Merval Pereira

Merval Pereira: Sem explosão

O discurso do presidente Jair Bolsonaro hoje, na abertura da Assembleia da Organização das Nações Unidas (ONU), não terá surpresas, pois continuará defendendo suas teses sobre meio ambiente, preservação da Amazônia (na foto), e também sobre a pandemia da Covid-19, mas não será agressivo em relação direta aos críticos dessas mesmas políticas.

A denúncia do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) General Augusto Heleno, na audiência pública do STF para tratar do atraso na aplicação de recursos do Fundo do Clima, de que as críticas de nações estrangeiras sobre a Amazônia têm o objetivo de “prejudicar o Brasil e derrubar o governo Bolsonaro”, não deve ser a linha do discurso, mesmo porque, segundo o senador Nelsinho Trad, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, “ali não é lugar para essa política”.

O senador diz que tem alertado o Palácio do Planalto para a crítica generalizada que ele ouve de delegações de diversos países europeus sobre nossa política de meio ambiente, e acredita que o presidente Bolsonaro vai aproveitar seu discurso para tentar melhorar a imagem do país no exterior.

Não será um discurso de conciliação, mas uma tentativa de mostrar números e dados que sustentem sua afirmação de que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente, ou que o país se saiu bem na pandemia da Covid-19, tanto na proteção dos mais vulneráveis, quanto na recuperação econômica.

Pelas informações que circulam, a estratégia do governo será não confrontar as nações que criticam o Brasil, a não ser indiretamente, na defesa de seus pontos de vista, que continuarão sendo combatidos por organismos internacionais e ONGs. É uma boa ideia, porém, apresentar seus argumentos sem acusar os outros.

Parece que Bolsonaro já entendeu que precisa conviver com organismos multilaterais, mesmo que não goste do que representam. Por isso nos últimos dias o Brasil apoiou os Estados Unidos no BID, abrindo mão de indicar um candidato ao posto, e em outros organismos interfere nas nomeações.

Mesmo assim, em temas fundamentais como mudança climática, preservação da Amazônia, as posições do Brasil continuarão confrontando a visão majoritária na ONU, que dias atrás debateu uma proposta do relator especial Baskuit Tunkat para que o Conselho de Direitos Humanos enviasse uma equipe para verificar a situação da política ambiental e de direitos humanos.

O governo brasileiro reagiu duramente, embora, dias antes, tenha aprovado igual proposta em relação à Venezuela. Tal proposta não tem viabilidade de ser aprovada, mas sinaliza uma posição crítica dos gestores da ONU ao governo brasileiro.

Nada indica, porém, que o presidente Bolsonaro leve para seu discurso um embate direto, embora a defesa de suas posições represente uma resposta a essas críticas. Outro ponto relevante de seu discurso deve ser a defesa da atuação de seu governo no combate à pandemia da Covid-19, refutando acusações de que teria provocado um genocídio ao não atuar com firmeza logo no início da pandemia.

O discurso de Bolsonaro será afetado pela discussão interna sobre a visita do Secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, a Roraima, fronteira com a Venezuela, para atacar a ditadura de Maduro.

Um manifesto de ex-chanceleres brasileiros apóia o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, na crítica à visita do secretário americano, que foi mesmo completamente absurda. O Brasil aceitou fazer parte de uma manobra política dos EUA contra um país vizinho, às vésperas da eleição presidencial americana. Não importa que não se concorde com a Venezuela, e até ache que ela é uma ditadura, mas não se pode autorizar o território nacional para, militar ou politicamente, atacá-la.

Há quem tema que o presidente Bolsonaro use seu discurso para mandar apoio à reeleição do presidente Trump.


Merval Pereira: A crise da reeleição

O reconhecimento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de que a aprovação da reeleição do mandato presidencial “foi um erro” reabriu a discussão sobre o fim desse instrumento, incluído na Constituição em 1997. Projeto de emenda constitucional do deputado Alessandro Molon, do PSB, propõe o fim da reeleição para os Executivos em todos os níveis já a partir de 2022.

Seria uma mudança consensual se o presidente Bolsonaro não tivesse mudado de idéia ao chegar ao Palácio do Planalto. O fim da reeleição foi uma das suas promessas de campanha mais reluzentes, pois indicava que não estava se candidatando por interesse de se perpetuar no poder.

Assim como desistiu do combate à corrupção, ou revela-se menos liberal do que a escolha de Paulo Guedes aparentava, também Bolsonaro mudou de idéia em relação à reeleição e só pensa nisso, antes mesmo de ter terminado seu segundo ano de mandato.

No artigo em que fez o “mea culpa”, Fernando Henrique disse que chegou à conclusão de que o mandato de cinco anos, sem reeleição, seria o ideal, justamente o prazo que a Assembléia Nacional Constituinte estabeleceu. O então presidente General Ernesto Geisel aumentou de cinco para seis anos o mandato de seu sucessor, o General João Figueiredo, e foi para esse mandato que foi eleita a chapa Tancredo Neves/ José Sarney em votação indireta no Colégio Eleitoral em 1985.

Com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte em 1987, Sarney, que assumira a presidência da República com a morte de Tancredo Neves, passou a lutar para manter o mandato de 6 anos, mas teve que abrir mão de um para não ficar com apenas 4 anos, como a oposição queria.

O mandato de 5 anos valeu para Fernando Collor, eleito em 1989, e para Fernando Henrique, eleito em 1994. A emenda constitucional permitindo a reeleição foi apresentada em 1997, e passou a valer para a eleição presidencial de 1998. “Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição”, escreveu o ex-presidente, no artigo intitulado “Reeleição e crises” publicado no Globo.

Ele abordou esse assunto justamente para se referir ao desgaste político que o ministro da Economia Paulo Guedes sofre com a determinação de Bolsonaro se reeleger: “O ministro da Economia, por mais que queira ser racional, terá de fazer a vontade do presidente. Não há o que o faça parar, muito menos um ajuste fiscal, por mais necessário que seja”.

