Mercosul
Eliane Brum: Governo Bolsonaro decreta a morte de um pedaço da Amazônia
Ao autorizar Belo Monte a secar a Volta Grande do Xingu, o Ibama mudou de lado e assinou a permissão para um ecocídio na maior floresta tropical do mundo
A Amazônia é hoje a principal razão para o Brasil manter alguma relevância internacional. É da conservação da maior floresta tropical do planeta, o maior sumidouro terrestre de carbono do mundo, que dependem os principais acordos internacionais, como o maior de todos eles, o do Mercosul com a União Europeia. É também da sobrevivência da floresta que cada vez mais dependem a autorização e a aceitação dos produtos brasileiros nos mercados europeus e nos Estados Unidos de Joe Biden. Estratégica para controlar o superaquecimento global, a Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno, como têm repetidamente alertado cientistas com reconhecimento global, como Carlos Nobre. No momento em que a floresta se converter numa savana, o Brasil será apenas um país com desigualdade abissal, racismo criminoso, miséria em expansão e um presidente que virou piada no mundo. Terá também cometido um suicídio econômico, ao matar a floresta que regula o clima que permite a agricultura, afetando toda a cadeia de produção de alimentos e alguns dos principais produtos de exportação.
Nesse contexto, e num momento de progressiva recessão, o que o Governo Bolsonaro fez, pressionado por setores da política e do mercado interessados em manter o controle do sistema elétrico e faturar com ele? Autorizou a Norte Energia SA, empresa concessionária da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a liberar um volume de água para a Volta Grande do Xingu que comprovadamente, tanto pelos estudos científicos quanto pela experiência prática, é insuficiente para manter a vida. O que está acontecendo agora, nesse momento, é o que o direito internacional chama de “ecocídio” e que consiste no extermínio de um ecossistema inteiro. O que mata a natureza, como a emergência climática e também as pandemias já provaram, mata também a possibilidade de sobrevivência da espécie humana.
A autorização para o ecocídio aconteceu em 8 de fevereiro e foi celebrada nas páginas de economia de alguns dos principais jornais do Brasil. Nenhum outro acontecimento é mais grave e nenhum é mais escandaloso, com possível exceção da escalada da covid-19 sem confinamento nem plano de vacinação responsável. Uma semana antes de autorizar Belo Monte a reduzir drasticamente a água para a Volta Grande do Xingu, o mesmo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) considerou a vazão proposta pela empresa para a Volta Grande do Xingu inaceitável por não haver estudos confiáveis capazes de comprovar a segurança socioambiental de uma das regiões mais biodiversas da Amazônia.
Em linguagem dura, a área técnica do Ibama determinou que a Norte Energia S.A. refizesse os estudos e voltasse a apresentá-los: “Faltou dados de base para testes e comprovação dos resultados, faltou esclarecimento como fontes e origem de dados, faltou clareza na redação do texto, citações sem resultado e sem discussão. (...) A presente análise também discorda da suposta validação do modelo. (...) Essa análise NÃO considerou satisfatória as respostas dadas aos questionamentos 1,2 e 4. (...) Por fim, verificou-se conclusões baseada em especulações sobre garantia de manutenção de ambientes aquáticos sob vazões do hidrograma de testes sem dados dos estudos bióticos”.
Percebam que não são minhas as palavras, mas do próprio Ibama. Desde 2020, a Norte Energia luta na Justiça contra as decisões do órgão ambiental pela quantidade de água na Volta Grande. O parecer técnico citado tem a data de 1º de fevereiro de 2021 (leia na íntegra). Apenas uma semana mais tarde, em 8 de fevereiro, o diretor-presidente do Ibama, o advogado Eduardo Fortunato Bim, ignorou a avaliação técnica e autorizou a Norte Energia a liberar quase SETE VEZES MENOS a quantidade média de água que o Ibama havia determinado anteriormente como o mínimo essencial ―e quase NOVE VEZES MENOS a quantidade média de água da vazão natural do rio em fevereiro, época da cheia. A Norte Energia agora está oficialmente autorizada a liberar insuficientes 1.600 metros cúbicos de água por segundo, em vez dos 10.900 metros cúbicos por segundo determinados anteriormente pela área técnica do Ibama e dos 14.000 metros cúbicos por segundo da vazão natural média do Xingu nessa época do ano.
Para “compensar” a destruição da Volta Grande, a presidência do Ibama fez um “Termo de Compromisso Ambiental” com a Norte Energia, pelo qual a empresa “investe” 157,5 milhões de reais em ações de mitigação ao longo de três anos (leia na íntegra). Por exemplo: já que vão exterminar os peixes, que já não conseguem nem se alimentar nem se reproduzir, peixes que neste exato momento deveriam estar fazendo a piracema, mas em vez disso estão morrendo por falta de água, a empresa faz um projeto de reprodução de peixes em laboratório. É sério, não é piada. Antes fosse. Troca-se um pedaço da floresta por uma série de projetos artificiais que já se mostraram pouco viáveis nas compensações anteriores da Norte Energia que, na maioria das vezes, só enriquecem as empresas contratadas para executá-las.
Vale lembrar que a Norte Energia S.A. comprovadamente ainda não concluiu a totalidade das ações de mitigação necessárias para ter a licença de operação da usina ―e já opera desde 2016. A licença para operação foi dada pelo Ibama no final de 2015 sem que a empresa tivesse cumprido as condicionantes que condicionavam a operação. O que condicionava deixou de condicionar, num dos grandes escândalos de uma trajetória repleta deles.
As novas medidas supostamente compensatórias vão para essa conta de fiado que nenhum mercadinho de esquina aceitaria, mas o Governo brasileiro, sim. Inclusive porque quase metade (49,98%) das ações da Norte Energia é hoje composta pelo Grupo Eletrobras, um grupo composto por estatais. O segundo maior grupo de acionistas são fundos de pensão (20%), Petros e Funcef, o que significa que são fundos de previdência complementar dos funcionários da Petrobras e da Caixa Econômica Federal. Seria interessante saber o que os servidores pensam de sua previdência estar conectada com um desastre ecológico na Amazônia. A compensação, além de impossível na prática, é apenas uma promessa, já que o passivo da empresa é enorme, como provam mais de 20 ações do Ministério Público Federal (confira aqui).
Na prática, o presidente do Ibama autorizou que a empresa altere completamente o ciclo biológico da Volta Grande do Xingu, atingindo pelo menos dois povos indígenas, os Yudjá (também conhecidos como Juruna) e os Arara, o que é inconstitucional, assim como comunidades de ribeirinhos, de pescadores e de agricultores familiares. Autorizou também a degradação do Xingu, um dos maiores rios da Amazônia, além de toda a fauna e a flora da Volta Grande, uma das regiões mais extraordinárias da floresta, com algumas espécies endêmicas, como o acari zebra, o que significa que só existem naquele bioma e desaparecerão com ele. O presidente do principal órgão ambiental do Governo brasileiro autorizou uma empresa a controlar a água de um dos grandes tributários do Amazonas e destruir um pedaço da maior floresta tropical do mundo e engana a população afirmando que seria possível compensar a tragédia ecológica provocada. A floresta é um organismo integrado, complexo e interdependente, assim como o próprio planeta. O que acontece na Volta Grande do Xingu repercute em todo o sistema e vai acelerar a escalada da Amazônia rumo ao ponto de não retorno, no qual a floresta se converte numa savana.
O que aconteceu para que a área técnica do Ibama diga não e a área política diga sim? Pressão do que se chama setor elétrico e de seus agentes. E pressão com o apoio das editorias de economia de alguns dos grandes jornais do país ―sendo a principal exceção o repórter André Borges, de O Estado de S. Paulo, que tem feito uma cobertura irretocável. Desde janeiro há um cerco intenso sobre o Ibama e também sobre a opinião pública. As notas vazadas para a imprensa e, na maioria das vezes, reproduzidas sem crítica, anunciavam a ameaça de colapso do sistema elétrico do país caso o Ibama recusasse o volume de água demandado pela Norte Energia que, vale repetir, é comprovadamente incompatível com a manutenção do ecossistema da Volta Grande do Xingu.
Em 15 de dezembro, o Ministério de Minas e Energia já havia afirmado em ofício: “Conclui-se que as alterações no Hidrograma definido para a UHE Belo Monte, avaliadas pela ótica da geração de energia elétrica, se traduzem em relevantes impactos negativos ao setor elétrico brasileiro, com efeitos diversos, sistêmicos e coletivos, de planejamento, comerciais e operacionais, afetando, inclusive, a segurança energética”.
Em 27 de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) enviou um ofício ao Ibama, assinado pelo diretor-geral, André Pepitonne da Nóbrega, afirmando: “Sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto, o impacto estimado da medida aplicada nos dois primeiros meses de 2021, janeiro e fevereiro, seria próximo a 1,3 bilhão de reais para o consumidor final de energia elétrica”. O ofício (leia aqui) foi reproduzido como matéria por parte da imprensa sem mencionar o impacto socioambiental de uma vazão de água enormemente reduzida para a Volta Grande nem explicar como o diretor-geral da Aneel chegou a esse cálculo, para além da mera afirmação de que isso se deveria ao custo do “aumento da produção em usinas termelétricas”, mais caras e poluentes.
