Merval Pereira
Merval Pereira: O futuro de volta
André Urani fez parte de uma geração de economistas "cariocas" que começou a se debruçar sobre os caminhos e descaminhos da sua própria cidade. Nascido na Itália, escolheu o Rio para viver e trabalhar. Morto há nove anos, muito jovem, passou seus últimos anos a pensar o futuro da região metropolitana do Rio de Janeiro unida à de São Paulo (e vice-versa).
A conurbação imaginada por André Urani abrangeria cidades dos três estados mais importantes do país, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, em direção a Campos, no Rio de Janeiro, a Campinas, em São Paulo, e a Juiz de Fora, em Minas Gerais. Formariam a "Megalópole Brasileira". Para Urani, o que estava em jogo era, simultaneamente, o revocacionamento de nossas duas principais metrópoles para o Século XXI, e o próprio papel do Brasil no mundo.
Essa e muitas outras idéias surgiram no OsteRio, reunião para debater as principais questões do desenvolvimento do Rio, que se realizou às noites de segunda-feira no restaurante Osteria Dell’ Angolo, em Ipanema. Hoje, o Rio de Janeiro volta a estar às voltas com uma decadência moral, política e econômica.
Já não temos nem a Osteria Dell´Angolo, que fechou com a crise, nem André Urani. Para tentar compensar essas perdas e retomar o debate sobre o futuro do Rio, será lançado em outubro o livro “Maravilhosa para todos” que reúne propostas para o debate sobre o futuro do Rio, dedicado a André Urani, o economista que dedicou sua curta vida a pensar e apostar no Rio.
O foco é na recuperação ética, fiscal, e econômica - com todos os programas voltados para redução da desigualdade da cidade. Usar o avanço tecnológico para dar o salto de qualidade de vida aos cidadãos cariocas com políticas públicas baseadas em evidências, com acompanhamento e avaliação de resultados.
Cerca de 50 pessoas das mais diversas áreas participaram de reuniões virtuais nos últimos dois meses e fizeram os diagnósticos e propostas. São 14 capítulos: Contas públicas, Educação, Saúde, Economia, Mercado de Trabalho, Políticas Públicas, Assistência Social, Segurança Pública, Saneamento, Políticas de Gênero, Mobilidade Urbana, Meio Ambiente e Sustentabilidade, Empreendedorismo e Cultura.
Mesmo organizado por pessoas ligadas ao partido Rede Sustentabilidade (Eduardo Bandeira de Mello, candidato à prefeitura, a ex-vereadora Andrea Gouvea Vieira e o economista Ricardo Barboza do BNDES, e prefaciado por Marina Silva, o livro reúne especialistas de diversas tendências, cujo objetivo é encontrar meios de fazer do Rio o melhor lugar para nascer, crescer, criar, trabalhar e envelhecer.
Escreve Marina: “Não é aceitável acreditar que o Rio “não tem jeito”. Cair nessa armadilha é se deixar levar a uma pulsão de morte. O que precisamos agora é de uma vigorosa pulsão de vida para reagir, ir à luta com toda a garra. O princípio básico desse livro é que o foco da reação deve ser o das políticas públicas. (…) Os profissionais que organizaram e escreveram os capítulos desse livro são grandes especialistas nacionais nos diversos temas que afetam a vida da cidade”.
Economistas de diversas tendências avalizam o livro. Fabio Giambiagi. (ligado ao PSDB) “ (…) Como militante do "Partido dos Cariocas", penso que, qualquer que seja o timoneiro deste nosso Rio tão sofrido nos próximos anos, deveria ter este livro permanentemente ao lado, como objeto de inspiração”. Ricardo Paes e Barros (idealizador do Bolsa Família)“O Rio tem um único destino possível: se tornar um centro de inovação tecnológica, científica e artística de dimensão mundial. Laura Carvalho ( ligada ao Psol) “O esforço de diagnóstico de nossos problemas conjunturais e estruturais para a formulação de um novo modelo de desenvolvimento para o Rio é urgente. Esse livro faz tudo isso de forma excepcional, com base em dados e análises técnicas de alguns de nossos melhores pesquisadores nessas áreas”.
Merval Pereira: Mudança de vento
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, sabe para que lado o vento sopra. Chegou ao cargo por fora da lista tríplice, acenando a Bolsonaro com o controle do Ministério Público, cuja autonomia incomoda políticos de diversos matizes – afinal, a corrupção não tem ideologia – o Judiciário de maneira geral e o presidente Bolsonaro, que era a favor do combate à corrupção até que as investigações chegaram perto dos seus.
O vento, que já soprou a favor da Lava-Jato, hoje venta para o outro lado, mesmo que a popularidade de Sérgio Moro continue alta, com as forças políticas tentando se reorganizar para recuperar o espaço perdido. O centrão já foi reabilitado, figuras como Roberto Jefferson já circulam com desenvoltura no poder, e a Lava-Jato está sendo desidratada, embora ainda existam muitas investigações já começadas ou a começar. Ou por isso mesmo.
Embora a Operação Lava-Jato seja a mais popular, o sistema de força-tarefa em que ela opera está espalhado por todo o país na ação do Ministério Público que atua não apenas no combate à corrupção, mas contra crimes ambientais, trabalho escravo, e vários outros assuntos.
Como não existe uma norma que regulamente o funcionamento de forças-tarefas, e os procuradores têm, pela Constituição, autonomia na investigação, a Procuradoria-Geral da República não tem interferência na maneira como essas diversas forças-tarefas se organizam. Na visão da Procuradoria-Geral, esse sistema, que reúne especialistas de diversas áreas a fim de investigar determinado assunto, “está esgotado, é desagregador e incompatível com a instituição”.
Embora não possa interferir diretamente nas investigações, Augusto Aras pode controlar as forças-tarefas pela gestão dos recursos, que é de sua alçada. O pedido de demissão do cargo de Anselmo Lopes, procurador-chefe da Operação Greenfield, que investiga um desvio dos fundos de pensão de bancos públicos e estatais, deveu-se à falta de condições para prosseguir o trabalho, pois a equipe, que já contou com cinco procuradores, ficará apenas com ele em dedicação integral devido à recusa da PGR de prorrogar o empréstimo de dois procuradores que estavam ali alocados.