Fernando Henrique admitiu que pode ter sido ingênuo ao imaginar que os presidentes não fariam qualquer coisa para conseguir a reeleição. Ele mesmo recebeu acusações de ter comprado os votos para a reeleição, mas, como os fatos demonstram, nada ficou provado de fato, apenas a denúncia pontual de compras de votos que, segundo o próprio ex-presidente certa vez admitiu, pode ter acontecido por questões políticas locais, não como ação do governo.

De fato, a reeleição era desejada por todos os governadores e prefeitos e, como a eleição demonstrou, também a maioria da população queria, pois Fernando Henrique foi reeleito com 53% dos votos válidos, novamente derrotando Lula no primeiro turno.

A desvalorização do Real logo depois da reeleição, em fevereiro de 1999, porém, fez com que o governo fosse acusado de ter adiado a decisão para não perder a eleição. No caso, no entanto, havia uma crise econômica internacional e falta de consenso interno sobre a solução a ser dada ao câmbio. O governo negociava com o FMI uma ajuda financeira, e a situação política era delicada.

Tanto que, em certo momento, houve receio no gabinete de Fernando Henrique que ele não conseguisse vencer no primeiro turno, o que poderia trazer dificuldades no segundo turno contra Lula. Nos casos de Fernando Henrique e Lula, pode-se dizer que era importante a reeleição para dar sequência a seus projetos, no primeiro caso de combate à inflação e equilíbrio fiscal, no segundo, o programa social.

Mas, para eleger Dilma, o então presidente Lula descontrolou o equilíbrio fiscal, conseguindo um crescimento de 7,5% do PIB, mas, a partir daí, começou a degringolada da economia. Da mesma forma, o presidente Bolsonaro parece disposto a derrubar o teto de gastos para tentar a reeleição.


Merval Pereira: "Autofagia" no STF

Não há dúvida de que o presidente Bolsonaro se acha acima das leis, não gosta desse sistema republicano de pesos e contrapesos que dá limitações a seus poderes pelo Legislativo e Judiciário. Mas nesse caso do depoimento presencial que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello obrigou-o a fazer na investigação sobre interferência na Polícia Federal, ele tem razão de reclamar.

Não há por que não lhe conceder o mesmo privilégio dado, nas mesmas circunstâncias, ao então presidente Michel Temer. O presidente Bolsonaro e seus assessores veem na decisão do decano a confirmação de que ele não gosta do presidente. A decisão do ministro Marco Aurélio Mello de levar a questão ao plenário é a melhor solução para pacificar o entendimento do STF a respeito dessa situação, que não é definida na lei. Os presidentes dos Poderes têm direito de depor por escrito quando participam de um processo na qualidade de vítima ou testemunha, mas a lei nada fala sobre o caso de serem investigados. Como se presidentes brasileiros não se encontrassem nessa situação, o que a realidade política vem desmentindo sistematicamente.

Os ministros Luiz Roberto Barroso e Edson Fachin entenderam que, como a lei não proíbe, é possível inferir que o depoimento por escrito pode ser concedido mesmo quando investigados. O ministro Celso de Mello, ao contrário, acredita que, como a lei nada diz sobre o caso, deve ser dado ao presidente da República o mesmo tratamento dado a qualquer cidadão.

Com sua decisão, o decano do STF criticou indiretamente seus colegas que deram a regalia a Temer. Ontem, ao enviar ao plenário a decisão, o ministro Marco Aurélio se disse contra o que classificou de “autofagia” no Tribunal, com um ministro anulando a decisão de outro. Com isso, já adiantou sua posição, pois se coincidisse com a de Celso de Mello, ele não cometeria nenhuma “autofagia”, apenas referendaria a posição do decano.

A interpretação de cada juiz depende também do ambiente em que a decisão for tomada. A de Celso de Mello é fruto da necessidade do STF de mostrar independência, pois a gestão anterior de Dias Toffoli estava muito atrelada ao Palácio do Planalto, assim como a da Procuradoria-Geral da República continua sendo.

Tomar decisões de independência em relação ao governo é importante para manter a imagem pública do STF. Uma vez decidida pela maioria a interpretação a ser dada, uma decisão monocrática deixará de existir.

A preocupação de seus seguidores tem razão de ser, pois Bolsonaro pode cometer atos falhos ou escorregões e contradições que por escrito não aconteceriam. Mas o presidente está numa fase boa de relacionamento institucional com o Judiciário, como ele mesmo ressaltou dias atrás, e deporia num ambiente mais favorável e controlado.

Na época da denúncia, o ambiente político era completamente contra ele. Se for obrigado a depor presencialmente, terá tempo suficiente para se preparar, e só um destempero, que lhe é comum, pode causar algum incômodo. Bolsonaro já pode contar com três votos, os de Barroso, Fachin e Marco Aurélio, mas nada indica que terá uma vitória tranquila no plenário.

Há a convicção de cada um, mas há também o peso da palavra do decano Celso de Mello, que está se despedindo em outubro do STF. Ontem o presidente Bolsonaro cometeu um desses atos falhos ao saudar, nas redes sociais, a decisão de Marco Aurélio de suspender o processo enquanto o plenário não decidir de que forma se dará o depoimento. “O Moro não tem nada que perguntar para mim” rejeitou Bolsonaro, mostrando qual é, na verdade, sua preocupação.

O impacto político de questionar a decisão de Celso de Mello é negativo para o presidente, que já está sendo chamado de “fujão” nas redes sociais. Mas pode evitar um dano maior no depoimento presencial.


Merval Pereira: Uma mudança de rumo

Na metade de seu mandato, o presidente Bolsonaro abre mão de pilares de sua eleição para tentar um voo populista mais amplo. Foi eleito em boa parte pelo programa de economia liberal do hoje ministro da Economia, Paulo Guedes. O eleitorado das grandes cidades e das capitais, o mercado financeiro, industriais, empresários, apoiaram o presidente na esperança de que, como admitia não entender nada de economia, deixaria Guedes dar as cartas.