Em 28 de janeiro, o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, enviou uma nota técnica ao Ibama, afirmando: “Em resumo, sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental que foge das atribuições desta Secretaria, e assumindo as consequências energéticas apresentadas pelo ministério setorial responsável (Ministério de Minas e Energia), a manutenção pelo IBAMA do referido hidrograma pode atrapalhar a necessária retomada do crescimento econômico do país após crise sanitária sem precedente, importando riscos à ordem e à economia pública”. (O grifo é por minha conta, leia aqui)
Percebam que tanto o Ministério da Economia como a Aneel usam a malandragem de uma ressalva: “sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto”, caso da Aneel, ou “sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental”, caso do Ministério da Economia. Como é possível fazer uma análise, no ano de 2021, sem abarcar a questão ambiental, isso em qualquer região do globo, e ainda com mais ênfase, na Amazônia? Não é preciso ter curso rápido de economia para compreender que isso é ou má fé ou incompetência ou ambas. Meio ambiente não é um tema paralelo, mas a linha que atravessa todos os outros temas. Tratar o meio ambiente como tema tangencial é de uma ignorância imperdoável e inaceitável neste momento histórico. Meio ambiente é a nossa casa, essa que a juventude climática denuncia que está em chamas ―e está. E, graças ao Brasil governado por Bolsonaro, também literalmente.
Vale lembrar que o fundo soberano da Noruega, o maior do mundo, excluiu a Eletrobras em 2020 devido às violações humanas e ambientais ocorridas na construção e operação de Belo Monte. “Risco inaceitável de que ela [Eletrobras] contribua para violações graves ou sistemáticas dos direitos humanos” foram as palavras usadas. Hoje, são os setores econômicos internacionais que mais pressionam pela conservação da Amazônia, não porque seus dirigentes repentinamente tenham se transformado em ecologistas, mas porque não são burros. E porque têm mais de dois neurônios são capazes de compreender que, sem a floresta não há futuro para a espécie e, portanto, também não haverá nem consumidores nem lucro. Se algum funcionário, mesmo de baixo escalão, fizesse qualquer análise de impacto sem “adentrar o tema ambiental” em qualquer organismo internacional ou em qualquer grande empresa com competividade hoje estaria demitido. O mesmo vale para jornalistas de economia. Aparentemente, os dirigentes brasileiros se formaram no século 20 e nunca mais leram nada. Ou, talvez, ficaram retidos ainda nos primeiros tempos da revolução industrial.
É também por violações ambientais, especialmente na Amazônia, que o acordo da União Europeia com o Mercosul naufraga nos parlamentos de países europeus. Nesta sexta-feira, por exemplo, o Fridays For Future, movimento liderado pela sueca Greta Thunberg, fará um tuitaço global pedindo que os parlamentos dos países europeus não ratifiquem o acordo da União Europeia com o Mercosul por causa da destruição da Amazônia. Duas de suas líderes vieram ao Brasil de barco à vela no final de 2019 para conhecer a floresta e conversar com lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas no evento Amazônia Centro do Mundo, que aconteceu na Terra do Meio e em Altamira, no Pará, com a presença de Raoni e Davi Kopenawa, entre outros intelectuais da floresta.
Não há nada mais imbricado com o tema ambiental hoje, num mundo em colapso climático, que a economia. Mas os dirigentes da área no Brasil acham perfeitamente normal fazer a análise de um fato que resultará em enorme impacto ambiental sem “adentrar na questão ambiental”. A pasta de Paulo Guedes também achou apropriado usar expressões típicas de governos autoritários, sempre sacadas do coldre quando é necessário apavorar a população: “riscos à ordem e à economia pública”.
Nenhuma análise pode ser levada a sério sem o custo socioambiental. O Brasil tem sido fortemente pressionado e vem perdendo investimentos e mercado para seus produtos por conta do aumento da destruição da Amazônia, mas abre 2021 decretando o fim de um pedaço da floresta. Ao contrário dos impactos da alegada redução da produção de energia por Belo Monte, os impactos socioambientais sobre a Volta Grande do Xingu são bem acompanhados e documentados pelos melhores cientistas há anos. Basta ler as pesquisas e documentos. No mais recente, datado de 28 de janeiro e apresentado ao Ministério Público Federal, alguns dos principais pesquisadores brasileiros afirmam (leia na íntegra):
“Considerando que as populações indígenas e ribeirinhas moradoras da Volta Grande do Xingu têm como fundamento de seu modo de vida a codependência com os processos ecossistêmicos da região, quaisquer alterações imponderadas, imprudentes e/ou precipitadas desses processos levam a cenários de fragilização desses povos num sentido amplo da expressão. Trata-se da imposição irreversível de perda da soberania alimentar das famílias locais que tende a ser agravada para as próximas gerações, de fragilização econômica associada à perda de biodiversidade vegetal e animal, além da perda de qualidade de vida e de saúde dessas e das próximas gerações”.
Desde antes de sua construção, especialistas no setor elétrico já denunciavam que Belo Monte serviria mais para produzir propina do que energia, já que o rio Xingu vive uma estação de seca por metade do ano. Mesmo assim, a obra foi construída: orçada em 19 bilhões de reais no leilão, em 2010, o custo hoje já ultrapassou os 40 bilhões de reais, a maior parte financiado por dinheiro público do BNDES. A corrupção foi finalmente exposta pela Operação Lava Jato, ao revelar propinas pagas pelas empreiteiras que construíram a obra ao PMDB e PT, partidos no poder durante a construção.
Grande parte dos alertas feitos pelo painel de especialistas que analisou o impacto do projeto de Belo Monte sobre o ecossistema antes mesmo do leilão da usina se confirmaram. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do Estadão, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, EL PAÍS e The Guardian já tinham revelado que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.
Além da inviabilidade técnica da usina, da corrupção e da destruição ambiental com efeitos em todo a região amazônica, a construção de Belo Monte foi determinante para converter Altamira, a principal cidade do Médio Xingu, na mais violenta da Amazônia. Em julho de 2019, a cidade foi também palco do segundo maior massacre carcerário da história do Brasil, com 62 mortos, a maioria decapitados ou queimados. Hoje, a cidade enfrenta, em plena pandemia, uma série de suicídios de crianças e adolescentes. A usina também foi determinante para tornar a região epicentro de desmatamento e de queimadas. Causou ainda grande impacto na saúde da população. O próprio Ministério da Saúde apontou o enorme aumento da desnutrição infantil de crianças indígenas durante a construção. Profissionais da saúde mental ligados à Universidade de São Paulo documentaram o impacto da expulsão do território produzida pela usina sobre a população ribeirinha no projeto Refugiados de Belo Monte. Obra totalmente paradoxal no cenário político do Brasil, a primeira turbina foi orgulhosamente inaugurada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e a última orgulhosamente inaugurada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), em 2019.
O atual e avançado capítulo de destruição é o que a Norte Energia e parte do governo, do mercado e da imprensa chamam de “Hidrograma de Consenso”, um nome digno da distopia de George Orwell. Na nota técnica do início de fevereiro, o próprio Ibama diz que não há consenso algum. Nas palavras literais: “Consideradas as evidências documentais de que os cronogramas A e B [vazões alternadas] NÃO foram oriundos de discussões técnicas envolvendo o Ibama, mas de uma decisão unilateral por parte do empreendedor, esse parecer se restringe aos mesmos como HIDROGRAMAS DE TESTE, e não de consenso”. (A caixa alta é do Ibama, não minha).
O “teste” mostrou o que já era antecipado pelos cientistas, a incompatibilidade entre uma quantidade tão reduzida de água e a reprodução da vida. O juiz federal que deu decisão favorável ao Ibama em detrimento da Norte Energia, no ano passado, baseou sua sentença no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”. Assim, “impôs ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”. Como afirmou a área técnica do Ibama, a Norte Energia não conseguiu provar: “Esse parecer não considera adequada a abordagem dada pelo relatório técnico [da Norte Energia], sugerindo sua DEVOLUÇÃO e readequação”. (mais uma vez, a caixa alta é do Ibama, não minha).
E então veio a motosserra da área que se diz econômica, com a ameaça do colapso energético, do risco à segurança nacional e do enorme “ônus aos consumidores”. Na prática, o Governo Bolsonaro rifou a Volta Grande do Xingu por supostos 157,5 milhões de reais para uma usina que custou mais de 40 bilhões, cuja principal acionista é a Eletrobras. E qual é o plano para a Eletrobras? A privatização, no qual o enorme passivo ambiental e humano de Belo Monte, consolidada no cenário internacional como uma catástrofe ecológica na Amazônia, é um sério entrave, porque isso que se costuma chamar de “mercado” é ávido e inescrupuloso, mas não é burro. Quem ganha? Quem perde? Os interesses em torno de Belo Monte, desde antes do seu controverso leilão, têm se mostrado bem pouco republicanos.
