Merval Pereira

Merval Pereira: Olho grande

A crise desencadeada pelo agressivo tuíte do ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles contra seu colega de ministério, Luiz Eduardo Ramos, não se encerrou com a tentativa de Bolsonaro de passar pano sobre o caso. O apelido de “Maria Fofoca” jogado nas redes sociais por Salles, além de desrespeitoso, serviu para excitar a ala ideológica do governo, que gosta dessas baixarias como instrumento de luta política. Incentivada pelos próprios filhos do presidente, que foram ao Twitter apoiá-lo.

A situação difícil em que foi colocado, como ele mesmo define, fez com que o ministro chefe da Secretaria de Governo da Presidência Luiz Eduardo Ramos se tornasse o centro de uma disputa política que não foi de sua escolha.

Desde que foi Comandante Militar do Sudeste, com sede em São Paulo, o General Ramos acostumou-se a lidar com políticos, fazendo questão de manter uma relação suprapartidária que incluía até mesmo o PT, quando isso era uma ousadia. Não foi por acaso, portanto, que foi escolhido para ser o interlocutor do governo com o Legislativo, tarefa que vinha exercendo com eficiência e correção até que grupos do Centrão esticaram o olho para seu cargo.

O interessante nesse caso é que coube a Ramos fazer a aproximação do presidente Bolsonaro com os políticos do Centrão, quando ficou claro que era necessário montar uma base parlamentar e entrar no jogo político tradicional para evitar crises, que poderiam levar ao impeachment.

A ambição do Centrão está tendo resistência de um bloco de parlamentares que não comungam com a agressividade das redes sociais, enquanto o ministro Salles atua em sintonia com a ala ideológica do governo, que tem nas redes sociais sua maior arma política.

Embora acostumado às negociações políticas, o General Ramos não se acostumou a traições e jogo baixo nas redes sociais. Tendo ido recentemente para a reserva, deve estar agradecendo por ter tomado tal atitude, pois agora a crise que enfrenta não envolve tão diretamente o Exército como se ainda estivesse na ativa, o que Bolsonaro queria.

O General Ramos foi o primeiro militar a entender que sua permanência na atuação política do governo estaria prejudicada se continuasse na ativa, o que não ocorreu ao General Eduardo Pazzuelo, general de três estrelas que foi humilhado publicamente nos últimos dias pelo presidente Jair Bolsonaro.

A relação entre os militares que estão no governo e os civis que começaram a povoar os cargos a partir da aliança com o Centrão é conturbada pelos diversos sinais desencontrados que emanam dela. Na fase inicial do governo Bolsonaro, os militares ganharam poder e dominaram o espaço do Palácio do Planalto.

Tudo indicava que seriam eles os organizadores das ações políticas e administrativas do governo, e isso deu ao presidente Bolsonaro uma sensação de poder que ele propositalmente usou para ameaçar os que se opunham a ele. Durante muito tempo Bolsonaro escudou-se nos militares para anunciar uma blindagem que não tinha, mas aparentava ter.

Os militares até hoje aceitam a liderança de Bolsonaro sem contestações, embora nos bastidores episódios como os do General Pazzuelo tenham repercutido mal, ainda mais por ser um militar da ativa. Até o momento, os ministros militares ainda ocupam os principais cargos dentro da estrutura do governo no Palácio do Planalto, e têm os instrumentos administrativos para manter o poder.

A guerra de verbas no ministério do Meio-Ambiente se refere mais às ações políticas do que propriamente ao dinheiro do orçamento. Prova disso é que nas duas ocasiões em que órgãos do ministério anunciaram paralização por falta de verba, ela apareceu imediatamente.

O entendimento dos ministros ligados ao tema, inclusive o vice-presidente Hamilton Mourão, é de que Salles usa a dificuldade de orçamento para criar fatos consumados e jogar para os ministros que controlam o orçamento, como Paulo Guedes da Economia, a batata quente. O ministro Ramos está conseguindo apoios importantes nessa briga com Salles, o mais importante deles o do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que não apenas o apoiou, como atacou Salles, acusando-o de, além de destruir o meio-ambiente, tentar destruir o próprio governo.

Outros políticos do Centrão, como o presidente do PSD, Gilberto Kassab, e o senador Ciro Nogueira, apoiaram Ramos, numa briga intestina que só deve terminar quando o presidente Bolsonaro definir para que lado quer ir. A política internacional, se uma vitória de Joe Biden for confirmada, pode ter peso decisivo nessa definição.


Merval Pereira: Militares x civis

Assim como as contas públicas estão a perigo, também a perigo está a (des)organização do governo, dependente dos impulsos de um presidente imprevisível que impõe suas idiossincrasias aos assessores e exige obediência servil, humilhando publicamente mesmo seus mais próximos amigos. A série foi iniciada com o afastamento do ministro chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gustavo Bebianno, e do General Santos Cruz, amigo de longa data e ministro influente, ambos derrubados por conspiração palaciana levada a efeito pelo vereador Carlos Bolsonaro.

A disputa entre grupos civis e militares que assessoram o presidente no Palácio do Planalto está escancarada, com os políticos do Centrão abrindo espaço a cotoveladas. A briga do ministro do meio-ambiente Ricardo Salles com o chefe da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, pelo Twitter, revela a instabilidade existente na equipe.

Não me surpreenderei se os militares, aí incluído o vice-presidente Hamilton Mourão, que tem atuação importante no Conselho da Amazônia, manobrarem para tirar Salles do meio-ambiente, num gesto político de aproximação com os governos europeus e uma preparação para a nova fase do relacionamento com os Estados Unidos com a provável vitória do democrata Joe Biden.

O problema maior é que o presidente Bolsonaro governa com as mídias sociais, e é nelas que os apoiadores mais radicais já estão atuando para defender Salles, com o reforço até mesmo do filho 02, deputado federal Eduardo Bolsonaro. Foi também devido às redes sociais que o presidente Bolsonaro desmoralizou publicamente seu ministro da Saúde, desautorizando uma fala sua na véspera, quando autorizara a compra de 46 milhões de doses da vacina chinesa Coronavac.

