Merval Pereira

Merval Pereira: Crise à vista

A insistência com que o vice-presidente Mourão e o presidente Bolsonaro elogiam o coronel Brilhante Ustra pode provocar uma crise diplomática

À medida que fica cada vez mais claro que Joe Biden provavelmente será eleito o próximo presidente dos Estados Unidos, mais problemática fica a prospecção do relacionamento com o Brasil. No momento, a questão ambiental é o principal obstáculo a uma relação equilibrada com os americanos, e o comentário de Biden sobre as queimadas da Amazônia é exemplar dessa dificuldade.

Mas outro ponto de divergência pode ser a questão das torturas durante a ditadura militar no Brasil. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão insistiu em elogiar o Coronel Brilhante Ustra, único militar condenado por tortura.

Biden, quando era vice-presidente de Obama, revelou a BBC News, esteve no Brasil para entregar pessoalmente à presidente Dilma documentos sobre torturas e ilegalidades cometidas durante a ditadura militar no Brasil, entre os quais alguns que identificam Ustra como torturador contumaz.

Segundo a reportagem da BBC News Brasil, um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977, a partir de informações passadas não só por vítimas, mas por informantes dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão. Para Bolsonaro, no entanto, Ustra é “um herói brasileiro” e para Mourão “um homem de honra”.

O presidente Bolsonaro reagiu à insinuação de Biden de que sérias sanções econômicas serão definidas caso a situação do desmatamento da Amazônia não melhore no Brasil. Nem mesmo a eventual captação, comandada pelos Estados Unidos, de uma verba bilionária para ajudar o combate aos incêndios e ao desmatamento foi considerada boa perspectiva pelo governo brasileiro, que se apressou a dizer que não está à venda, vendo na proposta de Biden a intenção de subjugar, não ajudar.

O vice-presidente Hamilton Mourão também comanda o Conselho Nacional da Amazônia Legal, e estará no centro de qualquer desavença que surja nessa área ou em outros setores, como o incômodo da nova gestão democrata com ditaduras militares que Bolsonaro e Mourão não se cansam de elogiar.

Em uma entrevista à Deutsche Welle, o vice-presidente Mourão foi duramente questionado sobre o fracasso do combate às queimadas na Amazônia, sobre a pandemia da Covid-19, que já fez cinco milhões de infectados e quase 150 mil mortes no Brasil e, por fim, sobre os elogios dele e de Bolsonaro ao Coronel Ustra, condenado como torturador.

Mourão tentou driblar todas as perguntas passando uma visão tranqüilizadora da situação do país, mas não quis escapar da questão sobre as torturas, embora fizesse questão de colocar-se, e ao governo brasileiro, contra a prática: “O que eu posso dizer sobre o homem Carlos Alberto Brilhante Ustra é que ele foi meu oficial comandante durante o final dos anos 70 e ele foi um homem de honra que respeitava os direitos humanos de seus subordinados. Então, muitas das coisas que as pessoas falam dele – posso dizer porque tive amizade muito próxima com ele — não são verdade.”

Os documentos entregues por Biden foram utilizados na Comissão da Verdade: "Espero que olhando documentos do nosso passado possamos focar na imensa promessa do futuro", disse o então vice-presidente dos Estados Unidos. A Comissão da Verdade é outro ponto de irritação por parte de Bolsonaro, que nega a validade de suas revelações.

"Esse é um dos relatórios mais detalhados sobre técnicas de tortura já desclassificados pelo governo dos Estados Unidos", afirmou à BBC News Brasil Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo de Segurança Nacional Americano, em Washington D.C.

Ainda de acordo com Kornbluh, "os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas (de tortura do regime). Eles são evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares brasileiros”.

A insistência com que o vice-presidente Mourão e o presidente Bolsonaro elogiam o coronel Brilhante Ustra pode provocar uma crise diplomática semelhante à ocorrida no governo Geisel, quando o democrata Jimmy Carter deu uma guinada na política de Direitos Humanos nos Estados Unidos.


Merval Pereira: O fantasma de Bolsonaro

Não vale a pena ficar revoltado com o cinismo do presidente Bolsonaro quando diz que acabou com a corrupção no Brasil. Quando todo poderoso ministro-chefe do Gabinete Civil, José Dirceu tinha um mantra. Repetia, para convencer os incautos: “Este é um governo que não rouba nem deixa roubar”.

Por baixo do pano, corria solto o mensalão, com os mesmos partidos que hoje formam a base parlamentar do governo Bolsonaro. Imaginar que esses mesmos políticos possam hoje estar imunes às práticas nada republicanas que levaram muitos deles a serem investigados, denunciados ou condenados na Operação Lava-Jato, é ser ingênuo, o que Bolsonaro e os seus não são.

Como sempre, o que Bolsonaro mira é sua reeleição, e acabar com a Operação Lava-Jato significa para ele um trunfo eleitoral, pois teoricamente apagaria a memória do ex-juiz Sérgio Moro, que Bolsonaro considera um concorrente perigoso em 2022.

Por isso também o presidente está interessado em desmoralizá-lo através da sua condenação na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) como juiz parcial no julgamento do ex-presidente Lula no caso do triplex. Pode, no entanto, estar dando um tiro no pé ao empenhar seu escolhido para a vaga no Supremo em uma ação pessoal contra Moro.

A fixação de Bolsonaro em seu antigo auxiliar é tamanha que, ao ser questionado sobre a escolha do desembargador Kassio Marques para o STF, respondeu irritado: “Você queria que colocasse lá o Moro?”. Acabar com a Lava-Jato seria acabar com as investigações sobre corrupção, uma maneira simples de acabar com a corrupção, que continuaria escondida como sempre aconteceu no Brasil antes do mensalão e, sobretudo, do petrolão levantado pela Operação Lava-Jato.
Une Bolsonaro e alguns ministros do Supremo a idéia de que aniquilar a imagem de Moro como justiceiro fará com que a Justiça brasileira volte a seu curso normal, com o Supremo sendo o último bastião de defesa do devido processo legal. Boa parte do Supremo, porém, considera que o “garantismo” que critica a Lava-Jato quer, na verdade, ter o controle dos processos de políticos, blindando-os da Justiça de Curitiba.

