Memória

Luiz Carlos Azedo: Entre a cruz e a caldeirinha

CPIs têm poder de polícia, podem fazer acareações e quebras de sigilo, convocar ministros e toda a equipe de governo. Podem virar o Inferno de Dante

A velha expressão lusitana que intitula a coluna vem a calhar por causa da situação macabra em que estamos. Sua origem é do tempo em que as pessoas morriam em casa, com um crucifixo sobre o peito e água benta junto aos pés, ou seja, seu significado original era estar moribundo, entre a vida e a morte, mas foi abrandado com o tempo: hoje, nos remete à situação angustiante, que, depois de vencida nada resolve, porque outra lhe sucede. Essa é situação do presidente Jair Bolsonaro, entre o Orçamento aprovado pelo Congresso e a CPI da Covid, que tiram seu sono no Palácio da Alvorada.

Com o ministro da Economia, Paulo Guedes, Bolsonaro tenta uma saída para não desmantelar o acordo feito com o Centrão na Câmara, que foi atropelado no Senado. O relatório do senador Marcio Bittar (MDB-AC) estourou o teto de gastos, pressionado pelo ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP). Presidente do Congresso, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) lavou as mãos sobre o Orçamento e, agora, está em apuros, porque o governo o pressiona para adiar a instalação da CPI da Covid, enquanto não se chega a um acordo em relação aos mais de R$ 20 bilhões em emendas parlamentares incluídas no Orçamento. A conta da eleição do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), era R$ 16 bilhões. Bolsonaro fará vetos para não correr o risco de ser acusado de irresponsabilidade fiscal, mas o alcance dos vetos depende dessas negociações.

O acordo proposto por Guedes prevê um extrateto orçamentário de R$ 100 bilhões, a pretexto de combater a epidemia da covid-19. Além dos R$ 16 bilhões em emendas parlamentares, para obras escolhidas a dedo pelo Centrão, seriam destinados R$ 42 bilhões à compra de vacinas (sendo R$ 20 bilhões em restos a pagar), mais R$ 10 bilhões com o BEm (Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda) e R$ 5 bilhões
do Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte). Entretanto, para isso, é preciso aprovar uma emenda à LDO que desobrigue o governo de medidas compensatórias, para Bolsonaro não infringir a Lei de Responsabilidade Fiscal. O problema é que isso aumentará ainda mais a dívida pública, mesmo com o governo bloqueando gastos não obrigatórios, como o orçamento da Defesa.

Investigações
A outra dor de cabeça de Bolsonaro é a CPI da Covid, que está sendo dominada pela oposição. O futuro presidente da CPI, indicado pela maior bancada, é o senador Omar Aziz (PSD-AM), cujo irmão 10 anos mais novo faleceu há 40 dias, vítima da doença. O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), é considerado um desafeto por Bolsonaro. Desde a derrota na eleição para a Presidência do Senado, em 2017, o político nordestino estava mergulhado, mas emergiu com a faca e o queijo nas mãos. Pai do governador de Alagoas, Renan Filho (MDB), Calheiros é um inimigo figadal de Arthur Lira, o presidente da Câmara, que pretende assumir o controle político do estado com apoio de Bolsonaro.

O esquema de trabalho da CPI, sugerido pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), tem a marca registrada de quem domina as investigações criminais. CPIs têm poder de polícia, podem fazer acareações e quebras de sigilo, convocar ministros e toda a equipe do governo. Podem virar o Inferno de Dante, cuja imagem é a de um cone invertido, dividido em círculos. No início, no círculo maior, estavam aqueles que não foram batizados e que não conseguiam reconhecer o próprio erro. Seguem os círculos daqueles que pecaram por incontinência. Esses estão no limbo.

Há um círculo para os que se entregaram à luxúria, outro para os que se deixaram dominar pela gula; em seguida, para os avaros e os pródigos (ou seja, para quem não gasta nada e para quem gasta muito); depois, um círculo para os iracundos e cheios de rancor, e por fim, para os hereges. Há círculos para: assaltantes, suicidas, blasfemos, sodomitas e usurários. Círculos para os rufiões (aqueles que exploram a prostituição), os aduladores e lisonjeadores. Para os que vendem milagres, traficantes, hipócritas, fingidos, mentirosos; para os ladrões, os falsários, os maus conselheiros e os intrigantes. Por último, os traidores. São os piores.