Não satisfeito com o vexame a que submeteu seu ministro, o vídeo que Bolsonaro o obrigou a gravar, onde admitiu a velha máxima dos quartéis “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, é das coisas mais aviltantes já vistas. Retira totalmente a condição de continuar ministro da Saúde do General Eduardo Pazzuelo, mesmo que, como tudo indica, não se demita. A vantagem que tinha se desfez com o episódio, pois nenhum interlocutor saberá a partir de agora até onde vai a capacidade de decisão do ministro.

Sem credenciais técnicas para ocupar o cargo, o General Pazzuelo tinha fama de ser próximo do presidente Bolsonaro, o que lhe dava boas condições de negociação com os governadores, por exemplo. Sua especialização em logística foi muito importante durante a pandemia na distribuição dos equipamentos necessários ao combate da Covid-19.

A partir de agora, volta a ser o interino de si mesmo. Isso porque não estamos em um quartel, nem ministro existe para falar sempre amém aos seus superiores. Em política, a hierarquia nem sempre fala mais alto, a não ser em partidos dominados por um caudilho.

O presidente Bolsonaro assume a figura do Comandante em Chefe das Forças Armadas para submeter os militares a seus desígnios, ao mesmo tempo em que os agrada com mimos, mordomias e remuneração engordada. Um capitão de passado medíocre e envolvido em terrorismo agora se impõe aos militares das mais altas patentes não pelo mérito, mas pela ousadia dos irresponsáveis.

Já tentou controlar, pelo poder da presidência, o Legislativo e o Judiciário, mas teve que recuar pois sentiu que o Presidente da República pode muito, mas não pode tudo. Assim como os fatos demonstraram que, naquele caminho de tentar desestabilizar os demais Poderes, acabaria alimentando um processo de impeachment, assim também essas colisões entre militares e civis podem levá-lo a um impasse.

Bolsonaro entregou-se aos políticos do Centrão, e hoje é refém deles, sem os quais não terá facilidade para disputar a reeleição em 2002, em que pese sua popularidade. Mas os militares estão incomodados com a perda de poder político dentro do governo, e não é um vídeo claramente montado para aparentar normalidade, e que dobrou a humilhação já imposta, que resolverá a situação. O Centrão quer a coordenação política para si, tarefa atribuída ao General Ramos, e esse embate não será resolvido sem vítimas.


Merval Pereira: Ser pária

O resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos pode ser fundamental para o resto do mundo, mas especialmente para países como o nosso, governado por extremistas de direita que sentem-se protegidos pela “relação carnal” com a administração Trump.

O presidente Bolsonaro ainda tem em mente a ideia de uma China comunista que quer dominar o mundo. Realmente, ela quer, como todo potência, mas com armas capitalistas, investimentos e produção, o que faz parte do jogo do capitalismo internacional. O Brasil tem que se aproveitar da sua importância geopolítica para tirar vantagens dos EUA, da China e da Europa, e não ficar entregue aos EUA, fazendo a política de Trump, que até agora não nos deu nada em vantagem.

Se Joe Biden vencer a eleição americana, vai ficar difícil dar continuidade à política externa brasileira, porque o governo democrata vai exigir contrapartidas importantes do Brasil, especialmente na política ambiental. Com essa briga com a China, corremos o risco de virarmos párias mundiais, sem aliados, se EUA e Europa se unirem e voltarem a nos pressionar na questão do meio ambiente, o que é provável com a vitória de Joe Biden.

O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, um dos pilares da visão extemporânea de mundo que rege esse governo, anunciou ontem aos formandos do Instituto Rio Branco que o Brasil está disposto a ser um ‘pária internacional’ se for pela defesa da ‘liberdade’.

Segundo ele, na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas deste ano, os presidentes Bolsonaro e Trump “foram praticamente os únicos a falar em liberdade”. Para Ernesto Araújo, a ONU “foi fundada no princípio da liberdade, mas a esqueceu”. Ele acredita que o Brasil é o porta-voz da liberdade pelo mundo, e “se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.

Para Araújo, “talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos”. Globalismo é como os direitistas mais radicais chamam a globalização, e o “banquete” seriam os organismos internacionais como a ONU ou a Organização Mundial da Saúde (OMS) que representam a ideia de um mundo multipolarizado, mas que a direita internacional critica por, nessa visão, serem controlados por uma orientação esquerdizante do mundo, que quereriam impor a todos os países.

Os organismos internacionais, comandados por pessoas que não foram eleitas, querem impor ao mundo uma visão unificada, impedindo que as nações exerçam sua soberania. Como já disse o chanceler Ernesto Araújo, o globalismo seria “a configuração atual do marxismo”.

Mesmo com essa visão estereotipada das relações internacionais, o Brasil não tem se esquivado de se aliar a ditaduras, mesmo a chinesa, para defender seus pontos de vista sobre direitos humanos no Conselho da ONU, alterando fundamentalmente a posição tradicional brasileira a respeito do tema.

Em junho, apoiou uma resolução proposta por China, Cuba, Venezuela, Irã e Síria, que acabou aprovada, reduzindo o âmbito de atuação do Conselho dos Direitos Humanos, transformando-o em um lugar de debate de cooperação, e não de monitoramento de violações dos direitos humanos no mundo.

Juntamente com essas ditaduras, o Brasil tem recebido muitas críticas com respeito à violação dos direitos humanos, sobretudo de indígenas e minorias. O Brasil também se aliou a governos autoritários como Arábia Saudita , Paquistão, Egito e Iraque sobre direitos sexuais das mulheres, propondo, entre outras coisas, retirar o tema “educação sexual” das prioridades da ONU.

Nos documentos brasileiros, não há mais referências a temas como tortura, gênero, LGBT, desigualdade, e, juntamente com a Arábia Saudita, defende o fortalecimento da família com “pai e mãe”. Os crimes do ditador Duterte, das Filipinas, cometidos na guerra às drogas, não tiveram o voto do Brasil para uma investigação. Já somos, portanto, párias em diversos setores da sociedade internacional, e não acompanhamos mais os países progressistas da Europa ou mesmo da América Latina.