Aceitando por um momento, apenas como exercício mental, que os interesses são pelo bem público, que existe uma preocupação genuína com a questão energética e que os dirigentes podem provar aquilo que afirmam: colapso energético, ameaça à segurança nacional, 1,3 bilhão de ônus para os consumidores etc. Aceitando, apenas hipoteticamente, que essas afirmações estariam corretas e foram proferias de boa fé, o que temos do outro lado? O colapso já em curso de uma região de 130 quilômetros de floresta tropical habitada por povos indígenas, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, além de espécies de fauna e flora ainda não totalmente conhecidas, em um dos rios mais biodiversos do mundo. E isso num momento em que as principais autoridades do mundo, em todas as áreas, afirmam que a crise climática é o maior desafio da trajetória humana e que, para enfrentá-la, a Amazônia é estratégica. Este colapso, por sua vez, está totalmente documentado pelos cientistas mais respeitados para quem quiser se informar e estudar.
Aceitando ainda, apenas hipoteticamente, que a redução da produção de Belo Monte significaria um risco real de colapso energético, é importante assinalar que isso tornaria o planejamento brasileiro para o setor um arcaísmo incompatível com o atual momento global. Enquanto outros países, com muito menos potencial que o Brasil, têm feito enormes investimentos em energia solar e eólicas, o Brasil destrói a floresta e planeja destruir ainda mais, como já mostrou ao anunciar recentemente a retomada dos projetos hidrelétricos na Amazônia. Nenhum profissional sério hoje considera hidrelétrica na Amazônia “energia limpa”. Essa visão já foi totalmente superada pelas evidências bem documentadas da realidade e da ciência.
Aceitando apenas hipoteticamente que as duas premissas (e não apenas uma) são verdadeiras ―a do colapso ecológico, amplamente documentado, e a do colapso energético, essa apenas na boca de algumas autoridades do atual governo e suas visões ultrapassadas―, não seria sensato seguir o princípio básico da precaução? Algo dessa magnitude e impacto na maior floresta tropical do mundo não deveria ser ao menos amplamente discutido e com toda a sociedade? É assim, numa canetada, que o Governo de Bolsonaro condena um pedaço da Amazônia?
Destruir a floresta é destruir os padrões de chuva e do clima. É destruir a produção de alimentos, a renda dos agricultores e a competitividade e aceitação dos produtos brasileiros no mercado internacional. É impactar as condições de vida dos moradores de São Paulo e do Rio de Janeiro. É atingir o futuro de todos os habitantes do planeta. É disso que se trata. E, como o Governo é o agente da destruição, resta a nós impedir que mais um crime, esse de enormes proporções, aconteça. Ou a sociedade brasileira e global se mobiliza ou o ecocídio será consumado. Se a Volta Grande do Xingu morrer, estaremos dando mais um passo rumo ao nosso próprio suicídio como espécie.
Nesta quarta-feira, 17 de fevereiro, o guerreiro indígena Aruká Juma morreu de covid-19. Ele era o último homem dos Juma, povo amazônico exterminado ao longo das últimas décadas por sucessivos ataques genocidas. O risco da pandemia para um povo de recente contato era conhecido e a construção de uma barreira sanitária foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal. O Governo de Jair Bolsonaro não a fez. E o último Juma morreu. Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), no início do século 20 o povo Juma contava com 15.000 pessoas. Em 2002, estavam reduzidos a cinco ―um, dois, três, quatro, cinco. Hoje, não resta nenhum homem. O Governo Bolsonaro terminou de extinguir um povo e acaba de determinar a morte da Volta Grande do Xingu. Se seguirmos calados, é melhor sepultar logo isso que chamamos de Brasil. Numa vala comum, já que estão faltando covas nos cemitérios para tantos mortos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Carlos Sampaio: Risco ambiental e econômico
Não podemos dar argumentos para países criarem barreiras para nossos produtos
O Brasil sempre atraiu a atenção do mundo na questão ambiental pela sua riqueza. E o fator econômico contribui para elevar as cobranças sobre o nosso país, um dos principais players no disputado mercado internacional de commodities. Ainda mais quando se discute o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, anunciado no ano passado, depois de 20 anos de negociação.
O acordo eliminará tarifas de importação para mais de 90% dos produtos comercializados entre os dois blocos, mas ainda precisa ser ratificado por cada um dos países-membros. Há, portanto, muitas resistências a vencer.
Assim, não podemos dar argumentos para países criarem dificuldades ao acordo ou barreiras para nossos produtos, alegando que o Brasil não protege o meio ambiente. A França, por exemplo, já expressou essa posição.
Neste momento, em nada ajudam iniciativas ou omissões que possam lançar desconfiança sobre a política ambiental brasileira. A revogação pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente de resoluções para a proteção de áreas de restinga, manguezais e outros sistemas sensíveis — derrubada depois pelo STF — é a polêmica mais recente.
A minimização de dados sobre o desmatamento na Amazônia ou de focos de incêndio no Pantanal e a precarização dos órgãos de fiscalização, como o Ibama, alimentam especulações contra o Brasil. Além disso, passam a mensagem de que as regras são abrandadas, o que estimula a prática de crimes.
Se não houver respostas mais objetivas e ações mais efetivas contra o desmatamento e de proteção ao meio ambiente, o Brasil continuará sendo criticado, podendo perder espaço no mercado. E, se o meio ambiente não for, de fato, protegido, as perdas serão incalculáveis para as gerações futuras.
O Brasil tem uma das legislações ambientais mais rigorosas do mundo. E, como se diz, o governo já ajuda quando não atrapalha. Ainda mais numa área tão sensível como essa.
*Carlos Sampaio é líder do PSDB na Câmara dos Deputados e procurador de Justiça licenciado
Celso Ming: Acordo entre Mercosul e União Europeia está sob ataque
Nesta quarta-feira, o Parlamento Europeu rechaçou “em seu estado atual” os termos do acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul.
Não é decisão que produz efeito imediato porque, para ratificação de tratados, o Parlamento Europeu não é instância decisória da União Europeia. Mas essa votação tem enorme influência sobre o destino do acordo, que foi fechado em junho de 2019 depois de 20 anos de árduas negociações. Com essa rejeição, fica mais difícil a aprovação final pelos Parlamentos dos 27 países que integram a União Europeia e pela Comissão Europeia, formada pelos chefes de governo da área.
Nas justificativas para a decisão tomada, o argumento central é o de que os tratados não podem respaldar a desastrada política de preservação da Amazônia pelo governo Bolsonaro.
Para o governo brasileiro, trata-se de um falso motivo. A má vontade dos políticos europeus, liderada pelo presidente da França, Emmanuel Macron, é mais que tudo protecionista. Os europeus temem que a liberação do comércio entre os dois blocos produziria invasão de produtos agropecuários do Mercosul, o que colocaria em risco os negócios pouco competitivos da área, sustentados artificialmente por subsídios e reservas de mercado.
Essa análise do governo brasileiro está correta. Desde o início das negociações, houve enorme pressão do lobby da agricultura da União Europeia pelo fechamento de um acordo. A crise produzida pela pandemia e as crescentes dificuldades políticas no interior dos países mais importantes da área apenas acirraram essa oposição.
Antes de prosseguir, convém apontar alguns paradoxos. O primeiro deles é o de que os argumentos contrários ao acordo de livre comércio se voltam contra a política de Bolsonaro, cujo governo é conhecido como defensor do livre comércio.
A oposição ao acordo por políticos da União Europeia, por sua vez, não levanta nem a indignação do governo de Buenos Aires nem a contestação da área diplomática da Argentina porque, diante da grave crise cambial do país, a última coisa que o governo argentino pretende, neste momento, é a liberação do seu comércio exterior. Ainda assim, o governo Fernández poderá aproveitar a oportunidade para acusar o governo Bolsonaro de ter solapado um acordo comercial estratégico e, portanto, de ter trabalhado contra os interesses dos outros sócios do Mercosul, em consequência de sua catastrófica política ambiental.
O caráter inequivocamente protecionista prevalecente na União Europeia não justifica as graves omissões e as decisões brutais do governo brasileiro na área ambiental. O governo do Brasil não pode fugir de seus deveres na preservação da Amazônia e em todas as outras dimensões do meio ambiente interno, não só por uma questão de interesse nacional, mas também de responsabilidade perante as demais nações.
Não dá para seguir argumentando, como vêm fazendo autoridades da área do governo Bolsonaro, que europeus, americanos e asiáticos destruíram suas florestas, emporcalharam seus rios e poluíram o ar antes dos brasileiros e agora lhes cobram um preço que eles próprios não se cobraram nem pagaram em seu tempo.
Se não for capaz de manter em relação a esse assunto uma política sadia como simples consequência de convicções científicas e doutrinárias, o governo Bolsonaro terá ao menos de lutar pela preservação ambiental por mero pragmatismo. Essa decisão do Parlamento Europeu é mais uma advertência de que a deterioração ambiental no Brasil implicará perda de negócios e fechamento de empregos por aqui.
