Merval Pereira

Merval Pereira: Efeito Orloff

Certamente o fator decisivo para a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump foi a capacidade do ex-vice-presidente de encarnar o que mais os Estados Unidos precisam hoje, um conciliador. O caminho para derrotar um extremista de direita não é um extremista de esquerda, e por isso Bernie Sanders se perdeu pelo caminho durante as primárias, e Biden recuperou sua vantagem moral com os votos dos negros na Carolina do Sul.

O mesmo pode acontecer entre nós. O famoso efeito Orloff, eu sou você amanhã. Se em 2018 o eleitorado queria sangue nos olhos, e por isso o PT ainda conseguiu levar seu candidato Haddad ao segundo turno, menos por ele, que é um moderado, mais pela história do partido, radicalizado pela prisão do ex-presidente Lula, talvez não seja esse o cenário em 2022.

Essa tensão permanente que Trump impunha aos Estados Unidos e ao mundo cobra seu preço, assim como aqui entre nós Bolsonaro já teve que dar uma meia trava em sua beligerância. Trump e Bolsonaro têm os mesmos arroubos autoritários que acabam sendo uma ameaça à democracia que lhes proporcionou chegarem onde chegaram.

Ambos se batem contra as instituições democráticas que limitam os poderes de um presidente da República, como sói acontecer na democracia ocidental. Ambos se colocam contra a imprensa livre e tentam constrangê-la com ataques e críticas. Agora, nos Estados Unidos, Trump viu-se na condição de censurado a bem da verdade pelas três redes de televisão aberta do país, uma atitude drástica que mostrou a que ponto de conflito as relações do presidente com os órgãos de imprensa chegaram.

Os conflitos estimulados, a violência tolerada, como Trump com os supremacistas brancos e Bolsonaro com os radicais que cercaram o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaçavam o fechamento do Congresso, acabam cansando os cidadãos comuns, que não estão em guerra com o mundo e buscam um ambiente pacífico para viver, especialmente empregos para trabalhar.

Ser popular não requer usar camisas de times de futebol, nem oferecer pão com leite moça a uma autoridade que o visita. Nem fazer piada homofóbica, estimulando pelo exemplo um hábito brasileiro que deveria ser erradicado. Seria preciso uma política econômica que gerasse empregos, uma atitude séria diante da pandemia da Covid-19, um governo sólido que desse aos cidadãos confiança no futuro.

A popularidade de Trump levou o Partido Republicano a ter uma votação histórica, com a possibilidade de manter a maioria no Senado. Mas para Trump, a perda da presidência é uma dor pessoal, não partidária, assim como Bolsonaro já pertenceu a cerca de 10 partidos e continua à disposição de qualquer legenda que lhe ofereça submissão total. Não são políticos a serviço do país, mas deles mesmos.

Diz-se em política que presidência é destino. No Brasil, temos exemplos vários disso, com Collor, Itamar, Sarney, Temer, o próprio Bolsonaro, que nunca sonharam em ser presidente e chegaram lá por caminhos diversos. Com Joe Biden, essa premissa se confirma. Concorreu três vezes dentro de seu partido, quatro anos antes deveria ter sido o candidato natural após os oito anos de vice-presidência, mas as forças políticas dos democratas levaram Hillary Clinton a ser a candidata contra Trump.

Biden chegou a presidente quando menos se esperava, aos 78 anos, mas com o perfil talhado para derrotar o arrogante autoritário que havia chegado à Casa Branca também fora de qualquer possibilidade previsível. Populistas escrachados como Trump ou Bolsonaro apenas aproveitam-se das fragilidades da população para vender ilusões e alimentarem seu autoritarismo. Falta-nos, no momento, uma figura que represente o político de centro-esquerda que Biden encarna, um político confiável como já tivemos, que represente a solidez de uma carreira dedicada à conciliação e ao combate à desigualdade.


Merval Pereira: Perna curta

A decisão das três redes de televisão abertas dos Estados Unidos - ABC, CBS e NBC - de tirar do ar o pronunciamento do presidente Donald Trump na Casa Branca acusando a apuração da eleição presidencial de fraudulenta sem apresentar a menor prova foi drástica, mas com certeza já havia sido combinada entre as redes para o caso de uma declaração estapafúrdia colocar em risco a credibilidade da eleição. Aconteceu quando o presidente já era um “pato manco”, como se define um político em fim de mandato.

A drástica decisão tem uma explicação: o presidente Trump estava colocando em risco a segurança nacional e a dos cidadãos, ao dizer que estava sendo roubado, incentivando protestos de seus eleitores. O temor de vandalismo que levou diversas cidades dos Estados Unidos a proteger suas lojas e casas com tapumes, inclusive Washington com a Casa Branca, numa triste imagem espalhada pelo mundo, motivou a atitude das redes de televisão, assumindo um papel delicado, o de censurar a palavra de um presidente da República em pronunciamento oficial na Casa Branca.

Há uma série de erros a partir daí, a começar pelo fato de que Trump não poderia usar a Casa Branca para fazer proselitismo político em meio à apuração da eleição. Foi uma atitude clara de pressão sobre os estados em que perdia, além de passar adiante boatos e rumores que ganham ares de verdade saindo da boca do presidente da República.

Trump mentiu, como sempre, no pronunciamento que provocou a decisão polêmica das redes de televisão. Mas sempre foi assim, e a imprensa nunca tomou uma decisão tão definitiva como essa. Eu prefiro uma posição mais razoável, como a CNN Internacional ou a Fox fizeram: deixá-lo mentir, e, em seguida, denunciar a mentira. Mentira tem perna curta.

Não cabe aos meios de comunicação censurar o presidente da República, por mais baixo e vulgar que ele seja. No caso em questão, seria impossível não transmitir, pois, embora desconfiassem qual seria sua posição, nem os jornalistas nem os políticos tinham certeza de quão longe ele iria.