Merval Pereira: A Covid-19 politizada

O combate à Covid-19 continua sendo politizado pelos agentes públicos, sendo que, antes mesmo de a vacina chegar, já se discute se ela será obrigatória. Os dois contendores principais continuam sendo o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo João Dória, já antecipando a eleição presidencial de 2022, onde um tentará a reeleição, e o outro aparece como oponente forte, à frente do mais rico Estado, que pretende se descolar da performance econômica do país para tornar-se alternativa visível.

A disputa mais ridícula encerrou-se ontem, quando o ministério da Saúde anunciou que comprará 46 milhões de doses da vacina coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantã. Duas dificuldades emperraram a decisão anunciada ontem: a vacina ser chinesa, e o governador João Dória ter sido o responsável pelo acordo com o Instituto Butantã.

Foi preciso que governadores pressionassem o governo para que essa vacina entrasse no plano nacional de imunização, que vai comprar mais milhões de doses de diversas outras vacinas, como a do laboratório AstraZeneca que já garantiu 100 milhões de doses da vacina desenvolvida com a Universidade de Oxford. No Brasil, ela deverá ser produzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com a previsão de 165 milhões de doses durante o segundo semestre de 2021.

O país tem ainda outros 40 milhões de doses garantidas por integrar iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) que reúne diversos países. Outra disputa já se apresentou, essa sobre a obrigatoriedade da vacinação pública. O governador João Dória se antecipou anunciando que em São Paulo será obrigatória, mas seu candidato a Prefeito, Bruno Covas, disse que isso não será necessário, pois as campanhas de vacinação são suficientes para fazer a população se mobilizar.

Isso porque o candidato de Bolsonaro à Prefeitura paulistana, Celso Russomano, já havia anunciado que é contra a vacinação compulsória, pegando carona na fala do presidente. O ministério da Saúde levou em conta a orientação da Organização Panamericana da Saúde (Opas), segundo a qual a vacinação de metade da população pode ser suficiente para a imunidade de rebanho.

Interessante é que a Opas foi a organização que apoiou o programa Mais Médicos nos governos petistas, que trouxe médicos cubanos para o Brasil. Bolsonaro e seus aliados criticaram a Opas como uma organização esquerdista, mas agora se utilizam dela para não tornar a vacinação obrigatória.

Doria não insistiu mais no assunto, e tudo indica que a vacinação contra a Covid-19 só será obrigatória se o Congresso resolver regulamentar a lei da pandemia, que prevê a vacinação entre os itens necessários para contê-la. Ela foi assinada no início da gestão do ex-ministro da Saúde Luiz Mandetta, mas a situação já não tem a gravidade do começo.

É pouco provável que o Congresso aprove a obrigatoriedade da vacinação, a não ser que tenhamos uma segunda onda da Covid, como está acontecendo em partes da Europa e dos Estados Unidos. O Programa Nacional de Imunização (PNI) já prevê vacinas obrigatórias para crianças e adolescentes, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como a contra a tuberculose, hepatite B, poliomielite, etc… Os pais que se recusarem a levar os filhos para se imunizarem podem sofrer sanções.

A melhora da pandemia no Brasil permite que o governo insista na sua tese de que é preciso respeitar a individualidade do cidadão, o que na teoria é bonito, mas na prática pode provocar o descontrole da situação. O uso de máscara, por exemplo, que é obrigatório em quase todo o território nacional, é desestimulado pelo próprio Bolsonaro, que faz questão de aparecer em público sem ela, e confraterniza desprotegido com seus seguidores, fazendo mal a ele e aos que o cercam.


Merval Pereira: Senado exposto

A credibilidade pública do Senado enfrentará esta semana tarefas difíceis que as circunstâncias uniram em poucos dias. Caberá aos senadores aprovar a indicação do atual ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência Jorge Oliveira para uma vaga do Tribunal de Contas (TCU) que não existe ainda; sabatinar para a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) o desembargador Kássio Marques, acusado de adulterar seu currículo e de plágio; e tentar salvar o mandato do senador Chico Rodrigues, flagrado pela Polícia Federal com notas de R$ 200,00 escondidas em suas partes íntimas.

A falta de compostura do presidente Bolsonaro veio novamente à tona nas indicações apressadas de seus candidatos ao TCU e ao STF. Quando anunciou que Kassio Marques era o escolhido, a vaga do ministro Celso de Mello ainda não existia, o que havia era data anunciada por ele para se aposentar.

As boas maneiras republicanas, seguidas por todos os presidentes da República, mandam que o nome do sucessor só seja divulgado depois da abertura oficial da vaga, uma média de 150 dias. A mais rápida dos últimos governos foi a indicação do falecido ministro Carlos Alberto Direito seis dias depois da publicação da aposentadoria de Sepulveda Pertence.

Como estamos em tempos estranhos, a maioria dos senadores já fez sua sabatina particular com Kassio Marques em jantares presenciais e conversas digitais, e tudo indica que nem seu currículo fajuto, nem as circunstâncias em que seu nome surgiu do nada, serão levados em conta na hora de sabatiná-lo. O importante é ter entre os ministros do STF mais um “garantista” que vê exageros na Operação Lava Jato.

Também a sabatina de Jorge Oliveira para um cargo que não existe acontecerá no Senado. A melhor definição da situação está no despacho do ministro Dias Toffoli negando ação do senador Alessandro Vieira que queria impedir a sabatina sob a alegação de que a vaga só será aberta em dezembro, quando o ministro José Mucio anunciou que se afastará do TCU.

Toffoli alegou que não há prazo específico para a indicação de ministros do TCU, “não cabendo ao Poder Judiciário exercer juízo censório sobre a oportunidade e a conveniência desse procedimento”. A inconveniência do momento da indicação é apenas um registro a ser feito, que marca mais uma vez a gestão do presidente Bolsonaro como um ponto fora da curva do republicanismo que vai sendo lentamente corroído.