Esses juízes chamados “consequencialistas”, ou “punitivistas” consideram, como o ministro Luis Roberto Barroso já disse, que o sistema de Justiça criminal no Brasil foi feito para não funcionar, protegendo os privilegiados. O que os ministros “garantistas” consideram excessos da Lava-Jato, os que a defendem acham que são medidas necessárias para evitar que fiquem impunes os privilegiados.

A partir do mensalão, em 2005, até recentemente, a punição aos culpados por crimes do colarinho branco tem sido uma constante no Supremo Tribunal Federal (STF), e Bolsonaro chamou para seu governo o então juiz Sérgio Moro para aparentar que o combate à corrupção seria sua prioridade.

Questões pessoais, envolvendo seus filhos, e ele próprio sendo investigado por ações na Presidência da República para controlar a Polícia Federal e outros órgãos de investigação como o Coaf, fizeram com que caísse a máscara de Bolsonaro.

A união ao Centrão, grupo de partidos ligados ao fisiologismo, com diversos integrantes investigados pela Lava-Jato, marcou de vez a mutação, de combatente da corrupção a conivente com “criaturas do pântano”, no dizer de Sérgio Moro. Fazer graça com a idéia de “acabar com a Lava-Jato” é um ato falho de quem disputa com o fantasma de Moro, que o persegue nas redes sociais que um dia foram suas.

A reação à fala de Bolsonaro mostrou que não será fácil acabar com a Lava-Jato, que se incorporou ao imaginário popular como um avanço civilizatório.


Merval Pereira: O vento muda

Como sempre em uma democracia não totalmente amadurecida como a nossa, mudanças súbitas no quadro institucional acontecem, alterando o processo em andamento e manobras que estavam em gestação. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, tirou das Turmas e levou para o plenário o julgamento de ações penais, retirando do ministro Gilmar Mendes o controle das ações da Lava-Jato na Segunda Turma.

Paralelamente, a substituição do ministro Celso de Mello pelo desembargador Kassio Marques subiu no telhado. O que parecia ter sido a sorte grande de sua vida acabou se transformando num pesadelo que pode até mesmo inviabilizá-lo para o posto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que almejava, antes de ter sido catapultado para a vaga do Supremo Tribunal Federal (STF) por interesses ainda não claramente identificados.

Assim como, num passe de mágica, apareceu do nada para compor o grupo de chamados “garantistas” no Supremo, cujo objetivo político imediato combina com o de Bolsonaro, de desmoralizar o ex-ministro Sérgio Moro, Kássio Marques pode estar em processo de autodestruição.

As inconsistências no currículo, onde registra título inexistente de pós-doutorado e duvidosas provas de mestrado e doutorado quase ao mesmo tempo, foram agravadas com a denúncia da revista digital Crusoé de que apresentou uma dissertação de mestrado na Universidade Autônoma de Lisboa com “trechos inteiros copiados de artigos publicados na internet por um advogado”.

A revista utilizou um aplicativo chamado Plagium para analisar as 127 páginas do trabalho com que o desembargador ganhou o título de mestre em Direito, e identificou passagens inteiras copiadas de textos do advogado Saul Tourinho Leal, piauiense como ele. Até mesmo um erro de grafia, trocando “Namíbia” por “Naníbia”, foi copiado.

A festa em que estava transformada a indicação de Bolsonaro, com reuniões sociais onde acusados e acusadores, juízes e advogados confraternizavam, está a ponto de desandar. Porém, o que, num país civilizado, seria obstáculo para a indicação de um ministro do STF, no Brasil pode não dar em nada.

Até pela manhã, o desembargador Kassio Marques aparecia no noticiário com duvidosos títulos em seu currículo, mas do jeito que as coisas são feitas por aqui, à base da amizade e do relacionamento pessoal, a confirmação de seu nome pelo Senado parecia não ser problema.

O desembargador aparece todos os dias em jantares, almoços ou bate papo na internet com os senadores que irão argui-lo. Essa ligação pessoal do indicado com quem vai julgá-lo é promíscua. Não me lembro de outro ministro do STF tenha ficado nessa socialização com todos ao ser indicado. As visitas formais de apresentação são naturais, mas nada além deveria acontecer se a sabatina do Senado fosse mesmo para valer.

No entanto, a denúncia da Crusoé eleva o sarrafo na avaliação do candidato pelo Senado, mesmo nesse ambiente. Como ministro, Kassio Marques iria para a Segunda Turma do STF, e seria o voto de desempate da turma, certamente para o lado que frequenta, a favor do grupo dito “garantista”, onde predominam Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Agora, pode nem estar na posição de ministro nos próximos dias, e a história pode ser outra. Com a decisão do presidente Luis Fux, apoiada por unanimidade pelo plenário, restarão às turmas os habeas-corpus, como o de Lula argüindo a parcialidade do então juiz Sérgio Moro no seu julgamento no caso do triplex do Guarujá, onde foi condenado nas três instâncias.

Mesmo assim, se a Segunda Turma considerá-lo parcial, o processo volta à estaca zero. Lula, porém, foi condenado em segunda instância em outro processo, o do sítio de Atibaia. Nesse caso, o juiz Moro aceitou a denúncia, mas quem condenou foi a juíza Gabriela Hardt. Vai ser muito difícil para os advogados de Lula conseguir a anulação desta segunda condenação para que ele se torne novamente elegível. Ainda mais agora, que o vento mudou novamente de lado no caso da Lava-Jato.


Merval Pereira: Me dá um dinheiro aí

Seria simplificação atribuir à incompetência política do governo o novo adiamento do anúncio do programa social de renda que ampliará o Bolsa Família para abrigar os quase 40 milhões de “invisíveis” que vieram nos assombrar na pandemia.