Aqui no Brasil, pôde-se tomar a decisão de parar de acompanhar as falas do presidente Bolsonaro na porta do Palácio do Planalto pelas manhãs porque ele assumiu uma atitude de menosprezo pelo trabalho dos jornalistas, jogando-os contra seus seguidores mais fanáticos que ali compareciam para pedir favores ou simplesmente tirar uma foto com ele. Bolsonaro segregou os jornalistas em um curral, e incentivava seus seguidores a criticá-los, o que deixou de ser um acompanhamento da atividade do presidente para se transformar em um circo político contra o jornalismo independente. Além do mais, não eram pronunciamentos oficiais, mas conversas informais com seus seguidores.

Os EUA não têm tribunais regionais, nem um tribunal superior para lidar com as questões das campanhas eleitorais, e mais uma vez os fatos demonstram que é melhor tê-los. O que parecia um exagero de nosso sistema judicial mostrou-se muito útil, sobretudo em situações como a que a apuração da corrida presidencial nos Estados Unidos chegou.

Como não há um órgão centralizador para organizar os recursos eleitorais, cada estado terá que lidar de maneira diferente com os recursos de Donald Trump em seu próprio sistema judicial. E cada estado tem legislação diferente sobre a eleição e seus desdobramentos. Depois de 2000, alguns estados decidiram recontar os votos automaticamente se a diferença for de menos de 1%. Outros recontam se a diferença for de 0,5%. Outros só recontam se a Justiça mandar.

Os recursos são encaminhados à justiça de primeira instância, e alguns podem subir até a Suprema Corte, dependendo da situação. Por isso, ainda vai demorar alguns dias para Joe Biden ser anunciado oficialmente como presidente dos Estados Unidos. A pressão sobre Trump já está muito grande, por parte de assessores mais corajosos e de políticos republicanos.

Tentam convencê-lo de que o Partido Republicano teve uma eleição vitoriosa, podendo manter a maioria do Senado e aumentando o número de votos, tudo isso devido à sua liderança política. O próprio Trump recebeu mais votos que Barack Obama quando foi eleito, aumentando sua votação em relação a 2016.

Mas, em vez de sair como um grande líder político e preparar o partido para retomar o poder em 2024, Trump pode perder força política interna depois das atitudes e declarações irresponsáveis, que andaram incomodando no interior do partido Republicano, embora mantenha a força popular.


Merval Pereira: Bananas americanas

O que estamos vendo nos Estados Unidos nos últimos dias é a surpreendente repetição, com anos de atraso, de situações que já vivemos aqui no Brasil no tempo em que tínhamos votação em cédulas eleitorais, contabilizadas manualmente. De acordo com a geografia da apuração, um candidato poderia sair à frente, e depois perder força. Havia, claro, fraudes, e ficou famoso, por exemplo, políticos mineiros atribuindo aos votos “da Zona da Mata” uma mudança de tendência.

Trump está surpreso com o crescimento de Biden com os votos pelo correio, e acusa fraude. Ao mesmo tempo, o presidente Bolsonaro promete aqui pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral. Desde que temos as urnas eletrônicas, nunca mais houve acusações de fraude, e Bolsonaro insiste na denúncia de fraudes sem provas, como seu avatar Trump. E pretende pressionar o Congresso pela volta da cédula eleitoral.

À medida que a apuração da eleição presidencial nos Estados Unidos vai mostrando uma provável vitória do democrata Joe Biden, fica claro também que não é apenas a agenda internacional que será alterada, obrigando o governo brasileiro a se reposicionar. Também a maneira de se expressar e de tratar os adversários políticos e temas sensíveis no mundo ocidental mudará sensivelmente, o que colocará o presidente Bolsonaro no papel de espécie de político em extinção em países civilizados.

Restarão a ele exemplares raros, como o Aleksandr Lukashenko, da Bielorússia, que queria resolver a COVID-19 com vodka e sauna; o presidente do Turcomenistão, Gurbanguly Berdimukhamedov, que proibiu a palavra coronavírus, o premier húngaro Viktor Orbán. Todos eles, e mais pequenos ditadores africanos e do Oriente Médio, têm em comum com o ainda presidente Donald Trump uma agenda conservadora que vai da negação da ciência, aí incluído o meio ambiente, à defesa hipócrita da pátria e dos valores da família.

A provável derrota de Trump não o retirará da política, pois já existe um movimento interno para fazê-lo candidato em 2024. Existe essa possibilidade porque a 22ª emenda da Constituição americana se refere apenas à impossibilidade de eleição para presidente por mais de dois mandatos.

A limitação foi aprovada depois que Franklin Roosevelt foi eleito por quatro mandatos. Tradicionalmente, um ex-presidente não exerce nenhum outro cargo, embora existam casos de ex-presidentes que voltaram ao Senado, como Andrew Johnson, ou William Howard Taft, que exerceu o cargo de Chefe de Justiça após sair da presidência. O único presidente que, não tendo sido reeleito, voltou à presidência depois foi Grover Cleveland, em 1892.

Nada indica que o presidente Trump aceite uma eventual derrota sem questiona-la na Justiça, tentando ir até mesmo à Corte Suprema, como reafirmou ontem. Não foi à toa que ele insistiu em nomear antes mesmo da eleição uma juíza para a vaga aberta. Com seis votos conservadores em nove, ele acredita que poderá ganhar no último recurso.

Talvez a principal razão para que Trump se entregue com tanto afinco a não aceitar uma derrota seja o receio das possíveis ações legais que teria que enfrentar em Nova York, onde está a maioria de seus negócios. Mais do que seu ego, que é outro grande obstáculo a uma posição razoável. Assessores e líderes republicanos não concordaram com a declaração de que havia fraude na eleição, mas Trump já disse que, “ganhar é fácil, perder é difícil”.

O ex-vice-presidente Biden tem se dedicado a marcar a diferença entre ele e Trump. Todos os seus pronunciamentos têm sido no sentido de unir o país, de pedir calma e paciência para que todos os votos sejam contados e garantir indiretamente que aceitará o resultado das urnas em caso de uma derrota que ele não vislumbra.

Já o presidente Trump dedica-se a mandar mensagens pelas redes sociais alertando contra supostas fraudes nunca comprovadas, e pedindo que as cédulas eleitorais chegadas pelo correio não sejam contadas. À noite, fez a mais sensacionalista declaração desde o início da apuração, reforçando, sem mostrar provas, a denúncia de que está havendo fraude na contabilização dos votos.