Rubens Barbosa: Desafios do acordo Mercosul-União Europeia
Além das incertezas vindas da Argentina, competitividade e meio ambiente estão em foco
Um fato novo complica o entendimento entre os países do Mercosul. Em abril a Argentina informou que não mais acompanharia Brasil, Paraguai e Uruguai nas negociações em curso do Mercosul com outros países, como Canadá, Cingapura, Coreia do Sul, Líbano e Índia. Mas manteria sua participação nos acordos, já concluídos e não assinados, com a União Europeia (UE) e com a Associação Europeia de Livre Comércio (Efta). Na semana passada o governo argentino voltou atrás, num confuso comunicado em que ressalta ter decidido manter-se nas negociações conjuntamente, mas sempre levando em conta as sensibilidades dos setores menos competitivos (industriais).
Embora querendo participar de todos os trabalhos e demandando a inclusão de cláusulas que resguardem os interesses argentinos futuros, Buenos Aires não se compromete com a conclusão das negociações em curso. O chanceler Felipe Solá diz favorecer um regime de dupla velocidade, em que a Argentina não fica fora dos acordos, mas quer ter a palavra final sobre como e quando passaria a fazer parte deles.
Até meados do ano, o acordo Mercosul-UE deve ser assinado. Como o governo argentino reagirá durante o processo de ratificação, se forem solicitadas modificações no texto do acordo, como foi no caso do tratado UE-Canadá? Nuestros hermanos querem um Mercosul à la carte, o que aumenta a incerteza para todos, pela insegurança jurídica na aplicação dos compromissos assumidos. Flexibilização, se houver, tem de ser para todos.
Além dessa incerteza, menciono duas questões do lado brasileiro para o acesso ao mercado europeu: competitividade e meio ambiente.
Para aproveitar as preferências tarifárias, os produtos industriais deverão melhorar significativamente sua competitividade e passar a receber tratamento isonômico em relação ao produzido em outros países. Sem isso, apesar de a UE abrir seu mercado com tarifa zero de imediato para 75% de suas importações, será difícil competir no mercado europeu com produtos importados de outras áreas, como EUA, China e Coreia. A aprovação da reforma trabalhista e a da Previdência Social foram avanços importantes no caminho da modernização do Estado brasileiro. De modo a que o custo Brasil seja reduzido, é imperativo serem aprovadas a reforma tributária, a reforma do Estado e um amplo programa de desburocratização, simplificação e facilitação de negócios e de melhoria na logística (portos, estradas, ferrovias). Em paralelo, um eficiente programa de inovação das empresas e de políticas públicas ajudaria a modernizar a operação das companhias que produzem para o mercado doméstico e também exportam. Estudo recente da Fiesp, mostra que a indústria nacional, antes da pandemia, estava lenta na busca para alcançar o nível de 4.0 – 1,3% tinha investimento em 4.0 (em faturamento).
O segundo desafio são os compromissos na área de meio ambiente que o Brasil deverá cumprir. O capítulo de desenvolvimento sustentável, incluído no acordo, talvez seja o mais desafiador, em vista da atual política de meio ambiente e mudança de clima do governo brasileiro. A crescente força política dos partidos verdes nos Parlamentos dos países europeus poderá representar um obstáculo para a ratificação do acordo caso a atual política ambiental brasileira não se modifique, como exemplificado pela crise em relação ao Fundo Amazônico, que resultou na suspensão de recursos financeiros recebidos da Alemanha e da Noruega. Os compromissos assumidos pelos países-membros no tocante ao desenvolvimento sustentável estão incluídos em 18 artigos, que cobrem acordos relacionados a comércio e meio ambiente, comércio e biodiversidade, comércio e preservação de florestas, da ONU, além de regras da Organização Internacional do Trabalho, incluída a Resolução 169, que trata da exploração de terras indígenas.
O descumprimento dos dispositivos dos acordos poderá acarretar boicotes e mesmo restrição de importação de produtos agrícola do Mercosul. São mencionados explicitamente os principais acordos internacionais, como os derivados da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, da Conferência Quadro da ONU sobre mudança do clima, da Convenção sobre Diversidade Biológica, da Convenção da ONU de Combate à Desertificação, do Acordo de Paris de 2015, de regras da OMC e resoluções de outros organismos internacionais. Além disso, por insistência da UE, foi aprovado o princípio da precaução, pelo qual o não cumprimento de acordos de meio ambiente, energia ou trabalho forçado ou infantil pode acarretar restrição à importação de determinado produto.
O mundo mudou e as preocupações com o meio ambiente, a mudança do clima, a preservação das florestas entraram definitivamente na agenda global. A falta de informação interna objetiva dos compromissos internacionais assumidos pelos diferentes governos nas últimas décadas e a crescente percepção externa negativa sobre as políticas ambientais criam uma incerteza adicional para o setor produtivo, em especial o do agronegócio.
Com o fim da covid-19, as questões ambientais vão ressurgir com toda a força e os governos do Mercosul não poderão ignorar essa agenda incluída no acordo com a União Europeia.
*Presidente do instituto de relações internacionais e comércio exterior (IRICE)
Daniel Rittner: Cinco fatos de 2019 e seus desdobramentos
Previdência, Freitas, UE-Mercosul, China-EUA e ambiente são cinco destaques do ano que termina
Chega a hora dos balanços, reflexões, retrospectivas de um ano em que ouvimos que 1964 não foi golpe, um novo AI-5 seria bem-vindo para conter protestos, o nazismo era de esquerda, descendentes de escravos deveriam agradecer seus ancestrais por terem deixado a África, ONGs atearam fogo na Amazônia por doações.
A normalização do absurdo foi uma marca de 2019, mas deixemos controvérsias e manipulações de lado para destacar fatos importantes para a economia brasileira - apontando seus desdobramentos. Eis aqui um ensaio, pessoal e subjetivo, para resumir cinco deles. Não estão em ordem de importância e podem facilmente ser substituídos por outros temas ou episódios. É nada mais do que isso: um ensaio, uma tentativa.
1) Previdência: a necessidade de reforma das aposentadorias e pensões estava madura na sociedade quando o governo começou, mas Jair Bolsonaro realmente conseguiu aprová-la sem (muito) toma-lá- dá-cá nas negociações com o Congresso. Ponto para ele. Isso lhe permitiu sustentar o discurso de “nova política” junto ao eleitorado, mas teve reflexos danosos. O presidente imaginou que tinha cacife para aprovar outras pautas sem uma base aliada. É bater a cabeça contra a parede. Paulo Guedes achou que a reforma tributária estava no bolso e poderia até propor uma “nova CPMF”. Só tumultuou o debate.
Demonstrou-se ingênuo o argumento de que a aprovação da reforma traria uma chuva de investimentos. Mas sua rejeição - ou novo atraso - teria jogado o país em um precipício fiscal. O saldo é positivo, mas a exclusão de Estados e municípios ainda vai custar caro aos entes federativos. Quanto mais perto da eleição de 2020, menores as chances de a Câmara votar uma PEC paralela e Assembleias Legislativas fazerem reformas em seus Estados.
2) Leilões de março: as concessões de 12 aeroportos terminaram com ágio de 4.700% e a vitória de operadoras com prestígio. A Rumo pagou o dobro do valor mínimo de outorga pela Ferrovia Norte-Sul e surpreendeu todos que viam o certame feito sob medida para a Vale. Foi o passaporte do ministro Tarcísio Freitas, um quase desconhecido fora da área de infraestrutura, para o estrelato. Ele encaminhou outros bons projetos, decretos sobre relicitação e arbitragem, entregou a BR-163 asfaltada.
Tarcísio virou peça central na engrenagem do governo, xodó do presidente e é sempre cotado para voos mais altos. Foge de intrigas políticas e do jogo sujo nas redes sociais. As guerrilhas bolsonaristas implicaram com ele - que escândalo! - por ter se reunido em Nova York, durante “road show” para atrair investidores estrangeiros, com representantes do Soros Investment Fund, do bilionário George Soros, alvo preferencial de olavistas. “O programa de concessões segue uma linha estritamente técnica e precisamos protegê-lo de agendas de cunho político”, tuitou Tarcísio, em resposta. No atual ambiente de radicalização, não é pouca coisa.
3) Acordo União Europeia- Mercosul: o anúncio de conclusão das negociações de livre-comércio deu uma injeção de ânimo no combalido bloco sul-americano. Até agora, o Mercosul tinha só três acordos fora da vizinhança: com Israel, Egito e Palestina. Irrelevantes.
O sucesso do acordo é uma construção coletiva que passa pelo segundo governo Dilma - curto, porém mais pragmático em relação à abertura comercial do que os 12 anos anteriores de gestões petistas. Avança bastante sob Michel Temer. Mas a “última milha” das negociações, como se diz no jargão diplomático, é sempre complicada e por isso o governo Bolsonaro tem méritos.