Tirem-se os que não deveriam receber, os bandidos que receberam na cadeia, os fraudadores. Sobram ainda milhões de “invisíveis”. Esse número assombroso de pessoas que dependem do apoio do governo no momento em que o país parou de girar sua economia é formado na maioria por trabalhadores autônomos informais que entraram em situação de miserabilidade por absoluta falta de trabalho.

São ambulantes, biscateiros, flanelinhas que perderam na pandemia seus clientes habituais, e hoje dependem do governo para a transição econômica, que promete ser mais demorada do que se esperava. Onde achar dinheiro para alimentar esses milhões de bocas?

Não há solução sem que alguma categoria sofra prejuízos, sem que interesses de castas sejam feridos. Não é impressionante que existam cerca de R$ 15 bilhões por ano no pagamento indevido de salários acima do máximo de R$ 39 mil?

Mas para cortar esses supersalários e outras distorções da gestão pública, é preciso encarar desafios que só mesmo um presidente reformista poderia fazer. Mas Bolsonaro não é reformista, apenas finge. Os adiamentos do anúncio das reformas e do Renda Cidadã só refletem essa dificuldade: como arranjar dinheiro para garantir a reeleição sem prejudicar as corporações que o apóiam?

O auxílio emergencial, que o governo queria que fosse de R$ 200 e acabou sendo elevado para R$ 600 pela pressão do Congresso, deveria terminar em dezembro, já reduzido para R$ 300 nesses últimos três meses do ano. Mas a existência desses milhões de “invisíveis” não permite que se interrompa o apoio da renda mínima a esses brasileiros.

A questão é que também não é possível manter-se programa social desse tipo indefinidamente, nem rodar a maquininha para fabricar o dinheiro necessário. Na pandemia, foi necessário, mesmo que a dívida pública chegue a 100% do PIB. Tempos de guerra.

O governo vê-se agora em uma armadilha. O auxílio emergencial aumentou a popularidade do presidente Bolsonaro, tornando-se um instrumento político tão forte quanto o Bolsa-Família foi para o PT, especialmente nas regiões mais pobres do país.

Assim como Lula fez, Bolsonaro está em transição de eleitorado, perdendo apoiadores nas grandes cidades e capitais, especialmente na classe média, e se aproximando do eleitor do norte-nordeste. O programa Renda Cidadã é o que vai lhe garantir a sobrevivência política.

Tendo chegado ao Poder circunstancialmente, passando-se por quem nunca foi, ele já perdeu todas as fichas que o diferenciavam, mesmo enganosamente, dos demais políticos. Já não combate a corrupção, mas se uniu aos políticos mais fisiológicos em ação para salvar-se de um impeachment provável se continuasse na rota de colisão com o Supremo e o Congresso.

Abandonou seus seguidores mais radicais, que não entendem que é preciso mudar para sobreviver. O sonho do golpe de Estado por dentro, acalentado por Bolsonaro até recentemente, foi abortado diante da evidência de que as instituições republicanas funcionam como contrapeso aos ataques extremistas.

Para tentar se reeleger, Bolsonaro teve que retornar ao velho jogo político, assim como Lula fez com o mensalão. Os dois se retroalimentam para sobreviver, e jogam nas regras do jogo pré-estabelecido. Lula, que antes acusava a Justiça brasileira de conluio contra ele, está aguardando que o novo ministro do Supremo indicado por Bolsonaro ocupe o lugar de Celso de Mello e garanta a maioria a favor da parcialidade de Moro.

O presidente Bolsonaro, que se valeu do prestígio de Moro para estabelecer-se como o grande guardião da moralidade pública, agora depende da desmoralização de seu herói para salvar a si e aos seus no mesmo Supremo Tribunal Federal que ameaçou fechar.

O grito de “basta” dado em frente ao Alvorada, como um sinal a seus seguidores de que a guerra seria desencadeada, transformou-se em uma amizade fraternal com ministros que anteriormente eram execrados. Tudo está como sempre foi em Brasília.

Provavelmente em dezembro, depois das eleições municipais, saberemos de onde sairá o dinheiro, se do corte de outros gastos, ou do malabarismo para ultrapassar o obstáculo que é o teto de gastos.


Merval Pereira: De corpo e alma

Nada mais exemplar do establishment que Bolsonaro prometeu destruir do que a reunião promovida pelo ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal em sua casa em Brasília nesse domingo. O almoço, que em qualquer país civilizado provocaria escândalo, começou às 14 horas e foi até a noite, com futebol e pizza. A fauna brasiliense presente ia de advogados que atuam no Supremo, políticos de vários matizes, presidente do TCU e, por último, mas não menos importante, o presidente da República em pessoa, que está sendo investigado pelo STF.

Bolsonaro tenta separar o corpo da alma, pelo menos finge querer. De um lado, entendeu que precisa de acordos políticos e aproximações com o Congresso e o STF; e de outro, enfrenta os radicais que querem afrontar o Congresso e o STF, na batida do início do governo, o que não é possível numa democracia.

Bolsonaro entendeu que por esse caminho ia acabar sofrendo impeachment, porque não há possibilidade de governar em guerra com o Congresso e o STF. E a guerra com os dois outros poderes pressupõe uma visão democrática deformada. Os três poderes são equivalentes, e é preciso obter uma posição majoritária através de negociações.

Como só sabe fazer a baixa política, do toma lá, dá cá, que viveu durante os 30 anos como parlamentar do baixo clero, e prometeu acabar quando Presidente, aproximou-se da ala mais conservadora do STF e do Centrão, que sempre está com todos os governos em troca de favores, poder, emprego.

Atacado por seus próprios aliados nas redes sociais, acusado de ter feito acordo com o diabo, ou seja, a esquerda, Bolsonaro tenta se defender como se sua alma estivesse onde sempre esteve, junto aos radicais da extrema-direita, enquanto seu corpo circula pelos bastidores do establishment “porque tenho que governar”.