É um fato singular na história da democracia americana, que coloca o país no rol das repúblicas de banana, expressão criada pelos próprios americanos para definir pejorativamente países politicamente instáveis, submetidos a governantes autoritários.


Merval Pereira: Paradoxos da democracia

Esta eleição presidencial dos Estados Unidos está sendo paradoxal, com cerca de 157 milhões de americanos comparecendo às urnas sem serem obrigados a isso, a maior participação popular nos últimos cem anos, ao mesmo tempo que o presidente Trump, que tenta a reeleição, coloca em dúvida a lisura da apuração em estados como Wisconsin e Michigan, mas joga suas fichas numa vitória em alguns outros estados que ainda apuram para impedir que Biden seja declarado presidente.

Ou seja, Trump quer parar a apuração em estados em que está perdendo, e acelerar a apuração nos que acredita poder vencer. Mas ele tenta parar também a apuração em estados em que vence, como a Pensilvânia, mas teme perder ao final, pois considera suspeita a recuperação de Biden com os votos vindos pelo correio.

A diferença entre Biden e Trump em vários estados é muito pequena, e o presidente Trump já começa a pedir recontagem. Mas ele venceu Hilary em 2016 por uma margem muito apertada também em vários estados, e não houve apelação dos democratas. Os republicanos na era Trump passaram a fazer jogadas políticas muito mais desleais do que historicamente acontecia. Trump dominou o partido republicano e suas práticas. Como nomear uma ministra da Suprema Corte em processo rapidíssimo, poucos meses antes da eleição, quando impediram que o então presidente Obama nomeasse o substituto de Antonin Scalia quase um ano antes da eleição.

Não creio que tenham resultado positivo esses recursos, porque é tão obvia a falta de razão, tão claro que está com medo dos votos pelo correio, que qualquer ação sem provas cabais não será aceita. Depois do caso de 2000, em que Bush acabou vencendo Al Gore por excesso de recursos, que esgotaram o prazo legal para a recontagem, há mais cautela na Justiça americana.

Tudo demonstra que Trump está preparado para fazer o que puder para não perder a Casa Branca. Há possibilidade, cada vez menor, de que ganhe, mas se perder, vai tentar barrar a vitória de Biden na Justiça, o que só prejudica a democracia americana. O fato é que Trump mostrou enorme capacidade de convencer as pessoas, de ganhar votos, e a maneira de ele ver o mundo predomina em praticamente metade do eleitorado americano. O recurso da campanha de Trump à Suprema Corte para que seja derrubada uma decisão que permitiu à Pensilvânia receber até sexta-feira cédulas de votação enviadas pelo correio é sua terceira tentativa.

Os juízes já rejeitaram dois recursos semelhantes, mas haveria uma possibilidade de anular esses votos caso fossem decisivos para a definição da eleição. O problema para Trump é que tendo Biden vencido em Michigan, Wisconsin e Arizona, os democratas não precisam dos votos da Pensilvânia para vencer. Faltariam apenas seis delegados para alcançar os 270 votos necessários no Colégio Eleitoral, o que pode acontecer com a retomada da apuração em Nevada, onde Biden vence por uma estreita margem.

Os 157 milhões de eleitores que votaram para eleger o novo presidente representam 65,7% dos cidadãos com direito a voto, acima dos 60,1% registados nas eleições presidenciais de 2016, vencidas por Trump. O candidato democrata Joe Biden recebeu mais de 70 milhões de votos pessoais, a maior votação individual de um candidato na história dos Estados Unidos. Todos esses recordes demonstram que a democracia americana está em plena potência, apesar da polarização política que foi reafirmada nessa eleição.

A atuação de Trump, lançando acusações sem provas contra a apuração dos votos vindos pelo correio, e judicializando a eleição como estratégia política, mina a democracia, e coloca um país dividido diante de uma possibilidade de confrontações de grupos políticos. O candidato Joe Biden teve uma atuação de estadista quando foi a público fazer uma exigência mínima: vamos contar os votos até o final. Cada voto vale, e o que a apuração mostrar será a verdade das urnas, a verdade do eleitor americano. Não cantou vitória antes do tempo.


Merval Pereira: Apostando no atraso

O presidente Bolsonaro deu mais uma demonstração nos últimos dias de que não tem noção do que seja ser o líder de um país que tem importância por sua posição geopolítica, mais do que pela capacidade econômica, que tem sido pífia na ultima década, que já pode ser considerada perdida, como a de 1980.

O Brasil, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI), crescerá 1% ao ano nesta década. De um país que era visto como o futuro da economia mundial, junto com Rússia, Índia e China (Brics), o Brasil perdeu quase a metade de sua participação no PIB mundial nos últimos 20 anos. Em 1980, representava 4,3% e nesta década passará a menos de 2,5%.

Se as previsões de crescimento feitas pela Goldman Sachs se realizassem, o Brasil teria liderança não apenas na América do Sul, mas na América Latina como um todo. Sua torcida pela vitória do presidente Donald Trump nos Estados Unidos foi uma jogada política amadora, mesmo que tenha dado certo, o que parecia improvável no momento em que escrevia a coluna.

Transformar-se em um seguidor cego do líder da maior potência atual, por questões ideológicas, não agrega nenhum valor a seu apoio e, portanto, o desprestigia. Bolsonaro justifica seu apoio a Trump com o perigo do comunismo voltando à América do Sul com as vitórias na Argentina e na Bolívia, e a nova Constituição no Chile.

Trata-se de uma análise completamente equivocada, típica de um governo que vê comunistas embaixo da cama, como nos anos 50 e 60. Também a direita votou a favor de uma nova Constituição no Chile, pois mais do que se livrar de um resquício da ditadura militar, há a aspiração da grande classe média chilena de ter garantias sociais.

Também Trump acusa Joe Biden de comunista, e pode ter ganhado votos preciosos na Flórida, onde latinos desprezados pelo governo Trump preferem votar nele com receio do socialismo do qual fugiram em Cuba. Uma situação completamente surreal, mas que tem efeitos na realidade do dia a dia.