Muita gente apoiou Bolsonaro também por causa do então juiz Sergio Moro, mesmo que ele ainda não fosse do governo. O apoio à operação Lava-Jato e ao próprio Moro sinalizava uma política anticorrupção. Bolsonaro ampliou assim seu eleitorado, que se resumia aos conservadores mais radicais e às diversas categorias de militares e policiais que lhe deram nada menos que sete mandatos consecutivos de deputado federal.

Estes dois temas, o combate à corrupção e o liberalismo econômico, já não fazem mais parte do núcleo programático de Bolsonaro. Os problemas que seus filhos enfrentam na Justiça, que se entrelaçam com suas próprias dificuldades, levaram o presidente a confirmar prematuramente o que queria esconder desse eleitorado ampliado.

A relação familiar com milicianos pode ser representada por Fabrício Queiroz, que foi subtenente da Polícia Militar do Rio e tornou-se o braço direito de Jair e seus filhos, acusado de ser o operador do senador Flávio Bolsonaro num esquema de “rachadinha” que está sendo investigado.

Queiroz tem negócios de transporte de vans em Rio das Pedras, região do Rio dominada pela milícia, e foi preso escondido na casa de Atibaia de Frederick Wassef, advogado de Bolsonaro. Com tantos rolos, teve que abrir mão da fantasia de combate à corrupção para tentar controlar a Polícia Federal e reduzir os danos familiares.

Também sua suposta conversão liberal vai aos poucos se revelando inviável frente a suas convicções mais profundas: Estado autoritário, privatizações paralisadas, teto de gastos sob risco, reformas limitadas, populismo.

Bolsonaro vai entrar provavelmente na segunda parte de seu mandato abrindo mão de um pedaço importante do eleitorado que o elegeu, tentando se aproximar dos setores mais desprotegidos que medem suas escolhas políticas pelos interesses imediatos que o auxílio emergencial na pandemia veio remediar. Assim como o Bolsa-Família representava para o PT a chave da popularidade de Lula.

Mas, neste momento, Bolsonaro não tem solução para avançar além do programa social que virou marca petista, estrategicamente está numa situação muito difícil. Certamente o presidente Bolsonaro está muito abalado pela impossibilidade de fazer o Renda Brasil, um Bolsa-Família turbinado. Era sua grande jogada, porque viu o efeito disso no auxílio emergencial.

Só que há uma diferença brutal, o auxilio de R$ 600 não pode ser replicado eternamente, atingiu muito mais gente do que o Bolsa Família, e descobriu cerca de 20 milhões de “invisíveis” que não estavam em nenhum programa social.

Ampliou muito a ajuda do governo, o que se refletiu na popularidade do presidente, que, no entanto, pode ser abalada pela necessidade de redução para R$ 300. Bolsonaro, portanto, caiu em uma armadilha que ele mesmo montou, base da reeleição e da sustentação popular.

Vamos ver agora, a partir da redução do auxílio emergencial, como ficará a imagem do presidente. Como ficou demonstrado ontem, quando autorizou o senador Marcio Bittar, relator do Orçamento, a tentar uma solução para um novo programa social, Bolsonaro não vai abrir mão desse instrumento eleitoral populista que já se mostrou eficiente desde os governos petistas.

Vai ser difícil encontrar uma saída com qualquer ministro que queira manter um mínimo equilíbrio fiscal. Pode acontecer na Economia o que aconteceu na Saúde, onde não conseguiu ministro que fizesse o que queria, e acabou botando alguém da sua confiança.

O ministro Paulo Guedes já se mostrou flexível diante da pressão política do presidente, mas parece resiliente em relação às contas públicas. Se a sede de popularidade for maior do que a de equilíbrio fiscal, Bolsonaro pode até aumentar sua popularidade em certos setores da população, mas a crise será brutal. Está num beco sem saída, depois de ter aparecido como o grande vitorioso desse auxílio emergencial.


Merval Pereira: Jogo bruto

O ministro Paulo Guedes trava com o presidente Bolsonaro um jogo bruto que se revela na gíria futebolística que ambos usam para dar seus recados. Ontem o presidente anunciou através das redes sociais que daria um cartão vermelho a quem lhe propusesse congelar as aposentadorias e cortar o auxílio a idosos e deficientes para criar o Renda Brasil.

Semanas atrás, fora a vez de Guedes mandar seu recado a Bolsonaro, ao queixar-se de uma crítica feita sobre a proposta de extinção do abono salarial para abrir espaço orçamentário para a ampliação do Bolsa-Família.

Bolsonaro avisou em público que a proposta não seria enviada ao Congresso naqueles termos, pois não tiraria “dos pobres para dar aos paupérrimos”. O próprio Guedes revelou sua conversa com Bolsonaro: “Pô, presidente. Carrinho, entrada perigosa, ainda bem que foi fora da área, senão era pênalti”.

Toda essa linguagem cifrada traduz uma disputa que se desenrola entre dois projetos de poder, a reeleição para Bolsonaro, e o de salvador da economia para Guedes. A reeleição daria mais tempo a Guedes para implantar seu projeto, mas a pandemia tirou o pouco fôlego que a economia tinha para se reerguer, e com ela surgiu o auxílio emergencial, que mudou a história.

Salvo pelo Congresso, que aumentou para R$ 500 a proposta de R$ 200 apresentada pelo governo, Bolsonaro mandou dar R$ 600 e ficou com os louros da popularidade elevada. Recuperou no nordeste o que perdeu nas grandes cidades e capitais devido à sua negligência no combate à Covid-19 e a atitudes antidemocráticas.

A austeridade proposta pelo seu Posto Ipiranga foi atropelada pela mágica da popularidade fácil, e Bolsonaro resolveu criar o Renda Brasil, um Bolsa-Família turbinado. Diferentemente de Lula, que pegou uma fase áurea do preço das commodities, não há hoje sobra de caixa para uma renda básica que seria, na melhor das hipóteses, três vezes menor que o auxílio emergencial, embora um pouco maior que a Bolsa-Família.

