Memória

Luiz Carlos Azedo: O principe audacioso

A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Lula

Nicolau Maquiavel, o fundador da ciência política moderna, viveu o esplendor da República Florentina (fundada em 1115), durante o governo de Lorenzo de Médice (1449 1492), antes de ser transformada num ducado hereditário pelo papa Clemente II, em 1532. Não há texto mais lido pelos políticos do que O Príncipe, sua obra-prima. A razão é simples: Maquiavel trata da conquista e da preservação do poder. Uma de suas edições mais interessantes, por exemplo, é a comentada por Napoleão Bonaparte (Ediouro), que esbanja bom humor e ironias. Nem por isso deixou de perder a guerra contra Rússia e, depois, contra os ingleses, em Waterloo, na Bélgica.

Uma das lições de Maquiavel é sobre os príncipes que chegam ao poder mais pela sorte (Fortuna) do que por suas virtudes (Virtù). Esses são os que têm mais dificuldade para se manter no poder quando as circunstâncias mudam. Parece o caso do presidente Jair Bolsonaro. Não se pode dizer que sua ascensão ao poder não teve grande preparação. Teve, sim; por anos a fio, Bolsonaro cultivou a representação política de certas corporações e grupos de interesse — militares, policiais, agentes de segurança, milicianos, grileiros e madeireiros — , além de ruralistas.

Mesmo assim, isso não seria suficiente para chegar à Presidência, embora lhe garantisse uma base de apoio muito ativa. Foi fundamental também o apoio das igrejas evangélicas, capturando o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal ameaçada pela renovação dos costumes, e de setores reacionários e conservadores da classe média tradicional, insatisfeita com a insegurança e perda de poder aquisitivo causadas, respectivamente, pela revolução tecnológica e recessão econômica. Um episódio imprevisto praticamente decidiu o rumo da campanha eleitoral de 2018: a facada que levou em Juiz de Fora. O atentado tresloucado praticamente zerou a rejeição que sofria em certos segmentos, que o demonizavam, e reforçou o sebastianismo salvacionista de quem já o considera um mito.

Havia também um cenário internacional muito favorável à eleição de Bolsonaro, com Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos e outros líderes de direita em países importantes da América Latina e da Europa. Todos surfavam a crise das democracias representativas e o aprofundamento das desigualdades provocadas pela globalização. A situação agora é completamente diferente. A pandemia de covid-19 virou tudo de pernas para o ar. Trump perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden, outras lideranças conservadoras se reposicionaram em relação à crise sanitária e às políticas econômicas ultraliberais.

Reeleição

A pandemia nos revela que Bolsonaro tem mais dificuldades para se manter no poder num cenário adverso do que teria se tivesse chegado ao governo pela Virtù. Seu governo é um fracasso sanitário e econômico. Sustenta-se pelas regras do jogo democrático e pela opção inteligente dos generais do Palácio do Planalto, que operaram a aliança com o Centrão, em favor de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), na disputa das Mesas da Câmara e do Senado, respectivamente. Também puxaram o freio de mão no confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF).

A reeleição de Bolsonaro subiu no telhado. Além da pandemia e da recessão, agora tem um adversário calejado e com sangue nos olhos: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A anulação de suas condenações pelo ministro Edson Fachin, fez de Lula uma alternativa de poder, repercutindo em todo o cenário político. O que pode mudar esse jogo é o surgimento de um príncipe audacioso, que rompa a polarização entre Bolsonaro e Lula, o que não é nada fácil. As alternativas são o governador de São Paulo, João Doria (PSDB); o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT); o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro; o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM); e o apresentador da TV Globo Luciano Huck. O problema é que isso não depende só da vontade de cada um; na democracia, quem escolhe o príncipe audacioso é o povo.

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Luiz Carlos Azedo: Isolamento ou morte

Bolsonaro não está se dando conta do tamanho do desastre que sua atitude contraria às medidas de isolamento social pode provocar

A “imprensa mequetrefe”, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), tem seu valor. “Mequetrefe” (indivíduo intrometido, dado a meter-se no que não é de sua conta; enxerido), por exemplo, fora o repórter free-lance Gareth Jones, assim tratado pelo governo soviético na década de 1930. Ele tinha 27 anos, havia entrevistado Hitler e viajou para Moscou por conta própria com o firme propósito de entrevistar Stálin. Sem acesso ao líder comunista, rumou clandestinamente para Ucrânia, intrigado com a origem dos recursos investidos na industrialização da antiga União Soviética. Descobriu a “grande fome” provocada pelas coletivizações forçadas de Stálin, presenciando até casos de canibalismo.

A história é contada no filme “Mr. Jones” — “A Sombra de Stálin”, na versão brasileira –, exibido no NOW. O roteiro se inspira no documentário “Hitler, Stalin & Mr. Jones”, levado ao ar em 2012 pela BBC. Chantageado para se calar sobre o que viu, Jones foi vítima de uma campanha de difamação, após publicar sua história na imprensa londrina. Fora desmentido por Walter Duranty, jornalista do New York Times e vencedor do Pulitzer, mais preocupado com o acesso às autoridades soviéticas do que com a realidade ao seu redor. A roteirista Andrea Chalupa inclui na trama o escritor George Orwell, autor do romance “A Revolução dos Bichos”, aproveitado o fato de que o dono da fazenda também se chama Mr. Jones. A censura em Moscou justificaria a analogia.

Holodomor é uma palavra ucraniana que significa “deixar morrer de fome”, “morrer de inanição”. Tal palavra passou a ser empregada para definir os acontecimentos que levaram à morte por fome de milhões de ucranianos entre os anos de 1931 e 1933. É óbvio que a intenção de Stálin não era essa, seu objetivo era expropriar os camponeses que haviam enriquecido nos tempos da “Nova Política Econômica” (NEP) do líder bolchevique Vladimir Lenin, que adotara o capitalismo no campo para abastecer as cidades.

As coletivizações forçadas de Stálin foram feitas para financiar a indústria pesada e preparar a União Soviética para a guerra iminente com a Alemanha, porém, resultaram numa tragédia humanitária. Estima-se de 3,3 a 6,3 milhões o número de mortos no Homolodor. Para Stálin, a morte dos camponeses ucranianos foi o efeito colateral da industrialização acelerada e do esforço de guerra contra Hitler.