O último desafio do Senado parece estar sendo encaminhado para uma solução imediata que evitará uma confrontação com o Supremo Tribunal Federal que, através do ministro Luis Roberto Barroso, suspendeu o mandato do senador Chico Rodrigues por 90 dias, prorrogável por mais 90.

O plenário do STF vai analisar amanhã a decisão, e provavelmente referendará a liminar de Barroso. Os senadores já estão negociando uma licença de 121 dias para que Chico Rodrigues possa organizar sua defesa diante do Conselho de Ética.

Vai precisar mesmo, pois até o momento a narrativa que vem contando não se coloca em pé. Disse o senador que provará a origem lícita do dinheiro, que seria para pagar os empregados de seus negócios. Por que, então, teve a estranha reação de colocar o dinheiro em local tão abscôndito que constrangeu muitos de seus pares? A possibilidade de vazamento do vídeo é hoje um fantasma a assombrar os senadores que querem salvar Chico Rodrigues.

A suspensão do mandato, por decisão espontânea, seria a melhor solução, mas deixará a descoberto mais uma das disfuncionalidades do Senado. O suplente de Chico Rodrigues é seu filho, que assumirá a vaga com os mesmos compromissos do pai, garantindo que, na sua ausência, nada mudará.

O espírito que levou Chico Rodrigues a enfiar o dinheiro onde não devia se manterá intacto na representação do DEM de Roraima, garantindo inclusive o apoio à reeleição ilegal à presidência do Senado de David Alcolumbre. Que tem sido um dos bastiões do corporativismo na Casa, inclusive nesse caso de Chico Rodrigues.


Merval Pereira: A favor do coletivo

O episódio polêmico do habeas corpus dado pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap serviu para levantar diversas questões que há muito distorcem a atuação do Supremo Tribunal Federal.

Para começo de conversa, não é razoável que um caso como esse tenha chegado à última instância da Justiça, numa Corte que deveria ser apenas constitucional e cada vez mais se vê às voltas com crimes, de colarinho branco a tráfico internacional de drogas.

Transferir para o colegiado do Supremo o poder decisório que hoje pode ficar com um ministro em julgamento monocrático é o objetivo da proposta do presidente, ministro Luis Fux, que será apresentada em reunião administrativa do STF.

A idéia é fazer com que toda decisão individual seja levada ao plenário virtual imediatamente. Está sendo criado um espaço especial para votações rápidas, provavelmente em 48 horas, sobre decisões monocráticas, incluindo habeas corpus.

A chamada “desmonocratização” do Supremo, anunciada pelo novo presidente tem o objetivo de que as decisões do tribunal "sejam sempre colegiadas, em uma voz uníssona daquilo que a Corte entende sobre as razões e os valores constitucionais". Os ministros perderão poder individualmente, mas o plenário do Supremo ganhará relevância.

Esse debate está sendo feito nos bastidores, mas o ministro Gilmar Mendes já reagiu publicamente, dizendo que se trata de uma medida demagógica, citando “telhado de vidro” dos que propõem a medida. Ele se referia indiretamente ao ministro Fux, lembrando que “a liminar mais longa que conheço” é a do auxílio moradia, dada pelo hoje presidente do Supremo em 2014, que nunca foi a plenário, revogada por ele mesmo quatro anos depois devido a um reajuste salarial dado aos juízes federais pelo presidente Michel Temer.

O ministro Gilmar Mendes é muito cioso dos seus poderes como ministro do Supremo, e não acredita que a Corte tenha que ter reduzidas suas funções. Certa ocasião, quando se debatia a necessidade de tirar do STF o julgamento de crimes, eleitorais ou comuns, o ministro Luis Roberto Barroso sugeriu a criação de um novo tribunal para tratar apenas dessas situações. Gilmar reagiu, dizendo que Barroso queria tirar poder do STF para criar um supertribunal que analisaria os casos criminais envolvendo os detentores de foro privilegiado.

O presidente Luis Fux, diante dos problemas que surgiram com a distribuição do habeas corpus, decidiu também acabar com a chamada “roleta russa” na escolha do relator dos casos, uma manobra costumeira que burlava a escolha através de sorteio.

Os advogados costumeiramente entram com uma ação ou recurso, que são distribuídos por sorteio a um ministro, ou encaminhados ao ministro “prevento”, isto é, que cuida de assuntos ligados ao tema. O ministro “prevento” para a Lava Jato no plenário é Edson Fachin.

Se o sorteio designa um ministro que não é partidário desta ou daquela causa, por decisões anteriores, o advogado desiste da ação e entra com outro pedido, esperando que desta vez a sorte lhe seja benfazeja.

Foi o que aconteceu no caso do habeas corpus do traficante, impetrado e retirado por oito vezes, até que caísse com o ministro Marco Aurélio, um garantista conhecido que já havia se utilizado do artigo 316 do Código de Processo Penal para soltar dezenas de presos. A partir de agora, o registro ou distribuição de ação ou recurso no STF gerará prevenção ao ministro inicialmente sorteado para todos os processos relacionados à primeira petição, impedindo a mudança de relator.

Essas mudanças de procedimento no STF estão sendo submetidas aos ministros nas reuniões administrativas, e até agora o ministro Luis Fux tem conseguido o apoio necessário para executá-las, como a volta das ações ao plenário, em vez das Turmas.

Seu objetivo de longo prazo é que todos os temas sejam debatidos e decididos pelo plenário. Para tal, ele pretende, até o final de seu mandato, que o Supremo Tribunal Federal recupere a capacidade de tratar apenas de temas constitucionais, sem tratar de casos como o do traficante André do Rap.


Merval Pereira: Falta de decoro

Mais uma vez estamos diante de uma disputa entre Poderes da República, e de membros de poderes entre si, que não dignifica o papel do Senado como instituição. Alegar que um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) não pode suspender o mandato de um senador eleito pelo povo é uma falácia, pois, se a lei manda consultar o Senado, será sempre dele a palavra final.