O presidente Bolsonaro considera que apostar suas fichas em Trump no momento em que ele estava em baixa valerá o agradecimento do presidente reeleito dos Estados Unidos. Como somos periféricos, estaremos sempre longe do interesse imediato dos Estados Unidos, sendo difícil que esse alinhamento incondicional leve a alguma vantagem concreta para o governo brasileiro.

A não ser nas questões sociais, onde o Brasil tem o apoio dos Estados Unidos em votações polêmicas na ONU. Uma vitória de Biden nos isolará mais ainda, nos colocando ao lado de governos conservadores, ditaduras africanas e do Oriente Médio, que hoje já são nossas parceiras na ONU em questões sociais delicadas como aborto e família, e em posições que nos colocam em oposição aos valores ocidentais como questões religiosas e relações com minorias.

A política ambiental brasileira só se mantém devido ao comportamento dos Estados Unidos em relação ao tema, que tem no abandono do Acordo de Paris o maior exemplo. Bolsonaro tentou imitá-lo, mas logo descobriu que não temos força política para arrostar tamanha afronta ao Ocidente. Mas mantém sempre a ameaça de sair a qualquer momento.

Com uma vitória de Biden esse apoio desaparecerá e, provavelmente, surgirá no lugar a possibilidade de sanções internacionais devido principalmente ao desmatamento da Amazônia e às queimadas. Os americanos se unirão novamente à Europa para uma política ambiental mais voltada para as energias renováveis, o que seria bom para o Brasil que tem amplas condições de explorar energia eólica, solar, biomassas e biogás. Além, claro, da hidrelétrica, que representa 63,8% da nossa matriz.

Teríamos todas as condições de nos juntarmos, como historicamente fizemos, a um esforço internacional de redução da emissão de carbono, não fosse a visão economicista do governo Bolsonaro em relação à Amazônia e ao Meio-Ambiente de maneira geral. Em vez de uma exploração racional das nossas riquezas na região, defendida em retórica pelo presidente Bolsonaro, o governo vai “passando a boiada” relaxando as normas de controle que impedem a exploração predatória da região.

Apostando na permanência de Trump, Bolsonaro aposta no atraso, o que combina com a defesa de seus interesses, não os do Brasil.


Merval Pereira: Relações carnais

Acompanhei de Nova York a eleição em 2008 que fez de Barack Obama o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. Me lembro da festa nas ruas, do clima de esperança que a eleição de Obama transmitiu. O candidato republicano, John McCain, um herói de guerra, teve comportamento exemplar durante a campanha.

Oito anos depois, com a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton, Obama fez um belíssimo discurso, uma aula de democracia. “Esta é a natureza da democracia. Às vezes é duvidosa e barulhenta, muitas vezes não é inspiradora. Quando o povo vota e perdemos a eleição, aprendemos com nossos erros, fazemos reflexões. E voltamos ao jogo. O importante é que sigamos em frente, com a presunção de boa-fé dos nossos cidadãos. (…) Vou fazer tudo para que o próximo presidente tenha sucesso, porque, no final, estamos no mesmo time”.

Nada parecido espera-se para esta eleição de hoje, que o mundo inteiro acompanha com tanta ou mais expectativa de quando o primeiro negro foi eleito presidente dos Estados Unidos. Quebrou-se ali simbolicamente uma barreira racial, embora na prática o racismo continue sendo um dos maiores dramas da maior potência mundial, causa de assassinatos que, de tempos em tempos, horrorizam o mundo e indignam a comunidade negra, que se sente ameaçada e perseguida pela polícia.

Hoje, mais do que em 2008, está em jogo a própria democracia americana, com o presidente Donald Trump ameaçando não reconhecer uma provável vitória de Joe Biden, o candidato democrata que foi vice de Barack Obama. Uma derrota de Trump terá reflexos na política de meio-ambiente internacional, na política de direitos humanos, na própria economia mundial.

Biden, se apoiado por uma maioria na Câmara e no Senado, uma possibilidade, fará uma reorientação da política econômica, com aumento de impostos, regulação antitruste e controle de preços dos medicamentos. O setor de energias não renováveis seria também afetado pela nova política verde do governo americano. Ambos os candidatos anunciam, pacotes de estímulos econômicos de cerca de US$ 2 trilhões, por volta de 10% do PIB americano, o que faz os analistas preverem boas perspectivas para a economia americana.

Mas o cenário mais provável, segundo analistas dos meios financeiros, é a vitória de Biden com a persistência da divisão do Congresso, com republicanos mantendo a maioria do Senado e os democratas na Câmara. Uma vitória de Biden terá efeito imediato na política externa brasileira. Ou damos uma guinada para nos adequar à nova era americana, que terá o meio-ambiente e as energias renováveis como pontos prioritários, ou estaremos mais isolados ainda no planeta.

Muito se falou sobre as proximidades entre a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos, em 2008, e a de Lula em 2002, e o próprio ex-presidente brasileiro via semelhanças na trajetória de vida dos dois. Eleger um operário no Brasil teve quase o mesmo significado para nós que eleger o primeiro presidente negro nos Estados Unidos. Além de ter chamado Lula de “o cara”, porém, nada mais aconteceu na relação pessoal entre os dois.

Se a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação, se não de amizade, também especial, nasceu entre Lula e Bush, que teve uma convivência mais amistosa com ele do que com Fernando Henrique.

A suposta “relação carnal” entre o presidente Bolsonaro e Trump não tem trazido vantagens para o país, ao contrário. Estamos isolados, assim como os Estados Unidos estão perdendo a liderança moral do mundo ocidental. Os vídeos com tapumes sendo colocados nas principais avenidas das principais cidades do país para evitar saques e quebradeiras em protesto contra o resultado da eleição, mostram que a democracia americana corre perigo se esse tipo de político como Trump continuar dando as cartas.

Da mesma maneira nós, no Brasil, também corremos sério risco de vermos nossa democracia subjugada pelo espírito autoritário do presidente Bolsonaro. Com uma vantagem para os americanos: têm instituições democráticas mais sólidas e perenes.