O Mercosul se cercou de cuidados, como a possibilidade de salvaguardas em caso de disparada das importações, mas restam algumas desconfianças - como cláusulas de propriedade intelectual e interpretações antagônicas em torno do princípio de precaução na agricultura. De toda forma, abre-se o caminho para novos acordos porque finalmente se definiu jurisprudência sobre até onde se pode chegar em temas sensíveis, como tarifas para bens industriais. Não à toa, um tratado com o EFTA - Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein - foi anunciado na sequência. Acordos com Canadá e com Cingapura são boas apostas para o ano que vem.
Ponto negativo? O Mercosul, que vinha ganhando tração, agora entra em compasso de espera pelo desalinhamento entre Bolsonaro e Alberto Fernández. O auge do mal-estar talvez esteja ficando para trás, mas a Argentina não deve topar redução unilateral da Tarifa Externa Comum e bastará uma faísca para incendiar as relações.
4) EUA x China: tréguas comerciais rendem manchetes e aliviam a tensão no curto prazo, mas têm pouca efetividade numa guerra que, no fundo, no fundo, é tecnológica. A corrida do 5G pode definir o vencedor do século XXI.
A postura óbvia, para o Brasil, era manter equidistância e extrair os benefícios possíveis de cada lado. Bolsonaro e auxiliares capricharam nas indelicadezas com a China. Buscaram forçar amizade com Donald Trump. De início, a proximidade com a Casa Branca até rendeu frutos, como o apoio para entrar na OCDE, o status de aliado extra-Otan e o acordo de salvaguardas tecnológicas, que é essencial para viabilizar a Base de Alcântara.
E como é que se chega ao fim do ano? Dos Estados Unidos tivemos: veto à carne in natura mantido, apoio na OCDE jogado para mais adiante, tarifas ao aço e ao alumínio sem aviso prévio, pressão em torno do 5G. E o que veio da China? Abertura para o melão do Rio Grande do Norte, habilitação para a carne de 25 frigoríficos, petroleiras chinesas no leilão do pré-sal, CCCC e CR20 na ponte Salvador-Itaparica.
5) Ambiente: maior desmatamento na Amazônia em dez anos, queda de 25% nos autos de infração emitidos pelo Ibama, negacionismo climático, discurso irresponsável contra a “indústria da multa” dando a senha para crimes ambientais.
Nas últimas três décadas, o Brasil foi visto como um sócio- chave para o desenvolvimento sustentável. O protagonismo na Eco-92, na Rio+20 e no Acordo de Paris ilustra isso. Agora nos enxergam como parte do problema, não da solução.
A COP-26 ocorrerá em 2020 no mesmo mês de novembro em que se costumam divulgar os índices de desmatamento. Novo fiasco brasileiro, somado a mais um ano de queimadas nas florestas, pode ensejar boicotes e, no limite, comprometer a ratificação do acordo Mercosul- UE no Parlamento Europeu.
Revista Política Democrática || Rubens Barbosa: Encontros e desencontros entre Brasil e Argentina
Nova tensão entre Brasília e Buenos Aires ocorre por conta de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina
Como é normal entre países vizinhos, Brasil e Argentina passaram por muitos desencontros e crises ao longo de suas histórias.
Poderíamos começar ainda no século XIX, quando, em 1826, as Províncias Unidas (hoje Argentina) organizaram complô para sequestrar Dom Pedro II, de modo a pôr fim à guerra com o Brasil pelo controle da Banda Oriental (hoje, Uruguai). No início do século XX, de 1906 a 1910, nova crise por um incidente menor: apreensão de um barco uruguaio no Rio da Prata, em área de demarcação contestada entre Argentina e Uruguai. O governo uruguaio pediu apoio ao governo brasileiro. O conflito aumentou e só foi resolvido por ação do barão do Rio Branco e do presidente argentino, Saenz Peña.
Mais recentemente, tivemos momentos de tensão bilateral por ocasião da construção da Hidrelétrica de Itaipu – com questionamentos públicos pela Argentina nos organismos multilaterais, por conta da questão do compartilhamento das águas –, durante a Guerra das Malvinas e no período de governos militares nos dois países.
Agora, nova tensão entre Brasília e Buenos Aires em decorrência não de uma crise, mas de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina. Declarações de lado a lado acirraram os ânimos entre os presidentes, ministros e altos funcionários, que, do lado argentino, sequer tomaram posse.
A política econômica e comercial do novo governo argentino passou a ser preocupação do governo brasileiro, pela possibilidade de a abertura da economia e a ampliação da negociação externa do Mercosul serem contestadas por políticas protecionistas. Sinalizações nesse sentido poderiam questionar o comércio bilateral e a aprovação do acordo com a União Europeia.
A retórica confrontacionista põe em risco, de um lado, o relacionamento político e diplomático e a cooperação econômica e comercial entre os dois parceiros. E, de outro lado, o futuro do Mercosul.
O processo de integração sub-regional foi reforçado nas últimas reuniões presidenciais por medidas de modernização, enxugamento da burocracia e negociação de acordos comerciais com parceiros extra-zona. Na reunião presidencial do dia 4 de dezembro, encerrando a presidência brasileira, todos apoiaram o fortalecimento do Mercosul, e a sugestão de redução da Tarifa Externa Comum, sem acordo, ficou para 2020.
A Argentina e o Brasil têm, no âmbito do Mercosul, interesses comerciais importantes a preservar. O mercado brasileiro é fundamental para as exportações argentinas, que ajudarão na recuperação da economia, junto com políticas econômicas voltadas para a estabilização que o novo governo vier a tomar. Quanto ao setor privado brasileiro, o mercado argentino é importante para a indústria automobilística e a linha branca. A Fiesp recentemente emitiu nota a favor do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser resolvidos de maneira consensual entre os países membros.
A diplomacia parlamentar do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quebrou o gelo e propiciou encontro com Alberto Fernández, que deveria assumir a Presidência no dia 10. Vozes moderadas do Itamaraty preferem aguardar as definições das novas autoridades argentinas e, depois de informados sobre a nova realidade, buscar consultas bilaterais em nível técnico. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Para tanto, Brasília deveria deixar de lado divisões ideológicas e mesmo provocações políticas, como os gestos em relação ao ex-presidente Lula, e manter a “paciência estratégica”.
O bom senso começa a prevalecer e declarações mais moderadas apontam para uma distensão retórica.
Ao longo da história, em todos os momentos de tensão entre os dois países, as crises foram superadas pela ação pragmática da nossa diplomacia, que sempre levou em conta interesses concretos. Essa lição do passado pode ser útil quando a Argentina e o Brasil atravessam mais um momento delicado na relação bilateral.
O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro não poderá deixar de levar em conta. Diferenças ideológicas não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países.
Como disse Saenz Peña, ao superar a crise no início do século passado, “tudo nos une e nada nos separa”. Que suas palavras nos sirvam agora de exemplo. E que prevaleça o que é do interesse nacional dos dois países.
El País: Presidentes do Mercosul pedem mais democracia, e Bolsonaro faz piada sobre golpe
Acordo do bloco eleva a 1.000 dólares o permitido em compras em viagens entre os sócios. Brasileiro cobra abertura comercial em recado a futuro Governo argentino
Ante uma América Latina em efervescência nas ruas e com Chile e Bolívia sacudidos por protesto e crise, os presidentes do Mercosul decidiram enfatizar a defesa da democracia no comunicado conjunto que encerrou a cúpula do bloco em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, nesta quinta-feira. Num grupo que vive sua própria turbulência interna, com as divergências ideológicas entre o futuro Governo esquerdista argentino e o ultradireitista Jair Bolsonaro, coube à vice-presidenta uruguaia, a centro-esquerdista Lucía Topolansky, fazer o discurso mais enfático. “O Mercosul não é um paraíso nem uma ilha da fantasia e esta reunião se realiza em um contexto regional particularmente preocupante. Já não se trata de um único país com crise institucional, política e econômica e social. São vários os países da região sacudidos por protestos sociais, crises políticas, conflitos institucionais e até golpes de Estado”, disse a também mulher de José Mujica, que representou o Uruguai no encontro porque o mandatário Tabaré Vázquez está doente.
O chamado de Topolansky, que ao contrário dos colegas chamou de golpe a queda de Evo Morales na Bolívia, marcou uma cúpula sui generis, de despedida. Na próxima reunião dos presidentes do Mercosul, metade de seus representantes será diferente. Sairão o direitista Maurcio Macri e o esquerdista Vázquez, para a chegada de seus opositores Alberto Fernandez e Luis Lacalle Pou, respectivamente. No discurso, a vice-presidenta do Uruguai ressaltou a troca de comando no seu país e tentou enviar uma mensagem conciliatória em direção ao futuro, cobrando a necessidade de intensificar o diálogo entre os que pensam diferente.