O mesmo expediente foi adotado na Lava-Jato de São Paulo, que perdeu três procuradores de tempo integral e em Curitiba, onde os procuradores terão de acumular os casos da força-tarefa com outros de outras origens. Além de terem perdido o coordenador, Deltan Dallagnol, devido a problemas de saúde na família que o impedem de continuar enfrentando os ataques que sofre, inclusive no Conselho Nacional do Ministério Público, onde Aras tem influência.
O pretexto de reorganizar as forças-tarefas embute a vontade política de controlar as investigações, o que aumentará o cacife do Procurador-Geral Augusto Aras no xadrez político de Brasília. Ele alega que o pedido de demissão coletiva de sete procuradores da Lava-jato em São Paulo deveu-se a uma disputa interna, no que está tecnicamente correto.
No entanto, essa desavença só existiu porque Aras, com suas críticas permanentes à atuação da Lava-Jato, estimula dissidências e se beneficia de informações internas na sua luta contra o “lavajatismo”, como pejorativamente se refere à principal força-tarefa do Ministério Público.
Foi em relatos da procuradora Viviane de Oliveira Martinez que Aras se baseou para dizer que a distribuição de tarefas não seguia as normas, mas os interesses dos procuradores. Ao minar a força-tarefa, não só se coloca como uma alternativa para Bolsonaro na escolha do substituto de Celso de Mello, como no mínimo ganha mais força enquanto Procurador-Geral.
A decisão de renovar em prazos curtos, de até dois meses, o funcionamento das forças-tarefas e de seus integrantes, imobiliza as equipes, que não podem ter uma visão de médio prazo pelo menos para as investigações. A neutralização das forças-tarefas, principalmente as que têm mais importância política, faz parte de um conjunto de medidas que estão sendo tomadas no Judiciário e no Congresso para evitar que o Ministério Público exerça suas tarefas autonomamente, sem interferências políticas.
Merval Pereira: Mirando o futuro
O funcionalismo público no Brasil é tema recorrente na nossa história, alvo de críticas e ambições, e de politicagem desde sempre. A ponto de ter sido mote de uma marchinha de carnaval na interpretação de Blecaute em 1952: “Maria Candelária/ É alta funcionária/ Saltou de paraquedas/ Caiu na letra O/ Oh,oh,oh/ Começa ao meio-dia/ Coitada da Maria, trabalha de fazer dó/ A uma vai ao dentista/ Às duas vai ao café/ Às três vai à modista/ Às quatro assina o ponto e dá no pé/ Que grande vigarista ela é”.
Muita coisa mudou de lá para cá, os concursos públicos passaram a ser obrigatórios, mas ainda há funcionários que caem de paraquedas, agora nos DASs (cargos de direção e assessoramento superior) ou em funções gratificadas. O golpe do paletó na cadeira, sem que o dono esteja na repartição, ainda é comum.
A principal decisão da reforma administrativa apresentada ontem ao Congresso é a que retira a estabilidade de todos os funcionários, garantida apenas às carreiras de Estado, e impõe a avaliação de resultados dos futuros servidores públicos.
Os diplomatas, por exemplo, continuarão protegidos pela estabilidade, mas o ascensorista do Ministério das Relações Exteriores, não mais. Nem os demais funcionários desse e de outros órgãos de Estado que não forem da carreira, como na Receita Federal, no Banco Central ou na Polícia Federal, entre outros que serão definidos em lei complementar.
Os responsáveis pela reforma mostraram que há diversos órgãos com cargos idênticos e salários diferentes. Também salários desiguais na entrada de vários órgãos, o que também influencia a carreira como um todo. Um servidor da mesma categoria pode se aposentar com maior salário que um outro do mesmo nível, só por estar no ministério ou no órgão que oferece mais vantagens.
Além da bagunça de gestão, isso impede que um servidor de determinado ministério possa ser transferido para outro, para fazer o mesmo trabalho, e possibilitar que não seja contratado um novo funcionário. Mesmo os de carreiras de Estado serão submetidos a um período de experiência e só terão estabilidade depois de dez anos de atividade.
Essa é uma boa medida, pois os que entram na Receita Federal ou no Itamaraty estão lá para fazer carreira, e não em busca da estabilidade, que virá como decorrência da necessidade da função de Estado. Haverá também avaliação de desempenho do servidor. O objetivo é garantir a boa qualidade do serviço público, especialmente nos estados e municípios, para um futuro próximo.
O funcionamento similar ao setor privado alcançará apenas os que entrarem no serviço público depois da aprovação das mudanças no Congresso. O que for mudança constitucional, como a estabilidade, pega todos os funcionários. Mas o detalhamento que virá nas legislações, cada estado e município terá que fazer a sua reforma, sob a orientação do que for aprovado no Congresso.
A crítica de que a reforma não terá efeitos imediatos, pois só entrará em vigor quando forem sendo aposentados os atuais servidores, deixa de levar em conta a impossibilidade de uma reforma radical sem que os privilégios fossem judicializados como direitos adquiridos: licença-prêmio, adicional por tempo de serviço, promoção por tempo de serviço, entre outros.
Mesmo as vantagens que já haviam sido extintas continuam vigorando em alguns estados e municípios. O poder que o Executivo recebe na reforma, permitindo que possa fazer uma reorganização da estrutura governamental a seu modo, sem que seja preciso aprovação do Congresso, tem uma lógica correta de desburocratização, mas permitirá que um presidente eleito extinga órgãos e crie outros por uma tendência política. Só não poderá aumentar gastos como sua reforma pessoal.
Essa abertura dá chance a que, a cada governo eleito, a estrutura do Estado seja modificada, o que trará prejuízos à proposta de melhorar o serviço público. Será preciso impor certos limites. Mesmo que não precise de autorização, o presidente enfrentará a oposição do Congresso se quiser fazer mudanças prejudiciais à defesa do meio ambiente, para pegar um exemplo atual.