Urna eletrônica e pessoas | Foto: reprodução/Agência Brasil

Luiz Carlos Azedo: A nobreza, o povo e a plebe

Temos o regime de votação mais moderno e eficiente do mundo, o voto direto, secreto e universal na urna eletrônica, ao lado de uma sociedade extremamente desigual

A palavra isogênese — no dicionário, igualdade ou semelhança de origem ou desenvolvimento — é a linha que separa a democracia moderna das antigas, que se baseavam na participação direta apenas de uma elite de proprietários, como na República de Platão. É o fundamento ideal do regime democrático, que se baseia na concepção enraizada no Ocidente de que a natureza humana faz os homens originalmente iguais, não importa a condição social. Para que essa compreensão se tornasse hegemônica, muito contribuiu o fundamento cristão de que todos os homens são irmãos, porque são filhos de Deus.

Essa ideia-força foi um dos pilares da Revolução Francesa (1789-1799), que secularizou a fraternidade e ancorou o jusnaturalismo, ou seja, a doutrina de que os indivíduos são pessoas dotadas de moral e direitos inalienáveis e invioláveis, que lhes pertencem por natureza. Assim, a ideia de soberania popular se contrapõe à soberania do príncipe. Para se ter uma ideia de como as coisas avançaram neste terreno, basta lembrar que Nicolau Maquiavel, nas Histórias florentinas, dizia: “Em Florença se distinguem os nobres entre si, os nobres e o povo, e por último o povo e a plebe.”

Um pouco de filosofia e teoria política não faz mal a ninguém: o povo é uma abstração conceitual, consagrada em nossa Constituição de 1988 como fonte de todo o poder — que emana do povo, para o povo e em seu nome é exercido. A sutileza do enunciado está no fato de que a democracia moderna não é direta, é representativa, e os indivíduos, com seus defeitos e interesses, são de carne e osso. Não por acaso o respeito aos direitos humanos está no centro da dinâmica de funcionamento e das disputas dos regimes representativos. No Brasil, em razão do grande número de eleitores e do caráter direto e universal do nosso sistema eleitoral, vivemos numa democracia de massas. Além disso, o Estado brasileiro é ampliado, em razão da separação entre os Poderes, do regime federativo, da existência de uma burocracia profissional e de agências autárquicas. Os governantes eleitos não fazem o que querem e bem entendem; precisam governar com base na Lei e no compartilhamento de responsabilidades. A “moral política” é subordinada à ética.

Alguém já disse que o passado é como um diamante, ninguém joga fora. O nosso nos garantiu instituições políticas seculares – como o Senado e o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, pilares do Estado nacional, da integridade territorial e da conciliação entre as elites —; de outro, uma ordem social iníqua, em que a herança da escravidão até hoje se faz presente. Temos o regime de votação mais moderno e eficiente do mundo, o voto direto, secreto e universal na urna eletrônica, ao lado de uma sociedade extremamente desigual, na qual as distâncias abissais entre os ricos, a classe média e os pobres somente não são as da antiga república florentina — entre a nobreza, o povo e plebe — porque as eleições igualam todo mundo na hora do voto.

Solidariedade
O que conseguimos de progresso e redução de diferenças sociais ao longo de nossa República se deve a isso. Durante o regime militar, o milagre econômico alavancou o poder aquisitivo de nossa classe média, mas houve muita concentração de renda e foi exatamente isso, com o achatamento dos salários, que provocou a entrada em cena dos operários e seus sindicatos na luta pela democracia. Entretanto, nossa democracia nunca esteve tão ameaçada, desde a eleição de Tancredo Neves, em 1985.