Não há quem acredite que Bolsonaro tenha desistido do Renda Brasil, mas será preciso descobrir de onde tirar o dinheiro sem que os pobres se voltem contra o presidente. Repete-se com o secretário Waldery Rodrigues, secretário da Fazenda, o mesmo que aconteceu com Marcos Cintra, da Receita Federal, que defendia o imposto sobre transações financeiras digitais e acabou sendo demitido porque Bolsonaro não queria saber de recriar uma espécie de CPMF.

A proposta voltou à mesa, depois que o presidente foi convencido por Guedes de que seria preciso aumentar a arrecadação, mas continua tendo resistência no Congresso. Da mesma maneira, os cortes em programas sociais para viabilizar o Renda Brasil são a única solução sem furar o teto de gastos.

Pode ser que o secretário Waldery Rodrigues, considerado um dos importantes suportes técnicos de Paulo Guedes, resista à pressão, mas é inevitável que o assunto volte à discussão política, pois a desindexação dos gastos do governo, um dos pilares do pacto federativo proposto pelo ministério da economia, terá que ser discutido na tramitação dessa reforma.

Ao fazer questão de esclarecer que a ameaça de cartão vermelho feita por Bolsonaro não se referia a ele, o ex-superministro Paulo Guedes mostrou toda sua fragilidade e expôs seu secretário. Vem sendo desidratado aos poucos por um Bolsonaro que se preocupa mais com a reeleição do que com o equilíbrio fiscal de seu governo.

A tentativa de anistiar as igrejas evangélicas do que devem à Receita Federal, num momento em que o país está quebrado, é uma demonstração clara de seus interesses prioritários. O presidente está receptivo a algum assessor econômico que lhe apresente uma solução mágica para chegar mais perto do eleitor de baixa renda.

O ministro Paulo Guedes diz que acredita no faro político do presidente. Resta saber se o populismo de Bolsonaro é compatível com as reformas necessárias. A opinião pública, como um imenso VAR, está atenta a esse jogo bruto.


Merval Pereira: A política por trás

Foi o vice-presidente Hamilton Mourão quem candidamente definiu a situação: a decisão econômica é fácil, mas “tem política por trás disso”. Falava do debate sobre a posição do presidente Bolsonaro a respeito de uma lei aprovada pelo Congresso que anistiava multas e dívidas previdenciárias de igrejas evangélicas.

O presidente acabou vetando parcialmente o projeto, no que se refere às contribuições sobre lucros das igrejas, mas sancionou a isenção sobre os salários dos pastores, a chamada “prebenda”, que ganhou na linguagem popular o sentido de “sinecura”.

No Brasil, o catolicismo era a religião oficial do Estado, que a subvencionava, e as demais religiões eram proibidas pela Constituição de 1824. A separação entre a Igreja e o Estado foi efetivada por decreto em 7 de janeiro de 1890, e oficializada na Constituição de 1891.

A Constituição de 1988 proíbe aos entes federativos "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento, ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público."

Por incrível que pareça, regredimos no debate político à época em que religião e política se misturavam, sem o necessário firewall. O mais vergonhoso é que os artigos sobre as dívidas das igrejas foram incluídos em um projeto que falava de precatórios para financiar recursos para o combate à Covid-19 pelo deputado federal David Soares, filho do missionário R.R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, uma dissidência da Igreja Universal do Reino de Deus, de seu cunhado Edir Macedo.

Esse tipo de manobra é chamado de “jabuti” e é largamente utilizada pelos mais diversos governos para resolver questões que nada têm a ver com o teor do projeto em si, a até de medidas provisórias. Como o Congresso não rejeita esse tipo de ilegalidade e, como agora, se aproveita dela em benefício próprio,seguimos adiante como se nada houvesse.

A proposta, porém, era inviável juridicamente, o presidente Bolsonaro relutou muito, mas acabou cedendo à pressão do ministério da Economia, cujos técnicos advertiram que o gasto a mais com a anistia – cerca de R$ 1 bilhão – poderia gerar um processo de impeachment, pois não há previsão no Orçamento para ele, o que é proibido por lei.

Mas o presidente deu um golpe político inédito, enviando aos congressistas, através de mensagens do twitter, estímulos para que derrubem seu próprio veto. Na postagem, Bolsonaro explicou que, devido à Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), foi “obrigado a vetar dispositivo que isentava as igrejas da Contribuição sobre o Lucro Líquido (CSLL), tudo para que eu evite um quase certo processo de impeachment”.

O governo vai propor “instrumentos normativos a fim de atender a justa demanda das entidades religiosas”, anunciou o Palácio do Planalto. Só um presidente sem noção do cargo que ocupa, e de suas responsabilidades, pode incentivar políticos a derrubarem o veto dele mesmo. É o famoso “auto-golpe”, desta vez parlamentar.

Bolsonaro não sancionou a lei porque sabe que é um escândalo, que a sociedade não aceita, e como houve uma reação muito forte, acabou vetando, e criou essa situação estranha. Além de incentivar sua própria derrota no Congresso, o que seria a derrota do equilíbrio fiscal e da separação do Estado da Igreja, Bolsonaro quer que o Congresso crie uma verba especial para isentar as igrejas de impostos, e promete mandar uma emenda constitucional para transformar em lei esse absurdo.

Igrejas devem ser taxadas pelos produtos que criam – filmes, livros, canções gospel – efeitos dos cultos religiosos que geram lucros formidáveis. O veto à cobrança de impostos sobre os salários dos que atuam nas celebrações é discutível, mas eles deixam de pagar impostos sobre bens particulares que estão em nome das igrejas. Essa é a distorção da lei que pretendem aprovar.