Merval Pereira: Enfim, a reforma
A Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa aguarda a remessa da reforma pelo governo, prometida para hoje, para dar concretude às diversas propostas que já estão em discussão. O senador Antonio Anastasia, vice-presidente da Frente, que é presidida pelo deputado Tiago Mitraud, considera que, entre os temas mais importantes, o principal é a questão do vínculo jurídico dos servidores, com o fim da universalidade do regime único, a permissão de contratação por outros regimes jurídicos, que precisa de mudança constitucional.
Significaria mudança da estabilidade, eventual mudança de tipos de concursos públicos, permitiria também tornar ainda mais explícita a questão do teto remuneratório, das vantagens, e dar diretrizes gerais sobre as carreiras.
A proposta do governo deve ir ao encontro do que pensam os membros da Frente, permitindo que novos concursados sejam contratados sem previsão de estabilidade, com exceção das chamadas “carreiras de Estado”, como diplomatas. Hoje, a Constituição prevê que todos os servidores se tornam estáveis após um “estágio probatório” de três anos.
O senador mineiro acha que esse estágio hoje é “uma ficção”, e a proposta do governo deve conter um período de mais sete anos para os servidores públicos ganharem estabilidade. A Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa acha que, em se tratando de organização, é preciso dar mais flexibilidade, especialmente ao Executivo, desde que não se criem despesas.
O senador Anastasia lembra que, no ano passado, “ficamos aqui no Congresso discutindo se o Coaf é do Ministerio da Justiça ou da Fazenda. Não é matéria de lei, o órgão não está sendo criado, no mundo todo, o Executivo decide onde deve alocar”.
Além de temas que necessitarão de emendas constitucionais, Anastasia lembra que vai ser preciso também “uma infinidade de leis que vão tratar de avaliação de desempenho, remuneração variável, a questão das carreiras, valor de ingresso, forma de progressão”.
Os membros da Frente temiam que não viesse nada sobre a reforma administrativa este ano e consideram que o provável envio de uma proposta de emenda constitucional (PEC) “já é um bom início, o assunto começa a ser debatido”. Ao contrário das reformas tributária e previdenciária, que se exaurem praticamente numa lei só, o senador Antonio Anastasia diz que, no caso da administrativa, “é um processo dinâmico”.
O Brasil ficou muito tempo parado, com as corporações impedindo alterações. Exemplo disso é a lei do teto remuneratório, que foi votada no Senado em 2016 e está na Câmara parada até hoje.
O senador Anastasia acha que o ministro da Economia, Paulo Guedes, “foi sábio, política e tecnicamente” ao destacar que a reforma administrativa não atinge os atuais servidores, mas abre uma perspectiva de futuro. Assim, “não vai ter contra si os funcionários públicos. Muitas vezes a pessoa é contra sem nem saber o que é. A reforma administrativa é a favor dos bons funcionários, que são a maioria. Ela é contra os abusos, as desigualdades, privilégios”.
Sobre as críticas de que a reforma deveria atingir o sistema atual, Anastasia lembra que “colocando daqui para a frente, evita a questão do direito adquirido, evita questões judiciais, não fere nada de ninguém”. Se tivéssemos feito isso 20 anos atrás, hoje estaríamos muito melhor, ressalta.
Outra área que precisa entrar na reforma são as agências reguladoras, nascidas de uma boa ideia no governo Fernando Henrique Cardoso que foi “violentada”, segundo Anastasia. “As agências foram cooptadas por uma estrutura política, infelizmente.”
A Frente Mista defende uma agência nova, concebida para formar servidores de uma boa gestão pública. O senador Antonio Anastasia lembra o papel do Dasp (Departamento Administrativo do Serviço Público), “que, de 1938 a 1985, foi uma referência nacional de alta qualificação técnica. Nada foi colocado no lugar quando foi extinto, e esse tema da gestão pública ficou órfão, não tivemos uma cultura consolidada”.
Pelo conceito da Frente Mista, temos que criar uma agência técnica, com gente preparada, blindada da política, como vários países têm, exatamente para dar as diretrizes do serviço público brasileiro. “Temos que formar quadros, fazer avaliação, critérios de participação social, atuação cidadã.”
Merval Pereira: Não há intervenção
A triste coincidência da saída do coordenador da Operação Lava-Jato Deltan Dallagnol, provocada por problemas de saúde em sua família, e os embates políticos que ele vinha tendo com opositores políticos e no Judiciário deu mais uma vez motivos para teorias conspiratórias. Esta teria sido uma exigência do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, para prorrogar o funcionamento da força-tarefa, que se encerraria no dia 10.
Essa ilação, no entanto, não resiste aos fatos. A subprocuradora-geral da República Maria Caetana Cintra Santos, que integra o Conselho Superior do Ministério Público Federal, antecipou-se a Aras e concedeu uma liminar prorrogando por mais um ano a força-tarefa de Curitiba, logo depois do anúncio de Dallagnol de que teria que deixar o cargo de coordenador da força-tarefa.
A sub-procuradora enviou então a decisão para o próprio Augusto Aras, que não colocara na pauta do Conselho Superior, como ela pedira, a prorrogação. Se depender da opinião dos procuradores de Curitiba, e do próprio Deltan Dallagnol, nada mudará na Operação Lava-Jato com sua substituição pelo procurador Alessandro Oliveira.“Não aceitaríamos uma intervenção. Aconteceria uma debandada”, garante Dallagnol, que foi quem ligou para Alessandro para propor a troca de funções.
O procurador que coordenará a Operação Lava-Jato é considerado uma pessoa séria e capaz, com estilo negociador, que já conhece como funciona a força-tarefa em Curitiba, de onde é originário. Esse conhecimento da operação e dos demais membros que dela fazem parte é outro motivo para tranquilizar os procuradores que ficarão no posto mesmo com a saída de Dallagnol.
As decisões são tomadas em conjunto pelos 14 procuradores da equipe, e Dallagnol avalia que deram muita importância individual à sua atuação sem entender que as decisões são tomadas por consenso. Deltan Dallagnol, que é evangélico da Igreja Batista, aceita com resignação os problemas de saúde de sua filha de 1 ano e 10 meses: “Deus nos manda dias de sol e dias de chuva. Agora é o momento de fazermos todo possível para sermos os melhores pais que pudermos”.