Isolamento
A história de Mr. Jones não tem nada a ver com o que está acontece no Brasil? Tem, sim. Bolsonaro não está se dando conta do tamanho do desastre que sua atitude contraria às medidas de isolamento social pode provocar. Governadores e prefeitos as estão adotando para conter a expansão da pandemia. Comete um erro atrás do outro com seu negacionismo, darwinismo social e falta de empatia com as vítimas da pandemia. Não se deu conta de que deixar o novo coronavírus se reproduzir e sofrer mutações possibilita reinfecções e uma nova onda ainda mais violenta da pandemia, que está se transformando numa endemia. Não leva em conta os cálculos exponenciais dos sanitaristas sobre o aumento de casos e mortes.

Na avaliação de Bolsonaro, os óbitos são inevitáveis, o mais importante é manter a economia em pleno funcionamento. Entretanto, não é o isolamento que provoca recessão e desemprego, mas a multiplicação dos casos de covid-19, numa velocidade muito maior do que a vacinação da população. Estamos tendo um “apagão” nos hospitais, daqui a pouco teremos um “apagão” nos cemitérios. Não são apenas falta de leitos, faltam insumos e profissionais de saúde; faltarão câmaras frigoríficas.

Bolsonaro não é um desorientado, tem uma estratégia errada mesmo. Erra de conceito, ao apostar na centralidade a qualquer preço da atividade econômica; erra de método, ao desarticular o Sistema Único de Saúde (SUS), opondo o Ministério da Saúde aos governadores e prefeitos; e erra ao pregar desobediência civil às medidas sanitárias, criando um ambiente favorável para o vírus se propagar. Não leva em conta que o colapso sanitário resultará no colapso econômico, com desorganização da cadeia produtiva e crise de abastecimento. Com a velocidade atual de propagação da covid-19, somente um freio de arrumação pode evitar o desastre, ou seja, o lockdown temporário onde for preciso.

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Luiz Carlos Azedo: Como Getúlio e Perón

O PT mantém sua hegemonia nos movimentos sociais e elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, mesmo com Haddad perdendo a eleição e Lula na cadeia

Livre das condenações, que foram anuladas pelo ministro Édson Fachin, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está em vias de se lançar mais uma vez à disputa pela Presidência da República, o que faz desde 1989. Não concorreu em 2010, porque a Constituição não permite um terceiro mandato sucessivo, e em 2014, na reeleição de Dilma Rousseff, o que talvez seja o seu maior arrependimento, pois a petista não terminaria o mandato. Ao longo desse período, construiu um partido político que se envolveu em escândalos de corrupção, como o “mensalão” e o “petrolão”, mas revela grande resiliência. O PT mantém sua hegemonia nos movimentos sociais e elegeu a maior bancada na Câmara dos Deputados, mesmo com Fernando Haddad perdendo a eleição para o presidente Jair Bolsonaro. Lula estava na cadeia, não pode concorrer.

Desde a sua criação, em 1982, durante a reforma partidária protagonizada pelo presidente João Figueiredo, são quase quarenta anos de trajetória política, com o partido ocupando um espaço na sociedade brasileira que antes do golpe militar de 1964 fora dividido entre o PTB, o PCB e PSB. O PT reuniu sindicalistas, estudantes, militantes de comunidades eclesiais de base e ex-militantes de extrema-esquerda que participaram da luta armada contra o regime militar. Sua composição, ao longo dos anos, se alterou profundamente, mas a legenda continua sob comando da geração que fundou o partido.

A volta de Lula à cena eleitoral lembra o regresso à política do ex-presidente Getúlio Vargas, nas eleições de 1950, pela legenda do PTB, com apoio do PSD. O segundo governo Vargas se iniciou em 1951, com uma mudança de rumos na economia: em vez da abertura ao capital estrangeiro, uma política nacionalista, com forte intervenção do Estado na economia, marcada pela criação da Petrobras. Também criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), com o objetivo de garantir os investimentos necessários aos projetos econômicos.

A pressão popular levou Getúlio Vargas a nomear como ministro do trabalho João Goulart, o Jango, um político ligado aos meios sindicais. A principal medida tomada por Vargas no âmbito trabalhista foi o aumento de 100% do salário-mínimo, em 1954. A medida gerou oposição dos setores empresariais e de militares, liderada pelo coronel Bizarria Mamede, da Escola Superior de Guerra (ESG). O resultado da pressão foi a demissão de Jango, que mais tarde viria a ser presidente da República deposto em 1964.

O principal porta-voz da insatisfação era o jornalista Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN), que sofreu um atentado em 5 de agosto de 1954. Lacerda foi ferido na perna, mas seu guarda-costas, Rubens Florentino Vaz, major da Força Aérea, foi morto. As suspeitas envolviam o chefe da guarda pessoal de Vargas, Gregório Fortunato, o que levou os opositores a apontarem o presidente da República como mandante do atentado. A UDN e alguns setores do exército pressionavam pela saída de Vargas do poder. Sua opção foi o suicídio, realizado na manhã de 24 de agosto de 1954, com um tiro no coração. A notícia da morte do presidente, junto à publicação de sua carta testamento, encontrada ao lado do corpo, causou uma intensa comoção nacional. Seu legado político-eleitoral foi o trabalhismo.

Na Argentina

A volta de Lula também se parece com a do ex-ditador Juan Domingo Perón ao poder, em 1973, nos braços do povo, defendendo a industrialização, o controle das exportações, o Estado forte, a saúde e a educação públicas, os subsídios sociais, a neutralidade internacional e a integração política e comercial sul-americana. O peronismo é um movimento popular, democrático e nacionalista, formado por milhares de trabalhadores. É força política mais resiliente da Argentina, sobrevivendo à ditadura militar argentina (1976-1983), que depôs a então presidenta da República María Estela Martínez de Perón, que sucedera marido após ele falecer, em 1974.

O peronismo votou ao poder com Carlos Menem, que fez um governo ultra-liberal por dois mandatos, de 1989 a 1995, mas lançou a Argentina num mar de escândalos e grande recessão. Mesmo assim, a partir de 2003, por 12 anos, os Kirchnner (Néstor e a sua esposa Cristina Fernández) governaram a Argentina. O peronismo perdeu as eleições em 2015 para o neoliberal Macri, por conta de uma série de erros políticos, mas recuperou o poder através de Alberto Fernández, no fim do ano 2019. O atual presidente pouco tem a ver com os Kirchnner. Faz um governo de centro-esquerda pragmática. O Partido Justicialista é formado por peronistas de direita e de esquerda.