Por isso, o que estará em votação é a permanência em atividade de um senador que foi apanhado em flagrante tentando esconder dinheiro ilegal da maneira mais baixa já registrada nos anais policiais envolvendo nossas excelências.

Esse compadrio que começa a tomar conta dos senadores reflete apenas o temor de que seja um deles a próxima vítima de batidas policiais. A maioria está espantada com o despreparo de um “senador experiente” que não soube se desvencilhar da prova do crime, ou não teve sangue frio para assumir a posse desse dinheiro sem se auto denunciar no gesto extremo.

Não pelo local em si em que o senador Chico Rodrigues, um septuagenário, pretendeu esconder a bufunfa que roubou, segundo a Polícia Federal, da verba extraordinária que conseguiu para ajudar os povos indígenas durante a pandemia. Maior prova de falta de decoro não poderia ter havido.

Quando lembramos que o deputado federal Barreto Pinto teve que renunciar apenas porque apareceu numa fotografia de O Cruzeiro de cueca e fraque, vítima de um truque do repórter David Nasser que garantiu ao senador que apenas a parte de cima apareceria na foto, vemos como regredimos. As cuecas de Barreto Pinto não guardavam nada além de suas partes íntimas, já as do senador Chico Rodrigues guardavam dinheiro roubado. Sair de cueca numa foto era um crime contra o decoro no tempo em que se tinha noção do que seja decoro parlamentar.

Como é possível imaginar que um cidadão nessas condições possa continuar representando o Senado Federal? Como é possível o próprio Senado Federal achar que não sofrerá diante da opinião pública com manobras como a que está sendo arquitetada para salvar a pele do senador Chico Rodrigues?

O presidente do Senado, David Alcolumbre, que já havia rebaixado o cargo ao tentar se reeleger contra o que diz a Constituição, agora se agacha mais ainda ao articular nos bastidores a salvação de seu amigo e correligionário.

Sua presidência termina como começou, no baixo clero, representando mais um dos muitos políticos eleitos pelo que seria a nova política de Bolsonaro e se revelaram indignos do cargo que exercem.

Alcolumbre foi eleito com o apoio do novo esquema político do Palácio do Planalto, que na época era liderado pelo deputado Onix Lorenzoni. Agora, tenta, com o apoio do presidente Bolsonaro, ganhar uma reeleição a que não tem direito legalmente, nem merece politicamente.

A tentativa de blindar parlamentares das ações da Polícia Federal é permanente, e o próprio Chico Rodrigues já havia tentado aprovar uma norma que proibisse a ação policial nos escritórios e casas de políticos. Já houve também, e muitas vezes com sucesso, a tentativa de proibir a ação policial no interior do Congresso, como se fosse ali uma fortaleza a proteger os malfeitos de suas excelências.

A proteção legal aos parlamentares é uma necessidade da democracia, para impedir que sejam tolhidos em suas atividades. Mas não pode ser usada para proteger criminosos. O caso da deputada federal Flordelis é exemplar. Acusada de assassinato do marido, com o auxílio de vários dos seus filhos, protege-se com a imunidade parlamentar para não ir para a cadeia.

A proposta do ministro Luis Roberto Barroso para que sua decisão monocrática de suspender o senador por 90 dias seja levada o mais rápido possível ao plenário do Supremo, é uma forma de pressionar o Senado a adotar uma medida que parece a mais óbvia a qualquer pessoa séria preocupada com os destinos da política nacional.


Merval Pereira: Dinheiro sujo

O Supremo Tribunal Federal (STF) esteve envolvido nos últimos dias em situações extremas, desde a soltura de um traficante condenado a 25 anos por tráfico internacional de drogas, até a suspensão de um senador da República que escondia dinheiro não apenas na cueca, mas também nas nádegas.

O presidente Bolsonaro, que alardeava que em seu governo não havia corrupção, teve que abrir mão de seu vice-lider Chico Rodrigues, com quem dizia ter “quase uma relação estável”.

O presidente do STF, ministro Luis Fux, teve ontem ratificada sua decisão de suspender o habeas corpus que seu colega Marco Aurélio Mello dera ao traficante André do Rap, em prisão preventiva. O que para Marco Aurélio desmoralizou o Supremo, para Fux a cassação salvou o tribunal da desmoralização.

Mesmo os que se incomodaram com a possibilidade de o presidente do Supremo cassar decisão de um colega, admitiram que a medida foi acertada devido à urgência do caso e à periculosidade do condenado.

Nos dois casos o Legislativo está envolvido. No habeas corpus, o ministro Marco Aurélio obedeceu à letra fria da lei, sem levar em conta outros critérios para apenas constatar que a prisão não fora reafirmada após 90 dias, como manda o artigo 316 introduzido no Código de Processo Penal (CPP) pelo Congresso através do pacote anticrime.

Ao final do julgamento, ficou definido que a soltura dos presos depois de 90 dias sem revisão da prisão preventiva não é automática, como interpretou Marco Aurélio. O juiz de primeira instância que decretou a prisão terá que ser consultado sobre se as razões da prisão continuam válidas. Com isso, mantém-se a sentido benéfico da lei, que é o de impedir que presos sem acusação formal ou sem julgamento apodreçam nas prisões. Mas impede-se que criminosos do colarinho branco e grandes traficantes se beneficiem do artigo para fugir, como aconteceu com André do Rap.

O próximo passo será definir se presos condenados em segunda instância não necessitam de uma revisão, como era o caso do traficante. Essa alteração, proposta pelos ministros Alexandre de Moraes e Luis Roberto Barroso, teve o apoio do presidente Fux, mas o ministro Ricardo Lewandowski se opôs, argumentando que cada caso tem que ser analisado individualmente, e lembrando que o Supremo já mudou a jurisprudência sobre a prisão em segunda instância, permitindo que os condenados recorram até o trânsito em julgado.