Isso ocorre em todo o mundo, em razão das mudanças de regras de comportamento nas sociedades secularizadas; da não-integração plena dos estratos sociais de mais baixa renda; e dos avanços tecnológicos. Mas aqui a situação é mais grave. O presidente Jair Bolsonaro sonha com uma “ditadura do Executivo”. Vive fazendo ameaças aos demais Poderes e energiza grupos radicais, alguns verdadeiras milícias políticas armadas, dispostos a defendê-lo a qualquer preço contra a oposição. O agravamento da crise social pela pandemia é um terreno fértil para a violência social e política, por causa do desespero das famílias que passam por necessidades, daí a importância da solidariedade com os menos favorecidos, os “invisíveis”, para mitigar suas dificuldades nessa crise sanitária, sobretudo a fome.

Obs: Publicada domingo, dia 18 de abril, no Correio Braziliense e no Estado de Minas.

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Luiz Carlos Azedo: O favoritismo de Lula

Com a CPI da Covid em funcionamento no Senado, o custo político dos desatinos de Bolsonaro na pandemia e da incompetência dos militares na Saúde será altíssimo

O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, ontem, a anulação de todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por 8 a 3, com base no princípio do “juiz natural”, pedra basilar do chamado devido processo legal, invocado pela defesa do petista desde quando o processo começou a andar na 13a Vara Federal de Curitiba, sob a batuta do então juiz Sergio Moro. Quando a revisão do caso do ex-presidente da República começou a ser ventilada nos bastidores do Supremo, o presidente Jair Bolsonaro imaginava que Lula como adversário seria meia reeleição garantida, mas a vida está mostrando, com a pandemia da covid-19, que a roda da Fortuna girou em favor do petista.

Como já era de se esperar, a reação de Bolsonaro e seus aliados será na direção de contestar a decisão do Supremo e desacreditar os integrantes da Corte, além de intensificar a narrativa de que houve fraude nas eleições passadas e de que o voto eletrônico não é seguro. Os propósitos golpistas dessa narrativa são conhecidos, porém não têm encontrado eco nos meios políticos, nem mesmo entre os aliados do Centrão, e também nas Forças Armadas, apesar das insatisfações com a decisão. A ideia de que a polarização com Lula seria a chave da vitórianas eleições de 2022 está furada.

A decisão do Supremo anulou as condenações de Lula por um aspecto formal, o foro de seu julgamento deveria ser o Distrito Federal, e não Curitiba. Isso não significa que Lula tenha sido inocentado, porque o processo terá que ser reiniciado (há controvérsias sobre a anulação de provas). Entretanto a narrativa de que Lula foi injustiçado por Sergio Moro é cada vez mais robusta, pela revelação de suas conversas com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato e, também, por causa da decisão da Segunda Turma que aprovou a suspeição do ex-juiz na condução do processo, por 3 a 2. Esse é outro assunto que terá de ser examinado pelo plenário do Supremo, podendo ter sérias consequências para o ex-magistrado, um pré-candidato à Presidência ainda encabulado.

Mudança de cenário
A presença de Lula na disputa mudou completamente o cenário eleitoral de 2022. A expectativa de poder que a possibilidade de reeleição garante aos ocupantes do Palácio do Planalto, no caso de Bolsonaro, está sendo volatilizada pela pandemia da covid-19, a recessão econômica e o mau desempenho do governo federal em muitas frentes. As políticas públicas que contavam com certo consenso nacional e reconhecimento internacional foram substituídas pela improvisação, pelo obscurantismo e pela incompetência administrativa, além de um viés ideológico reacionário. Isso correu na política externa, no meio ambiente, nos direitos humanos, na cultura e na educação, mas é na saúde pública que o desastre pôs no telhado a reeleição de Bolsonaro em 2022.