O diagnóstico definitivo sairá dentro de cerca de dois meses, mas o que já foi detectado pede ação imediata, com terapia que exige a presença dos pais. A filha tem problemas de “poda neural”, que pode surgir em crianças a partir de 1 ano e meio. “Identificamos sinais que nos preocuparam em nossa bebezinha. Ela parou de falar algumas palavras, deixou de olhar para a gente nos nossos olhos e rostos, e também quando nós a chamamos. A nossa filhinha está passando por uma série de exames e terei que me dedicar como pai. E isso não pode esperar”, afirma o procurador.
Ele explica que pais que identificarem esse tipo de sinais devem buscar atenção médica. A filha está passando por uma série de exames para um diagnóstico que deve demorar pelo menos 9 semanas, “mas os profissionais da saúde já identificaram que, independentemente da causa, é preciso uma intervenção imediata com terapias. A intervenção precoce nesse tipo de situação pode fazer toda a diferença em razão da plasticidade cerebral e capacidade do cérebro de fazer novas redes neurais, agora isso depende de estímulos certos”.
Ele está esperançoso, pois pesquisas avançaram nas últimas décadas e há métodos e técnicas que exigirão o conhecimento dos pais. Dallagnol conta que, segundo uma especialista consultada ontem, “quanto mais tempo investirmos, melhores serão as condições para ela se desenvolver, sendo possível até seu desenvolvimento pleno”.
Ela recomendou, entre terapias e tratamentos formais e domésticos, 40 horas semanais. “Isso exigirá dedicação intensa da família. Após o período de transição, para passar com responsabilidade as funções que exerço, tirarei férias para estudar, treinar e cuidar da nossa filhinha”.
Merval Pereira: "Recesso democrático"
O afastamento do governador do Rio Wilson Witzel trouxe à tona uma discussão política da mais alta importância para a democracia brasileira, sobre a possibilidade de que o governo autoritário do presidente Bolsonaro esteja manobrando o Judiciário com o objetivo de controlá-lo politicamente.
Não seria a primeira vez que democracias aparentes camuflariam o autoritarismo em vigor. Considerar que o ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), tenha tomado a decisão cautelar para se posicionar como candidato à próxima vaga do Supremo é uma desinformação, pois ele já tem idade superior ao limite de 65 anos para ser indicado para o STF.
Também a decisão não foi ilegal, pois o Supremo deu ao STJ o poder de determinar medidas cautelares contra governadores, sem que seja preciso ouvir a Assembléia. Não é provável, portanto, que o recurso da defesa do governador ao STF seja analisado antes da decisão do plenário do STJ, que tem reunião marcada amanhã para provavelmente avalizar a decisão de Benedito Gonçalves.
O que se tem criticado é o cuidado que ele poderia ter tido de esperar uma decisão do plenário que o fortaleceria, pois afastar um governador é assunto político delicado. Se, eventualmente, o presidente do STF, Dias Toffoli, resolver desautorizar o ministro do STJ, pode haver um choque entre instâncias judiciais.
De qualquer forma, a sobrevida política de Witzel seria curta, pois dificilmente ele escapará do impeachment na Assembléia Legislativa, que deverá estar concluído nas duas ou três próximas semanas.
O vice-governador Claudio Castro, que ontem anunciou com euforia subserviente um telefonema de apoio que recebeu do senador Flavio Bolsonaro, assume muito fragilizado, porque também é investigado, e é possível que, no decorrer da investigação, ele também seja afastado. A interferência do filho do presidente, embora seja representante do Rio de Janeiro no Senado, acrescenta mais dúvidas sobre se o afastamento do governador não beneficiará diretamente o clã Bolsonaro.
O governador interino Claudio Castro escolherá o próximo procurador-chefe do Ministério Público Estadual, que comanda as investigações sobre a “rachadinha” no gabinete de Flávio quando era deputado estadual, comandada pelo notório Queiroz.
Mesmo que queira, porém, será muito difícil que influencie os procuradores estaduais para que indiquem um colega bolsonarista para o cargo numa lista tríplice obrigatória, de onde sairá o escolhido.Todas essas teorias de conspiração surgem porque vivemos tempos estranhos, em que diversas vezes vimos tentativas de contornar os limites legais para impor a vontade do Executivo.
Decisões judiciais discutíveis que beneficiaram a família Bolsonaro foram tomadas, constatamos cotidianamente a disputa entre dois ou três candidatos à vaga do Supremo para ver qual agrada mais o presidente. Essa situação fez com que o ministro do Supremo e vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Edson Fachin se pronunciasse duas vezes nos últimos dias contra o que chamou de “processo autoritário”.
Sem se referir diretamente a Bolsonaro, o ministro citou o livro “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: “ (…) saber que é possível, sim, criar isso o que podemos chamar de endoautoritarismo, ou seja, manter-se um verniz democrático e, por dentro as instituições serem corroídas a tal ponto que o hospedeiro, que é a democracia, seja destruído pelo parasita, que é o autoritarismo”.
Fachin afirmou várias vezes que existe um “cavalo de Tróia” dentro da legalidade constitucional do Brasil, “que apresenta laços com milícias e organizações envolvidas com atividades ilícitas. Conduta de quem elogia ou se recusa a condenar ato de violência política no passado”.
Esse “recesso democrático” que estamos vivendo, de acordo com Fachin, também foi referido pelo ministro Luis Roberto Barroso, presidente do TSE e seu colega no Supremo, mas com uma visão mais otimista, embora diga que precisamos sempre ficar atentos: “Temos um presidente que defende a ditadura e a tortura, e ninguém defendeu solução diferente do respeito à liberdade constitucional. (…) A democracia brasileira tem sido bastante resiliente, embora constantemente atacada pelo próprio presidente”
Merval Pereira: O julgamento
Ao ler que Cristiano Zanin, o advogado do ex-presidente Lula, está cobrando do Supremo Tribunal Federal (STF) uma decisão “o mais breve possível” sobre o habeas-corpus que pede a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro nos julgamentos que condenaram Lula, sendo notório que a Segunda Turma está desfalcada do ministro Celso de Mello por questões de saúde, fiquei com a sensação de que o advogado está querendo aproveitar-se da circunstância para conseguir a anulação das condenações.