A indicação do desembargador Kassio Marques, escolhido por Dilma Rousseff para o TRF-1, e a amizade repentina com Dias Toffoli, ex-advogado do PT, mostram para seus radicais uma promiscuidade inaceitável, embora aceitem sem grandes protestos os acordos políticos com o Centrão, que significam abandonar definitivamente o combate à corrupção.
Toffoli à frente do Supremo, cargo que deixou recentemente, marcou sua gestão pela proximidade com o presidente Bolsonaro, com quem assinou um pacto político totalmente inadequado. Os então presidentes do STF Nelson Jobim e Gilmar Mendes firmaram pactos republicanos com os poderes Executivo e Legislativo, mas com o objetivo de tornar a Justiça brasileira mais eficiente.

Nada semelhante ao pacto firmado por Dias Toffoli, à frente do Supremo, com o objetivo de apoiar as reformas que tramitam no Congresso, sobretudo a Previdenciária, que estava em discussão naquele momento. Não há na história recente exemplo de pacto político de que tenha participado o Poder Judiciário. Por uma razão muito simples: é nele que desaguarão as demandas dos que se sentirem afetados pelas reformas. O Judiciário não pode fazer pactos sobre assuntos que vai julgar.

Aliás, foi o que disse o novo presidente do Supremo, ministro Luis Fux, ontem em uma palestra. Fux ficou de fora dos convescotes de Brasília desde o primeiro dia em que o desembargador Kassio Marques foi com Bolsonaro à casa de Gilmar Mendes ser oficializado como o candidato a substituir Celso de Mello.

Ao assumir o cargo, disse que o Supremo terá “autoridade e dignidade” fortalecidas, e advertiu que a harmonia entre Poderes “não se confunde com subserviência”. A relação de Fux com o presidente Bolsonaro começou marcada pela liturgia do cargo, o que só fará bem à democracia brasileira.

O abraço fraternal dado em Bolsonaro não seria mais apertado em Lula, antigo mentor de Toffoli que, cedo, descobriu que tem mais anos pela frente de Supremo do que Lula de expectativa de poder.


Merval Pereira: Meio-Ambiente verde (oliva?)

A militarização da Amazônia parece ser a saída que o governo de Bolsonaro projeta para garantir nossa soberania na região, como se ela estivesse realmente ameaçada. Desde que o candidato à presidência dos democratas nos Estados Unidos, ex-vice-presidente Joe Biden, disse no debate com Trump, referindo-se às queimadas no Brasil, que vai procurar outros países para criar um fundo de preservação da Amazônia de U$ 20 bilhões, e que, se o desmatamento continuar, haverá "consequências econômicas significativas", o presidente Bolsonaro vem acirrando os ânimos nacionalistas dos militares.

Responde que “não estamos à venda” em sua live do Facebook, e considera a fala de Biden uma demonstração de que há interesses espúrios de outros países na Amazônia. Bolsonaro joga toda sua política externa na reeleição de Trump, vê nossa relação diplomática com os Estados Unidos como “plena”, e lamenta que Biden, que pode vir a ser eleito presidente dos Estados Unidos, “parece estar querendo romper o relacionamento com o Brasil por causa da Amazônia”.

Consequentemente, diz que o Brasil precisa de Forças Armadas "preparadas" para proteger a Amazônia caso algum país resolva fazer "uma besteira" contra o Brasil. “E nós temos que fazer o que? Dissuadi-los disso. E como você faz a dissuasão disso? Ter Forças Armadas preparadas. Mas nossas Forças Armadas foram sucateadas ao longo dos últimos 20 anos”, lamentou.

O estranho é que no Fórum Econômico Mundial, ao encontrar-se com o ex-vice-presidente dos EUA Al Gore, Bolsonaro disse que gostaria de “explorar a Amazônia com os Estados Unidos”. Mesmo que seja apenas uma bravata, essa convocação à defesa da Amazônia entusiasma os militares, e boa parte dos seguidores bolsonaristas mais radicais.

A idéia de juntar o ICMBio ao Ibama, por exemplo, está sendo vista pelos ambientalistas como uma tentativa de militarizar a preservação do meio-ambiente, que já está dominada por militares no Ibama. Há também pressões vindas dos setores produtivos para a mudança da política ambiental do governo, pois a ação do ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles está se tornando tóxica para os exportadores.

O agronegócio já está sofrendo as conseqüências de uma política ambiental que desafia o mundo ocidental, e pode provocar prejuízos à marca Brasil, que sempre teve um peso importante no mercado mundial. Os agricultores estão gastando mais dinheiro do próprio bolso para fazer o rastreamento dos seus produtos, para poder provar que não são oriundos de áreas desmatadas.

A nomeação do vice-presidente Hamilton Mourão para presidir o Conselho da Amazônia foi um primeiro passo para dar mais credibilidade às ações do governo na região, mas, embora tenha mais bom senso que Salles, o vice-presidente precisa ter sob sua jurisdição órgãos que hoje estão no ministério do Meio-Ambiente.

Por isso voltou a ser cogitada a fusão do ministério do Meio-Ambiente com a Agricultura, uma idéia que o presidente Bolsonaro teve no início de seu governo, ao montar o novo ministério. Na ocasião, e com razão, pareceu ser uma manobra para rebaixar o Meio-Ambiente em favor do agronegócio. Agora, ao contrário, seria uma ação para proteger o agronegócio das críticas internacionais à política ambiental do governo Bolsonaro.

A proposta é que o vice-presidente Hamilton Mourão assuma toda a coordenação da política ambiental, e que a Agricultura absorva funções burocráticas do Meio-Ambiente. Mourão teria assim sob sua orientação o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que ele já criticou, a ponto de apoiar um movimento do Ministério da Defesa para comprar um satélite que faria a mesma função de monitoramento de queimadas e desmatamentos que o sistema do Inpe já faz.