Cada dia que passa, as consequências da má gestão do ex- ministro da Saúde Eduardo Pazuello mostram-se mais graves, com o agravante de que o novo ministro, Marcelo Queiroga, embora tenha flexibilizado a narrativa governista, está capotando na área administrativa da pasta. Hoje, é o principal responsável pelo colapso do fornecimento de insumos para tratamento dos casos graves da doença, principalmente os kits de intubação. Como o Ministério da Saúde requisitou toda a produção nacional e não consegue atender à demanda, hospitais de vários estados estão entrando em colapso. Pacientes estão sendo amarrados nas UTIs para não retirarem os tubos de respiração ou deixando de ser intubados, por falta de analgésicos adequados e outros recursos, o que acaba aumentando o número de óbitos.

Com a CPI da Covid em funcionamento no Senado, o custo político dos desatinos de Bolsonaro na pandemia e da incompetência dos militares na Saúde será altíssimo e se prolongará para além da pandemia, por causa do grande número de mortos. Isso significa que Bolsonaro está derrotado e Lula com o caneco na mão? Não, ninguém ganha eleições de véspera. Lula já foi favorito antes e perdeu a eleição, em 1994, para Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

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Luiz Carlos Azedo: Lula e Moro no Supremo

A decisão do Supremo terá efeito catalisador no processo político, pode contribuir para transferir expectativas de poder do presidente Jair Bolsonaro para a oposição

A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu levar a plenário, hoje, a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela 13a Vara Criminal de Curitiba, ou seja, pelo ex-juiz Sergio Moro, a pedido do relator da Operação Lava-Jato, ministro Edson Fachin, autor da liminar que livrou o petista da inelegibilidade. Fachin entendeu que o foro natural do processo deveria ser o Distrito Federal, por não se tratar de processo diretamente vinculado ao escândalo da Petrobras. Com a decisão de ontem do Supremo, por 9 a 2, tanto Lula quanto Moro voltam ao centro do noticiário, como possíveis adversários do presidente Jair Bolsonaro, ambos com muita força.

Esse julgamento no Supremo terá um efeito catalisador no processo político, contribuindo para transferir expectativas de poder de Bolsonaro, candidato à reeleição, para a oposição. A Lava-Jato ainda tem um grande apelo popular e é a principal face de desgaste
da candidatura de Lula à Presidência, mas, sem o julgamento, o petista não seria candidato. Entretanto, Bolsonaro se descolou da bandeira da ética por causa do escândalo das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e de suas manobras para proteger o filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), um dos principais investigados no caso.

Moro, principal responsável pela condenação de Lula, também sofre desgastes. É acusado de ser parcial e ter usado recursos inadmissíveis durante a investigação para condenar Lula e afastá-lo da disputa eleitoral de 2018, beneficiando Bolsonaro. Ao aceitar o convite para ser ministro da Justiça do atual governo, de certa forma, o ex-juiz corroborou as acusações da defesa de Lula. Seu estridente rompimento com Bolsonaro, acusando-o de tentar usar a Polícia Federal em benefício próprio, manteve a bandeira da ética nas suas mãos, mas sua atuação como magistrado acabou fragilizada por gravações feitas por hackers de suas conversas com integrantes do Ministério Público que comandavam as investigações, desnudando sua parcialidade.

Por isso mesmo, o julgamento do mérito da liminar de Fachin, que anulou as condenações de Lula, abrirá espaço, também, para a discussão sobre a atuação de Moro, cuja suspeição foi aprovada pela Segunda Turma do STF. Não sem razão, o julgamento terá repercussão eleitoral, tanto do ponto de vista legal — Lula estará livre ou não para concorrer às eleições — quanto midiático. O Supremo pode jogar o petista para cima nas pesquisas, mas também alavancará Moro, que passa de algoz a vítima, como paladino da ética e dos bons costumes, a não ser que o ex- juiz seja punido severamente e impedido de concorrer.

Decantação

Quem mais perde com o julgamento é Bolsonaro, que tenta fazer do limão uma limonada. Ao atacar o Supremo e a decisão de liberar Lula para disputar as eleições, o presidente da República mantém em sua esfera de influência os setores mais radicalizados do antipetismo. A aposta do chefe do Planalto é que esse sentimento garanta o seu lugar no segundo turno das eleições, mas não é bem assim. A queda dos seus índices de aprovação em razão da crise sanitária e da recessão e a perda da bandeira da ética podem abrir espaço para uma candidatura robusta do chamado polo democrático, capaz de capturar o eleitor mais conservador, porém, insatisfeito com o desempenho do governo e de Bolsonaro.