A parecença de Trump com Bolsonaro é um fato, tanto ideológica quanto de mau comportamento. Uma derrota de Trump será um freio no autoritarismo de Bolsonaro. O contrário exacerbará a tendência autoritária da extrema-direita no mundo.


Merval Pereira: Cenários possíveis

Partindo do principio de que bolsonarismo e o petismo são as duas grandes forças a moldar a política brasileira na atualidade, o cientista político Octavio Amorim Neto, professor da FGV Rio acredita que o que os anos de 2021-2022 nos reservam dependerá do estado de cada um deles (fortalecido x enfraquecido), que resulta em quatro cenários hipotéticos, que abaixo resumo com base no texto publicado no Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE) da FGV-Rio

Cenário 1:– Bolsonarismo fortalecido vs petismo fortalecido. Esse cenário supõe o aprofundamento da “normalização” política do governo, iniciada a partir da prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flavio Bolsonaro. As enérgicas ações do ministro Alexandre de Moraes na condução dos processos que investigam tanto atos antidemocráticos patrocinados por seguidores de Bolsonaro quanto ataques ao Supremo Tribunal Federal nas redes sociais foram decisivas para forçar o ex-capitão do Exército a mudar sua postura política.

O fato de as Forças Armadas não terem apoiado as referidas tentativas também contribuiu para o fracasso destas. A mudança levou Bolsonaro a procurar o respaldo legislativo do Centrão, o qual tem dado ao Executivo uma base de sustentação parlamentar distante ainda de uma maioria, mas suficiente para evitar a destituição do chefe do Executivo.

Se o novo presidente da Câmara dos Deputados for um parlamentar alinhado com o Palácio do Planalto, facilitará a aprovação dos projetos do Executivo, mas também dificultará a abertura de um processo de suspensão do mandato presidencial. A reeleição de Donald Trump nos EUA será outro fator relevante para o fortalecimento do bolsonarismo.

Para que os pleitos municipais signifiquem o fortalecimento do bolsonarismo, é preciso que este colha um bom resultado na cidade do Rio de Janeiro, berço político de Bolsonaro. Para que o bolsonarismo se fortaleça, o presidente deverá ter êxito em sua manobra de transferir os custos econômicos da Covid-19 para os governadores, e lograr a aprovação de um substituto do auxílio emergencial que sinalize ao mercado que a dívida pública e os gastos públicos não seguirão uma trajetória explosiva.

Para que o petismo saia fortalecido nos próximos meses, bastará que o PT tenha um desempenho superior ao que teve nas eleições municipais de 2016, que Lula continue aparecendo como um nome competitivo nas pesquisas de opinião relativas à disputa presidencial de 2022, e que não surja nenhuma nova de liderança de esquerda que efetivamente desafie a hegemonia petista nesse campo.

Cenário 2: Bolsonarismo fortalecido vs petismo enfraquecido. Se o bolsonarismo se fortalecer, se descortinará uma real oportunidade para a formação de uma frente democrática de oposição ao governo, alternativa que tem sido rechaçada por Lula. Caso o PT perceba que corre sérios riscos de não ir para o segundo turno em 2022, e que Bolsonaro tem grandes chances de ser reeleito, Lula poderá vir a apoiar um candidato de outra sigla, formando assim uma ampla coligação eleitoral que vá do centro à esquerda.

Cenário 3 – Collor 2.0 – Bolsonarismo enfraquecido vs petismo fortalecido. O fator-chave para o enfraquecimento do bolsonarismo será o mau encaminhamento da questão fiscal. Se o mercado consolidar a expectativa de que a economia está em um “rumo insustentável”, poderá testemunhar um ciclo vicioso sob o qual mau desempenho econômico e debilitamento político do governo se retroalimentam aceleradamente, como se deu com Collor em 1991.

Com o petismo fortalecido e o fim da pandemia, protestos de rua poderão ocorrer com frequência, o que, por sua vez, poderá reativar o radicalismo que caracterizou o atual governo até junho deste ano. Esse cenário ressuscitará a ideia de destituição de Bolsonaro.

Cenário 4 - Bolsonarismo enfraquecido vs petismo enfraquecido: O enfraquecimento das duas forças oferecerá uma grande oportunidade para o renascimento do centro político. Eventuais vitórias de Bruno Covas (PSDB), Eduardo Paes (DEM) e Bruno Reis (DEM) nas disputas para as prefeituras de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, respectivamente, favorecerão o renascimento do centro. Esse cenário facilitará consideravelmente a formação de um novo partido centrista que junte nacos do MDB, PSDB e DEM, processo também estimulado pelo fim das coligações nas eleições proporcionais a partir das eleições municipais.


Merval Pereira: Incontrolável?

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, tem um espaço maior que seus colegas de farda para lidar com a política com mais liberdade, pois foi eleito pelo voto direto e é indemissível pelo presidente Bolsonaro. Por se posicionar com independência, já foi visto como uma alternativa mais liberal ao presidente, que avisou: “O Mourão é mais tosco do que eu”.

Colocado na vice-presidência da chapa para, segundo o filho 03 Flavio Bolsonaro, tirar qualquer veleidade de derrubar seu pai, Mourão assumiu o Conselho da Amazônia para tentar dar uma organizada no combate às queimadas e ao desmatamento.

O ministro do Meio-Ambiente não é dos mais chegados a Mourão, que o convidou por último para participar da viagem à Amazônia com representantes estrangeiros. Algo indica que Mourão preferia que não fosse.

Por tudo isso, a afirmação dele de que o Brasil comprará, sim, a vacina chinesa, desde que ela seja aprovada pela Anvisa, entrando em confronto com as afirmações de Bolsonaro, que disse que, por sua origem, a vacina chinesa não tinha credibilidade, mostra que há limites para a aceitação das idiossincrasias do presidente.

Também outros ministros militares continuam incomodados com a atuação do presidente Bolsonaro na mediação de desavenças políticas entre seus assessores. “O Jair é fraco de liderança”, comenta um desses ministros, reclamando da aceitação, por parte do presidente, dos militantes digitais, que levam para as redes sociais as baixarias, intrigas e disputas, apoiando os ministros da ala ideológica.