A idéia foi abandonada, mas Mourão, assumindo a política ambiental, terá o sistema de satélites já existente à sua disposição. Tudo isso pode ser feito, e melhorará a imagem do país no exterior, se demonstrarmos que estamos realmente combatendo as queimadas e o desmatamento, e não apenas entregando aos militares uma hipotética defesa da região, sem alterar o negacionismo do governo.

Um meio-ambiente verde, e não verde-oliva.


Merval Pereira: Há lugar para os dois?

Não foi a primeira vez, não será a última. A disputa de poder entre o ex-superministro da Economia Paulo Guedes e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, se desenvolve no terreno pantanoso da crise econômica que mais uma vez vivemos. Não há dinheiro para investimentos, para programas sociais, e a disputa entre os “desenvolvimentistas” e os “monetaristas” volta à tona, como acontece com freqüência quando há crise econômica.

No governo João Figueiredo, aconteceu a disputa entre o ministro do Planejamento, Mario Henrique Simonsem, e o da Agricultura, Delfim Netto. No governo Fernando Henrique, houve o embate entre o ministro do Desenvolvimento Clóvis Carvalho e o da Fazenda, Pedro Malan. No primeiro caso, perdeu o Planejamento, no segundo, ganhou a Fazenda.

Num governo em que a linha econômica era definida por Guedes, incontestável em certo momento, seria impossível que o ministro Tarcisio Freitas, da Infraestrutura, conseguisse verbas para obras com o apoio de ministros “da casa”, como os generais Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, e Braga Netto, da Casa Civil. Mas foi o que aconteceu.

O ministro do Desenvolvimento, Rogério Marinho, uniu-se aos militares desenvolvimentistas e montou sua base longe do ministro da Economia Paulo Guedes, que o havia indicado para o cargo depois de tê-lo como assessor durante a reforma da Previdência.

Era o começo do fim de mais um superministro do governo Bolsonaro. A disputa de bastidores ontem chegou ao público com o vazamento de uma palestra do ministro do Desenvolvimento para uma platéia de economistas de uma corretora de valores. Provavelmente de propósito, já que é um político experiente, Rogério Marinho criticou seu colega de governo e principal figura da economia, aparentemente como troco à atitude de Paulo Guedes de renegar a utilização de precatórios para financiar o Renda Brasil.

Marinho garantiu que a idéia foi de Guedes, que realmente esteve na reunião com os políticos onde se definiu a composição do programa social, e, no anúncio oficial ao lado do presidente. O ministro Rogério Marinho, sentindo-se respaldado, disse aos economistas que o programa sairá “do melhor ou do pior jeito”, o que deu a impressão aos investidores de que estava avisando que o Renda Brasil sairá mesmo que fure o teto.

Há informações de que Marinho está negociando com os políticos retirar o programa social do teto de gastos, e criar um imposto que possa financiá-lo. Os políticos não querem mais conversa com Guedes, se consideraram traídos com a mudança de atitude sobre os precatórios.

Marinho ainda teria feito, segundo as versões, comentários nada elogiosos à capacidade técnica do ministro Paulo Guedes. Ao saber, pelos jornalistas, das críticas, Guedes chamou Marinho de “desleal”, “despreparado” e “fura-teto”, estabelecendo os campos de ação de cada um.

Caberá ao presidente Bolsonaro decidir a parada, como coube a Fernando Henrique demitir Clóvis Carvalho para reafirmar a predominância do ministro Pedro Malan na política econômica. Carvalho havia feito um discurso em reunião do PSDB, na presença de Malan, com críticas à política econômica, chegando a dizer que “cautela, a partir de certo ponto, é covardia”.

Foi assim também em 1979, quando a disputa entre o ministro do Planejamento, Mario Henrique Simonsem, e o da Agricultura, Delfim Netto, acabou com o pedido de demissão do primeiro. Delfim foi para o ministério do Planejamento, indicou o novo ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, e assumiu a direção da economia.

O presidente Bolsonaro encontra-se na mesma situação de Figueiredo, esperando que alguém peça demissão. Tudo indica que não há espaço para os dois no mesmo governo, que já não é o mesmo de quando Paulo Guedes era o Posto Ipiranga. Já não parece estar em condições políticas para conseguir a demissão de Rogério Marinho, que tem o apoio dos ministros militares do Palácio do Planalto e do Centrão.


Merval Pereira: Centrão no STF

Como tudo na ação política de Bolsonaro, nem sempre o que parece ser, é. Assim, já corre em Brasília a tese de que a surpreendente escolha do desembargador Kassio Nunes para substituir o ministro Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal (STF) é apenas um balão de ensaio, que pode não se concretizar.

Estaria testando a resistência do nome às chuvas e trovoadas que normalmente ocorrem nessas ocasiões. Uma primeira impressão é que o nome passa bem no teste, mas as pressões internas para que o indicado seja um ministro do STJ, mais graduado que o desembargador, estão intensas.

A escolha tem aspectos bons, como não se basear em critérios estapafúrdios para indicar alguém “terrivelmente evangélico”, ou que tome cerveja com ele, e outros nem tanto, como fazer uma escolha claramente baseada em critérios políticos.

Assim como Dias Toffoli foi nomeado por ter sido advogado do PT, o desembargador Kassio Nunes é um escolhido do Centrão. Quando foi nomeado para a vaga do quinto constitucional no Tribunal Federal Regional, em 2011, teve o apoio do então governador petista Wellington Dias, preferia ir para Brasília a ficar em Recife, no TRF-5, que abrange o nordeste.

Nesses quase 10 anos, teve tempo de fazer um networking político de dar inveja, trafegando nas mais diversas correntes políticas, e contou com a sorte. Estava visitando ministros do STF e políticos para tentar ser nomeado para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), e acabou escolhido para o STF. Não que o desembargador seja desqualificado para o cargo, tudo indica que não, pelo menos se comparado ao candidato preferencial de Bolsonaro, o ministro-chefe da Secretaria de Governo Jorge Oliveira, que foi sutilmente tirado da lista nas sondagens informais junto aos ministros do STF.