O caso do senador Chico Rodrigues, do DEM, tem sabor de farsa ao repetir tragédia já ocorrida durante o mensalão com um assessor do deputado federal petista José Guimarães, preso com dólares na cueca. Desta vez o esconderijo foi mais além da cueca, uma situação tão escatológica que obrigou o ministro Barroso a pedir à Polícia Federal que guardasse num cofre “em absoluto sigilo”, pois, “Consoante informado pela autoridade policial, o registro exibe demasiadamente a intimidade do investigado. (…) Se comprovada a culpabilidade, estará justificada a sua punição, mas não sua desnecessária humilhação pública”.

O ministro do STF não aceitou o pedido de prisão feito pela Polícia Federal, mas determinou o afastamento do senador por 90 dias, prorrogáveis por mais 90. Agora caberá ao Senado decidir se acata a decisão do ministro. Ficam então Câmara e Senado com questões éticas em suspenso.

A deputada federal Flordelis, acusada de um crime hediondo juntamente com vários filhos seus, anda com tornozeleira eletrônica, mas não vai presa porque tem imunidade parlamentar. A Câmara não consegue reunir seu Conselho de Ética para cassar seu mandato, num movimento corporativista vergonhoso.

Agora o Senado terá que encarar mais esse problema ético. Não há prova mais definitiva de quebra do decoro como a que o senador Chico Rodrigues deu. A maior prova de que o dinheiro que tentou esconder no seu íntimo é ilegal é que ele declarou à Justiça Eleitoral em 2018 que tinha em casa cerca de R$ 500 mil em dinheiro vivo.

Esse caso tem o agravante de ser conseqüência de verbas extras para combate à Covid-19 que o presidente Davi Alcolumbre conseguiu com o Palácio do Planalto para pavimentar o apoio à sua reeleição, até o momento ilegal.

A que ponto chegamos. Onde acabaremos?


Merval Pereira: A busca do colegiado

O julgamento da cassação, por parte do presidente do Supremo Luis Fux, do habeas corpus dado pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap, um dos chefes da maior organização criminosa em atuação no país, trouxe à baila temas fundamentais no debate jurídico-político que vem se desenrolando, como a prisão em segunda instância e o excesso de decisões monocráticas dos ministros do Supremo.

Fux já tem a maioria de seis votos garantida para manter sua decisão, e deve ter a unanimidade do plenário a seu favor, contra o voto do relator, ministro Marco Aurélio Mello. Ao decidir levar a plenário na primeira oportunidade depois do feriadão o debate sobre sua decisão de cancelar o habeas-corpus, o presidente do Supremo o fez também para demonstrar o respeito pela decisão colegiada.

Desde sua posse, mostrou-se preocupado com a colegialidade das decisões, e ontem ressaltou em seu voto que o tribunal “deve ser unívoco em suas manifestações juspolíticas e, mesmo na salutar divergência, há de ostentar coesão de ideais”. A tese do ministro aposentado Sepúlveda Pertence de que os 11 ministros do Supremo são 11 ilhas que decidem cada qual à sua maneira, reflete essa dificuldade de impor o pensamento do colegiado: “Mais do que 11 juízes, somos um só tribunal”, reforçou o presidente do Supremo em seu voto.

Segundo dados do próprio STF, 82% das decisões deste ano foram monocráticas, confirmando o índice que vinha sendo demonstrado pelo projeto “Supremo em Números” da Fundação Getúlio Vargas do Rio. A decisão do ministro Marco Aurélio Mello trouxe para debate o que muitos consideram um excesso de decisões individuais, muitas, como no caso do HC do traficante, contrariando jurisprudência da própria Corte.

Existe na Câmara uma emenda constitucional para proibir decisões monocráticas em julgamentos de ação direta de inconstitucionalidade (ADI). O próprio ministro Marco Aurélio, que é um defensor da colegialidade, propôs que fossem proibidas decisões monocráticas contra medidas de outros poderes, Executivo e Legislativo. Foi derrotado por unanimidade.

Ontem, no debate sobre o habeas corpus, o ministro Luis Roberto Barroso ampliou uma proposta que já está em discussão no STF. Além de levar ao plenário virtual as decisões monocráticas, para que o colegiado a referende ou não mais rapidamente, Barroso ampliou a proposta sugerindo que seja criado um caminho mais rápido (fast-track) no plenário virtual apenas para as decisões liminares e cautelares, que poderiam ser examinadas pelos ministros em até um dia, quando necessária a urgência.

A prisão em segunda instância é outro tema relevante que foi levantado na discussão sobre o caso. O traficante já estava condenado em segunda instância em dois processos que somam uma pena de 25 anos. Como houve um retrocesso no caso, com o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) alterando a legislação que permitia a prisão de um condenado em segunda instância, o traficante ainda pode recorrer até o trânsito em julgado.

Mesmo assim, no caso dele, pela periculosidade, não poderia ter a prisão preventiva revogada. Como disse o ministro Luis Fux, o condenado debochou da Justiça. Fica mais patética ainda a situação quando se sabe que o termo de soltura exigiu que ele agisse como um cidadão que quer se reintegrar à sociedade. O que faz supor que um chefe de organização criminosa condenado a 25 anos, que esteve foragido por cinco anos, quer se reintegrar à sociedade?

A continuação do julgamento hoje é mais importante para definir parâmetros para a adoção do artigo 361 do Código de Processo Penal (CPP) do que pelo resultado em si, que já está definido. Aparentemente há uma maioria já firmada no sentido de que a não renovação a cada 90 dias, como exige o novo artigo, não seja motivo para a soltura automática do preso.

Há ministros, como Luis Roberto Barroso, que consideram que um condenado em segunda instância não tem que ter sua prisão preventiva renovada. Como os deputados que incluíram esse artigo no pacote anticrime dizem que estão preocupados com a situação dos pobres presos sem culpa formada, Barroso sugere que apenas aqueles que estão presos sem terem sido julgados devam ser objeto do artigo polêmico.

A decisão final do Supremo pode neutralizar os efeitos desse artigo que, tudo indica, foi enxertado no pacote anticrime para proteger criminosos de colarinho branco.