É sabido que dois ministros da Segunda Turma, Edson Fachin e Carmem Lucia, já votaram a favor de Moro, restando agora apenas mais dois votos, os de Gilmar Mendes e Lewandowski, que já deram indicações do que pensam ao anular um julgamento de anos atrás no processo do Banestado, considerando Moro parcial.
O frequente empate na Segunda Turma tem favorecido os réus, como manda a jurisprudência, e Zanin está disposto a aproveitar essa brecha para, enfim, conseguir anular as condenações de Lula, o que o tornaria novamente ficha-limpa, permitindo que se candidate à presidência em 2022.
Lembrei-me, então, de uma palestra que o escritor Deonísio da Silva fez num ciclo sobre Guimarães Rosa da Academia Brasileira de Letras (ABL) em 2018, sob o título “O julgamento de Zé Bebelo e a Lava-Jato”, sobre o romance “Grande Sertão, Veredas”. Deonísio Silva compara Lula a Zé Bebelo e Moro a Joca Ramiro:
“Zé Bebelo está quase derrotado, comanda nove homens e quando seu bando conta com apenas três, Riobaldo, para salvar a vida do ex-chefe e ex-aluno, grita “Joca Ramiro quer este homem vivo”.
Sem saída, Zé Bebelo descarrega a arma no chão antes de ser preso e, quando os inimigos tiram-lhe o punhal, ele diz: “Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento correto legal”.
Diante de Joca Ramiro imponente, montado em cavalo branco, Zé Bebelo a pé, rasgado e sujo, requer: “Dê respeito, sou seu igual”. Ouve de Joca Ramiro: “se acalme, o senhor está preso”.
É quando toda a jagunçada vai para a Fazenda Sempre-Verde. Zé Bebelo, de mãos amarradas, é conduzido em cima de um cavalo preto, na rabeira da tropa. Relata Deonísio Silva:
“Réu em inusitado julgamento no pátio da Fazenda Sempre-Verde, o jagunço letrado Zé Bebelo, salvo por Riobaldo, seu ex-professor, conduz o próprio julgamento. No insólito tribunal, os juízes são outros cangaceiros, liderados pelo grande chefe Joca Ramiro, todos sob o olhar misterioso de um jagunço que é jagunça: Reinaldo/ Diadorim.
A Lava a Jato pode inspirar outra leitura deste curioso episódio de Grande Sertão: Veredas, em que o sertão é assim definido: “Sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!” E mais: “onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade.”
“O Brasil também já foi assim. E agora chegamos à encruzilhada onde tribunais superiores estão decidindo se continuará assim ou se mudará. Fazendo as vezes de um Sérgio Moro do sertão, o jagunço Joca Ramiro, conhecido por sua lealdade e senso de justiça por todos os cangaceiros, tem diante de si um réu audacioso, solerte e a seu modo leal e sagaz.
“Zé Bebelo é um réu que dirige o julgamento, fixa limites de suas penas e traça as condições para cumpri-la: receber montaria, escolta, água e comida na viagem para Goiás, onde promete fixar-se, deixando de combater os ex-companheiros de luta, como vinha fazendo até ali. Mas se consegue obrar todos estes feitos é porque Joca Ramiro é um juiz ainda mais sagaz do que o réu.” E sobrevém o desfecho: Zé Bebelo é libertado sob condições que o próprio réu impõe.”
Julgar o habeas-corpus de Lula sem a Segunda Turma completa, como pretende o advogado Cristiano Zanin, seria uma afronta. O mais provável é que o ministro Gilmar Mendes espere a volta dos trabalhos presenciais, no próximo ano, quando o STF já terá o novo componente da Corte. A composição final das Turmas pode sofrer alterações, pois o novo ministro, que deveria assumir o lugar de Celso de Mello, pode ser deslocado para a Primeira Turma para não ter que enfrentar um julgamento tão difícil.
O atual presidente do STF, ministro Dias Toffoli, deve ir para a Primeira Turma no lugar de Luis Fux, que assume a presidência em setembro. Haverá uma disputa interna para saber quem será o quinto membro da Segunda Turma.
Correção
Na coluna de ontem utilizei a forma “enebriar”, quando o correto é a atual “inebriar”. Na versão digital foi corrigido
Merval Pereira: O amanhã do Rio
“Como será amanhã? /Responda quem puder/ O que irá me acontecer/ O meu destino será/ Como Deus quiser”. O belíssimo samba-enredo da União da Ilha de 1978, cujo refrão caiu na boca do povo, é de autoria de João Sérgio e do procurador da República Gustavo Adolfo de Carvalho Baeta Neves, que se assinava simplesmente Didi para enganar a família, que não queria vê-lo envolvido nas escolas de samba.
Pois a letra do magistrado define bem a situação de seu colega de Judiciário, o ex-Juiz e governador afastado do Rio Wilson Witzel, cuja carreira política meteórica deve ter tido um ponto final ontem com o afastamento decretado pelo ministro Benedito Gonçalves do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Mas não define a situação dramática do próprio Estado, que já teve nada menos que seis governadores presos ou investigados. Nesse caso, o futuro pertence aos próprios cidadãos, que têm escolhido mal há anos, levando o Estado à situação de bancarrota moral e financeira.
O Rio de Janeiro vive já há algum tempo situação similar à do Espírito Santo em 2003, com os poderes do Estado dominados por milícias e traficantes. A eleição de Paulo Hartung deu uma virada no Estado, que se recuperou econômica e moralmente.
O afastamento do governador Wilson Witzel é uma repetição impressionante da política do Rio, inclusive da cadeia sucessória: governador afastado, vice-governador e presidente da Assembleia investigados. Nunca a frase de Marx foi tão apropriada.
Repete-se como farsa o que aconteceu com o ex-governador Sérgio Cabral, condenado a 300 anos. É a segunda vez nos últimos meses que a polícia entra no Palácio Laranjeiras para fazer vistoria na casa do governador Witzel, que conseguiu pelo menos licença para morar lá nos próximos seis meses.
Acho que não terá esse tempo todo, pois ontem o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes liberou a Assembléia do Rio para prosseguir o processo de impeachment, que estava suspenso.