Publicamente, os discursos de seus colegas foi na mesma direção. Bolsonaro afirmou que “a defesa de democracia também é um pilar essencial ao Mercosul”. Já Macri, que entrega o cargo a Fernández na terça-feira que vem, destacou que seu país tem “compromisso com a democracia, com a liberdade e com os direitos humanos”. Enquanto o paraguaio Mario Abdo Benítez Benítez, que quase sofreu um impeachment neste ano por causa de uma crise envolvendo o Brasil e a hidrelétrica binacional de Itaipu, cobrou maior participação popular. “Temos o grande compromisso de revigorar nossas democracias. Melhorar nossa democracia com mais democracia e não com anarquia”. Ao lado deles, representantes de Chile e Bolívia, países associados ao bloco. A Venezuela, submersa na crise e na deriva autoritária de Nicolás Maduro, está suspensa do Mercosul.
Já fora dos holofotes oficiais, coube a Jair Bolsonaro fazer uma brincadeira fora de tom, após transmitir o cargo de presidente pro-tempore do bloco ao colega paraguaio. Num momento em que países da região enfrentam convulsões sociais e quando integrantes de seu Governo e aliados mencionam atos da ditadura como o AI-5, o brasileiro disse: “Quero continuar presidente, não dá pra dar um golpe, não? Tudo quando eles perdem dizem que é golpe. É impressionante, né?”, e entregou o martelo que simboliza a presidência do bloco ao colega paraguaio. Benítez sorriu.
Cobrança de Bolsonaro e futuro
O encontro também foi marcado pela insistência do Brasil na agenda de liberalização do comércio e da queda de tarifas, uma bandeira que terá de ser negociada com o argentino Alberto Fenández, que já explicitou suas ressalvas ao acordo do Mercosul com a União Europeia, ainda pendente de ratificação. Ao longo do ano, Bolsonaro e Macri tentaram reduzir ou revisar a tarifa externa comum, que trata de impostos para a comercialização de produtos de fora do bloco, mas não tiveram êxito. Nesta quinta-feira, ambos usaram o encontro da despedida para ressaltar a importância de retomar esse tema nas próximas negociações. "A taxação excessiva à competitividade é prejudicial a quem produz. O Brasil confia na abertura comercial como ferramenta de desenvolvimento, e insiste na necessidade de reduzir ou revisar a TEC”, disse o brasileiro.
Os quatro representantes do Mercosul assinaram oito acordos que tratam da facilitação do comércio, de cooperação policial, da possibilidade de uso de serviços públicos por moradores de cidades fronteiriças e sobre o reconhecimento de assinaturas digitais nos tratados comerciais. Na ocasião, ainda concordaram em aumentar de 500 para 1.000 dólares o limite de isenção de bagagem acompanhada em viagens aéreas e marítimas.
Vinicius Torres Freire: Mercosul está doente, mas notícias de morte ainda são muito exageradas
Governo quer acordos e comércio mais livre, mas não quer nem pode explodir o bloco
O governo quer apressar acordos comerciais com Estados Unidos e Japão. Quer tirar o Mercosul da “estagnação”. Isto é, apressar a integração econômica do bloco e facilitar tratados com outras partes, países e blocos.
Isto posto, as notícias sobre um grande corte de impostos de importação e a morte do Mercosul são exageradas. O Brasil não pode explodir o bloco, por motivos jurídicos, políticos e econômicos —até pode, mas seria uma besteira desastrosa. Por fim, o Mercosul não é apenas comércio.
Qual então o motivo do zunzum sobre tarifas e de rompimento, além dos ruídos provocados pelas declarações de Jair Bolsonaro sobre a Argentina?
Há de fato grande animação com a perspectiva de um tratado com os EUA. Tanta que uma baliza do calendário desse acordo é o vencimento da “Trade Promotion Authority” (TPA) do presidente americano, em julho de 2021.
Na vigência da TPA, também conhecido como “fast track”, um acordo comercial negociado pelo presidente dos EUA tem sua tramitação no Congresso facilitada e apressada. Fica menos difícil fechar um acordo.
Vai rolar? Sabe-se lá. Um ano e meio parece um prazo impossível de curto, ainda mais porque um tratado de comércio, com os EUA, em si complexo, exigiria a solução de pendências como uniformização regulatória e os desacordos sobre propriedade intelectual, prioridade americana, como se tem notado.
Para piorar, 2020 é ano de eleição presidencial nos EUA, talvez ainda ano de impeachment.
Sendo tal a ambição, o governo precisaria da concordância de seus parceiros do Mercosul ou a modificação do tratado a fim de avançar em negociações comerciais.
O bloco é uma união aduaneira (grosso modo, tem as mesmas tarifas e normas de importação de produtos de países “de fora”), embora imperfeita. Sem acordo de revisão da tarifa comum, seria necessária a revisão do Mercosul.
Talvez, então, o Mercosul passasse a ser uma zona de livre-comércio.
O comércio ainda seria livre entre os países do bloco, que no entanto ficariam também livres para fixar tarifas e regras de intercâmbio com países “de fora”, o que cria várias complicações, além de ganhos e perdas para o Brasil, a serem colocados na balança.
Por exemplo, mercadorias teriam trânsito livre intra-bloco apenas se atendessem a um requisito de conteúdo regional mínimo (o bem teria de ser em parte produzido no bloco).
Seria necessário o controle de origem (a fim de evitar que um país do Mercosul importe mercadoria com tarifa zero, de países “de fora”, e a repasse a um vizinho que cobra tarifa maior que zero, uma burla do acordo regional). O cumprimento dessa regra de origem pode ser enrolado e caro.
Uma alternativa seria o Mercosul dar uma liberada (“waiver”) para o Brasil negociar certos acordos. Tudo está sobre a mesa de estudos e pode ir para a mesa de negociações, nível de tarifas inclusive.
Mas, caso a Argentina opte por uma retranca protecionista, o Brasil vai dizer claramente que o regime de união aduaneira não vai mais servir.
Em vez de progredir para um mercado comum, o Mercosul então regrediria uma casa. “Paciência”: a política maior será a de aumentar a inserção do país na economia mundial. Em qual ritmo, está para se ver.
A revisão de tarifas seria gradual e compatível com reformas que reduzam o custo de produzir neste país, como Paulo Guedes diz desde antes do início do governo.
Seja lá qual for o ritmo desse gradual, o governo está decidido a mudar o Mercosul.
Rubens Barbosa: Associação Mercosul e União Europeia
Acordo pode catalisar um programa que permita expandir nosso comércio exterior
Em 28 de junho, o Mercosul e a União Europeia (UE) concluíram a negociação de um ambicioso acordo de associação, que inclui três vertentes: a política, a de cooperação e a do livre-comércio. Aguarda-se a divulgação dos termos desse acordo de associação, que estabelece a maneira como se desenvolverão o diálogo político, inclusive multilateral, e a cooperação, para conhecer seu alcance e como os interesses nacionais foram tratados.
O acordo de livre-comércio – parte integral desse acordo mais amplo – pretende consolidar, em dez anos, uma parceria econômica e criar oportunidades para o crescimento sustentável nos dois lados, respeitando setores econômicos sensíveis, o meio ambiente e preservando os interesses dos consumidores. O acordo é composto por capítulos e anexos relativos aos seguintes temas: acesso tarifário ao mercado de bens (compromissos de desgravação tarifária); regras de origem; medidas sanitárias e fitossanitárias; barreiras técnicas ao comércio (anexo automotivo); defesa comercial; salvaguardas bilaterais; defesa da concorrência; facilitação de comércio e cooperação aduaneira; serviços e estabelecimento (compromissos em matéria de acesso); compras governamentais (compromissos em matéria de acesso); propriedade intelectual (indicações geográficas); integração regional; diálogos; empresas estatais; subsídios; pequenas e médias empresas; comércio e desenvolvimento sustentável; anexo de vinhos e destilados; transparência; temas institucionais, legais e horizontais; e solução de controvérsias.
Cabe ressaltar a inclusão de regras, como o princípio da precaução, para garantir segurança alimentar e preservação da Floresta Amazônica, e a de proteção do meio ambiente, mudança do clima (observância do Acordo de Paris), que precisam ser mais bem explicitadas.
Não resta dúvida sobre a importância do acordo com a UE, nosso segundo parceiro comercial, do grupo, e o primeiro em investimentos. As informações divulgadas até aqui dão uma ideia geral do arcabouço e das principais diretivas do acordo de livre-comércio entre as duas regiões, mas não permitem ainda uma análise objetiva sobre o resultado das negociações porque não foram divulgadas nem as listas de produtos e seu cronograma de redução das tarifas ao longo de dez anos, nem o small print, ou seja, os detalhes relevantes da negociação.
O acordo põe fim a um longo período de mais de 20 anos de isolamento do Mercosul e do Brasil nas negociações de acordos comerciais. Enquanto nesse período o Mercosul assinou apenas três acordos (Egito, Israel e Autoridade Palestina), segundo a OMC foram assinados mais de 250 acordos comerciais no mundo. Isolado, o Brasil perdeu espaço nos fluxos dinâmicos do comércio internacional e participa de forma menor das cadeias de valor global no intercâmbio entre empresas. Com a assinatura do acordo, na contramão do movimento global que tende ao protecionismo e às restrições ao livre-comércio, o Mercosul volta a ter visibilidade e deve acelerar as negociações com a Efta (área de livre comércio da Europa), o Canadá, a Coreia do Sul e Cingapura.
