeiros embates com sua base sindicalista.
Mas o PT levou quase um mandato inteiro para colocar as manguinhas de fora. Só no seu segundo mandato o PT achou-se em condições de aplicar sua própria política econômica, a nova matriz do ministro Guido Mantega, que desembocou na falta de controle de gastos e no impeachment da presidente Dilma, de quem Mantega continuou ministro da Fazenda no primeiro mandato.
Bolsonaro é mais afoito, um a um desestabiliza seus superministros antes do fim do segundo ano de governo, e Paulo Guedes é a bola da vez. Está lutando contra o Centrão, os militares desenvolvimentistas e o Bolsonaro raiz, liberal e contra a corrupção da boca para fora.
Se acreditasse que Bolsonaro quer mesmo desestatizar, Salim Mattar não teria deixado o governo. A aproximação com o Centrão é mais um obstáculo. Afinal, é preciso ter estatais para dar aos novos aliados. Se achasse que a reforma administrativa é para valer, Paulo Uebel não teria saído.
O ministro Paulo Guedes nunca esteve tão próximo de deixar o governo, mas acredito que vá brigar até o Orçamento da União ser proposto. Se for incluída, por uma pedalada qualquer, o aumento de gastos em obras de infra-estrutura, e para fazer o Renda Brasil, vai ser difícil que fique.
Dizem que ele está procurando dentro do governo verbas que estariam sobrando e poderiam ser dadas para aplacar a sede do Centrão, mas achar a esta altura que existem verbas sobrando é quase risível. Já está cortando da educação, e vai precisar de mais para o projeto de reeleição de Bolsonaro.
Talvez até aguente, porque, dizem, teme que a economia desande caso saia. Mas se ficar sem capacidade de ação, não adianta, pois logo o mercado saberá identificar sua fragilização. Talvez tente também aprovar a reforma tributária, mas com a CPMF digital não vai conseguir. A CPMF é a saída que ele encontrou para financiar as maluquices de Bolsonaro sem furar o teto de gastos.
O apoio do Rodrigo Maia ajuda, mas não muito, porque ele não aceita a CPMF e é difícil a Câmara aprovar a reforma administrativa que diminua o número e o salário de servidores. E não creio que Bolsonaro tenha ânimo para brigar com uma corporação tão forte.
Importante é a posição de Maia contra a tentativa de abuso do uso de dinheiro público. Nesta, ele vai brigar com o Centrão, que está ávido por mais verbas. Mas em final de mandato, com perspectiva de Bolsonaro apoiar o Centrão na sucessão da presidência da Câmara, pode ser que Maia não tenha força.
A única coisa que pode contê-lo é a advertência de Guedes de que ele está sendo levado para o impeachment.
Merval Pereira: Pensamento (a)crítico
A nota técnica da Controladoria Geral da União (CGU) que restringe atuação dos servidores públicos nas redes sociais, mesmo em caráter pessoal, é mais um avanço do governo Bolsonaro sobre as liberdades individuais. Fere a liberdade de expressão e transgride o Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário desde 1990.
A relativização do direito ao pensamento crítico e à liberdade de expressão do agente público está resumida em uma frase: “deve-se verificar se tais direitos não comprometem a reputação do órgão em que estão vinculados, quer desrespeitando ou expondo a instituição, quer praticando atos incompatíveis com os normativos éticos”.
Os deputados Alessandro Molon, do PSB, e Tabata Amaral, do PDT, estiveram ontem na CGU com os ministros Wagner Rosário e Augusto Heleno (GSI) para pedir a revogação da medida, que já está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (STF).
Logo no início das conclusões, há a afirmativa que resume a ópera: “a divulgação pelo servidor de opinião acerca de conflitos ou assuntos internos, ou de manifestações críticas ao órgão ao qual pertença, em veículos de comunicação virtuais, são condutas passíveis de apuração disciplinar”.
Isso quer dizer, perguntou Molon, que um pesquisador do ministério da Saúde não pode criticar a orientação para uso de cloroquina no combate à Covid-19? Essa mesma atitude estaria enquadrada no “descumprimento do dever de lealdade” ressaltado pela nota técnica. Mas lealdade a quem, à Saúde Pública ou ao ministro da vez?