Bolsonaro executou com maestria um “drible da vaca”, como comparou um ministro do STF, “daqueles que o Ronaldinho deixava o zagueirão no chão”. Bolsonaro deve ter gostado da comparação futebolística. Ele havia jogado vários nomes no ar, e apareceu com uma novidade, uma solução diferente do que estavam esperando.

A indicação aparentemente agradou aos ministros do STF, que identificam o desembargador como uma pessoa centrada, equilibrada, com posições sensatas. Por exemplo, é a favor da prisão em segunda instância, mas acha que a decisão deve ser do juiz. Acredito que a escolha já esteja definida, pois Bolsonaro levou-o à casa de Gilmar Mendes, onde estavam Dias Toffoli e David Alcolumbre, presidente do Senado, e anunciou que ele seria indicado. Mas muitos ministros do Supremo estão estranhando que o anúncio tenha saído de uma reunião política.

Entendo a escolha como uma tentativa do presidente de demonstrar ao STF respeito, e entendimento de que não poderia escolher alguém que “toma cerveja” com ele. Mostrou que, na prática, acha que não deve fazer o que estava anunciando para sua platéia. Foi um gesto de aproximação. Se for mesmo escolhido por Bolsonaro, o desembargador não terá problemas no Senado, pois seu padrinho político é o Senador Ciro Nogueira, e, entre outros, tem o apoio de Renan Calheiros, do ex-presidente José Sarney e do ex-senador Romero Jucá. Aquele que disse que seria preciso fazer um acordo, “com o STF e tudo”, para acabar com a Lava-Jato.

É o que deve acontecer, pois Kassio Nunes se coloca contra os “exageros” de Curitiba, na mesma linha de Gilmar Mendes. Como vai ocupar a vaga de Celso de Mello, o futuro ministro deve ir para a Segunda Turma, completando o quorum para decretar a parcialidade do então juiz Sérgio Moro, e anular a condenação do ex-presidente Lula pelo triplex do Guarujá. Talvez não seja nem mesmo preciso fazer aquela manobra de colocar o ministro Dias Toffoli na Segunda Turma.


Merval Pereira: Paulo Guedes em seu labirinto

Aquela cena em que o ministro da Economia Paulo Guedes foi gentilmente retirado de uma entrevista pelo ministro-chefe da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos e pelo líder do governo Ricardo Barros revelou, por imperícia dos dois primeiros, a desavença interna entre os assessores mais próximos do presidente Bolsonaro.

Sem se preocupar com as aparências, o líder Ricardo Barros explicitou dias depois, durante a apresentação do desastrado arranjo feito para bancar o Renda Cidadã, como se desenrola o processo de decisão no governo hoje. O ministro Paulo Guedes representa a opinião da Economia, já não a do governo, perdendo formalmente a qualidade de superministro.

Barros e o ministro Ramos negociam com os partidos da base em nome do governo, levando em conta variáveis além da visão econômica. O consenso político é então levado para o presidente Bolsonaro, que bate o martelo. Foi assim que se deu a decisão sobre usar os precatórios e o Fundeb para financiar o Renda Cidadã, e a confusão foi geral.

A perda de prestígio interno de Paulo Guedes é tamanha que foi Ricardo Barros quem conversou com representantes do mercado financeiro para tentar acalmá-los. Não deu certo, claro, porque não há como explicar que truques contábeis não são truques para especialistas em contas. Um dos participantes resumiu a situação trágica: “O líder do governo parece não ter noção da gravidade da situação”.

Nem Barros, nem Bolsonaro, que abriram mão do Posto Ipiranga para assumir uma negociação que não pode ser meramente política, pois envolve o equilíbrio fiscal do país, já sob o escrutínio dos investidores, nacionais e internacionais. A desavença interna no governo foi explicitada ontem pelo secretário do Tesouro Bruno Funchal, que advertiu que a reação do mercado financeiro à proposta de rolar precatórios para financiar o Renda Cidadã é um “alerta” que deve ser considerado na discussão da medida.

Espantoso que já não tivesse sido antes. Para Funchal, a reação dos agentes econômicos em geral à “solução política apresentada” demonstra que será preciso “mostrar o que significa isso, qual é a repercussão que tem”. Uma maneira sutil, mas contundente, de dizer que a solução foi “política”, não econômica, e que a repercussão negativa precisa ser levada em conta no debate.

Já há alternativas sendo consideradas, uma delas seria redirecionar os recursos dos fundos públicos que foram extintos, cerca de R$ 220 bilhões, para o financiamento do Renda Cidadã, e não para o abatimento da dívida pública, como estava previsto. Essa solução também parece não oferecer segurança aos investidores.

Primeiro, porque vai deixar de abater a dívida pública para financiar outro tipo de dívida, de caráter permanente. O governo continuará sem ter uma renda permanente no Orçamento para custear a nova despesa, como manda a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Como todas as fontes de recursos são eventuais, a única saída do governo seria criar o Renda Cidadã por um período, e tentar renová-lo periodicamente. Seria, no entanto, uma manobra arriscada, pois é praticamente impossível extinguir um programa social desse porte.

O que o governo precisa fazer é uma reforma verdadeira na sua administração para encontrar espaço para financiar programas sociais e investimentos que gerem empregos e renda. Quando o presidente Bolsonaro teve aquele ataque, e foi para as redes sociais dizer que não queria mais ouvir sobre a Renda Brasil, proibindo que a proposta do ministro Guedes de desindexar a economia fosse discutida, perdeu o que parece ser a única saída para a falta de caixa.

O objetivo da desindexação é romper o engessamento do Orçamento de mais de 2/3 dos gastos que são obrigatórios. O debate tendo sido interditado por Bolsonaro, a busca de dinheiro para o novo programa social entra em um labirinto em que Paulo Guedes está perdido, sem o fio de Ariadne.