Sem a divulgação completa do acordo surgem dúvidas quanto à forma e à rapidez com que o atual governo conduzirá o processo de abertura da economia.
Para aproveitar as preferências tarifárias recebidas e para manter a participação no mercado interno, os produtos industriais deverão melhorar significativamente sua competitividade e passar a receber tratamento isonômico em relação ao produzido em outros países. Sem isso será difícil competir no mercado europeu com a importação de outras áreas.
Não se pode esperar dez anos para pôr a casa em ordem e aprovar reformas como a da Previdência, a tributária, a da estrutura tarifária interna. Faz-se necessário um amplo programa de desburocratização, de simplificação e facilitação de negócios e de melhoria na logística (portos, estradas, ferrovias) a fim de reduzir o chamado custo Brasil. Esse ônus para as empresas chega a mais de 30% e torna o produto nacional pouco competitivo. Em paralelo, um eficiente programa de inovação da parte das empresas e de políticas públicas ajudaria a modernizar a operação das companhias que produzem para o mercado doméstico e também exportam. Medidas recentes, incluída portaria sobre a possibilidade de importação com tarifa zero de produtos sem produção local (também de produtos usados), no momento da divulgação do acordo com a UE, causam insegurança e incerteza pela falta de diálogo com o setor produtivo.
Será importante que governo e setor privado atuem conjuntamente, pois é objetivo comum criar a confiança para a volta do investimento, o que traria crescimento da economia e redução do desemprego. O acordo com a UE, assim como a entrada na OCDE, forçará o governo e o setor privado a trabalharem com o Congresso Nacional para a aprovação da legislação de forma a tirar o Brasil do atraso em que se encontra, sobretudo em termos tecnológicos.
Com visão de futuro e cumprida a agenda doméstica de recuperação da competitividade, ademais da conclusão dos acordos em negociação, o próximo passo poderia ser uma aproximação maior não com os EUA, como mencionado por Jair Bolsonaro e Mauricio Macri, de difícil concretização pelas políticas de Donald Trump, mas com os países da Ásia, o polo dinâmico do comércio internacional. Seria importante sinalizar aos países-membros da Parceria Transpacífica a intenção nossa e do Mercosul de nos juntarmos ao grupo de 11 países que atualmente inclui Japão e outros sete países asiáticos, mais México, Chile e Peru.
O acordo Mercosul-UE pode ser o elemento catalisador de todo um programa interno e de negociação externa que permitirá a expansão do comércio exterior brasileiro.
*PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE)
Alberto do Amaral Júnior: Por um novo Mercosul
Proponho que integração forneça um horizonte de legitimidade para ações da diplomacia brasileira
Após quase três décadas de existência, é tempo de refletir sobre o Mercosul, preservar as conquistas acumuladas e definir o caminho da integração brasileira na América Latina, espaço prioritário para os interesses nacionais. O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, em 1991, é o produto de circunstâncias políticas, econômicas e sociais típicas das duas últimas décadas do século 20. O Mercosul assinalou a superação das disputas pela hegemonia regional entre o Brasil e a Argentina, intensificadas na década de 1970, que poderiam ter conduzido a um conflito armado entre as duas nações.
O Tratado sobre o Uso Pacífico da Energia Nuclear, de 1980, e o Acordo sobre a Utilização dos Recursos Hídricos do Rio Paraná, firmado em 1979, para finalizar a controvérsia iniciada com a construção da Usina de Itaipu, propiciaram uma promissora fase de cooperação, robustecida pela Ata do Iguaçu e complementada pelos acordos de 1986 e 1988, cruciais para consolidar relações associativas duradouras. Normalizadas as relações entre Brasília e Buenos Aires, o Uruguai e o Paraguai atenderam ao convite para comporem o Mercosul, que, apesar da denominação, aspirava a ser uma união aduaneira estruturada em torno de uma tarifa externa comum, fato muito diferente do que aconteceu com a experiência da União Europeia.
A transição para os regimes democráticos no Cone Sul, depois de anos sucessivos de autoritarismo político, propiciou condições para a comunicação e o diálogo, requisitos para que a integração viesse a prosperar. Concorreu para isso o substrato cultural comum a todos os países, elemento necessário para a formação de um repertório de significados compartilháveis.
No plano econômico, o Mercosul buscou, gradativamente, eliminar as barreiras alfandegárias e não alfandegárias, criar eficiência e encorajar as associações empresariais para competirem com maior êxito no mundo globalizado. O processo decisório organizou-se com base no consenso, na solução simplificada das controvérsias por meio da arbitragem, que ganhou densidade com o Protocolo de Olivos, de 2002. Não obstante, as principais controvérsias, como as que envolveram os setores automotivo e de eletrodomésticos, solucionaram-se em negociações diretas, mediante a diplomacia presidencial.
Efeito imediato da criação do Mercosul foi o crescimento substantivo do comércio entre Brasil e Argentina na década de 1990, somente interrompido pela desvalorização do real em 1999 e pela crise que assolou o país vizinho em 2001. No período seguinte não se logrou completar a integração macroeconômica, permaneceram as listas de produtos sensíveis não sujeitos à liberalização comercial, o governo argentino na administração Kirchner, em várias oportunidades, recorreu a medidas protecionistas e a união aduaneira não foi ainda concluída.
A celebração de acordos preferenciais em matéria tarifária, multiplicada nas últimas décadas com a crise do sistema multilateral de comércio, aliada ao imperativo de que as empresas brasileiras participem das cadeias globais de valor, criou problemas novos, com a possibilidade de afetarem o desenvolvimento do País. O Brasil não pode, unilateralmente, decidir pela participação em acordos preferenciais de comércio, hoje prerrogativa inerente do Mercosul, conforme a Decisão n.° 32, de junho de 2000. É adequado, por isso, desistir da intenção de criar uma zona aduaneira com política tarifária idêntica para outros mercados e manter, simplesmente, uma área de livre-comércio com a probabilidade de estendê-la a outros Estados do continente, sem obstáculos aos acordos preferenciais. Justificam esse ponto de vista o insignificante número de acordos comerciais até agora concluídos pelo Mercosul, em nítido contraste com outras nações latino-americanas, as notórias dificuldades de avanço das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC) e a necessidade de atender às peculiaridades do interesse brasileiro. A referida decisão, entretanto, deve ser consensual, para evitar fricções diplomáticas, e requer seja mantido o legado do Mercosul, que não se limita aos aspectos comerciais.
O Protocolo de Ushuaia, de junho de 1998, determinou que o ingresso e a permanência no Mercosul obedecerão ao pleno respeito à democracia. Esse é um vetor axiológico, que permitiu a suspensão da Venezuela, a ser conservado na hipótese de mudança para uma área de livre-comércio. Atenção especial deve merecer o parágrafo único do artigo 4.º da Constituição, segundo o qual o governo atuará para criar uma comunidade latino-americana de nações. Conferir efetividade a esse objetivo demanda atitudes concretas, muito além das proclamações altissonantes de certas lideranças regionais.
Há na América Latina um verdadeiro abismo entre a retórica de união e a prática de fragmentação entre os Estados. Autoridades nacionais assumem comportamentos que frequentemente se afastam, da realização de interesses comuns. O formalismo marcou o aparecimento de instituições que não demonstraram suficiente eficácia para tratar de problemas gerais, como evidenciou a Unasul.
Proponho, nessa linha, que a integração forneça um horizonte de legitimidade para as ações da diplomacia brasileira ao apontar, no curto e no médio prazos, o caminho a ser percorrido. Nas circunstâncias atuais, todavia, ela começaria a partir de passos menores, porém seguros, que privilegiem a infraestrutura física e energética da América do Sul, a celebração de acordos para lidar com problemas concretos, como a proteção ambiental da Amazônia e o combate aos crimes internacionais, notadamente o tráfico de drogas. Essa é uma perspectiva viável, fiel à Constituição, com clareza sobre o futuro e não desconhece as “pedras” que o caminho oferece.
*ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR É PROFESSOR DE DIREITO INTERNACIONAL DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)
El País: Macron diz que política ambiental de Bolsonaro é obstáculo para acordo com Mercosul
Presidente francês chega a Buenos Aires como porta-voz da globalização e do livre comércio. Macron também defende a luta contra o aquecimento global, entre outras coisas que Trump recusa
Emmanuel Macron se propõe como alternativa. Em Buenos Aires, tenta se tornar um líder mundial dos defensores da globalização, do livre comércio, do liberalismo e, principalmente, da luta contra o aquecimento global, tudo o que Donald Trump rejeita. E não deixa de alertar sobre o risco de que a cúpula do G-20 seja um fracasso. Antes da reunião dos principais líderes internacionais, na sexta-feira e no sábado, o clima ficou um pouco mais tenso com o anúncio, feito por Trump, de cancelar seu encontro previsto com Vladimir Putin por causa do grave atrito entre a Rússia e a Ucrânia.