Não desconheço o interesse dos Bolsonaro na política do Rio - são políticos daqui, o que confirma a nossa triste tendência para o baixo clero da política e, depois de ajudarem a eleição de Witzel, confrontaram-se, num erro político do governador afastado que só a megalomania explica. Enebriado pela vitória surpreendente no Rio, Witzel lançou-se candidato à presidência da República na sucessão de Bolsonaro.
Imaginando que o presidente estava a caminho da inviabilização política, rompeu com ele. Perdeu o eleitorado de direita, e não ganhou a classe média do Rio, que tentou cooptar com o anúncio de uma política de segurança pública desastrosa, que provocou muitas mortes de inocentes nos embates da polícia com os traficantes, que tinham suas cabeças literalmente a prêmio. “Tem que acertar na cabecinha”, anunciou o governador, autorizando ações irresponsáveis da polícia. Portanto, a euforia do presidente Bolsonaro diante do afastamento de seu adversário político tem explicação, mas é inaceitável, especialmente para um presidente que tem seu reduto eleitoral no Rio.
Não acredito, no entanto, que o ministro do STJ Benedito Gonçalves tenha tomado decisão tão grave como parte de uma conspiração política para ajudar o presidente, como acusa Wilson Witzel. Houve uma investigação séria sobre um esquema de corrupção terrível na Saúde do estado. É natural que Witzel tente se defender, invente conspirações, mas não creio que seja verdadeiro. A razão principal são as provas coletadas, “robustas”.
Nesse ponto é que o amanhã do Estado do Rio entra na história. Até o momento, quem governa o Estado é o vice-governador Claudio Castro, pois não existe nenhum impedimento legal contra ele. Mas moralmente começa seu mandato fragilizado, pois está sendo investigado na mesma Operação da Lava-Jato, assim como o presidente da Assembléia Legislativa, André Ceciliano.
Ambos podem ser afastados no andamento das investigações. O que nos levaria a novas eleições para governador. Se, o que parece improvável, a situação se definir até o fim deste ano, teríamos eleições diretas. Se a definição ficar para o próximo ano, seria convocada uma eleição indireta, para a escolha do governador pela Assembléia Legislativa. Diante do que tem acontecido por lá, é provável que surja um movimento a favor de eleições diretas, o que seria a melhor solução para a tentativa de reconstruir o Rio.
Merval Pereira: Mandatos cruzados
Surpreendente, devido às posições anteriores de contenção do foro privilegiado, mas nem tanto, pelas decisões recentes alinhadas ao governo Bolsonaro, o posicionamento da Procuradoria-Geral da República (PGR), defendendo que o Supremo Tribunal Federal (STF) recuse o recurso do Ministério Público do Rio de Janeiro que questiona decisão do Tribunal de Justiça do Rio a favor do foro privilegiado do senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas” não tem como prosperar se a jurisprudência do Supremo for seguida, como tem sido até hoje.
O caso mais emblemático é o do atual deputado e ex-senador Aécio Neves, cujos casos foram enviados para a primeira instância em decisões das Primeira e Segunda Turmas. No de Flavio Bolsonaro, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio fez com que as investigações voltassem para o STF.
Estavam na primeira instância pelo entendimento de que os casos ocorreram quando ele era deputado estadual, e, portanto, pela interpretação do Supremo de 2018 de que o foro privilegiado só serve para crimes cometidos no exercício do mandato e em função dele, não tinham nada a ver com o atual cargo de senador.
A grande discussão levantada tanto pela defesa de Flavio Bolsonaro quanto pela PGR é sobre “mandatos cruzados” ou “mandatos prolongados”, quando um político passa de um cargo para outro em eleições seguidas, que não estariam tratados na decisão do Supremo. “Da mesma forma que não há definição pacífica do Supremo Tribunal Federal sobre ‘mandatos cruzados’ no nível federal, também não há definição de ‘mandatos cruzados’ quando o eleito deixa de ser representante do povo na casa legislativa estadual e passa a ser representante do Estado da Federação no Senado Federal (câmara representativa dos Estados federados)”.
Alegando que não há essa definição, a PGR diz que a reclamação do Ministerio Público do Rio é indevida pois “não pode ser usada para alcançar entendimento inédito” no STF. Essa falta de definição é questionada em particular por muitos dos ministros do Supremo, mas o ministro Marco Aurélio Mello já se pronunciou na ocasião, afirmando que a decisão "desrespeitou, de forma escancarada" o entendimento do STF sobre o alcance do foro privilegiado.
A Primeira Turma do STF, acompanhando por maioria o parecer do próprio Marco Aurélio, decidiu no ano passado enviar para a Justiça Federal de São Paulo inquérito que investigava denúncias de dirigentes da JBS sobre fatos ocorridos quando Aécio Neves era senador por Minas Gerais.
Os deputados estaduais são julgados pelos Tribunais de Justiça, mas deputados federais e senadores são da alçada do Supremo. Diferentemente de Flavio Bolsonaro, que mudaria de instância, Aécio Neves poderia alegar que continuava sob a jurisdição do STF, pois passou de senador a deputado federal.
Mas o relator, ministro Marco Aurélio, entendeu que os casos aconteceram num mandato que já se esgotara e, portanto, o deputado mineiro já não não tinha foro privilegiado em relação a eles. Por esse entendimento majoritário no STF, tanto Aécio quanto Flavio não têm mais o mandato em que os fatos ocorreram, e portanto devem ser julgados como qualquer outro cidadão, na primeira instância.
Também os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, da Segunda Turma, em que o presente caso de Flavio Bolsonaro será julgado, enviaram inquéritos de Aécio para a Justiça Eleitoral. A maioria dos ministros do Supremo considera desnecessária a especificação cobrada pela Procuradoria-Geral da República, pois ambas as Turmas têm usado a mesma interpretação da legislação.
Se houver, no entanto, uma mudança de entendimento da Segunda Turma, é certo que será preciso uma revisão do plenário, para dirimir dúvidas sobre os “mandatos cruzados”. Mesmo que a decisão futura do plenário não favoreça a tese do Tribunal de Justiça do Rio, que lhe deu foro privilegiado no STF, o senador Flavio Bolsonaro não perderia esse privilégio, pois a lei só retroage em benefício do réu, nunca contra.