Mourão, embora tenha dito que não é de seu feitio o desabafo feito pelo General Rego Barros, ex-porta-voz de Bolsonaro, elogiou o colega de farda, e disse entender “sua mágoa”. Ao afirmar que “política é política e Forças Armadas são Forças Armadas”, o vice-presidente parece querer traçar uma linha que separa as duas, e pode acabar assumindo o protagonismo, por atos e falas, na defesa da ala militar, que está se aproximando de uma fase reativa em relação aos políticos que assumiram a liderança do governo.

Não caiu bem entre eles a revelação, pela mesma revista Veja, das intrigas e brigas palacianas que continuam nos bastidores da ala ideológica contra militares, principalmente o general Luiz Eduardo Ramos, o ministro encarregado da articulação politica do governo e que continua sendo atacado por integrantes da ala ideológica.

A desculpa meia boca do ministro Ricardo Salles não acertou as coisas, as brigas de bastidores continuam, e nas redes sociais, os grupos ideológicos são violentos e incontroláveis. Certa ocasião, ainda na campanha presidencial de 2018, conversei com o então Comandante do Exército Vilas Boas, na presença de outros militares. Perguntei por que não controlavam o candidato Bolsonaro, que espalhava agressões para todos os lados na campanha. O General Vilas Boas respondeu: “Ele é incontrolável”.

A aceitação desse tipo de comportamento devia-se à vontade dos militares de impedir a eleição de Lula. A ida para o governo de vários militares que conheciam Bolsonaro há muitos anos, alguns deles, como Luiz Eduardo Ramos, acostumados a terem que controlar o capitão Bolsonaro expulso do Exército, mas que continuava atuando como líder sindical dos militares nas portas dos quartéis, tinha a intenção de ajudá-lo a governar.

Um fato curioso foi o que aconteceu na Academia das Agulhas Negras, quando Bolsonaro, atrás de votos dos militares, postou-se à porta da instituição panfletando para parentes e amigos dos formandos. A cerimônia não podia começar com aquela panfletagem por onde entraria o presidente da República, Itamar Franco.

Quem foi negociar com o capitão Bolsonaro foi o então Major Luiz Eduardo Ramos, e o máximo que conseguiu foi que o candidato fosse panfletar longe do portão principal. Hoje, quem manda é Bolsonaro, que se utiliza da hierarquia militar para enquadrar seus generais, e os submete à atuação das milícias digitais. Ou a suas idiossincrasias, como fez com o General da Ativa Eduardo Pazzuelo, ministro da Saúde, que teve que engolir calado o presidente desmenti-lo publicamente, afirmando que não compraria a vacina chinesa. Hoje, Mourão garante que o país comprará, sim, a vacina chinesa.


Merval Pereira: A esquerda desunida

A propalada reunião entre o ex-presidente Lula e o líder do PDT Ciro Gomes, depois de trocas de acusações que se intensificaram a partir de 2018, quando Ciro disputou a eleição presidencial e não foi para o segundo turno, superado pelo candidato petista Fernando Haddad, poderia ser uma boa notícia para a esquerda brasileira caso não tivesse sido atropelada por ninguém menos que a presidente do PT, Gleisi Hoffman. Que não tem luz própria, e não faria isso sem o consentimento de Lula.

Gleisi disse que qualquer acordo depende de um pedido público de desculpas de Ciro a Lula, e ao partido que dirige. O que parecia um encaminhamento de acerto com vistas a uma candidatura de esquerda que pudesse fazer frente ao presidente Bolsonaro, acabou sendo mais do mesmo, com o PT querendo se impor como protagonista da esquerda, o que impediu uma união em 2018.

Naquela ocasião, o ex-presidente Lula insistiu na sua candidatura, mesmo estando impedido pela Lei da Ficha Limpa por ter sido condenado em segunda instância, e se recusou a fazer um acordo com Ciro, que era o candidato da esquerda mais bem posicionado. A suposta traição política do ex-presidente Lula a Ciro Gomes na campanha presidencial de 2018, que o pedetista sempre denunciou, transformou-se recentemente em uma disputa de narrativas que não chegou a lugar nenhum.

Ciro Gomes jantou com Haddad, a convite deste, na casa de Gabriel Chalita, que havia sido secretário de educação na gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo. Nesse encontro, como já relatado aqui anteriormente, Ciro conta que partiu de Haddad a proposta para que fizessem uma chapa comum. Esclarecendo que não estava falando em nome do Lula, mas de modo próprio, Haddad perguntou a Ciro o que achava de uma chapa em que o PT indicasse o vice.

Dias depois, partiu do economista Bresser Pereira a proposta para que Ciro se encontrasse com Delfim Netto, “uma pessoa que o Lula ouvia muito”. No escritório do Delfim, para minha surpresa, disse Ciro, em vez de entrarmos no programa de governo, a conversa foi direto para a política. Delfim perguntou se eu estava disponível, lembraram que o Fernando Henrique havia escrito um livro (“Crise e reinvenção da política no Brasil”) defendendo uma frente progressista ampla de centro-esquerda, que nós estávamos falando a mesma coisa.

No relato de Ciro, o ex-ministro Delfim Netto lançou na mesa “o nome do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa para ser o vice, e eu disse que o Haddad estava pronto para ser o meu vice”. Haddad confirmou, disse que queria ajudar, e que poderia formar a chapa comigo.

O ex-prefeito de São Paulo negou enfaticamente no dia seguinte, e manteve-se como vice de uma hipotética chapa com Lula para presidente. Durante a campanha presidencial, num debate do primeiro turno, Haddad chegou a dizer que fora Ciro quem o convidara para ser seu vice, no que chamou de chapa “dream team”, como teria classificado na época.

Para confirmar sua versão, Ciro conta que houve um momento em que a ex-presidente Dilma Rousseff levou a Mangabeira Unger e a Cid, seu irmão, uma proposta de Lula “para que eu ficasse no lugar do Haddad como vice dele. Não tiveram coragem de oferecer diretamente a mim, porque sabiam que não aceitaria. Seria um presidente anão, que não teria autoridade para fazer nada”.