Merval Pereira: Sobre as mentiras

Lendo sobre as mentiras do presidente dos Estados Unidos Donald Trump sobre Covid-19 me veio à mente o livro sobre a mentira como instrumento de política internacional de John Mearsheimer, professor de ciência política e co-diretor do Programa em Política de Segurança Internacional na Universidade de Chicago, publicado no Brasil pela Editora Zahar.

Duas conclusões básicas do livro " Por que os líderes mentem" de Mearsheimer são que líderes de países democráticos mentem mais do que os autocratas, pela simples razão de que os ditadores controlam as informações, e os democratas precisam ganhar o apoio dos cidadãos para tomar decisões; e que líderes políticos e seus representantes diplomáticos dizem a verdade mais do que mentem entre si.

O caso de Trump não se enquadra na primeira, pois ele mentiu não para ganhar o apoio dos cidadãos, mas para transmitir informações falsas na tentativa de dar a impressão de um poder que não tinha. Dizia que os Estados Unidos estavam preparados para combater “o vírus chinês”.

Essa é uma posição costumeira em líderes, que usam contra-informações para espelhar uma imagem de força. Mas fazem isso, geralmente, contra adversários políticos, não contra seus próprios cidadãos. Trump alega que não mentiu, mas omitiu informações para não instalar o pânico na população.

Com essa omissão, certamente não colaborou para que os mortos fossem em número menor do que os quase 200 mil nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, o presidente Bolsonaro cumpriu à risca o roteiro traçado por seu ídolo americano. Saiu sem máscara nas ruas, como Trump, disse que a epidemia no Brasil estava acabando, quando não estávamos nem na metade do caminho, e, como Trump, estimulou a volta à normalidade, culpando os governadores pela quarentena prolongada.

Uma das teses de Mearsheimer é que os governantes mentem menos entre si do que para seus cidadãos, o que estaria revelado nas correspondências oficiais liberadas e até mesmo nos documentos do Wikileaks. Se nesse caso tiver se repetido o comportamento majoritário entre líderes, ficará a dúvida sobre se Trump compartilhou com Bolsonaro suas informações, ou simplesmente enganou nosso presidente, que seguiu seus passos sem se dar conta de que a conversa de Trump não refletia a realidade.

Fora essa intriga lateral, o importante é que, ao mentir ou omitir dados, o líder está tirando dos cidadãos o direito de saber o que fazem e pensam seus governantes. No prefácio que escrevi à edição brasileira ressalto que o livro de John Mearsheimer se debruça sobre “mentiras estratégicas”, que, segundo ele, têm pelo menos “um mínimo de legitimidade”, e analiso a postura de vários filósofos ao longo do tempo sobre a mentira.

Em sua obra ‘A República’, Platão afirma que os governantes têm o direito de não dizer a verdade para os cidadãos, e até mesmo de mentir. "Se compete a alguém mentir, é aos líderes da cidade, no interesse da própria cidade, em virtude dos inimigos ou dos cidadãos", escreveu o filósofo grego.

O pensador francês Benjamin Constant teve um debate famoso sobre o tema com o alemão Immanuel Kant sobre um suposto "direito de mentir". Constant defendeu o uso da mentira em situações "filantrópicas". Para Kant, a mentira era “a maior violação do dever do ser humano para consigo mesmo”.

Há exemplos históricos que ilustram bem as “mentiras estratégicas” a que se refere Mersheimer. Em 1967, o premier da Inglaterra era Harold Wilson, e o Lord Chancellor of the Exchequer (ministro das finanças) James Callaghan. O grande assunto era a possível desvalorização da libra. Os dois afirmavam que não desvalorizariam, em entrevistas e em depoimentos no Parlamento, até que num sábado de noite, dia 18 de novembro, desvalorizaram a moeda em 14%.

Callaghan, o ministro das finanças, teve de renunciar imediatamente. Tempos depois, também o primeiro-ministro Wilson foi derrotado e caiu. Com relação à mentira, há os absolutistas que, como Kant, não aceitam meio termo, e os utilitaristas, que vêm vantagens na prática por razões de Estado.

O perigo, adverte Mearsheimer, além de o tiro poder sair pela culatra, é o que chama de "ricochete". Lideres que mentem para seus cidadãos pelo que acreditam ser boas razões estratégicas podem produzir danos significativos a seu corpo político, fomentando uma cultura de desonestidade.


Merval Pereira: Sinal de independência

A sugestão para que o presidente Bolsonaro deixe para marcar o depoimento na Polícia Federal exigido pela decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello apenas quando o decano da Corte já tiver se aposentado, em novembro, denota insegurança, e só faz enfraquecê-lo.

Cogitar que a Polícia Federal terá comportamento diferente depois da aposentadoria de Celso de Mello revela a mente conturbada de quem acredita em teorias da conspiração. Ou a certeza de que a PF, sem uma autoridade a vigiá-la, lhe será dócil, o que confirma a vontade de controlá-la.

A lei permite que o presidente da República preste testemunho por escrito, quando é testemunha, mas não cita como deve ser tomado um depoimento se ele for o alvo da investigação. O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, foi favorável a que o presidente Bolsonaro escolhesse a forma do depoimento: “Dada a estatura constitucional da Presidência da República e a envergadura das relevantes atribuições atinentes ao cargo, há de ser aplicada a mesma regra em qualquer fase da investigação ou do processo penal”, disse, alegando que o presidente poderia depor presencialmente ou por escrito.

Como a lei não especifica a situação em que o presidente da República está sendo investigado, o ministro Luis Roberto Barroso autorizou que o então presidente Michel Temer, também investigado na ocasião, depusesse por escrito.

Já o ministro Celso de Mello entendeu que "o Senhor Presidente da República, por ostentar a condição de investigado, não dispõe de qualquer das prerrogativas (próprias e exclusivas de quem apenas figure como testemunha ou vítima) a que se refere o art. 221, “caput” e § 1º, do CPP, a significar que a inquirição do Chefe de Estado, no caso ora em exame, deverá observar o procedimento normal de interrogatório (CPP, art. 6º, inciso V, c/c o art. 185 e seguintes)".