Merval Pereira: Lava-Jato sob risco
Duas decisões da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) dão indicações de que as decisões judiciais geradas pela Operação Lava-Jato estão a ponto de serem revistas.
A ausência do ministro Celso de Mello por doença transformou a Segunda Turma, que já foi chamada de Jardim do Éden, no refúgio mais seguro para os críticos do ex-juiz Sérgio Moro (foto) e dos procuradores da Lava-Jato.
Não se trata de acusar os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, mas de constatar que, por circunstâncias aleatórias, o pensamento dos dois em relação à ação da força-tarefa de Curitiba prevalecerá nas questões penais, pois o empate favorece sempre os réus.
A presença do ministro Edson Fachin, o relator da Operação Lava-Jato no Supremo, atrai para a Segunda Turma todos os processos sobre a operação, o que significa que o empate permanente favorecerá sempre os que a questionam.
As decisões tomadas na terça-feira, embora se refiram a casos fora da Lava-Jato, indicam o que poderá acontecer quando chegar a hora de julgamentos que lhe digam respeito, especialmente a ação que acusa o ex-juiz Sérgio Moro de ter sido parcial contra o ex-presidente Lula.
O STF, representado pela Segunda Turma, derrubou uma sentença de Moro condenando um doleiro no caso do Banestado, anos atrás, alegando que o juiz foi parcial ao incluir no processo documentos fora do prazo.
Moro, em nota, afirma que o Código de Processo Penal lhe confere o direito de mandar juntar aos autos documentos necessários, e lembra que a condenação foi avalizada pelo TRF-4 e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em outra decisão, pela primeira vez o Supremo aceitou um pedido de anulação de delação premiada feita por investigados na Operação Pelicano, sobre desvio de dinheiro público por fiscais de renda em Curitiba.
Um deles denunciou o grupo, que entrou no Supremo para anular a delação premiada, alegando ilegalidades no acordo entre o delator e o Ministério Público. Os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski afirmaram que o caso em pauta era especial, pois havia ilegalidades evidentes.
A Segunda Turma está reduzida a quatro, ministros, com posições claramente definidas nas questões criminais. Fachin e Carmen Lucia a favor da Lava-Jato como instrumento de combate à corrupção. Gilmar Mendes e Lewandowski vêem ilegalidades neste combate à corrupção, que anulariam a maioria das decisões.
Consideram, inclusive, Sergio Moro parcial, quase um ativista político.
Essas decisões da Segunda Turma preparam o futuro, que tem o ponto alto no julgamento da parcialidade ou não do juiz Sérgio Moro nas condenações do ex-presidente Lula.
Ação que já começou a ser julgada, com os votos dados a favor de Moro pelos ministros Fachin e Cármen Lucia. A definir se num caso como o do Lula, tão importante, o ministro Gilmar Mendes, que pediu vista e é quem prepara a pauta da Turma, vai colocar em julgamento com a Turma desfalcada, se vai esperar Celso de Mello voltar, ou ainda se vai esperar a mudança do ministro para fazer o julgamento com a Turma completa.
Evidentemente, os ministros que têm visão crítica em relação à Lava-jato abriram caminho para que investigados entrem com processos contra as delações, e também, condenando por parcialidade o juiz Sergio Moro no caso do Banestado, estão indicando suas posições.
O julgamento de Deltan Dallagnol, coordenador dos procuradores de Curitiba, definiu que o caso estava prescrito e não poderia ser julgado. Só que julgaram. Todos deram suas opiniões, criticaram a Lava-jato, criticaram os procuradores. Por que fizeram isso?
No final, o advogado do Lula, Cristiano Zanin, disse que ia juntar a opinião dos ministros do CNMP para reforçar os processos no Supremo.
Está tudo sendo armado para que esse corpo estranho no Judiciário, a operação Lava-Jato, os juízes de Curitiba, o direito penal de Curitiba, como diz o ministro Gilmar Mendes seja controlado.
Merval Pereira: Com qual roupa?
Discute-se no entorno do presidente se ele deve largar de lado a fantasia que usou nos meses recentes e reassumir seu verdadeiro eu, agressivo e desbocado, ou se deve continuar calado, sem se manifestar, como se fosse uma pessoa sensata que pensa antes de falar.
A cautela que manteve desde a prisão de Fabrício Queiroz, recomendada pela imprevisibilidade das consequências, trouxe dividendos para sua melhora de popularidade, ou ela deveu-se apenas ao auxílio emergencial para a Covid-19?
As bravatas pessoais são características dos populistas. Collor já disse que tinha “aquilo roxo”, Trump se vangloria de suas proezas sexuais, Bolsonaro diz que não toma “aditivo” para fazer sexo, Putin aparece a cavalo, com o torso nu, para mostrar o físico de atleta, do qual se orgulha também Bolsonaro - Maçaranduba, que promete “porrada” e chama os críticos de “bundões”.
Cada um lida ou lidou com suas circunstâncias, mas nenhum tentou ser outra pessoa. A personagem “Lulinha, Paz e Amor” foi criada pelo marqueteiro Duda Mendonça para permitir a entrada do candidato do PT nas classes média e alta, que ele não atingia.
Acabou virando verdade, na aparência. Lula confessou certa vez que nascera para vestir bons ternos, se sentia mais à vontade neles do que com o macacão de metalúrgico. Mas Lula estava em campanha desde 1989, e a imagem que vendeu nas disputas que perdeu era seu perfil real, o “sapo barbudo”.
Quando se reinventou, em 2002, ganhou a eleição, para só retornar ao “sapo barbudo” no segundo mandato. Bolsonaro ainda está no primeiro estágio, comendo pão com leite condensado, vestindo camisa de time de futebol, usando sandália Rider, falando uma língua parecida com o português, naquele tom militar que o define.
Não precisou se reinventar para vencer a eleição, mas encontrou ambiente propício para suas bravatas, que já não existe mais. Mesmo levando-se em conta que Bolsonaro melhorou sua popularidade, ele só vence Collor nas pesquisas realizadas no mesmo período do mandato. Lula já teve 85% de popularidade, e os petistas costumavam gozar os 15% contrários: “Vivem em que mundo?”.