O ex-prefeito Fernando Haddad confirma os encontros e as conversas, mas diz que houve um mal entendido por parte de Ciro, e que elas eram apenas prospectivas, sem compromissos a serem “traídos”. Como se vê, Ciro Gomes e Lula estão certos em selar a paz, porque a esquerda precisa se unir em torno de temas, e não ficar se digladiando. Sem a união do centro nem da esquerda, o caminho fica facilitado para a direita, que tem em Bolsonaro um candidato forte até o momento.

Mas, diante da reação corporativa de Gleisi Hoffman, tudo indica que a eventual aliança não resultará, pois não acredito que Lula imagine o PT sendo vice de Ciro Gomes. Não é uma tradição do partido aceitar esse tipo de cooperação. O grande erro de Lula em 2018 foi não ter apoiado Ciro, talvez viabilizando uma aliança de centro-esquerda. Mas o PT não dá sombra pra ninguém, Lula não permite que nenhuma liderança cresça do lado dele.

A única chance de haver entendimento para 2022 é Lula continuar inelegível e o PT resolver apoiar Ciro. Chance remotíssima.


Merval Pereira: O poder corrompe

Dois casos semelhantes, aqui e nos Estados Unidos, revelam como presidentes autoritários são controlados dentro da democracia por assessores que não perdem a noção da realidade, nem o escrúpulo diante dos absurdos que vêem acontecer nos bastidores do Poder.

O jornal The New York Times revelou ontem, dois anos depois, o autor do artigo anônimo que publicou em setembro de 2018 contra o presidente Donald Trump, numa decisão inédita que causou repercussão à época. É Miles Taylor, ex-chefe de gabinete do Departamento de Segurança Nacional dos EUA quando escreveu o artigo, chamando o presidente de “impetuoso, contraditório, mesquinho e ineficiente”. O autor revelou que fazia parte de uma “resistência silenciosa” a Trump dentro do próprio governo dos EUA.

Também ontem o jornal Correio Brasiliense publicou um artigo do General Rego Barros, ex-porta-voz do Palácio do Planalto que critica o presidente Bolsonaro indiretamente quando afirma, por exemplo, que o poder “inebria, corrompe e destrói”.

Assim como nos Estados Unidos, o anonimato permitiu que um assessor de alto nível criticasse Trump sem se arriscar, aqui não é preciso que o General Rego Barros explicite que fala sobre Bolsonaro, pois ele também fez parte de uma “resistência silenciosa” que tentou dar um rumo ao governo.

Ele usa imagens da Roma Antiga para alertar que os generais, vitoriosos, faziam-se “acompanhar apenas de uma pequena guarda e de escravos cuja missão é sussurrar incessantemente aos seus ouvidos vitoriosos: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal”. Fica claro no texto do General Rego Barros que ele considera perigoso o caminho que Bolsonaro tomou no governo, chegando a usar a imagem de “um governante piromaníaco” para retratar o personagem sobre quem escreve.

“Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”, escreve o general. Como se referisse à sua experiência no Palácio do Planalto, ele lamenta: “Os assessores leais — escravos modernos — que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos. Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal”.

No inicio do governo, vindo do gabinete do General Villas Boas, o mais importante chefe militar do Exército nos últimos tempos, Rego Barros tinha poderes, tanto que conseguiu que o presidente Bolsonaro recebesse jornalistas em cafés da manhã periódicos. Foi engolido, no entanto, pelas “intrigas palacianas”, assim como aconteceu com o General Santos Cruz, ambos alvos do filho 02, o vereador Carlos Bolsonaro.

Vários ministros militares vieram do entorno do General Villas Boas, como os Generais Luiz Eduardo Ramos, que gosta de se dizer “do time do Villas-Boas”, e Braga Neto. O desabafo do ex-porta voz representa o pensamento de uma ala militar que se vê cada vez mais desconfortável dentro do Governo, especialmente depois que o Centrão passou a ser o esteio parlamentar do governo.

Escreveu Rego Barros: “É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais”.

O desabafo de Rego Barros tem repercussão dentro do Exército, e espelha o pensamento de um grupo que tem certos pudores e constrangimentos diante de atitudes do presidente. Há um limite - o Rubicão a que se refere o General no seu artigo, que Bolsonaro não poderá atravessar -, e se Bolsonaro não passou dele, está chegando perto.


Merval Pereira: A banalização do ilegal

O Brasil está perigosamente normalizando atividades ilegais, e o caso do encontro que o presidente Bolsonaro teve com advogadas de seu filho Flávio para receber uma denúncia contra a Receita Federal é apenas a mais recente revelação, e não a menos grave.

O presidente participou de uma reunião, em 25 de agosto, no seu gabinete do Palácio do Planalto, com as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, que apresentaram um dossiê sobre “irregularidades das informações constantes de Relatórios de Investigação Fiscal” sobre o senador.

Para agravar a situação, participaram da reunião o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro e seus filhos queriam ver à frente da Polícia Federal.

A nova tentativa de anular as investigações sobre o esquema de desvio de dinheiro público, conhecido como “rachadinha”, em seu gabinete quando era deputado estadual foi feita fora da agenda, e só foi revelada porque a revista “Época” a descobriu.

Por essa nova versão, um grupo de fiscais da Receita Federal usou de meios ilegais para fornecer informações sobre as contas do hoje senador Flávio Bolsonaro aos órgãos de fiscalização como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — o que, se confirmado, feriria de morte as acusações contra ele.

A explicação para tamanha irregularidade é que o assunto envolve integrante da família presidencial, o que merece análise dos órgãos de segurança, especialmente o GSI, que cuida da segurança pessoal do presidente e sua família. Tal justificativa é de uma banalidade tão grande que, revelado o encontro, o GSI divulgou uma nota afirmando que “à luz do que nos foi apresentado, o que poderia parecer um assunto de segurança institucional configurou-se como um tema, tratado no âmbito da Corregedoria da Receita Federal, de cunho interno daquele órgão e já judicializado”. A nota do GSI concluiu: “Diante disso, o GSI não realizou qualquer ação decorrente. Entendeu que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema”. Como se bastasse uma explicação burocrática para tamanha irregularidade.