Merval Pereira: Truques contábeis

O temor de todos se confirmou: o governo não tem de onde tirar dinheiro para o Renda Cidadã, a não ser que desrespeite o teto de gastos. As medidas anunciadas ontem nada mais são que truques contábeis que não enganam mais ninguém, ainda mais quando quem tem que explicar a trapalhada é um representante do Centrão, especialista em truques, mas jejuno em legalidade.

Aproveitar a verba do Fundo de Educação Básica (Fundeb), que está fora do teto de gastos, para dar um drible na legislação, revela a postura de fura-teto do governo e sua propensão a não dar prioridade para a educação. O presidente que não queria tirar dos pobres para dar aos paupérrimos não se incomoda de tirar dos cidadãos uma perspectiva de futuro melhor através da educação.

Já houve tentativa de usar os recursos do Fundeb, aprovado contra o desejo do governo, para financiar programas sociais, e o governo perdeu. Na negociação ficou acertado que 5% da verba do Fundeb iria para a educação infantil. O governo vale-se disso agora para alegar que os recursos serão usados para colocar as crianças nas escolas no novo programa social Renda Cidadã. Mais uma falácia da linguagem oficial.

A parte dos precatórios é mais difícil ainda de explicar, e quebra mais regras jurídicas. Já houve tentativas, por emenda constitucional, de ampliar o prazo para entes federativos - estados, municípios - que estavam inadimplentes, mas o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional.

O que assusta o mercado financeiro na anunciada redução do pagamento dos precatórios é que ela cheira a um calote na dívida do governo, sinalizando uma posição retrógrada, pois o governo vem pagando por ano cerca de R$ 50 bilhões em dívidas reconhecidas pela Justiça.

A maioria dessas dívidas é de pessoas físicas, geralmente disputas sobre salários de servidores públicos, benefícios previdenciários, pensões, os chamados precatórios de natureza alimentar, que têm prioridade para o recebimento. Quer dizer, o presidente tanto se preocupou em poupar os “paupérrimos” que vai pegar muitos deles pelo calote nos precatórios.

A grande dificuldade do governo sempre foi encontrar dinheiro dentro do orçamento sem mexer em privilégios chamados de “direito adquirido”. A desindexação geral da economia, que é muito engessada, seria uma medida importante, pois permitiria ao governo usar o dinheiro do orçamento com mais flexibilidade.

O governo sempre tentou fazer essas reformas sem provocar protestos e reações corporativas, e acabou mexendo num vespeiro com a redução do pagamento dos precatórios. Uma solução precária, pois a cada ano a dívida aumentará. Seria uma medida de pouco impacto, pensavam os políticos do Centrão, porque atinge pessoas variadas, e não pagar precatórios não é uma situação nova. Não criaria grandes problemas, que mexessem com a popularidade do presidente.

É verdade quanto à popularidade, mas não quanto ao impacto, pois haverá muita disputa na Justiça, e mais uma vez o Supremo terá que arbitrar. A troca do novo imposto digital pela desoneração geral da folha de pagamento das empresas é uma boa negociação, que acabou emperrada dentro da reforma tributária, que não tem consenso no Centrão.

A desoneração acabará surtindo efeito, porque vai permitir o aumento do emprego e a recuperação da economia, que não está crescendo como se esperava. Se o centrão apoiar, pode passar. E o presidente da Câmara Rodrigo Maia, que sempre foi contra a CPMF digital, poderia até reconsiderar, mas com a crise política que as fontes para o Renda Cidadã vai gerar, dificilmente esse assunto ganhara prioridade.

Maia já disse que é preciso regulamentar o teto de gastos, justamente para evitar tentativas de dribles. Quando o Centrão é que tem que explicar para o mercado financeiro a solução encontrada, é sinal de que o ministro Paulo Guedes perdeu o controle das propostas econômicas, e que dificilmente o líder do governo, Ricardo Barros, convencerá os investidores de que está tudo bem.

O tempo é curto, o governo precisa correr para aprovar o Renda Cidadã, pois em janeiro o dinheiro já tem que estar sendo distribuído. Em dezembro acaba o auxílio emergencial.


Merval Pereira: A direita no Supremo

A conformação do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Suprema dos Estados Unidos está sendo alterada no mesmo momento histórico de viés direitista nos dois países. Nos Estados Unidos, a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg, um ícone dos progressistas americanos, pode dar lugar a um plenário majoritariamente conservador, marcando por décadas o entendimento da Suprema Corte.

No Brasil, a aposentadoria antecipada do ministro Celso de Mello, um exemplo de coerência e defesa da democracia, permitirá que o presidente Bolsonaro nomeie um ministro claramente conservador, embora não reverta a tendência progressista da Corte brasileira.

A tentativa de controlar as decisões da última instância do Judiciário provoca crise política nos Estados Unidos, pois a nomeação da substituta de RBG deveria ficar para o próximo presidente a ser eleito dentro de 38 dias. Quando o ministro Antonin Scalia morreu, em fevereiro de 2016, o Senado americano, dominado pelos Republicanos como agora, não permitiu que o presidente Obama nomeasse o sucessor, sob alegação de que estava em seu último ano de mandato. Hoje, os mesmos Republicanos defendem a nomeação por Trump do novo ministro da Suprema Corte.

O golpe parlamentar dos Republicanos, que fará com que a Suprema Corte fique com uma maioria de 6 conservadores contra 3 progressistas, está provocando grande discussão política, e surge a tese de que os Democratas, se ganharem a eleição para presidente com Joe Biden e o controle do Senado nas próximas eleições, aumentem o número de juízes da Corte Suprema.

O democrata Franklin Roosevelt também ameaçou aumentar o número de integrantes da Suprema Corte para conseguir aprovar medidas de seu programa New Deal, lançado para combater as consequências da Grande Depressão de 1929, que estava sendo barrado pela maioria conservadora.