A professora da Universidade de Brasília (UnB) Laura Schertel Mendes, doutora em direito privado pela Universidade Humboldt de Berlim, com tese sobre proteção de dados na Alemanha, entende que a Nota Técnica da CGU “apresenta problemas sérios de constitucionalidade, ao violar a liberdade de expressão do servidor público”, pois determina que a Administração Pública Federal deverá adotar medidas disciplinares contra servidores que se manifestem em redes sociais de forma contrária ao órgão ao qual está subordinado.
Voltando-se à presença e à manifestação de servidores públicos em redes sociais e ambientes virtuais, mesmo que privados e sem qualquer relação com a atividade pública por ele desempenhada, a nota técnica representa “clara violação da liberdade de expressão do servidor público, dado que a Constituição Federal lhe assegura o direito à livre manifestação, à filiação partidária e ao exercício pleno de atividade política, sem qualquer limitação nos moldes previstos pela orientação da CGU”.
A professora Laura Schertel identifica “caráter intimidatório” na nota técnica, podendo até mesmo “configurar censura prévia”. Além disso, ela vê possível “um nefasto efeito colateral dessa orientação disciplinar, que é a inibição do agente público de expor suas críticas à atuação do órgão e, até mesmo, denúncias sobre ilegalidades no trato da coisa pública, o que viola os princípios da transparência e da publicidade da Administração Pública”.
O advogado Ronaldo Lemos, especialista em tecnologia e midias sociais, destaca que essas proibições contidas na nota técnica da CGU ferem o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do qual o Brasil é signatário, especialmente o artigo 19, que diz:
1 - Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
2 - Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.
3 - O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas.
Uma nota técnica não tem o poder de revogar um tratado internacional, e uma divergência quanto a uma medida governamental não parece alcançada pelas ressalvas acima.
Merval Pereira: Os onze
Dois temas da maior gravidade foram enviados esta semana para o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), sem que seus relatores quisessem decidir monocraticamente. O ministro Edson Fachin (foto), mesmo mantendo sua decisão de negar acesso à Procuradoria-Geral da República aos bancos de dados da Operação Lava-Jato, decidiu levar à decisão colegiada a palavra final.
Também o ministro Gilmar Mendes preferiu enviar para o plenário do STF a decisão da ação do PTB que pretende impedir interpretações que permitam a reeleição para as presidências do Senado e da Câmara dos Deputados na mesma legislatura, proibida pela Constituição.
A atitude dos dois não tem sido a tônica das decisões dos ministros do Supremo, que não por acaso são chamados de “ilhas”, o que significa que cada ministro é um Supremo, os “onze supremos”, no título do livro dos especialistas Joaquim Falcão, Diego Arguelles e Felipe Rocondo.
As decisões monocráticas, quando um dos ministros decide sozinho, têm sido majoritárias nos últimos anos no Supremo Tribunal Federal (STF), a ponto de ter atingido em 2017, segundo estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a marca de 89,8% das mais de cem mil decisões daquele ano. A criação das 1ª e 2ª Turmas, cada uma com cinco ministros, foi uma tentativa bem sucedida de desobstruir o fluxo de processos, mas não o suficiente.
Essa prática tem uma razão básica, o excesso de processos que chegam ao Supremo todos os anos, mais de cem mil, para espanto de outros ministros de Cortes Supremas, como a dos Estados Unidos, que decide por conta própria quais os casos que vai rever desde que, em 1925, para evitar o congestionamento de processos, foi editado um ato nesse sentido.
A média de processos aceitos na Suprema Corte americana é de cerca de 200 por ano, nada além disso. Outra diferença fundamental: a Suprema Corte dos Estados Unidos só decide em colegiado, e em reuniões secretas.
Também nos Estados Unidos, cujo sistema judicial nos serve como parâmetro, 97% dos processos criminais são solucionados através de negociação entre promotor público e advogado de defesa, sem interferência de um juiz (“plea bargaining”). Aqui, a Câmara dos Deputados rejeitou na Comissão de Constituição e Justiça a implantação do sistema proposto pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro.
Com isso, o Supremo continuará sobrecarregado até mesmo com casos criminais, que podem chegar à última instância. Ao contrário, a Câmara aprovou proposta do ministro Alexandre de Moraes que possibilita a negociação e a não persecução penal em crimes mais leves. No debate sobre o excesso de atribuições do Supremo, já houve mesmo a proposta de criação de um novo tribunal superior apenas para tratar de casos criminais, como o mensalão e o petrolão. Mas não prosperou.