Hoje são mais de 60% com visão crítica de Bolsonaro. Como ele vem acelerando o processo, menos cauteloso do que a política recomenda, pode ser que apresse também seu fim. Nada indica que o caso do Queiroz vá terminar em pizza, tamanhas são as evidências.
Se comprovadas, as ilegalidades cometidas antes de assumir a presidência não poderão ser julgadas durante seu mandato. Mas ele pode ser investigado, e terá que explicar, por exemplo, por que a primeira-dama recebeu R$ 89 mil de Queiroz em sua conta bancária. Politicamente estará fragilizado, ainda mais que os filhos também estão envolvidos nessa investigação da “rachadinha”.
O senador Flavio Bolsonaro luta para garantir seu foro privilegiado, mas a jurisprudência atual do STF vai de encontro ao seu pleito, pois o caso teria ocorrido quando era deputado estadual, e o Supremo hoje entende que o foro é do cargo, não da pessoa que o ocupa.
Outro acólito metido em trapalhadas é o advogado Frederick Wassef, que pode envolver o presidente em casos atuais, ocorridos no decorrer desses primeiros meses de mandato. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) já identificou pagamentos de serviços médicos para Queiroz feitos por Wassef, que o abrigava em uma casa em Atibaia, e depósitos de milhões de reais em sua conta de uma empresa de sua ex-mulher que tem contratos com o governo federal.
Bolsonaro pessoalmente usou seu prestígio, também chamado crime de “advocacia administrativa”, para que Wassef fosse recebido na Procuradoria-Geral da República para defender os interesses da empresa JBS, dos irmãos Batista. Wassef recebeu deles R$ 9 milhões por serviços prestados, mas não há esclarecimentos de que serviços seriam esses.
São casos graves no caminho de Bolsonaro para a sonhada reeleição em 2022. Ele vai ter que avaliar qual a melhor fantasia para tentar superar os obstáculos.
Merval Pereira: Decadência
O que é mais grave, torcer para que o presidente morra de Covid-19 ou ameaçar alguém fisicamente? “Minha vontade é encher sua boca de porrada”, essa foi a reação do presidente Jair Bolsonaro ao ser perguntado por um repórter do Globo sobre as razões de sua mulher, Michelle, ter recebido R$ 89 mil de Fabricio Queiroz.
Já o colunista Hélio Schwartsnan escreveu um artigo na Folha de S. Paulo cujo título era “Por que torço para que Bolsonaro morra”. Por causa dele, o ministro da Justiça André Mendonça pediu à Polícia Federal que investigue o jornalista com base na Lei de Segurança Nacional, que define como crime “caluniar ou difamar os chefes dos três poderes federativos”.
Só que, pelo Código Penal, desejar a morte de alguém não é crime, nem de calúnia nem de difamação, enquanto a frase de Bolsonaro para o repórter pode ser considerada “crime de ameaça”, previsto no artigo 147 do Código Penal, que consiste no ato de “ameaçar alguém, por palavras, gestos ou outros meios, de lhe causar mal injusto e grave”.
Mas essas considerações são apenas laterais, o que importa mesmo é que Bolsonaro não tem a menor capacitação para ser presidente da República. Em qualquer país do mundo poderia ter sido eleito presidente, casos dos Estados Unidos de Trump, ou primeiro-ministro, da Itália de Silvio Berlusconi, mas nenhum país sério do mundo aceitaria impassível a quebra decoro permanente, por atitudes, palavreado e mentiras, de seu presidente.
Crimes de responsabilidade em série já foram cometidos por esse autoritário, candidato a ditador. Bolsonaro simplesmente acha que o poder do presidente da República é ilimitado, não aguenta manter relações republicanas com as instituições, muito menos com a opinião pública.
Acha que não tem que dar satisfação a ninguém, que é absurdo perguntar a ele qualquer coisa, e que não tem que dar explicação para casos como esse. A pergunta do porquê de sua mulher Michele ter recebido R$ 89 mil do Fabricio Queiroz é absolutamente importante para sabermos o que está acontecendo no Brasil e naquela família, envolvida em falcatruas e corrupção de baixo calão, baixo nível.
Bolsonaro acha que pode dar esse tipo de resposta a uma pergunta totalmente cabível, que não tem nada de oposição. É um fato denunciado pela revista Crusoé e depois confirmado, com aditivos, pela Folha de S. Paulo que D. Michele recebeu R$ 89 mil do Queiroz. Tudo indica que esse dinheiro pode ser fruto da “rachadinha”, da qual ele e os filhos teriam se beneficiado, de acordo com as acusações do Ministério Público.
Absurdo ter que aceitar um presidente desse nível cultural e de educação baixíssimo, sem que haja uma reação forte da sociedade. Também aí a pandemia ajudou Bolsonaro, não somente com o auxílio emergencial de R$ 600, que ele queria que fosse de R$ 200. O Congresso está funcionando remotamente, e a população, constrangida pelo necessário distanciamento social, não pode se mobilizar para manifestações públicas de protesto.
A maior prova de que o país está decadente é Bolsonaro ser presidente. Agora ele se fortalece com ações populistas; quer aumentar o Bolsa Família, mas o país não tem dinheiro, está completamente quebrado. Brasil é um país decadente, à deriva, com um governo completamente fracativo.
Até a alta corrupção, que ele dizia combater, não combate nada. Demitiu o ministro Sérgio Moro, ajuda, incentiva o projeto de acabar e desmoralizar a Lava-Jato, e já houve várias denúncias de corrupção no governo.
No Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), houve uma compra bilionária de computadores que ninguém sabe quem autorizou. Edital que licitava a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino, gasto estimado de R$ 3 bilhões, teve que ser cancelado por tratar-se de uma grossa maracutaia.
Alunos de escolas públicas pelo Brasil receberiam mais de um computador, em alguns casos até cinco. Mas não era um programa social do governo, apenas uma manipulação de números para beneficiar alguém. O edital foi cancelado, mas ninguém foi punido.
Ontem, o verdadeiro Bolsonaro voltou à ação, com a grosseria e a selvageria que lhe são características. O “paz e amor”, que ficou quieto durante alguns meses com medo da prisão do Queiroz, era fake.