Outro detalhe da decisão do ministro Celso de Mello que provocou comentários de aliados de Bolsonaro foi a permissão para que os advogados de Moro participem, e façam perguntas, ao presidente Bolsonaro. O que, para esses assessores, é demonstração de que o decano do Supremo não gosta do presidente, significa apenas a equiparação dos dois investigados na ação.

O Procurador-Geral Augusto Aras deu salto mortal na decisão inicial para colocar o ex-ministro Sérgio Moro, que fez a acusação de interferência do presidente da República na Polícia Federal, no mesmo nível de investigado que Bolsonaro.

Deste modo, quando Moro foi depor na Polícia Federal logo no início da ação, Aras enviou três procuradores para participarem do interrogatório. Agora, a mesma condição será dada a Moro.

A alegação de Aras de que houve um precedente no caso de Temer não se sustenta à luz da lei, pois a interpretação de cada juiz dependerá também do ambiente em que a decisão for tomada. A de ontem é fruto da necessidade do STF de mostrar independência, pois a gestão anterior de Dias Toffoli estava muito atrelada ao Palácio do Planalto, assim como a da Procuradoria-Geral da República continua sendo.

Tomar decisões de independência em relação ao governo é importante para pelo menos manter a imagem pública do STF. A preocupação de seus seguidores tem razão de ser, pois Bolsonaro pode cometer atos falhos ou escorregões e contradições que por escrito não aconteceriam.

Mas o presidente está numa fase boa de relacionamento institucional com o Judiciário, como ele mesmo ressaltou dias atrás, e vai depor num ambiente mais favorável e controlado. Na época da denúncia, o ambiente político era completamente contra ele. Bolsonaro terá tempo suficiente para se preparar, e só um destempero, que lhe é comum, pode causar algum incômodo.

O impacto político para Bolsonaro é forte, sem dúvida. Mas a decisão só demonstra uma fragilidade dele como presidente porque seu entendimento dos poderes do Executivo é mais amplo que a lei permite supor. A independência entre os Poderes da República, ressaltada pelo novo presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, é a linha seguida pela decisão de Celso de Mello.


Merval Pereira: Nova postura

Fortalecer a “autoridade e a dignidade” do Supremo Tribunal Federal (STF), retirando-o das disputas políticas e mantendo relações com os demais poderes “harmônicas, porém litúrgicas”, parece ser o objetivo central da gestão do ministro Luiz Fux, que tomou posse ontem como presidente do STF.

Essa postura é uma guinada em relação aos últimos anos presididos por Dias Toffoli, que se aproximou excessivamente, na visão de muitos, do Palácio do Planalto e das manobras políticas, na tentativa de protagonizar acordo entre os Três Poderes que resultaram apenas em uma imagem distorcida do Supremo.

Para tanto, Fux definiu que Executivo e Legislativo têm que arcar com as conseqüências políticas das próprias decisões. Em seu discurso de posse, Fux foi enfático ao falar da corrupção, fazendo referência elogiosa à Operação Lava-Jato, que sofre ataques dentro do próprio Supremo:
“Esses corruptos de ontem e de hoje é que são os verdadeiros responsáveis pela ausência de leitos nos hospitais, de saneamento e de saúde para a população carente, pela falta de merenda escolar para as crianças brasileiras”.

A base de sua gestão nos próximos dois anos foi definida num discurso comovido e comovente, em que ficou clara sua alegria de ter chegado ao posto mais alto da carreira jurídica, mas também o desejo firme de não envolver o Supremo em questões que levem a uma “judicialização vulgar e epidêmica”.

Para o novo presidente do STF, é preciso “deferência aos demais Poderes no âmbito de suas competências, combinada com a altivez e a vigilância na tutela das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Afinal, o mandamento da harmonia entre os Poderes não se confunde com contemplação e subserviência”. Para justificar esta nova postura, o novo presidente do Supremo advertiu em seu discurso que “(…) a intervenção judicial em temas sensíveis deve ser minimalista, respeitando os limites de capacidade institucional dos juízes, e sempre à luz de uma perspectiva contextualista, consequencialista, pragmática, porquanto em determinadas matérias sensíveis, o menos é mais”.

Na sua visão, o Tribunal tem tido “um protagonismo deletério”, muito devido ao excesso de demandas de políticos e governantes: “(…) alguns grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário, instando os juízes a plasmarem provimentos judiciais sobre temas que demandam debate em outras arenas que não o Judiciário”.

Os cinco eixos de sua gestão, alinhados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, definem bem seus objetivos: 1) a proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; 2) a garantia da segurança jurídica conducente à otimização do ambiente de negócios no Brasil; 3) o combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos, 4) o incentivo ao acesso à justiça digital, e 5) o fortalecimento da vocação constitucional do Supremo Tribunal Federal.

Falou com especial ênfase no combate à corrupção, “que ainda circula de forma sombria em ambientes pouco republicanos em nosso país”. Fux afirmou que não admitirá “qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro e da corrupção”, e advertiu: “Não permitiremos que se obstruam os avanços que a sociedade brasileira conquistou nos últimos anos, em razão das exitosas operações de combate à corrupção autorizadas pelo Poder Judiciário brasileiro, como ocorreu no Mensalão e tem ocorrido com a Lava Jato.”

Esclarecimento
O General Richard Nunes, chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, manda mensagem esclarecendo que o Exército não gastou nada com o aumento da produção de cloroquina, que já fabricava para outros fins, como tratamento de lúpus e malária.

A encomenda não saiu do orçamento do Exército, que foi ressarcido do gasto extra. Ele lembra que não compete ao Laboratório do Exército analisar se a cloroquina tem ou não efeito sobre a Covid-19, função de outros órgãos.


Merval Pereira: Formas de ignorância

Entre nós, brasileiros, é brutal o efeito colateral da revelação do jornalista Bob Woodward de que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, já sabia da gravidade da Covid-19 e dos riscos à população no início de fevereiro, quando ainda havia poucos casos da doença no país, e resolveu minimizá-los para “não causar pânico”.