A questão das decisões monocráticas tornou-se também um caso político, com a crescente crítica, como a de Bolsonaro contra decisões individuais “de certas pessoas”, referindo-se ao ministro do Supremo Alexandre de Moraes, que autorizara uma ação da Polícia Federal contra apoiadores do presidente acusados de espalharem notícias fraudulentas pelos meios digitais.
Existe até mesmo em tramitação na Câmara uma proposta de emenda constitucional (PEC) que define que as decisões liminares em ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) só podem ocorrer pela maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF), isto é, seis votos dos 11, proibindo as decisões monocráticas. Outra proposta tenta limitar o número de decisões monocráticas que cada ministro poderá tomar durante o ano.
Os dois casos enviados ao plenário tratam de questões delicadas politicamente, e a decisão colegiada é a melhor solução para o STF assumir como instituição.
Correção
Na coluna de domingo, o terceiro parágrafo continha, por engano meu, uma informação errada. Como estava escrito imediatamente acima, o Brasil não é o segundo país com o maior número de mortos por milhão de habitantes, mas o segundo maior em números absolutos.
Merval Pereira: Cada morto importa
Não é apenas um número chocante. Não é apenas uma barreira tristemente quebrada. São mais de cem mil pessoas mortas, exatas 100.240 até ontem, na maior tragédia da história brasileira. Para casos como esse, não é possível fazer-se o uso frio dos números, cada morto importa.
Dizer que o país está bem nas estatísticas, porque temos 471 mortes por milhão de habitantes, enquanto países como a Espanha têm 610, ou Reino Unido tem 623, é somente a demonstração de que com estatísticas é possível fazer qualquer coisa, torturando os números. Se fosse esse o caso de comparação, a Argentina tem 98 mortes por milhão de habitantes. A Rússia tem 102, e a China apenas 3 mortes por milhão de habitantes.
A triste realidade é que o Brasil é o segundo país que tem mais mortes no mundo por milhão de habitantes, 471, contra 497 nos Estados Unidos, o país que tem o maior número de mortes, 164.577.
Essa triste competição que estamos ganhando tem na raiz a mesma razão da crise dos Estados Unidos, governos negacionistas que se empenharam em vender a cloroquina como remédio milagroso contra a Covid-19, quando deveriam ter liderado um movimento a favor do distanciamento social, do uso de máscaras, da quarentena e, nos casos mais graves, do lockdown.
Donald Trump, com uma possível derrota nas eleições se aproximando, tenta se recuperar usando máscara, depois de meses preciosos sem usá-la, e já cunhou um bordão patético a essa altura: “Patriota usa máscara”. Bolsonaro, nem depois de pegar a Covid-19, se anima a fazer uma campanha nesse sentido.
O máximo de empatia que conseguiu exprimir foi uma frase abominável: “A gente lamenta todas as mortes, está chegando ao número 100 mil… mas vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”. Para quem tem a culpa maior por essa tragédia brasileira, dizer isso ao lado de um ministro interino da Saúde há mais de dois meses, enquanto a mortandade só fez crescer, é sinal de sociopatia, que, aliás, vem demonstrando em vários momentos.
Sua empatia é seletiva, foi ao Rio para o velório de um paraquedista que morreu, mas fez um passeio de jetski quando o número de mortos chegou a 10 mil. A disputa que o presidente Bolsonaro estimulou com os governadores foi uma das principais causas do desacerto do combate à Covid-19.
Essa briga de poder aconteceu porque Bolsonaro queria impor suas idéias, como o uso de cloroquina e a abertura das cidades para não prejudicar a economia. O mais inacreditável foi a briga de Bolsonaro com os ministros da Saúde, Luiz Mandetta e Nelson Teich, querendo impor suas vontades contra a orientação cientifica internacional.
A crise pessoal de Bolsonaro só acabou quando resolveu colocar o General da ativa Eduardo Pazuello na interinidade permanente à frente da Saúde. Como cultor da hierarquia e jejuno em medicina, o General aceitou tornar a cloroquina um medicamente oficial do SUS para combater a Covid-19, o que nenhum dos antecessores, médicos que tinham uma reputação a zelar, aceitou.