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Luiz Carlos Azedo: Lula livre para 2022

O fantasma petista assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia

Como dizia o maestro Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin surpreendeu o mundo político e até seus colegas de Corte ao anular todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa “interpretação técnica” do princípio do “juiz natural”. Tomou por base a jurisprudência do próprio Supremo, contra a qual se opusera quando a maioria dos ministros decidiu desmembrar os processos da Odebrecht, OAS e JBS do caso da Petrobras, remetendo-os para Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo, decisão que esvaziou a força-tarefa de Curitiba e sua própria relatoria no escândalo da Lava-Jato.

A decisão foi cirúrgica: acabou com a inelegibilidade de Lula e frustrou as expectativas de punição do ex-ministro Sérgio Moro e dos integrantes da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, cuja suspeição foi arguida pela defesa de Lula. No mundo jurídicos e nos meios políticos, a aposta era de que somente a condenação de Lula no processo do triplex de Guarujá seria anulada, por suspeição de Moro, enquanto a condenação no caso do sítio de Atibaia seria mantida, no aguardado julgamento da suspeição pela Segunda Turma do Supremo. Presidente dessa Turma, desculpem-me o trocadilho, o ministro Gilmar Mendes ficou com o voto na mão.

Para o presidente Jair Bolsonaro, seus aliados e boa parte da oposição não petista, a anulação do processo do triplex de Guarujá e a suspeição dos protagonistas da Lava-Jato seriam o cenário ideal: Lula fora da eleição e Moro desmoralizado. Fachin pôs tudo de pernas para o ar, porque liberou Lula para concorrer à Presidência da República e manteve o ex-ministro Sérgio Moro no jogo de 2022, protegendo ainda os procuradores da Lava-Jato, a investigação da qual é o relator no Supremo e que estava à beira da extinção.

Outros réus poderiam pedir anulação de seus respectivos processos, pois é disso que se trata, principalmente para os advogados que atuam na Lava-Jato e sempre questionaram os métodos heterodoxos de Moro e dos procuradores de Curitiba. Na prática, a decisão de Fachin pode garantir a presença de Lula na eleição porque uma condenação em segunda instância, no Tribunal Regional Federal de Brasília, uma Corte garantista, leva em média 6 anos; além disso, como Lula tem mais de 70 anos, o caso já estará prescrito, pois os fatos ocorreram há quase dez anos e a prescrição cai de 16 para oito anos.

Tensão institucional
No plano imediato, o principal foco de tensão é dentro do Supremo, que voltará a se dividir profundamente. Em recente decisão sobre os processos criminais, a Corte estabeleceu que nenhuma decisão monocrática pode ser reformada por outro ministro ou pelas Turmas, no caso dos processos criminais, somente pelo plenário da Corte. O Ministério Público Federal (MPF) já anunciou que recorrerá da decisão, e não será surpresa se a defesa de Lula insistir na suspeição de Moro e dos procuradores, sendo acolhida pelo ministro Gilmar Mendes, na reunião de hoje da Segunda Turma.

O segundo foco é o Congresso, principalmente a Câmara, cujo presidente, Arthur Lira lidera as articulações para acabar com a Lava-Jato. O Centrão e maioria das bancadas do PT e do PSDB apostavam na suspeição de Moro. O terceiro, o Palácio do Planalto, muito mais interessado no fim da Lava-Jato e na inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A retórica de Bolsonaro sobre a decisão mira o desgaste do Supremo junto aos militares e uma parte da opinião pública. A candidatura de Lula já está precificada. No esquema binário da narrativa bolsonarista, a esquerda é o inimigo principal. O fantasma de Lula assombra os eleitores que elegeram Bolsonaro e dele estavam se afastando, por causa de seus desatinos na pandemia e outras questões nas quais confronta os grandes consensos. Com Lula livre, o discurso golpista de Bolsonaro ganha uma dimensão eleitoral antecipada, com sua cantilena contra a urna eletrônica. Ou seja, quer ganhar no voto ou no grito.

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Luiz Carlos Azedo: As tardes com Huck

O apresentador já é uma personalidade política, mas precisa escolher o eixo de sua atuaçao: o mundo do entretenimento ou a disputa pelo poder

O filme Uma noite em Miami (One Night in Miami) narra o encontro secreto de Malcolm X com o campeão de boxe Cassius Clay, o rei do soul, Sam Cooke, e o astro do futebol americano Jim Brow, na noite de 24 de fevereiro de 1964. Dirigido por Regina King, é uma adaptação da peça de Kemp Powers, lançada em 2013, na qual o líder negro convence seus amigos a ultrapassarem a condição de celebridades e ingressarem como ativistas na luta pela igualdade de direitos para os afro-americanos. Clay comemorava a conquista do título mundial dos pesos-pesados, aos 22 anos de idade, com os três grandes amigos, num modesto quarto de motel na Flórida, que aceitava negros.

Clay (Eli Goree) lutara contra um adversário branco, debaixo de vaias e xingamentos; Cooke (Leslie Odom Jr.) acabara de ser hostilizado pela plateia branca na célebre boate Copacabana; e Brown (Aldis Hodge) fora humilhado por um torcedor rico e fanático do seu time, o Cleveland. Esse é o contexto dos tensos diálogos do filme, que chegam à beira do confronto físico. Há grandes diferenças de temperamento, modo de vida e visão de mundo entre eles, mas a conversa foi um catalizador da ruptura que fizeram em suas vidas.

Na mira do FBI de J. Edgar Hoover e decepcionado com o líder muçulmano Elijah Muhammad, Malcolm fundou a Unidade Afro-Americana, grupo não religioso e não sectário. Em 21 de fevereiro de 1965, na sede de sua organização, receberia 16 tiros, a maioria no coração. Foi assassinado aos 39 anos, diante de sua esposa, Betty, que estava grávida, e de suas quatro filhas. Cassius Clay anunciaria a adoção do islamismo e seu novo nome, Muhammad Ali; recusou-se a lutar na Guerra do Vietnã e acabou perdendo o título. Sam Cooke viria a compor e gravar a canção A Change is Gonna Come, um hino da luta pelos direitos civis. Jim Brown trocaria o futebol americano pelo cinema (Os Doze Condenados); protagonizou, com Raquel Welch, a tórrida cena de amor interracial do filme 100 Rifles, que escandalizou os segregacionistas.

Escolha difícil
E as tardes de Luciano Huck? Como os personagens do filme, o apresentador da TV Globo está diante de uma escolha difícil. Desde 2018, alimenta o sonho de ser presidente da República, em razão de sua tomada de consciência sobre as desigualdades sociais no Brasil e a ambição de liderar um projeto político novo, sob influência de economistas e políticos de suas relações pessoais. Como comunicador, bateu no teto com o Caldeirão, apesar dos benefícios materiais que o programa lhe proporciona.