Merval Pereira: O ponto fraco

O caso da soltura do traficante André do Rap pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello reacendeu um debate sobre segurança pública que estava adormecido desde que o presidente Bolsonaro livrou-se do ex-juiz Sérgio Moro para adotar posição de leniência no combate ao crime organizado.

A ida ontem do presidente Bolsonaro ao Supremo, para falar com o seu presidente, ministro Luis Fux, mostra que ele sabe como lidar quando as circunstâncias são adversas. Ao contrário do que fez com Dias Toffoli, quando praticamente invadiu o STF com um grupo de empresários para pressioná-lo a reduzir as medidas restritivas por causa da Covid-19, ontem o presidente marcou hora, e teve uma conversa institucional com o ministro Luis Fux, respeitosa de ambos os lados.

Não há dúvida, porém, que a escolha do momento, quando está sendo criticado o novo artigo do Código de Processo Penal que deu base à soltura do traficante, sancionado por ele, é um sinal de que Bolsonaro procura não se afastar do novo estilo implantado por Fux na presidência do Supremo.

Seu grande fantasma político, o ex-ministro Sérgio Moro, ressuscitou no debate provocado pelo caso, lembrando que pediu por escrito ao presidente Bolsonaro que vetasse tal artigo. O galardão do combate à corrupção continua com Moro, e é o ponto fraco de Bolsonaro no momento.
Na impossibilidade de fechar o Congresso e o Supremo, plano inicial postergado pela reação das instituições, a aproximação com o Congresso através de políticos do Centrão processados pela Operação Lava-Jato, e a necessidade de reatar relações com o Judiciário através do Supremo Tribunal Federal (STF) fizeram com que Bolsonaro fosse deixando pelo caminho camadas de peles até chegar à formação atual, que não se sabe se será a definitiva.

Bolsonaro disse uma vez que nunca se meteu em corrupção porque não fazia parte da elite política. Lídimo representante do baixo clero da Câmara, provavelmente sempre sonhou em fazer parte dessa elite, pois se ajeitou tão bem ao modelo quanto o ex-presidente Lula aos ternos de grife.

Com bom humor, Lula disse certa vez que passara 30 anos sem acostumar com o macacão de operário, mas parecia que tinha nascido para usar os ternos. Da mesma forma, parece que Bolsonaro se sente à vontade entre seus novos aliados, e cada vez se afasta mais dos radicais que ajudaram a levá-lo ao poder.

Inevitável fazer a comparação com Lula. Eleito ao assumir a postura de conciliador, o ex-presidente recebeu muitos votos que não eram para o PT, mas para uma continuidade do programa econômico tucano, com toques de política social, uma social-democracia a la brasileira. Ainda era visto pelos eleitores como um outsider.

Os primeiros anos de mandato mantiveram as bases do equilíbrio fiscal, e só depois de ser reeleito, apesar do mensalão, é que o governo do PT assumiu nova postura que levou a Dilma e à recessão. Nos bastidores, corria solto o petrolão.

Bolsonaro, ao contrário, foi eleito pelo radicalismo de extrema-direita que está no seu DNA, e, aproveitando-se da aversão ao PT da maioria do eleitorado, tornou-se um Cabo Daciolo bem sucedido. No meio do mandato, porém, Bolsonaro viu-se premido pelas circunstâncias a largar o radicalismo que o elegeu para participar do jogo democrático distorcido pelo fisiologismo.

Assumiu, com a desenvoltura de quem sempre sonhou estar onde está, o papel que Lula procurou esconder durante boa parte de seu mandato, o de caudatário do Centrão. Lula chegou a vetar um acordo que o então Chefe do Gabinete Civil José Dirceu havia amarrado com o MDB. Como disse Roberto Jefferson, o PT tratava seus aliados como se fossem amantes que não podiam ser reveladas.

Bolsonaro, ao contrário, mostra-se feliz como pinto no lixo com as novas companhias, e critica o que chama de “direita-burra”, que não entende que tem que governar com o Centrão. Saindo da extrema-direita para o Centrão, o presidente tenta restringir o espaço para os candidatos de centro na sua sucessão.

Dificilmente perderá os eleitores radicais, que não terão candidato viável, mas pode avançar num eleitorado que se move pela máquina administrativa nos rincões mais profundos do país, com o apoio do Renda Cidadã. Luciano Huck, Sérgio Moro, Ciro Gomes terão que demonstrar ao eleitorado que o verdadeiro Bolsonaro continua hibernando à espera da reeleição.


Merval Pereira: O STF e a opinião pública

O novo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luis Fux, tem tomado decisões tão polêmicas quanto irrefutáveis, conseguindo recolocar a imagem do STF junto à opinião pública em bons termos, sem exceder seus poderes institucionais. Amanhã, ele levará a plenário o Habeas Corpus concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap, que ele anulou levando em conta a periculosidade do preso.

Quando propôs retornar ao plenário as ações penais que estavam sendo julgadas pelas Turmas, feriu suscetibilidades, retirou poderes, mas teve a aprovação unânime do colegiado porque baseou a decisão em fatos – a redução das ações em tramitação -, não em política. Embora a conseqüência da mudança tenha sido retirar da Segunda Turma o poder político de impor a visão não necessariamente majoritária de ministros ditos “garantistas”, que seriam reforçados pela nomeação por Bolsonaro do desembargador Kassio Marques para a vaga aberta com a aposentadoria de Celso de Mello.

Na nova polêmica, Fux anulou um Habeas Corpus do ministro Marco Aurélio Mello que soltou o traficante André do Rap, um dos chefes da maior organização criminosa em atuação no país. Nada evidencia com mais rigor a grotesca situação jurídica em que nos metemos do que o pedido de outro traficante, Gilcimar de Abreu, o Poocker, para que o ministro do Marco Aurélio estendesse também a ele a decisão de soltar seu comparsa André do Rap, pois alega que sua prisão preventiva já estourou o prazo de 90 dias para uma confirmação pelo juiz que o condenou.