Trump deu uma entrevista gravada a Woodward, que se celebrizou com a reportagem do escândalo do Watergate, e sua voz admitindo a gravidade da situação deve ter deixado seus seguidores no mínimo envergonhados, especialmente os Bolsonaro, que se dizem tão próximos de Trump e não tinham ideia de que tudo aquilo que era dito não passava de uma maquinação política de um líder irresponsável que sabia exatamente o que estava acontecendo.

"É um [vírus] muito problemático. É muito delicado. É mais mortal até do que as gripes mais duras", admitiu Trump a Woodward em fevereiro. Aqui, no Brasil, em março, Bolsonaro saiu-se com essa: “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar”.

Trump admitiu na entrevista que já sabia que a Covid-19 não matava apenas idosos: "E agora está se mostrando que não são apenas as pessoas mais velhas [que morrem], Bob. Jovens também, muitos jovens".

Nosso “Trump dos trópicos”, acreditando nas declarações oficiais de seu ídolo, garantia por aqui: “Vão morrer alguns [idosos e pessoas mais vulneráveis] pelo vírus? Sim, vão morrer. Se tiver um com deficiência, pegou no contrapé, eu lamento".

O presidente dos Estados Unidos, em sua campanha para esconder a gravidade do problema, soltou no twitter certa noite uma advertência: "Não podemos deixar a cura ser pior que o problema". No mesmo dia à tarde, Bolsonaro disse a seus seguidores: "Brigar para que não venha desemprego como efeito colateral. Aí vai complicar mais ainda, a cura vai ficar pior que a doença em si."

O afrouxamento das medidas de distanciamento social foi outro ponto coincidente entre nosso presidente, que ignorava os fatos, e Trump que, para não causar pânico, levava adiante medidas temerárias: “Nossa meta é afrouxar as diretrizes e abrir grandes partes do país enquanto nos aproximamos do final desta histórica batalha contra o inimigo invisível”.

Bolsonaro, no mesmo dia, “inspirou-se” em Trump: "O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará. Nossa vida tem que continuar. (…) Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércios e o confinamento em massa."

A defesa da cloroquina aproximou os dois presidentes, mesmo que seu uso para combater a Covid-19 não tivesse o aval nem da Anvisa brasileira nem do FDA americano. “Hidroxicloroquina e Azitromicina, juntos, têm uma chance real de serem uma das maiores transformadoras de jogos da história da medicina”, disse Trump.

Bolsonaro não apenas defendeu o uso da cloroquina quanto tomou o medicamento. Trump também disse que tomava preventivamente, mas não é possível saber até onde vai a verdade e onde começa a mentira. Bolsonaro foi além, mandou o ministério da Defesa usar o laboratório químico e farmacêutico do Exército para ampliar a sua produção de cloroquina.

Missão dada é missão cumprida para os militares, e o Laboratório do Exército gastou R$ 1,5 milhão para produzir cloroquina, ampliando 100 vezes sua produção. E o governo comemorou a doação de 2 milhões de doses de hidroxicloroquina por parte dos Estados Unidos. Só que, dias depois de ter se livrado dos remédios, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Food and Drug Administration (FDA), a Anvisa americana, proibiu o uso emergencial da cloroquina devido aos problemas cardíacos registrados.

Se os americanos estão revoltados com seu presidente, o que dizer do nosso, que seguiu os passos de Trump toda a pandemia e acreditou em tudo o que ele dizia, sem a menor noção do que estava acontecendo. Trump fingiu-se de ignorante para obter benefícios políticos. Bolsonaro é um ignorante convicto.


Merval Pereira: Nos bastidores

A mudança da composição da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), palco de julgamentos sensíveis como o da parcialidade do juiz Sérgio Moro, que pode beneficiar Lula e vários outros condenados pela Lava-Jato, e o do filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, sobre o foro em que seu processo sobre a “rachadinha” na Assembléia Legislativa do Rio será julgado, já está sendo negociada nos bastidores.

Sendo o mais provável que o ministro Celso de Mello (foto), que se aposenta no último dia de outubro, não reassuma seu posto por falta de condições de saúde, a Segunda Turma deveria normalmente ser composta pelo novo ministro indicado pelo presidente Bolsonaro para substituí-lo, mas há obstáculos.

Alega-se que ele já entraria tendo pela frente um caso politicamente delicado, o de Lula, e outros em que poderia se declarar impedido, como o do filho do presidente que o indicou. Se acontecer isso, que muitos ministros consideram apenas um pretexto, a troca seria feita com algum membro da Primeira Turma.

A prioridade seria do ministro Marco Aurélio Mello, o mais antigo na Corte, mas ele recusará pela segunda vez. Continua afirmando: “Não mudo de camisa”. Está na Primeira Turma desde 2002, quando deixou a presidência do STF. O ministro Dias Toffoli, que vai para a Primeira Turma no lugar de Luis Fux, que assumirá a presidência na quinta-feira, poderá, por antiguidade, escolher mudar de turma, e não será a primeira vez que o fará.

Em março de 2015, os ministros da Segunda Turma estavam incomodados com a falta do quinto nome do grupo, pois havia sete meses que esperavam pela definição da presidente Dilma sobre o novo indicado ao STF para substituir o ministro Joaquim Barbosa, que se aposentara. Toffoli acabou eleito presidente da Turma substituindo Teori Zavascki, cujo mandato terminaria em maio daquele ano, e herdou os processos do presidente. Edson Fachin, nomeado em lugar de Barbosa, foi para a Primeira Turma.

Também houve outra troca, quando morreu o ministro Zavascki, que era o relator da Lava-Jato na Segunda Turma. O ministro Alexandre de Moraes, que o substituiu, foi para a Primeira Turma, e Fachin prontificou-se a ir para a Segunda Turma, acabando como relator da Lava-Jato, escolhido por sorteio.