Eis que a TV Globo anuncia a aposentadoria do apresentador Fausto Silva e a intenção de mudar a sua programação nas tardes de domingo. No cast da emissora, o primeiro na linha de sucessão é Huck. Nos bastidores, comenta-se que teria recebido uma proposta de R$ 3 milhões de luvas e salário mensal de R$ 500 mil para assumir o lugar de Faustão, ao mesmo tempo em que a apresentadora Angélica, sua esposa, seria escalada para comandar o Caldeirão nos sábados. É uma proposta tentadora. Como a política deixou de ser monopólio dos políticos, militares e diplomatas, como cidadão, Huck pode ter o mesmo protagonismo político que personalidades do mundo do entretenimento hoje têm nos Estados Unidos.

A outra opção é mais complexa, significa descer do telhado pelo outro lado e anunciar a intenção de disputar a Presidência da República; mesmo sem a certeza da vitória, se engajar. Na construção de uma nova alternativa de poder. O cavalo desta vez não passará arreado. A campanha eleitoral foi antecipada, já são três candidatos com os pés na estrada: o presidente Bolsonaro (sem partido), Fernando Haddad (PT) e Ciro Gomes (PDT). O ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM) e o ex-ministro da Justiça Sergio Moro (sem partido) também estão no jogo. Nesse cenário, a ambiguidade é desgastante para o apresentador. Huck já é uma personalidade política, sem dissimulação, mas precisa escolher o eixo de sua atuação na sociedade: o mundo do entretenimento ou a disputa pelo poder.

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Jamil Chade: 'Presidente, vamos chorar para que nossos mortos sejam lembrados como suas vítimas'

Choramos para construir um futuro. E, evidentemente, são essas lágrimas que o senhor mais teme

Senhor presidente,

Uma vez mais, suas palavras sobre a pandemia ecoaram pelo mundo. Dos corredores da ONU às padarias de bairro onde sabem que sou brasileiro, vieram me comentar e, no fundo, me confortar.

Estou cada vez mais convencido de que existe um enorme risco de que, ao final desta pandemia, o Brasil se transforme no “misterioso país das lágrimas”. Acumuladas na alma de cada família, nas estatísticas dos jornais e no espírito de uma nação, as mortes registradas nos últimos meses tiraram um país de seu eixo, já frágil e já tão acostumado a enterrar seus filhos.

MAIS INFORMAÇÕES

O senhor bem sabe que nada disso era inevitável. O destino do vírus estava em nossas mãos, como mostraram vários países do mundo que, mesmo sem uma vacina, o sufocaram. Já vocês preferiram sufocar nossos sonhos.

Existe uma percepção de que somos filhos de uma pátria, uma noção complemente equivocada alimentada por perigosos nacionalistas que formam a base da ala mais radical de seu governo. Uma nação nasce de seus filhos, é determinada por sua coragem, moldada a partir de sua diversidade. Seu futuro depende daqueles que choram. Jamais daqueles que se acomodam.

No fundo, as lágrimas mais sinceras são da parcela mais otimista da sociedade. Do grupo que acredita que o mundo pode ― e deve ser melhor.

Presidente,

Quando seu líder máximo manda uma sociedade engolir o choro, sua mensagem é clara: parem de lutar. Aceitem o que existe. As lágrimas sabem que exigir que elas cessem é, por si só, um gesto autoritário.

Provavelmente o senhor saiba que chorar não é um sinal de fraqueza. Mas sim de indignação, de recusa em aceitar um destino.

Escrevo essa carta apenas para informar que vamos chorar até construir algo novo. Vamos chorar para permitir que cada uma das pessoas amadas que nos deixou seja lembrada como uma vítima de suas escolhas políticas. E não apenas como vítima de um vírus.

Essas lágrimas não serão engolidas. Por seu arco-íris que formam, elas são expressões de uma determinação para colocar fim a uma noite escura.

Não choramos pelo passado. Não o resgataremos. Tampouco choramos por uma vontade de vingança.

Choramos para construir um futuro. E, evidentemente, são essas lágrimas que o senhor mais teme.

Saudações democráticas

*Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


Luiz Carlos Azedo: O Brasil está de luto

Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual os mais fortes sobrevivem

Com mais 1.699 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas e 75.102 novos casos, o Brasil está de luto fechado. Já são 260 mil famílias que choram pela perda de entes queridos, mas o presidente Jair Bolsonaro conseguiu, ontem, bater o recorde da falta de respeito e empatia com as vítimas da pandemia do novo coronavírus, que já tem 10.793.732 de casos confirmados: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, disse, ao criticar medidas de restrição de circulação da população em meio a recorde de mortes pela doença.

Bolsonaro está irritado com governadores, que cobram mais empenho do governo na compra das vacinas, liberação de verbas para mais leitos e o endosso do Ministério da Saúde às recomendações dos seus sanitaristas. Os governadores, em documento encaminhado ao governo, alegam que estão no “limite” e que a vacinação em massa “é a alternativa que se afigura como a mais recomendável e, provavelmente, a única capaz de deter a pandemia”.

“Neste momento, há novas, reais e importantes justificativas para que o Brasil obtenha, com celeridade, novas remessas de imunizantes, a principal delas é a chegada e a rápida disseminação, já no estágio de transmissão comunitária, da nova variante P1, que tem se revelado ainda mais letal, prejudicando os esforços para proteger a vida de nossas cidadãs e cidadãos, bem como de suas famílias”, afirmam no documento.

Os governadores destacam que as preocupações das autoridades sanitárias de todo o mundo estão voltadas para o Brasil, por causa das nossas dimensões continentais e do grande número de casos, mas, sobretudo, devido à falta de controle sobre a expansão da pandemia e suas novas variantes, que podem pôr em risco todo o esforço feito para imunizar no mundo, se não houver igual empenho de vacinação no Brasil. “O mundo acompanha com preocupação o rápido avanço do contágio por essa variante no Brasil, o que torna o bloqueio da disseminação desse tipo de vírus matéria de interesse de diversas nações, inclusive porque outras variantes podem dela advir”, afirmam, com toda a razão.

Darwinismo social
O que está acontecendo no Brasil equivale à tragédia da Aids na África do Sul, que tem 5,7 milhões de infectados pela doença, ou seja, 11,8% dos 49,2 milhões de habitantes. A Aids virou uma endemia por causa do negativismo do ex-presidente Thabo Mvuyelwa Mbeki, que sustentava a tese de que era causada por falta de vitaminas e recomendava tratamento com ervas medicinais dos sacerdotes tribais. Não é uma interpretação muito diferente das ideias do presidente Jair Bolsonaro, que sabota todos os esforços feitos pelas demais autoridades para combater a pandemia.