Um presidente da República utilizar os órgãos de segurança a favor de um filho seu que é investigado por corrupção é ato gravíssimo, que precisa ser apurado e pode resultar em impeachment. No caso, apenas em tese, porque o centrão no momento está bem aquinhoado e não dará a maioria necessária.

O caso é agravado por haver uma investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a denúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro a respeito da interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal justamente para proteger seu filho das investigações. O ministro Alexandre de Moraes herdou o processo do ministro aposentado Celso de Mello e agora tem sob seus cuidados três processos que convergem.

Os das fake news e das manifestações antidemocráticas, organizadas pelo chamado “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto, são próximos entre si, e agora o da interferência na Polícia Federal, com as novas informações que devem ser anexadas, pode demonstrar que o governo se aproveita de sua estrutura e poder para defender interesses próprios, sejam pessoais ou eleitorais.

Já há diversos pedidos de políticos, como o deputado federal Alessandro Molon, do PSB, e o senador da Rede Randolfe Rodrigues, pela atuação da Procuradoria-Geral da República e do próprio STF nesse caso revelado pela “Época”, num momento em que Bolsonaro volta a assumir posições agressivas contra a Justiça. Ao afirmar que não é possível um juiz determinar que a vacinação contra a Covid-19 seja obrigatória, Bolsonaro está claramente pressionando o Supremo, que deve tratar do tema em breve.

Há indicações de que a maioria do STF é a favor da obrigatoriedade da vacinação, por uma questão de segurança sanitária. O presidente volta a usar sua força nas mídias sociais para jogar seus seguidores contra o Supremo, o que não deu resultado das outras vezes.


Merval Pereira: Não há base legal nem política para uma Constituinte

Não é a primeira vez, nos últimos anos, que a proposta de uma Assembleia Constituinte surge no debate político brasileiro, e nunca vingou, como essa não vingará, porque não há base legal nem política para tal convocação.

Muito antes da direita, a esquerda levantou essa tese em várias ocasiões. O ex-presidente Lula propôs uma Constituinte para fazer a reforma política por meio de Fernando Haddad, candidato do PT na campanha à Presidência da República em 2018.

A então presidente Dilma Rousseff apresentou a Constituinte como uma solução quando houve as manifestações de 2013. Mais recentemente, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, propôs uma Constituinte para fazer as reformas que o Congresso considerasse necessárias. Ninguém deu ouvidos, e a proposta foi fulminada por um comentário do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que disse na ocasião: “Vamos caminhar para o que Chávez fez? Foi por isso que a Venezuela chegou aonde está”.

Agora vem o líder do governo, Ricardo Barros, com uma proposta dessas, baseado numa leitura equivocada dos acontecimentos políticos no Chile, que acaba de aprovar a convocação de uma Constituinte para enterrar a Constituição em vigor, oriunda da ditadura militar de Pinochet.

Nesse ponto é que começa a se deteriorar a sugestão de Barros, pois nossa Constituição foi gerada justamente no começo de um novo ciclo democrático no país, depois de 21 anos de ditadura militar. O Chile virou uma democracia sob a mesma Constituição que regia o regime militar, embora ela não tenha impedido o país de prosperar nesse período, tornando-se modelo para seus vizinhos na América do Sul.

Os diversos presidentes de esquerda que governaram o Chile desde então não mexeram na Constituição, nem mesmo para aperfeiçoá-la, especialmente no que toca aos direitos sociais dos cidadãos. O deputado Ricardo Barros, ao defender uma Constituinte entre nós, alegou que a nossa é um obstáculo aos governos, cheia de direitos e poucos deveres, como aliás denunciou o então presidente José Sarney.

Pode ter até razão em certos aspectos, mas essas atualizações podem ser feitas por emendas constitucionais, como já vem sendo feito há anos. E, no Chile, os que aprovaram a Constituinte por larga maioria querem mesmo é uma Constituição-cidadã como a nossa, cheia de compromissos sociais.

A tese de Constituinte levantada por Barros não encontra respaldo na própria Constituição, que não prevê essa possibilidade. Depois de promulgada, em 1988, ela poderia ter sido revisada pelo Congresso cinco anos depois, mas não foi. A partir daí, não há como mudá-la sem a utilização de uma proposta de emenda constitucional (PEC) a ser aprovada pelo Congresso.

Como a exigência para uma emenda constitucional é grande — três quintos dos votos na Câmara e no Senado, em duas votações —, essa é a garantia que temos de que a Constituição não será alterada a qualquer momento.

É claro que uma PEC poderia, em tese, revogar a Constituição e convocar uma Constituinte, mas uma decisão desse tipo só seria aceitável em caso de ruptura institucional, como aconteceu nos anos 1980, após o fim da ditadura militar, resultando na atual Constituição. Foi o que aconteceu no Chile agora, quando mais de um ano de manifestações nas ruas desaguou na proposta da Constituinte.

De outra maneira, o Supremo Tribunal Federal impediria a ação do Congresso ou do Executivo, porque estariam sendo revogadas diversas cláusulas pétreas que são o pilar do nosso sistema democrático.

A convocação de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política, que já foi proposta pelo PT em diversas ocasiões nos últimos anos, parecia ser uma saída para a efetivação de uma reforma que, de outra forma, jamais sairá de um Congresso em que o consenso é impossível para atender a todos os interesses instalados, com 33 partidos constituídos e mais 37 na fila de espera.

Mas a proposta não foi para frente porque houve quem suspeitasse de que, no bojo dessa Constituinte, a base aliada do governo petista naquele momento tentaria aprovar não apenas a possibilidade de um terceiro mandato para Lula, mas também o reforço do poder do Executivo, como aconteceu na Venezuela de Chávez e na Bolívia de Evo Morales. Agora é o Centrão, na sua versão bolsonarista, que apresenta a proposta, com o mesmo objetivo: fortalecer o poder do governo.