O Brasil passou vários dias com uma média de mil mortes, já temos proporcionalmente mais mortos que os Estados Unidos, e não é improvável que em algum momento passemos a ser o país com mais mortes do mundo, em números absolutos. Se é que já não passamos. A estimativa de vários estudos é de que a subnotificação dos infectados por Covid-19, hoje perto de 3 milhões de pessoas, pode chegar a 14 vezes mais.
O número de mortes que hoje nos assombra pode ser 27% maior que os 100.240 oficiais, isso porque as mortes por síndrome respiratória aguda grave (Srag) não apenas aumentaram muito em relação à média, como muitos casos não tiveram o agente causador identificado, o que leva as autoridades médicas a crerem que teriam sido provocadas pela Covid-19.
Sem falar nas periferias e favelas das grandes cidades, e no Brasil profundo, que não têm atendimento médico devido. Um dos maiores problemas brasileiros no combate à Covid-19 foi a falta de testagem, sem o que não se pode ter uma idéia exata de como está a evolução da doença. Este é um problema que a maioria dos países europeus e os Estados Unidos não têm.
Merval Pereira: "Um dinheirinho"
Na política, nada se cria, tudo se copia. O mensalão mineiro do PSDB se transformou no mensalão nacional do PT, que gerou o petrolão. Lula juntou os programas sociais que existiam no governo Fernando Henrique e criou o Bolsa-Família, um instrumento social poderoso que se transformou em alavanca eleitoral que aparou sua queda entre a classe média quando os escândalos de corrupção o obrigaram a trocar os eleitores do sul e sudeste pelos do nordeste, que virou um nicho petista por muitos anos.
Agora, Bolsonaro anda atrás de dinheiro para criar o Renda Brasil, um Bolsa-Família alargado, em valor e pessoas. Com o auxílio emergencial de R$ 600,00 durante os primeiros meses de pandemia, Bolsonaro viu sua popularidade crescer, e sentiu o efeito que esse tipo de programa social produz numa massa de eleitores que não votou nele em 2018.
Com o bico calado, mas agindo nos bastidores, Bolsonaro consegue se equilibrar entre seus apoiadores mais radicais, aumentando o poder de investigação da Abin para ter instrumentos de pressão sobre os adversários, e vai entrando no nordeste. O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, está mais sintonizado nesse momento com os objetivos do presidente do que seu mentor, o ministro da Economia, Paulo Guedes.
Originalmente assessor de Guedes na reforma da Previdência, com papel de destaque, Marinho ganhou como prêmio um ministério, e logo se desgarrou de Guedes, juntando a fome com a vontade de comer. Localizou na ânsia do presidente por popularidade no nordeste, e na dos militares por obras de infra-estrutura, um caminho para ganhar poder. Seu comentário na entrevista ao Globo de que nenhuma região é propriedade de um partido tem direção certa.
O equilíbrio fiscal que Paulo Guedes defende a ferro e fogo está claramente ameaçado pela vontade do grupo majoritário no governo que quer que ele arrume “um dinheirinho” - como definiu Flávio Bolsonaro - para obras e ações sociais. Todos bem intencionados, mas é aí que mora o perigo, especialmente quando se antecipou tanto a corrida presidencial de 2022.
O perigo de uma pedalada fiscal foi colocado pelo ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), em recente palestra: “Pedalada fiscal foi a alcunha que se criou para a contabilidade criativa do PT. Ainda estamos por nomear a criatividade a ser usada por este governo para não romper o teto de gastos”.
Ele se referia à pressão do Centrão e dos militares por mais gastos, aproveitando a pandemia e o estado de calamidade para burlar o limite do teto de gastos. O que pode prejudicar a caminhada de Bolsonaro à reeleição são os 21 cheques de Fabrício Queiroz para a primeira-dama Michelle Bolsonaro entre 2011 e 2018, que totalizaram R$ 72 mil.
Além dos problemas do filho Flavio, que não consegue explicar a dança de dinheiro vivo entre suas contas e as de Queiroz, agora a revista digital Crusoé revelou que as investigações do Ministério Público mostram que o montante de dinheiro repassado por Queiroz à primeira-dama vai muito além dos R$ 40 mil que Bolsonaro havia dito que emprestara a seu amigo.
Assim como Flavio Bolsonaro alega que pediu para um amigo PM pagar uma prestação de R$ 16,5 mil de um apartamento porque não queria ir ao banco, também Bolsonaro diz que sua mulher recebia o dinheiro porque ele não tinha tempo para essas coisas.