O encontro de um vírus (que não é considerado um ser vivo) com uma bactéria é considerado pelos biólogos um dos fenômenos da criação. Esse encontro é que permite a reprodução do vírus e também possibilita mutações genéticas. A mutação E484K encontrada na variante brasileira P1 é uma das alterações já identificada no novo coronavírus: o Sars-Cov-2. Essa mutação também está presente em outras duas variantes que causam preocupação pelo mundo: a B.1.1.7, identificada no Reino Unido, e B.1.351, na África do Sul. Suspeita-se de que ela ajude a se tornar mais transmissível e enfraqueça os anticorpos humanos contra o vírus.

Pesquisadores da Fiocruz identificaram a E484K no Ceará, no Paraná, em Santa Catarina, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em Pernambuco, em Alagoas e em Minas Gerais. No Paraná e no Ceará, o índice de prevalência da mutação superou os 70% nas amostras, o que é muito grave. Nada disso, porém, importa para o presidente Bolsonaro. Seu comportamento é o que pode ser chamado de darwinismo social, segundo o qual, os menos aptos deixariam de existir, porque não são capazes de se adaptar e acompanhar a linha evolutiva. Assim, entrariam em extinção, acompanhando o princípio de seleção natural.

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Luiz Carlos Azedo: A política como negócio

O senador Flávio Bolsonaro acaba de comprar uma casa no Setor de Mansões Dom Bosco, um dos mais valorizados da capital, no valor de R$ 5,7 milhões

Max Weber, em sua antológica palestra A política como vocação, divide os políticos em duas categorias: os que vivem para a política e os que vivem da política. No primeiro caso, estão aqueles que veem a política como bem comum; no segundo, como negócio. As duas espécies se digladiam na democracia, faz parte do jogo na ordem capitalista. Mas no Brasil é diferente: todos dizem defender o bem comum, ninguém assume que está na política para defender interesses empresariais. Como temos um pé no Oriente, em razão de nossas raízes ibéricas, muitos estão na política para formar patrimônio.

Parece o caso do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), que acaba de comprar uma casa no Setor de Mansões Dom Bosco, um dos mais valorizados da capital, no valor de R$ 5,7 milhões. O imóvel tem área total de 2,4 mil metros quadrados. O registro em cartório da aquisição do imóvel revela que houve o pagamento de R$ 2,87 milhões à vista, além do valor da parcela do financiamento, entre R$ 18,7 mil e R$ 21,5 mil. Para justificar a operação, o filho primogênito do presidente Jair Bolsonaro disse que vendeu um apartamento na Barra da Tijuca (RJ) e a franquia de sua loja de chocolates para dar a entrada no imóvel na capital federal.

Um blogueiro gozador, rapidamente, fez as contas, comparando o valor do imóvel com a quantidade de Nhá Benta (merengue coberto por chocolate), equivalentes aos R$ 6 milhões: 182.370 caixas de 90 gramas, de acordo com os preços da loja virtual da Kopenhagen. O financiamento obtido no Banco de Brasília (BRB) para aquisição do imóvel foi bem camarada. Pelas regras do sistema financeiro habitacional, a prestação não pode ultrapassar 30% da renda bruta. Do valor total do imóvel, R$ 3,1 milhões foram financiados, em 360 parcelas, a uma taxa de juros de balcão efetivos de 4,85% ao ano. No cartório em Brazlândia, onde foi registrada a operação de compra e venda, consta que Flávio Bolsonaro tem renda de R$ 28,3 mil e sua esposa, R$ 8,6 mil.

A notícia da compra do imóvel pegou de surpresa os aliados do presidente Jair Bolsonaro, pois o senador tem direito a apartamento funcional. Logo, repercutiu nas redes sociais, porque o imóvel havia sido anunciado por corretores e havia abundância de imagens em vídeo da mansão na internet (https://youtu.be/TrzNkaBgYE4). Recentemente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por 4 votos a 1, havia anulado a quebra de sigilo das contas do senador, que é investigado no escândalo das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, supostamente, por ter movimentado cerca de R$ 2,3 milhões. De acordo com a denúncia do Ministério Público, o dinheiro teria sido lavado com aplicação em uma loja de chocolates no Rio, da qual o senador era sócio, e em imóveis.

Preconceitos

Para o senso comum, as pessoas ricas poderiam se dedicar inteiramente à política de forma genuína, pois não teriam interesses econômicos nela. As pessoas que vivem da política seriam aquelas que veem na política sua profissão. Essa é uma visão preconceituosa, que não é bem o que Max Weber quis dizer, porque dá margem à ideia de que pessoas ricas estariam mais habilitadas a entrar na política, pois não roubariam, enquanto uma pessoa pobre não poderia fazer o mesmo, pois veria na política um meio de garantir sua vida financeira.

O que Weber quis dizer é que políticos que vivem para a política atuam em defesa do bem comum, não importa se são ricos ou pobres. A remuneração de um parlamentar existe exatamente para permitir que um assalariado possa exercer seu mandato sem pôr em risco a sobrevivência de sua família. De igual maneira, há pessoas que entram na política não porque vão ganhar um alto salário como deputado, por exemplo, mas, sim, porque esse cargo lhe permitirá participar da cúpula do poder, com a possibilidade de tomar decisões que favoreçam um grupo específico ao qual pertence ou ao qual deva favores, o que é legítimo na democracia. Mas também há inúmeros casos de homens ricos que estão na política para fazer seus próprios negócios e que se notabilizaram como políticos corruptos.

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Luiz Carlos Azedo: A tragédia do negacionismo

Bolsonaro é paranoico, vê conspiração em tudo. Acredita que os defensores do lockdown querem desestabilizar seu governo e aprovar o seu impeachment

O presidente Jair Bolsonaro bateu no teto do negacionismo quando atacou governadores e prefeitos que adotaram medidas de lockdown. Em Fortaleza, durante evento que causou aglomeração e ao qual compareceu sem máscara, na sexta-feira, disse: “Agora, o que o povo mais pede, e eu tenho visto, em especial no Ceará, é trabalhar. Essa politicalha do ‘fique em casa, a economia a gente vê depois’, não deu certo e não vai dar certo”. Aproveitou para ameaçar os governadores que não seguirem a sua cartilha: “O auxílio emergencial vem por mais alguns meses e, daqui para a frente, o governador que fechar seu estado, o governador que destrói emprego, ele é quem deve bancar o auxílio emergencial”.