Mohamed Bin Salman permanece trancado na embaixada saudita, transformada em um bunker. Macron, por outro lado, desfruta de um contundente protagonismo antes da cúpula e não deixa de apertar mãos na rua. No entanto, sua chegada, na noite de quarta-feira, foi infeliz. A vice-presidenta da Argentina, Gabriela Michetti, que deveria recebê-lo ao pé da escada do avião ao lado do embaixador francês, foi retida pela polícia em uma sala do aeroporto por supostas razões de protocolo e de segurança, e Macron encontrou apenas alguns funcionários com coletes amarelos, a roupa que agora simboliza a revolta contra ele na França. Foram as primeiras pessoas que Macron cumprimentou em sua primeira visita à Argentina. “Foi horrível, uma falha no protocolo, mas o presidente francês encarou com bom humor”, disse Michetti, que não pôde correr para a pista (sofre paraplegia por causa de um acidente) e chegou quando Macron já estava entrando em um carro rumo ao hotel.
Macron retaliou no dia seguinte. Foi cedo para a livraria Ateneo Grand Splendid, a mais famosa de Buenos Aires, para conversar com o gerente e com vários clientes sobre literatura argentina. Em seguida foi à Fundação Internacional Jorge Luis Borges e conversou com sua viúva, María Kodama. “Borges foi o meu acesso ao imaginário sul-americano”, disse, “é o homem que levou a sensibilidade argentina à universalidade”. De lá rumou à Plaza de Mayo, que percorreu a pé com a esposa entre uma pequena multidão, e entrou na Casa Rosada para realizar com Macri a primeira reunião bilateral da cúpula, seguida de um almoço em uma ilha do delta de Tigre.
Em uma entrevista ao jornal La Nación, Macron já havia anunciado sua intenção de usar a cúpula do G-20 para reunir “aqueles que não apenas querem preservar o Acordo de Paris [sobre o clima], mas ir mais longe” e advertiu sobre o risco de uma guerra comercial aberta entre Estados Unidos e China que seria “destrutiva para todos”. “Se não conseguirmos acordos concretos, nossas reuniões internacionais se tornam inúteis e até contraproducentes”, afirmou. Isso continua sendo uma possibilidade nesta cúpula, cujo sucesso ou fracasso se decidirá realmente no último minuto, durante o jantar que reunirá no sábado os presidentes dos EUA, Donald Trump, e da China, Xi Jinping. Há meses ambos estão infligindo severas sanções comerciais um ao outro.
Depois da reunião entre Macri e Macron, abundante em gestos de cordialidade, os dois concederam uma rápida entrevista coletiva em que o argentino enfatizou a necessidade de alcançar finalmente um acordo entre a União Europeia e o Mercosul, depois de duas décadas de negociações, o que o francês descartou por enquanto. Disse que lhe parecia impossível avançar agora por causa da mudança política no Brasil, que nos próximos anos será presidido pelo ultradireitista Jair Bolsonaro — a França, contudo, é um dos países com mais ressalvas ao acordo que se tenta há décadas. E recorreu a um argumento que vale também para suas discussões com Trump, com quem, disse, mantém “uma relação fácil, com acordos e desacordos”: “Eu não posso pedir aos meus empresários e aos meus trabalhadores que façam sacrifícios em nome da transição energética e da luta contra a mudança climática e, ao mesmo tempo, assinar acordos comerciais com países que não pretendem fazer o menor esforço nessa área”. É o que Macron chama de “compatibilizar os problemas do fim do mundo com os problemas do fim do mês".
Aloysio Nunes Ferreira: A reconstrução do Mercosul
Legado do governo do presidente Temer reclama continuidade, para o bem do Brasil
Há um debate na sociedade brasileira em torno da relevância do Mercado Comum do Sul (Mercosul). De fato, há pouco mais de dois anos o panorama era desolador. A letargia do bloco, evidente. Os propósitos que levaram à sua criação soavam como uma vaga lembrança, ocupados que estavam Estados-membros em utilizar o bloco para ecoar preferências ideológicas, sem conexão com os reais interesses de nossas sociedades.
Uma das maiores conquistas do governo Temer na área externa é ter colaborado para a reconstrução do Mercosul. Ao lado da Argentina, do Paraguai e do Uruguai, o Brasil trabalhou com afinco para recuperar a vocação original de um regionalismo aberto. Os resultados apareceram rapidamente, tanto no interior do bloco como em sua articulação com o restante do Hemisfério e com a economia mundial.
Um passo importante foi a remoção de quase 90% dos 78 entraves que existiam no comércio intrabloco, como aqueles que dificultavam o acesso ao mercado argentino de carne bovina e banana. Não menos digna de registro foi a assinatura do Protocolo de Contratações Públicas, que abre uma valiosa frente de negócios para as empresas e reduz custos para os governos. Já o Protocolo de Cooperação e Facilitação de Investimentos tornou o ambiente mais receptivo à atração de poupança externa. Adotamos, ainda, um plano de convergência regulatória em áreas como governo digital, governo aberto, segurança cibernética, assinatura eletrônica, direito do consumidor, pequenas e médias empresas e comércio eletrônico.
O diálogo foi destravado também com os países associados. O bloco subscreveu com a Colômbia acordo de complementação econômica que praticamente reduziu a zero as tarifas nas trocas bilaterais. Particularmente frutíferas foram as tratativas com o Chile. Formalizamos instrumentos para a liberalização das compras públicas e a facilitação de transações financeiras. Concluiremos até o final do ano um acordo de livre-comércio de segunda geração, harmonizando regulamentos e adensando os laços entre pequenas e médias empresas e em questões como propriedade intelectual e perspectiva de gênero.
Esses esforços renovaram a importância para o Brasil de um bloco que reúne 275 milhões de habitantes e representa a quinta economia do globo. Os benefícios para o setor industrial são expressivos. Mais de 90% de nossas exportações para os demais sócios no ano passado foram de bens industrializados (US$ 20,7 bilhões). Em 2017 foram para o Mercosul 18,5% de nossas exportações de manufaturas.
O bloco voltou a ser uma plataforma para uma inserção competitiva de seus membros na economia mundial. Se é verdade que teremos a partir de 2019, por causa dos acordos da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), uma área de livre-comércio de bens com a maioria dos países da América do Sul, também é verdade que ampliamos de maneira muito significativa os horizontes do Mercosul, a começar pela indispensável aproximação com a Aliança do Pacífico.
Na reunião de cúpula de Puerto Vallarta (México) foi adotado um plano de ação que prevê passos concretos em facilitação de comércio, cooperação regulatória, agenda digital e comércio inclusivo. Para aferir o potencial dessa aproximação basta lembrar que, juntos, o Mercosul e a Aliança do Pacífico respondem por 90% do produto interno bruto e dos fluxos de investimento externo direto na América Latina e no Caribe. O comércio entre os dois blocos alcançou no ano passado a cifra de US$ 35,3 bilhões, dos quais US$ 25 bilhões de transações do Brasil com a Aliança do Pacífico, um incremento de 21,4% em relação a 2016.
A abertura e a intensificação de negociações comerciais extrarregionais refletem com eloquência a reanimação do bloco. Vejamos o caso das tratativas para a assinatura de um acordo de associação com a União Europeia. Passamos da inércia dos últimos governos a um notável empreendimento negociador, que logrou concluir até o momento 12 dos 15 capítulos do acordo. Por mais árduo que seja o esforço final de dirimir diferenças em áreas como o acesso ao mercado agrícola europeu, jamais estivemos tão perto da criação de um espaço com 750 milhões de pessoas e um produto de US$ 19 trilhões.
Lançamos também negociações com parceiros importantes como Canadá, Coreia do Sul, Associação Europeia de Livre Comércio (Efta, que reúne Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein) e Cingapura. E estamos engajados em ampliar o acordo com a Índia e o escopo das tratativas com o Egito, o Líbano e a Tunísia. Estão dadas as condições para o início das negociações de um acordo com o Japão, perspectiva recentemente saudada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Federação Japonesa de Negócios (Keidanren). Ressalto a importância da aproximação com a Ásia, continente para onde, sabemos todos, se deslocou o eixo de gravidade da economia mundial. Pude constatar em visitas à região quão densa é a teia de acordos preferenciais firmados entre os asiáticos e com terceiros atores. Pleiteamos nossa entrada nesse circuito, onde estão em jogo oportunidades imensas de participação em cadeias globais de valor e de captação de investimentos.
É esse o legado do governo do presidente Michel Temer em relação ao Mercosul, que reclama continuidade para o bem do Brasil e de sua presença internacional. É por uma interação cada vez mais intensa com os vizinhos e com o mundo, e não olhando no retrovisor, que aumentaremos a eficiência e a produtividade de nossa economia, com ganhos óbvios na geração de renda e emprego. Concorremos, outrossim, para confirmar o comércio e a integração econômica como fatores de prosperidade e de bem-estar social, em contraponto a impulsos protecionistas que nada aportam a seus promotores e à comunidade internacional como um todo.
* Aloysio Nunes Ferreira é ministro das Relações Exteriores