Pooker e André do Rap eram companheiros no tráfico internacional de drogas, enviando cocaína para a Europa através do Porto de Santos. Pooker está preso em Mirandópolis, André do Rap partiu, a bordo de um jato particular, para outros ares, possivelmente paraguaios. Nada mais previsível do que isso.

Ao usar o novo artigo 316 do Código de Processo Penal, o ministro Marco Aurélio foi tecnicamente correto, mas não levou em conta outros requisitos para a manutenção da prisão preventiva, como a periculosidade do preso e sua ameaça à segurança pública.

Levar em conta a textualidade da lei, sem atentar para outros fatores, é o que distancia “garantistas” como Marco Aurélio de “consequencialistas” como Fux. Há diversas interpretações de tribunais superiores, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e inclusive o STF, que consideram desnecessária a confirmação das razões para a prisão preventiva quando o réu, como o traficante André do Rap, já tiver sido condenado em primeira e em segunda instâncias.

Caso ainda estivesse em vigor a prisão em segunda instância, o traficante estaria na prisão cumprindo sua pena. No caso em discussão, tanto o Ministério Público Federal (MPF) quanto o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) já haviam justificado a necessidade de manutenção da prisão de André do Rap. O HC encaminhado ao ministro Marco Aurélio veio como recurso daquelas decisões.

O que o ministro Marco Aurélio chamou de “autofagia”, o fato de um ministro contrariar a decisão de outro ministro, pode ser visto como a defesa do compadrio, o que tem levado o Supremo Tribunal Federal a perder, diante da opinião pública, a aura de defensor da Constituição. Mais uma vez, porém, o ministro Fux deve ter confirmada sua posição, mesmo que tenha desagradado outros “garantistas” dentro da Corte.

Ele vai levar ao plenário o julgamento sobre o Habeas Corpus de Marco Aurélio e, mesmo que os debates sejam acalorados e até ataques retóricos sejam feitos, é improvável que a maioria do plenário sustente a soltura de um traficante perigoso que se encontra foragido depois de ser agraciado com uma interpretação literal da lei que prejudicou a sociedade.


Merval Pereira: De olho em 2022

As primeiras pesquisas eleitorais demonstram que a polarização política entre extremos está sendo reduzida nos grandes centros, com o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Lula sendo cabos eleitorais de pouca serventia. O caminho parece aberto para candidatos do centro democrático, sendo a experiência política uma qualidade requerida pelo eleitorado, mesmo que talvez signifique também ambientação a um sistema visto como corrompido.

O melhor exemplo que une experiência e bem sucedida atuação de um candidato novo na política é o prefeito de Belo Horizonte Alexandre Khalil, que pode ser reeleito no primeiro turno derrotando forças políticas tradicionais como PT e PSDB no Estado de Minas.

O exemplo contrário está no Rio de Janeiro, onde o prefeito Marcelo Crivella vai se desmanchando no processo eleitoral, com o presidente Bolsonaro evitando uma aproximação que seria natural. O presidente e Lula são os cabos eleitorais mais rejeitados no Rio, um estado que passou recentemente pelo trauma de um governador que representava enganosamente o novo na política, foi catapultado ao poder pelo apoio da família Bolsonaro, à qual traiu na ânsia de dar passos além de sua curta perna política.

O fantasma da corrupção na política assombra vários candidatos na eleição do Rio, sendo que os dois que lideram a pesquisa, Eduardo Paes e Crivella, andam às voltas com processos. A boa experiência de Paes como prefeito se contrapõe à atual gestão catastrófica de Crivella, o que justifica o favoritismo do primeiro.

Com as novas regras que impedem as coligações proporcionais, ficará mais difícil para partidos sem base territorial cumprir as cláusulas de barreira. Ter uma base municipal forte é um passo importante para a formação de bancadas de deputados federais mais adiante em 2022, e também de um Fundo Eleitoral que é proporcional ao número de cadeiras dos partidos.

A partir das eleições deste ano, os partidos mais fracos desaparecerão, sem eleger candidatos, ou terão que procurar fusão para poderem enfrentar uma eleição geral sem coligações proporcionais e com cláusulas de barreira. A força municipal terá, portanto, inevitável reflexo nacional.

O presidente Bolsonaro, sem partido, poderá complementar sua conversão à velha política se filiando a um dos partidos do Centrão. Mesmo que não se concretize, o convite do MDB para que o presidente entre no partido é a mais vigorosa imagem da realidade política brasileira. O MDB está preparado para voltar ao centro da disputa eleitoral oferecendo uma estrutura política nacional das mais fortes.

Em São Paulo, o embate parece ser entre o governador João Doria e o presidente Bolsonaro, que abriu seu apoio a Russomano sem se precaver de uma provável decaída de seu candidato, que tem fama de cavalo paraguaio que larga na frente e perde o fôlego na reta final. A diferença dele para o prefeito Bruno Covas já está encurtando.

Lula parece não ter chance com o candidato puro sangue Jilmar Tatto, assim como no Rio a ex-governadora Benedita da Silva sugere não ter fôlego para ir ao segundo turno. A insistência do ex-presidente de controlar a indicação dos candidatos municipais, em vez de aceitar fazer alianças com candidatos mais fortes, como é o caso de Boulos do PSOL em São Paulo, revela uma tendência individualista que já não corresponde à sua força política.

Até mesmo em Recife, onde a petista Marília Arraes está em segundo lugar, a influência de Lula parece menor do que a disputa entre o clã Arraes. João Campos, do PSB, é filho de Eduardo Campos e bisneto de Arraes, enquanto Marília, do PT, é sua neta.

As eleições municipais, embora tenham um peso maior das questões locais, são fundamentais para a organização política de futuras candidaturas nacionais, pois fortalecerão os partidos regionalmente, dando bases de prefeitos e vereadores para uma eventual campanha presidencial. O aparente declínio da polarização entre os extremos pode indicar que alternativas a ela tenham mais chance em 2022.