Mirou, sobretudo, o governador cearense Camilo Santana (PT), que havia endurecido as medidas de distanciamento social. Fortaleza está com uma taxa de ocupação de leitos de UTI de 94%, sendo uma das capitais em risco de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS). As demais são: Porto Velho (RO), 100%; Florianópolis (SC), 96,2%; Manaus (AM), 94,6%; Goiânia (GO), 94,4%; Teresina (PI), 93%; e Curitiba (PR), 90,0%. O país já contabilizou 10,4 milhões de casos e 252 mil óbitos por covid-19 desde o início da pandemia. Na véspera das declarações, Bolsonaro havia questionado o uso de máscaras, enquanto o país batia o recorde de mortos num único dia: 1.582.

Psicologicamente, negacionismo é uma forma de escapar de uma verdade desconfortável. Na ciência, o negacionismo é definido como a rejeição dos conceitos básicos, incontestáveis e apoiados por consenso científico a favor de ideias radicais e controversas. Costuma se fortalecer quando a sociedade se depara com situações de instabilidade, como essa crise sanitária, ou diante de algo nunca presenciado, um vírus novo e letal, como é o caso. O negacionismo apela para teorias e discursos conspiratórios, que acabam favorecendo disputas ideológicas, interesses políticos e religiosos. Bolsonaro é paranoico, vê conspiração em tudo. Acredita que os defensores do lockdown (medida para conter a velocidade de propagação do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde) querem desestabilizar seu governo e aprovar o seu impeachment.

Vacinas
No governo, além de Bolsonaro, os ministros de Relações Exteriores, Ernesto Araujo; do Meio Ambiente, Ricardo Salles; e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em suas respectivas pastas, estão na linha de frente do negacionismo. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, também fez parte desse time. Sua responsabilidade no colapso do SUS em Manaus, por falta de oxigênio, está sendo investigada, assim como no atraso da compra de vacinas, inclusive, as que estão sendo produzidas no Brasil, como a CoronaVac (Instituto Butantan); a Oxford (Fiocruz) e a Sputnik V (União Química, privada). Agora, corre atrás das vacinas da Pfizer, que negocia desde agosto e refugou em setembro passado.

O negacionismo é insidioso e perigoso, pois atua no campo ideológico para influenciar a opinião pública e legitimar governantes com posições anticientíficas. Com isso, pode resultar em tragédias humanitárias. É o caso da epidemia de Aids na África do Sul, que chegou a registrar 5,4 milhões infectados, para uma população de 48 milhões de pessoas. O ex-presidente sul-africano Thabo Mbeki (1999-2008) ficou para a história como o principal negacionista do HIV/Sida, que mandou tratar com erva, o que custou a vida de mais de 300 mil pessoas. Há quem exija que seja julgado por crimes contra a humanidade.

A negligência no combate à pandemia, a negação das vacinas e a insistência na promoção de tratamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19, pelo presidente Jair Bolsonaro, porém, provocou ampla mobilização de médicos, pesquisadores e entidades científicas, que atuam nos meios de comunicação e nas redes sociais para combater a fake news e explicar à população o que realmente está acontecendo. O negacionismo irresponsável é tanto que até hoje o governo não fez uma campanha oficial de esclarecimento e incentivo à vacinação, que é a última fronteira do combate ao negacionismo em relação à pandemia da covid-19.

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Luiz Carlos Azedo: Pazuello descobre a pólvora

O SUS pode entrar em colapso, como aconteceu em Manaus, em Santa Catarina, Tocantins, Rondônia, Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará, Paraíba, Maranhão e Sergipe

Há um ano, bem no começo da pandemia da covid-19, se discutia se era uma “gripezinha”, como disse o presidente Jair Bolsonaro, ou uma grave crise sanitária. O então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, insistia que era preciso adotar a política de distanciamento social, para achatar a curva de contaminação e evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto se esperava uma vacina eficaz contra o novo coronavírus. Acabou demitido por contrariar Bolsonaro. O oncologista Nelson Teich, que o substituiu, pediu demissão rapidinho. Bem-mandado, o general de divisão Henrique Pazuello foi nomeado para o cargo.

Naquela ocasião, já se sabia que a pandemia cresceria exponencialmente. Entretanto, incentivados por Bolsonaro, os negacionistas embarcaram na canoa furada da gripezinha, nem mesmo máscaras usavam, e colocavam em dúvida a eficácia das vacinas, que, finalmente, estão chegando, mas em quantidade menor do que a necessária para conter a expansão da doença. Desprezaram o conhecimento e a experiência de sanitaristas, infectologistas e cientistas. O primeiro escalão do Ministério da Saúde foi substituído por um grupo de militares neófitos em saúde pública.

Bolsonaro agiu como aquele rei persa que apostou e perdeu a partida de xadrez. Como recompensa, o seu vizir pediu um grão de trigo no primeiro quadrado do tabuleiro, dois no segundo, quatro no terceiro e assim por diante, dobrando sempre as quantidades. O rei achou a recompensa insignificante, oferecendo joias, odaliscas, palácios, mas o vizir recusou. Só desejava os montes de trigo. Na hora de pagar a aposta, porém, o rei teve uma surpresa muito desagradável. O número de grãos começou pequeno: 1, 2, 4, 8, 16, 32 (…) e foi crescendo, 128, 256, 512, 1.024… Quando chegou à última das 64 casas do tabuleiro, era de quase 18,5 quintilhões.

A história foi contada pelo físico norte-americano Carl Sagan (Bilhões e bilhões: reflexões sobre vida e morte, Companhia das Letras, 1998) para chamar a atenção para a importância de se levar em conta os números exponenciais na análise da escala dos mais variados assuntos. É o caso da pandemia de coronavírus, que pode virar uma endemia, se a política de vacinação do governo continuar errática, para não dizer toda errada, como está sendo realizada.