Propôs ao Congresso, em 1937, lei aumentando a composição da corte para 15 juízes, e estabelecendo a nomeação de um juiz adicional, até o máximo de seis, para quem superasse a idade de 70 anos, quando o mandato, até hoje, é vitalício. A juíza Ruth Bader Ginsburg morreu no cargo aos 87 anos Em meio a uma crise institucional sem precedentes, a Suprema Corte mudou de posição devido ao juiz moderado Owen Roberts, cujo voto ficou conhecido como “the switch in time that saved nine” (“a mudança no tempo que salvou nove”, em tradução livre), e uma maioria a favor do “New Deal” foi formada.

Entre nós, no regime militar, através do Ato Institucional 2, de 1965, o presidente Castello Branco aumentou de 11 para 16 o número de ministros do STF, para controlar a maioria, considerada de esquerda pelos militares. Com o AI-5, três juízes foram aposentados – Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal – e dois renunciaram em protesto: ministros Antônio Gonçalves de Oliveira, presidente do tribunal, e Antônio Carlos Lafayette de Andrada.

Podendo nomear cinco novos ministro, Costa e Silva restabeleceu a composição da corte com 11 ministros, número vigente até hoje. O presidente Jair Bolsonaro já defendeu o aumento de cadeiras do Supremo de 11 para 21, alegando que a atual composição da Corte é muito esquerdista. Depois de desistir de manter uma guerra aberta com o Supremo, Bolsonaro não insistiu mais no golpe parlamentar, mas pretende nomear um ministro “terrivelmente evangélico” para tentar reverter decisões como a lei do aborto, que é também um ponto central na campanha dos conservadores nos Estados Unidos.

O provável indicado é Jorge Oliveira, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Há outros conservadores na disputa, como o “terrivelmente evangélico” ministro da Justiça André Mendonça, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, que tem se esforçado para se mostrar próximo a Bolsonaro, e o ministro do Superior Tribunal de Justiça, João Noronha.

Nos Estados Unidos, o presidente Trump indicou a juíza da Corte de Apelação de Chicago Amy Coney Barret, uma professora da Universidade de Notre Dame que já tem explicitado posições conservadoras em relação a temas polêmicos como aborto, imigrantes e posse de armas.

Com 48 anos, garantirá aos conservadores uma longa supremacia na Corte Suprema dos Estados Unidos.


Merval Pereira: O teto é o limite

O cobertor curto orçamentário está causando apreensão entre os políticos (alérgicos a novos impostos), ao governo, que já tem tudo para lançar um novo programa social (menos dinheiro), e nos órgãos fiscalizadores, como o Tribunal de Contas da União (TCU), que ontem alertou que o quadro fiscal do país é “gravíssimo”, na definição do ministro Bruno Dantas.

O ministro Paulo Guedes está em busca de "tributos alternativos" para desonerar a folha de pagamentos das empresas e também encontrar “uma aterrissagem suave” do auxílio emergencial. É a maneira politicamente correta que Guedes encontrou para tentar a aprovação do imposto sobre transações digitais.

Quanto à desoneração da folha, a troca é bem-vinda e poderá ser a chave para um acordo no Congresso, pois barateará o custo das contratações, ajudando a reduzir a taxa de desempregados. "Queremos desonerar, queremos ajudar a buscar emprego, facilitar a criação de empregos, então vamos fazer um programa de substituição tributária", disse Guedes.

Mas, quanto ao substituto do auxílio emergencial, que o governo quer transformar em um programa de renda mínima de R$ 300, maior que o Bolsa-Família no valor e no alcance social, a conta não fecha. O teto de gastos não admite que novas receitas possam aumentar as limitações orçamentárias.

Só cortando custo, gastos a mais só com a definição de onde sairá o dinheiro novo para compensá-los. O ministro Bruno Dantas ontem foi claro: “O teto é fixo”. Ao analisar ontem uma prestação de contas da execução orçamentária e financeira do primeiro trimestre deste ano, os ministros ficaram impressionados com a previsão de que o déficit fiscal este ano deve ser da ordem de R$ 861 bilhões, maior do que a previsão oficial em julho.

Segundo o ministro Bruno Dantas, existe a sensação “em vários momentos” de que o Brasil está “à deriva”, e foi apoiado por todos quando afirmou que o governo precisa fazer um plano de saída da crise para “o curto e médio prazo”.

Com todas essas dificuldades, no decorrer das negociações sobre o pacto federativo, que é onde está embutido o Renda Cidadã, é possível que o debate sobre a possibilidade de mudança dos critérios do teto de gastos seja destravado. Há quem imagine que é possível fixar-se um novo teto, englobando o resultado de um novo imposto.

A proposta do relator do pacto federativo, senador Marcio Bittar, é acabar com as despesas obrigatórias para saúde e educação, permitindo que o orçamento seja mais flexível. É uma questão polêmica, que certamente causará debates polarizados, pois será preciso que, nessa conformação, o apoio político da saúde e da educação seja forte o suficiente para que não percam verbas orçamentárias. Como a visão é de que esse governo não tem apreço pelas duas áreas, vai ser difícil chegar a um acordo.

Para cortar gastos que sejam relevantes, só há uma saída: ou mexer na parte superior da pirâmide, que é onde estão os altos salários dos servidores públicos, ou cortar na base, atingindo a maioria, formada pelos que se procura atender com o novo programa social. A segunda opção já foi descartada pelo presidente Bolsonaro, que alega não querer tirar dos pobres para dar para os paupérrimos.

O que ele quer mesmo é manter um programa social que dará o dobro do que hoje dá o Bolsa Família, e a mais gente, incluindo os cerca de dez milhões de “invisíveis” que foram descobertos agora na pandemia. É um projeto político que esbarra na dificuldade por que passa o país, mas que interessa também ao centrão, que assumiu o apoio ao Renda Cidadã. Como estamos em época eleitoral, o novo programa social não deve ser de efeito imediato, pois até dezembro está em vigor o auxílio emergencial de R$ 300.