O julgamento de Lula será o primeiro grande momento de decantação do processo eleitoral. Outro momento será a decisão do apresentador Luciano Huck (sem partido) sobre a proposta de renovação de contrato com a TV Globo, como substituto do Faustão nas tardes de domingo. O terceiro grande lance no xadrez eleitoral é a prévia do PSDB, marcada para outubro, na qual o partido escolherá seu candidato. Disputam a vaga os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Restarão ainda as definições do DEM, em relação ao ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta e do próprio Moro, que não se comporta como candidato.

 


Maria Cristina Fernandes: Contra CPI, Bolsonaro ameaça sócios

São 90 dias regulamentares, mas a única certeza sobre a CPI da Pandemia é de que ninguém sabe quando esta termina. Ainda não está composta, mas já produziu, sobre o Senado, o ajuntamento de duas de suas três forças. Os que querem o cargo do presidente Jair Bolsonaro uniram-se àqueles que se contentam com sua caneta. É a junção dessas duas forças que esticará a CPI até 2022. A pauta vai muito além da incúria bolsonarista na pandemia ou de sua consequência para os Estados. O que estará em jogo é a ocupação do governo, do Judiciário e do próprio Senado.

A CPI já começou a se definir pelo parto. A anexação das duas propostas foi resultado do jogo duplo que marcou a gestão do ex-presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), colocou o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no cargo e continua a operar no varejo da sustentação bolsonarista na Casa, a um alto custo para o erário, como se viu no relatório do Orçamento do senador Márcio Bittar (MDB-AC).

Com os governadores e prefeitos na roda, ainda que de forma mitigada, os aliados de Bolsonaro que hoje comandam o Senado lhe deram a chance de barganhar o avanço da investigação sobre seu governo. Foi esta a porta que se abriu com a possibilidade de serem investigados não apenas o labirinto das verbas federais nos Estados como a alocação de recursos das emendas parlamentares nos municípios. Ambas passam pelas planilhas da Secretaria de Governo, ocupada até outro dia pelo ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos.

A CPI ainda avançará sobre as brasas que restaram nas relações entre Ramos e o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Ontem o Ministério Público Federal no Amazonas adiantou-se à CPI e denunciou Pazuello por improbidade administrativa decorrente da crise de oxigênio naquele Estado. O processo correrá em primeira instância e pode levar à primeira condenação dos generais do governo. Com um adendo: Pazuello ainda está na ativa.

Com este caldeirão sob fervura, o presidente jogou com a ameaça de implodir a sociedade nada anônima em que se transformou seu governo. O sucesso de sua estratégia dependerá não apenas da composição da CPI mas dos senadores que virão a ocupar a relatoria e a presidência. A meta é reproduzir a CPI dos Correios, tida até hoje como aquela que produziu mais resultados, mas o cenário parece interditado pela força governista na Casa.

Aberta no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, esta CPI entregou a relatoria à oposição. Depois daquela comissão, os parlamentares descobriram meios para assar o porco sem queimar a cabana e os inquéritos mais efetivos passaram para o Ministério Público. A dupla Pacheco-Alcolumbre, estreante na matéria, tenta controlar a labareda mas, uma vez instalada, é a CPI quem manda.

No voto de ontem, respaldado por nove de seus pares, o ministro Luis Roberto Barroso sugeriu que as manobras protelatórias estarão sob a vigilância do Supremo: não cabe ao Senado definir se e quando a CPI será instalada, apenas como procederá, se por videoconferência, presencialmente ou por ambos os meios.