O presidente não pode ser julgado por um suposto crime que aconteceu anteriormente à sua chegada à presidência da República. Mas pode ser investigado, o que lhe tirará força política e reforçará o poder de barganha do Centrão. Lula usou todos os seus recursos para eleger Dilma em 2010, o país cresceu 7,5% naquele ano, e a economia começou a declinar. Já vimos esse filme antes, e ele não acaba bem.
Merval Pereira: A orelha de Bolsonaro
A obsessão do presidente Jair Bolsonaro por informações dos serviços de inteligência faz com que se espalhe pela administração federal uma tendência à bisbilhotice que nos aproxima perigosamente de um estado policial.
Nada explica, a não ser esse ambiente, a existência de uma lista de funcionários públicos considerados “antifascistas”, isto é, opositores do governo, elaborada por uma tal de Secretaria de Operações Integradas (Seopi). Na maioria professores e policiais.
Além de implicitamente admitirem que são fascistas, os que organizaram a lista consideram que servidores públicos têm um dever de lealdade ao governo a que servem. Não é à toa que a Controladoria Geral da República editou recentemente uma norma técnica que proíbe servidores de usarem as redes sociais para críticas a medidas do governo.
Comentários que possam gerar “repercussão negativa à imagem e credibilidade à instituição” merecerão punição administrativa. Isso quer dizer que, além de estarem sujeitos a uma censura nas redes sociais que utilizam em nome pessoal, os funcionários públicos também não se sentirão seguros para utilizarem os canais internos de reclamação.
Esse clima de espionagem foi ampliado por um decreto editado na sexta-feira ampliando não apenas os quadros da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), mas o escopo de sua atuação com a criação de um Centro de Inteligência Nacional que reunirá os órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin).
Esses movimentos todos respondem à exigência do presidente Bolsonaro naquela fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de ter um sistema de informações que não o deixe desprotegido. Vai daí, ao que tudo indica, o ímpeto com que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se jogou na guerra contra a Operação Lava-Jato, pretendendo centralizar em seu gabinete todas as informações que foram coletadas nos últimos cinco anos de investigações e denúncias.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello definiu bem a situação: compartilhamento tem que ter objeto específico, senão vira devassa. O jurista Joaquim Falcão, em live promovida pelo jornal Valor Econômico, chamou a atenção para o fato de que o governo Bolsonaro pretende neutralizar órgãos que têm autonomia funcional garantida pela Constituição, como o Ministério Público e a Polícia Federal que, por sinal, foi o primeiro a sofrer uma interferência direta do presidente da República que está sob investigação do Supremo.
Não tendo podido nomear o amigo de sua família, delegado Alexandre Ramagem, para a chefia da Polícia Federal, Bolsonaro trocou seu comando, provocando a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça, e agora ampliou as atribuições da Abin, aumentando o poder de Ramagem nesse universo, e na unificação dos serviços de informações do governo.
Esses movimentos só comprovam o acerto do STF ao barrar a transferência de dados das companhias telefônicas na integralidade para que o IBGE pudesse fazer pesquisas para o censo neste ano de pandemia. A relatora, ministra Rosa Weber, disse que a medida provisória “não apresenta mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida”.
Foi seguida por 10 dos 11 ministros do STF. O ministro Lewandowski chamou a atenção para o fato de que a maior ameaça ao regime democrático hoje é a crescente possibilidade de que governos autoritários, de qualquer tendência ideológica, tenham acesso a dados pessoais dos cidadãos. Escrevi aqui a favor desse compartilhamento, mas vejo hoje que fui ingênuo. Não estava em análise ali a idoneidade e seriedade do IBGE como instituição, mas um governo que não é confiável.
Há na Sicília uma caverna que o pintor Caravaggio denominou de Orelha de Dionisio, não apenas por seu formato, mas principalmente pela lenda que diz que o tirano Dionisio I de Siracusa usava a caverna como prisão política dos dissidentes e, devido à acústica perfeita, ficava sabendo dos planos dos opositores.
Bolsonaro tem no Palácio da Alvorada uma imensa escultura azul em forma de orelha, que será leiloada num gesto nobre pela primeira-dama Michelle em benefício de associações que cuidam de pessoas com problemas auditivos.
Talvez Freud explique.