Colapso
Na quarta-feira, chegamos a 250 mil óbitos, com média móvel recorde de 1.129 mortes por dia. Estudo da Fiocruz referente à Semana Epidemiológica 7 de 2021 (período de 14 a 20 de fevereiro) mostra que oito dos 27 estados apresentam sinal de crescimento de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e da covid-19 (95,4% do total de testes positivos), enquanto seis apresentaram tendência de queda. Entretanto, todas as regiões do país estão em risco. Ceará, Santa Catarina e Tocantins apresentam sinal forte (probabilidade maior que 95%) de crescimento na tendência de longo prazo (seis meses). Bahia, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul mostram sinal moderado (probabilidade maior que 75%). Ceará e Paraíba acumulam cerca de seis semanas consecutivas de crescimento, enquanto Tocantins apresenta cinco semanas. Alagoas, Goiás, Maranhão e Rondônia, embora estejam com sinal de estabilidade na tendência de longo prazo, vêm de longo período de crescimento.

Ontem, o ministro Pazuello anunciou que o governo tem três estratégias para enfrentar a pandemia: atendimento imediato em unidades básicas de saúde, estruturação de leitos de UTI e de enfermaria e impulsionamento da vacinação. Ou seja, descobriu a pólvora. Admitiu que a nova cepa do coronavírus, que surgiu em Manaus, já está em várias regiões do país. Citou aumento da contaminação no Pará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, em Goiás, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Na verdade, os sinais de que o SUS pode entrar em colapso, como aconteceu em Manaus, vêm da escassez de leitos em Santa Catarina, Tocantins, Rondônia, Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará, Paraíba, Maranhão e Sergipe.

Quando Pazuello fala em pronto atendimento nas unidades básicas de saúde, não fica claro qual é o tipo de tratamento. Segundo a revista científica New England Journal of Medicine, a pesquisa Solidarity (Solidariedade) mostrou que medicamentos como hidroxicloroquina, remdesivir, lopinavir e interferon tiveram pouco ou nenhum efeito em pacientes hospitalizados com o novo coronavírus. A pesquisa é organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, no Brasil, conduzida pela Fiocruz. Esse coquetel faz parte do chamado “tratamento precoce”, que era recomendado pelo Ministério da Saúde e foi desaconselhado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).

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Luiz Carlos Azedo: Avante para o passado

Há uma evidente contradição entre a retórica do ministro Paulo Guedes e as ideias positivistas e nacionalistas que caracterizam a mentalidade dos militares brasileiros

Onde foi que o Brasil perdeu o rumo? Essa pergunta tem muitas respostas, que variam de acordo com a ideologia do interlocutor. Mas, se olharmos para o passado, veremos na morte do presidente Tancredo, eleito pelo colégio eleitoral em 1985, depois de grandes mobilizações populares em seu apoio, o momento em que um projeto liberal com ampla base política e social foi abortado. O 21 de abril daquele ano, contraditoriamente, foi a morte do projeto liberal. Nunca mais houve no país uma correlação de forças como aquela, que lhe desse sustentação para fazer coincidir a democratização do país com a ultrapassagem do modelo nacional desenvolvimentista, que havia se esgotado.

Vice eleito, José Sarney, oriundo da Arena, ao assumir a Presidência, se viu contingenciado pelo liberalismo social de Ulysses Guimarães e por forças políticas social-democratas, trabalhistas, socialistas e comunistas, à sua esquerda, que derrotaram o Centrão na Constituinte. A sucessão de planos econômicos de seu governo, a começar pelo Plano Cruzado, que resultou na hiperinflação, foi resultado direto do experimentalismo econômico desenvolvimentista, que buscava alternativas para recidiva de um modelo econômico que já tinha dado o que tinha que dar. Em que pese suas críticas ao caráter social da Constituição de 1988, o máximo de liberalismo a que o governo Sarney chegou foi a política “feijão com arroz” do seu último ministro da Fazenda, Maílson da Nobrega.

Outra oportunidade para a agenda liberal foi a eleição de Fernando Collor de Mello, que fez campanha com um programa dessa natureza, mas, tão logo assumiu a Presidência, deu um cavalo de pau e lançou um plano que também naufragou, no qual o confisco da poupança lhe surrupiou o apoio da classe média. Seu legado foi a abertura comercial da economia, que não é pouca coisa, se levarmos em conta a política de reserva de mercado adotada pelo regime militar, desde o chamado “milagre econômico”, na década de 70, do qual herdamos o atual modelo de transporte rodoviário, o atraso tecnológico na área de informática e um sistema de saneamento que não trata o esgoto e multiplica as caixas d’água.

Talvez, a mais engenhosa política econômica de nossa história republicana, desde o Acordo de Taubaté, tenha sido o Plano Real, lançado no governo Itamar Franco, pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que viria a governar o país por dois mandatos. É falsa a ideia de que era um plano neoliberal, disseminada pelo PT até hoje. A própria existência de uma disputa entre social-liberais e desenvolvimentistas no governo tucano é a prova disso. Houve, sim, uma reforma bancária que consolidou nosso sistema financeiro e uma reforma patrimonial que privatizou a maior parte do setor produtivo estatal, em áreas que estavam em obsolescência industrial, como mineração e siderurgia, e de serviços, sobretudo a telefonia, que era um entrave à produtividade da economia. Mesmo se quisesse, não havia como financiar a modernização desses setores.

Social-liberal
A política de “focalização” do gasto social nas camadas mais pobres da população é social-liberal. Foi adotada no governo FHC e mantida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a diferença de escala na transferência de renda, com o Bolsa Família, que beneficiou 50 milhões de pessoas. A guinada nacional-desenvolvimentista na política econômica somente veio a ocorrer no segundo mandato de Lula, sob comando do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e a influência direta da então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o “poste de saias” que sucedeu Lula. A nova matriz econômica surgiu com medidas anticíclicas, para enfrentar a crise do mercado financeiro americano de 2008, mas acabou virando estratégia de desenvolvimento, que fez renascer das cinzas o velho modelo nacional desenvolvimentista, tendo por eixo as empresas estatais, os investimentos em infraestrutura e a política de “campeões nacionais” do BNDES. Os resultados, todos conhecem: a economia entrou em colapso, a inflação disparou, o escândalo da corrupção na Petrobras desmoralizou o governo petista. Dilma acabou apeada do poder pelo impeachment.

O vice Michel Temer, ao assumir o governo, foi o último presidente da República a apresentar um projeto liberal com começo, meio e fim, a chamada “Ponte para o futuro”. Entretanto, não tinha tempo para implementá-lo, diante da recessão e da necessidade de domar a inflação, além da falta de perspectiva política provocada pelas denúncias do procurador-geral Rodrigo Janot, com base na delação premiada da JBS. Quem agarrou a bandeira da agenda liberal com as duas mãos foi Jair Bolsonaro, eleito presidente da República em 2018, com o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, como garoto propaganda. Mas há uma evidente contradição entre a retórica do ministro e as ideias positivistas e nacionalistas que caracterizam a mentalidade dos militares brasileiros.