É o MDB o partido que hoje mais se arvora a tomar assento num cargo de comando da CPI e, a partir dele, ganhar terreno. Em 36 anos desde a redemocratização, o MDB mandou no Senado ao longo de 30. Perdeu para o DEM em 2019, graças a uma aliança de Alcolumbre com o grupo lavajatista do Senado. Dois desse grupo são os primeiros signatários das CPIs fundidas na Casa. O senador Eduardo Girão (Podemos-CE), autor do requerimento de ampliação do escopo, continua a gravitar sob a mesma órbita, e o senador Randolfe Rodrigues (Psol-AP) aliançou-se com o MDB.

O senador Renan Calheiros (MDB-AL) foi convidado ao Palácio do Planalto na próxima semana numa operação que visa a tornar palatável, para o presidente, sua escolha para um dos cargos da CPI. A ambição emedebista não se restringe aos domínios do DEM no Senado, mas também sobre o governo.

Os ministros políticos da gestão Bolsonaro são ou foram deputados: Flávia Arruda (Secretaria de Governo), João Roma (Cidadania), Onyx Lorenzoni (Secretaria Geral da Presidência), Teresa Cristina (Agricultura) e Fabio Faria (Comunicações). A ambição primeira dos senadores é o Ministério das Minas e Energia, foco histórico de disputa entre MDB e DEM. Contra todos, Bolsonaro reforça a ala ideológica do governo. Não apenas tirou o almirante Flávio Rocha da Secretaria de Comunicação, como mantém o ex-ministro Ernesto Araújo como entreposto entre si e o novo chanceler, Carlos França.

O Senado, porém, também ganhará força na queda de braço que hoje antagoniza a Câmara e o ministro da Economia, Paulo Guedes. A instalação da CPI eleva o preço de quaisquer das decisões de Bolsonaro sobre o Orçamento. As ambições no Senado estendem-se ainda à vaga do ministro Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal. O passado lavajatista do preferido de Bolsonaro, o advogado-geral da União André Mendonça, o condena no Senado.

A operação, porém, tem três obstáculos. O primeiro é que o posto de governista-mor de Alagoas está hoje ocupado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O segundo é que a ampliação do escopo colocou todos os governadores sob a mira da CPI, entre os quais o de Alagoas, Renan Filho (MDB). E, finalmente, o terceiro é que a nomeação de Renan para um cargo na CPI deixaria em maus lençóis dois de seus correligionários, os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE) e no Congresso, Eduardo Gomes (TO).

Quem quer que ambicione o cargo de relator ou presidente na CPI se transformará num pivô do cenário de 2022. A dominância do MDB fortaleceria o partido na disputa pela vice do PT. Em meio às disputas intestinas, um presidente menos imiscuído, como o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), seria uma solução tão desejável quanto improvável.

No pior das hipóteses, às pilhas de cadáveres se juntarão os áudios de whatsapp, comuns entre integrantes deste governo, que a CPI não custará a obter. É a espetacularização da tragédia que vai entrar no ar. Ambas poderiam ter sido evitadas se a apuração das responsabilidades tivesse começado junto com a incúria.


Luiz Carlos Azedo: A CPI não sabe como começar

CPIs bem focadas promovem ampla exposição de fatos até então encobertos por silêncio, dissimulações e fraudes. Algumas CPIs fracassaram por má condução

Um velho jargão parlamentar, atribuído a Ulysses Guimarães, sustenta que todos sabem como começa uma comissão parlamentar de inquérito, mas ninguém sabe como termina. A CPI da Covid-19 do Senado, porém, nem sabe ainda como vai começar, embora já esteja no centro das tensões entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em razão da divulgação de uma gravação da conversa entre o senador Kajuru (Cidadania-GO) e o presidente da República.

Na conversa, o presidente Jair Bolsonaro orienta o parlamentar a protegê-lo e direcionar a investigação contra governadores e prefeitos. De quebra, pede para Kajuru pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a decidir sobre seu pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Quem mais se beneficia dessa confusão é o presidente Bolsonaro. A Executiva do Cidadania, partido envolvido na polêmica, apoia a instalação da CPI e saiu em defesa do senador Alessandro Vieira(SE), mas não endossa que se investigue governadores e prefeitos. Além disso, repudiou a conversa de Kajuru com Bolsonaro e solicitou que o parlamentar deixasse a legenda.