Atribui-se ao ministro Gilmar Mendes a negociação que levou Fachin para a Segunda Turma, da mesma maneira que agora ele estaria manobrando para levar Toffoli para lá. Fachin passou a votar ao contrário de Gilmar na maioria das vezes.

Se o ministro Dias Toffoli escolher ir para a Segunda Turma, voltará a enfrentar as críticas sobre sua própria parcialidade, como no julgamento do mensalão. Por ter sido advogado do PT, Toffoli foi pressionado para julgar-se impedido, mas não admitiu. Agora estará diante de um problema mais diretamente ligado ao ex-presidente Lula, pois votando pela parcialidade Moro estará permitindo que o ex-presidente se candidate em 2022.

Como tem sido considerado um “traidor” pelos petistas, especialmente por ter se aproximado do presidente Jair Bolsonaro neste seu mandato, estará em um impasse. Mas, ao mesmo tempo, o ministro Toffoli, deixando a presidência, poderá encontrar na importância de sua presença na Segunda Turma a manutenção de um prestígio político.

Caso Toffoli não aceite, o que, apesar de tudo é improvável, o próximo da lista é o ministro Luis Roberto Barroso, que não deve aceitar por estar às voltas com a eleição municipal como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Como a ministra Rosa Weber é a presidente da Primeira Turma, restaria o ministro Alexandre de Moraes.

Mais uma vez a judicialização da política leva o Supremo Tribunal Federal (STF) a ser o definidor da disputa presidencial de 2022. O julgamento da parcialidade de Moro deve acontecer no primeiro trimestre do próximo ano, quando as reuniões presenciais tiverem sido retomadas, e deve ter influência decisiva na armação do xadrez político-eleitoral.

Lula tendo condições de disputar a eleição, a esquerda brasileira terá que se reorganizar, seja em torno dele, como já sugeriu o governador Flavio Dino, ou se contrapondo a ele, como pretende até o momento Ciro Gomes do PDT.

Esse golpe na Operação Lava-Jato deverá forçar uma definição do ex-juiz Sérgio Moro como alternativa à polarização Lula x Bolsonaro. E teremos ainda no próximo ano a provável definição de Luciano Huck. Será um ano animado, se a pandemia deixar.


Merval Pereira: De volta ao passado

A certeza de que será decretada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a parcialidade de Sérgio Moro como juiz nos processos que condenaram o ex-presidente Lula é tamanha que ele ontem se lançou candidato à presidência da República em 2022. Colocou-se “à disposição do povo”. Desmentindo, assim, que o PT pudesse ter outro candidato, como insinuou recentemente.

O pronunciamento de ontem, e alguns movimentos anteriores, são sinais de que Lula tenta se reaproximar da esquerda, que já tem dois candidatos colocados: Ciro Gomes, pelo PDT; e Flavio Dino, do PCdoB. Há quem veja até possibilidade de Lula vir a repetir Cristina Kirchner, e apresentar-se como vice de uma chapa de esquerda. Difícil acreditar numa manobra dessas, pois tanto Ciro quanto Dino têm peso político próprio.

Quem aceitou ser vice de Lula foi Brizola e, depois da derrota para Fernando Henrique em 1998, nunca mais se aprumou na política. Moro, por sua vez, reluta em assumir uma candidatura que, pelas pesquisas recentes, é no momento a que mais competitiva se mostra diante do presidente Bolsonaro, fortalecido nos últimos meses depois que pagou o auxílio emergencial a milhões de brasileiros na pandemia.

Um programa social turbinado gerando os mesmos efeitos que Bolsonaro criticava quando o PT lançou o Bolsa-Família. Moro e os procuradores da Lava-Jato estão cercados de adversários pelos diversos lados do espectro político, dependendo de decisões judiciais para vislumbrar o futuro.

Dallagnol já deixou a coordenação da força-tarefa de Curitiba por questões de doença na família, mas mesmo assim deu-se um jeito de voltar a julgá-lo por uma acusação de que já foi liberado pelo próprio Conselho Nacional do Ministério Público. Nada deve acontecer além de uma advertência, que poderá ser questionada em recurso, mas a obstinação de seguir com o processo, mesmo depois que o ministro Celso de Mello suspendeu os procedimentos administrativos contra ele no CNMP, mostra que seus adversários não darão trégua enquanto não o neutralizarem politicamente.

Tendo o novo coordenador da Lava-Jato, o procurador Alessandro Oliveira, como âncora, os procuradores gravaram áudio defendendo a liberdade de expressão, que estaria ameaçada pela perseguição sofrida por Dallagnol. Com Sérgio Moro acontece a mesma coisa. A comprovação da parcialidade dele nos processos contra Lula seria, segundo a defesa de Lula, ter aceitado ir para o ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro.

Uma acusação frágil, pois só existem ilações, e não provas, de que Moro já pensava em ir para o governo antes de Bolsonaro ser eleito, e por isso teria condenado Lula. Bastaria saber que o ex-presidente só se tornou inelegível depois de ter sido condenado em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal (TRF-4) para desmistificar essa acusação.

Agora, então, que Moro deixou o governo e tornou-se inimigo de Bolsonaro, o ataque persiste porque é preciso desmoralizar a Lava-Jato, e especialmente Moro, anulando suas condenações. Lula ser candidato é um efeito colateral que essas alianças circunstanciais provocam. Assim como Lula não se tornou ficha-suja devido a um complô que uniu todo o Judiciário com o objetivo de impedi-lo de se candidatar, mas simplesmente porque foi condenado em segunda instância, e também pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O fato é que a Lava-Jato hoje une contra si o PT, o PSDB, Bolsonaro, o Centrão, empresários, e todos os que se beneficiam de sua desmoralização para continuarem impunes. Decretada a parcialidade de Moro contra Lula, todos os demais condenados na Lava-Jato pedirão revisão de seus processos. Voltaremos ao velho sistema político que preserva o status quo, tempos em que era hábito o STF não condenar nenhum político ou empresário famoso.