Essa contradição se tornou cristalina neste episódio de mudança de comando na Petrobras, com a substituição de Roberto Castelo Branco, um executivo civil, pelo general Silva e Luna, prontamente apoiada pelo ex-senador Aloizio Mercadante (PT-SP), por se tratar de um “nacionalista”. É evidente a fritura de Guedes, cada vez mais enfraquecido. Na economia, sempre houve certa convergência entre as concepções nacionalistas dos militares e as ideias anti-imperialistas da esquerda tradicional. Com Bolsonaro no poder, é possível desenhar um cenário para as eleições de 2022 no qual essas forças se confrontarão novamente, como em 2018. Ainda não surgiu um político capaz de articular a agenda liberal e galvanizar o apoio popular, como Tancredo Neves.

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Luiz Carlos Azedo: O mico da Petrobras

“O melhor negócio do mundo já não é uma refinaria de petróleo, como dizia David Rockefeller. Estamos vivendo uma grande mudança de matriz energética”

Esta quem me contou foi o ex-governador Artur Carlos Gerhardt Santos, que governou o Espírito Santo no começo dos anos 1970 e foi o grande artífice de sua industrialização. Levou para o seu estado indústrias de beneficiamento de commodities que muitos não desejavam, por causa dos riscos ambientais, como a Aracruz Celulose e a Companhia Siderúrgica de Tubarão, razão pela qual o Espírito Santo tem uma economia industrial ligada ao comércio exterior.

A história é a seguinte: quando foi construída a ponte rodoferroviária Florentino Avidos, a primeira ligação entre a ilha de Vitória e o continente, um português empreendedor logo tratou de criar uma linha de lotação, como se chamavam os ônibus da época. Os catraieiros – barqueiros que faziam o transporte de passageiros entre a capital e Vila Velha – fizeram uma greve. “Não tinha a menor chance de dar certo”, disse-me o ex-governador. Hoje, os catraieiros continuam oferecendo seus serviços, até viraram atração turística. Obviamente, para reduzido número de usuários.

A história é singela, mas ilustra o impacto da modernização nos meios de produção e na organização do trabalho, resguardadas as devidas proporções, é claro. E nos remete aos caminhoneiros e à situação da Petrobras, símbolo do nacional desenvolvimentismo e do nosso capitalismo de estado. Por pressão dos caminhoneiros insatisfeitos com a alta de preços dos combustíveis, o presidente Jair Bolsonaro demitiu o presidente da Petrobras, Roberto Cunha Castelo Branco, e nomeou para o cargo o general Joaquim da Silva e Luna, ex-ministro da Defesa do governo Michel Temer.

É como se o governador Florentino Avidos, que importou a ponte de ferro da Alemanha em 1927, proibisse a linha de lotação para atender aos catraieiros. Caminhoneiros já derrubaram um presidente da República, protagonizando a crise que facilitou o golpe do sanguinário general Augusto Pinochet no Chile, no qual o presidente Salvador Allende morreu, em 1973. No Brasil, com a greve de 2018, caminhoneiros integraram a vanguarda da campanha de Jair Bolsonaro, que agora é refém da categoria. Recentemente, engavetou a nova lei da cabotagem, que baratearia os transportes de carga e reativaria a indústria naval, por pressão dos caminhoneiros. Bolsonaro teme uma nova greve da categoria como o diabo foge da cruz, porque vê uma conspiração para destituí-lo do cargo instalada no Palácio do Jaburu.

Acontece que a troca do executivo civil por um general sinalizou para o mercado a ruptura com o princípio de não-interferência do governo na política de preços da Petrobras, que é uma sociedade anônima, cujas ações despencaram nas bolsas de Nova York e São Paulo. A perda foi de R$ 28,2 bilhões no valor de mercado, num único dia. O tamanho do prejuízo dependerá dos próximos passos do governo e da competência do novo presidente da empresa, que não é do ramo, como o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello. As novas políticas de preços de combustíveis e de desinvestimento da Petrobras não dependem só do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Choque de petróleo
Estamos vivendo um novo choque de petróleo.

Já houve três:

(1) em 1973, na criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), quando seus países membros limitaram a produção e exportação de petróleo, quadruplicando de US$ 3 para US$ 12 o preço do barril, em resposta à política das “Sete Irmãs”, cinco petroleiras americanas (Chevron, Exxon, Gulf, Mobil e Texaco), uma anglo-holandesa (Shell) e uma britânica (British Petroleum);

(2) em 1979, quando houve a revolução no Irã e sua guerra com Iraque, grandes produtores, o que resultou na redução da oferta de óleo; e

(3) em 1990, na Guerra do Golfo, entre o Iraque e o Kuwait, com as mesmas consequências. Agora, a OPEP e a Rússia resolveram reduzir a produção de petróleo e novamente jogar os preços para cima, o que afeta diretamente a Petrobras. Como não somos da OPEP, temos que jogar no time das “Sete Irmãs” e dançar conforme a música.

Com sede em Viena (Áustria), a OPEP foi fundada por Arábia Saudita, Venezuela, Irã, Iraque e Kuwait. Depois incorporou: Líbia (1962), Emirados Árabes (1967), Argélia (1969), Nigéria (1971), Gabão (1975), Angola (2007), Guiné Equatorial (2017) e Congo (2018). Esses países controlam 78,7% das reservas de petróleo do mundo. Entretanto, o melhor negócio do mundo já não é uma refinaria de petróleo, como dizia David Rockefeller. Estamos vivendo uma grande mudança de matriz energética, em plena recessão mundial provocada pela pandemia de covid-19, que afeta de forma acelerada e profunda o mercado automotivo e, consequentemente, de combustíveis. Não foi à toa que a Ford fechou suas fábricas no Brasil.

No auge da crise do governo Dilma Rousseff, o presidente de uma das “Sete Irmãs” no Brasil queixava-se de que há sete anos não havia leilões do pré-sal, o que desorganizava todo o “cluster” do petróleo, que migra de país de acordo com a intensidade de exploração. “Entre a prospecção e a produção, o ciclo de retorno de investimento no pré-sal leva 20 anos”, explicou. Retirar petróleo em águas profundas custa caro. A Petrobras não tem capital para explorá-lo na velocidade necessária e, em 20 anos, pode até ficar com um mico na mão. Por isso, como aconteceu com os catraieiros, o lobby dos caminhoneiros não tem futuro. Vem aí, rapidinho, o caminhão elétrico.

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