CPIs bem focadas promovem ampla exposição de fatos até então encobertos por silêncio, dissimulações e fraudes. Algumas CPIs fracassaram por má condução, como a do Futebol (2007) e a dos Cartões (2008). Outras foram bem-sucedidas, como as CPIs da Corrupção (1988), do PC Farias (1992), dos Anões do Orçamento (1993), do Judiciário (1989), do Banestado (2003), dos Correios (2005), dos Bingos (2006), dos Sanguessugas (2006), do Apagão Aéreo (2007) e do Cachoeira (2012). Às vezes, são algozes de seus protagonistas.

A CPI do Orçamento acabou cassando os mandatos do presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro (MDB-RS), injustamente, e do líder do MDB, Genebaldo Correia (BA), entre outros. A CPI dos Correios, em 2005, fruto de uma denúncia do presidente do PTB, Roberto Jefferson (RJ), resultou na sua própria cassação, e de outros parlamentares, como o então deputado José Dirceu (PT- SP). Desfecho surpreendente teve a do Judiciário, em 1989. Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), no segundo mandato como presidente do Senado, protagonizou a abertura da CPI, contra a corrupção, o tráfico de influências, a má gestão
e o nepotismo no Judiciário.

Renúncias
Alguns senadores à época, como Marina Silva (PT), Geraldo Melo(PSDB) e Roberto Freire (PPS), temiam o risco de confronto entre os Poderes. Para o ministro Carlos Velloso, então vice-presidente do STF, “uma CPI desse tipo, generalizando acusações contra juízes, simplesmente expõe o Judiciário à execração pública, levando o descrédito às suas decisões”. A própria OAB, que defendia desde a Constituinte a criação de mecanismos de controle externo do Judiciário, repeliu a iniciativa. Para então presidente, Reginaldo de Castro, estaria “se criando no Brasil um tribunal de exceção”.

A CPI não desmoralizou o Judiciário nem provocou abalos institucionais. Apurou denúncias de crimes e corrupção que impactaram a opinião pública, com destaque para a ligação do senador Luiz Estevão (MDB-DF, cujo mandato foi cassado em 2000) com o desvio de R$ 169 milhões das obras de construção do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, onde pontificava a figura do “Juiz Lalau”: Nicolau dos Santos Neto, presidente da Corte, que foi condenado a 26 anos de prisão pelos crimes de peculato, estelionato e corrupção passiva.

ACM emergiu da CPI do Judiciário como paladino do combate à corrupção, porém não conseguiu manter a presidência do Senado em 2001, sendo substituído por Jader Barbalho (MDB). Os dois senadores viviam se digladiando e acabariam envolvidos no escândalo do Painel do Senado. ACM havia revelado a lista de todos que votaram contra e a favor de Luiz Estevão na sessão secreta que resultou na cassação do mandato do ex-senador, em junho de 2000. A crise culminou com as renúncias de Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda, na época líder do governo no Senado.

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Luiz Carlos Azedo: Muito além das igrejas

É surreal a polêmica que ocorre no Supremo, no momento mais dramático da pandemia, que registrou 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos nas últimas 24 horas

O julgamento iniciado, ontem, no Supremo Tribunal Federal (STF), com o voto contrário do relator, ministro Gilmar Mendes, à liberação de celebrações religiosas presenciais, como cultos e missas, em razão da pandemia da covid-19, extrapola a crise sanitária e diz respeito à existência de um Estado laico e sua relação com a sociedade no Brasil. A ideia da separação entre a política, o Estado, e a religião, ou seja, as igrejas, não é um assunto tão pacificado como deveria, embora preconizada por Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, desde o século XVI.

A discussão na Corte foi provocada por liminar do ministro Kassio Nunes Marques a favor da liberação dos cultos, a pretexto de defender a liberdade religiosa, acolhendo pedido da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos. Sua decisão acabou confrontada por outra liminar, do ministro Gilmar Mendes, em favor do governo de São Paulo, que proibiu as celebrações em razão das medidas de distanciamento social para combater a pandemia.

Há jurisprudência do Supremo reconhecendo as prerrogativas de governadores e prefeitos para agirem dessa forma, mas não há súmula vinculante. A novidade é o entendimento de três aliados do presidente Jair Bolsonaro, com viés “terrivelmente evangélico”: o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, o mais novo integrante da Corte; o advogado-geral da União, André Mendonça, que citou várias vezes a Bíblia e nenhuma vez a Constituição de 1988 no julgamento; e o procurador-geral da República, Augusto Aras, que também deveria defender o caráter laico do Estado, mas adotou uma linha juridicamente enviesada.

“As pessoas têm o direito de professar sua fé, direitos e garantias são postos em defesa do cidadão contra o Estado e não em favor do Estado contra cidadãos. A ciência salva vidas; a fé também”, argumentou Aras, em defesa da liberação de cerimônias religiosas em todo o país. O procurador-geral da República disputa com o advogado-geral da União a indicação, pelo presidente Jair Bolsonaro, para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello no STF. O decano da Corte se aposentará em 5 de julho.

Essa polêmica é surreal, pois ocorre no momento mais dramático da pandemia, que registrou, nas últimas 24 horas, 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos, aumentando o número de óbitos pela doença para 340.776. O total de casos confirmados se aproxima de 13,2 milhões. O Supremo já assegurou autonomia aos estados e municípios para que tomem medidas de combate ao coronavírus, mas a decisão é questionada pelo presidente Bolsonaro.

Duas liberdades
Ao defender sua posição, André Mendonça invocou o filósofo britânico Isaiah Berlin, autor de um clássico do liberalismo do século XX: Dois conceitos de liberdade (Editora Universidade de Brasília). Berlin discute os conceitos de “liberdade positiva”, a ausência de impedimentos à ação do indivíduo, e “liberdade negativa”, a qual estabelece condições para que os indivíduos ajam de modo a atingir seus objetivos.

Berlin sustenta que o indivíduo só é livre na medida em que nenhum outro homem, ou grupo, interfira em suas atividades. O julgamento ocorre na fronteira entre as vidas privada e pública. A ideia de liberdade positiva tangencia o conceito de liberdade civil de Rousseau: “Quanto mais eu obedeço a lei civil, mais livre eu sou, já que ajudo a elaborá-las”. Simplificando, é como se dissesse que, para o próprio bem, o indivíduo não está sendo coagido.

A Constituição de 1988, fortemente influenciada pelo liberalismo radical do deputado Ulysses Guimarães, pautou-se por outro pensador inglês, Stuart Mills, para quem devemos ter “liberdade na busca pelo nosso próprio bem, da forma que melhor nos apetece, desde que isso não interfira na possibilidade de os outros fazerem o mesmo”. O indivíduo pode até ser livre para causar dano a si mesmo, mas não aos outros; dependendo das circunstâncias e dos interesses da maioria, a liberdade pode ter limitações. Esse é o xis da questão na crise sanitária, que Bolsonaro não está levando em conta.

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Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o mito de Sísifo

Como disse Camus, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata do presidente da República

O consagrado escritor francês Albert Camus foi um existencialista, para quem o homem vive em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível, guiado por religiões e ideologias políticas. Num de seus ensaios filosóficos, Camus classifica Sísifo, um dos grandes personagens da mitologia grega, como um herói absurdo. “Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo seu ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta terra”, resumiu.

Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalida- des. “Ou não somos livres, e o responsá- vel pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.

Àquela época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça, tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.

Como disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos epidemiológicos do mundo.

Liminares
A polêmica do momento é a liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Marques, o mais novo da Corte, indicado por Bolsonaro, que autoriza o funcionamento de templos religiosos durante a pandemia, mesmo contrariando as medidas de restrição de circulação de pessoas e aglomerações adotadas por prefeitos e governadores de cidades e estados nos quais a pandemia saiu do controle. Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) estar entrando em colapso, por falta de leitos, respiradores e insumos para atender tantos infectados graves, o ministro acolheu pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, apresentada em junho do ano passado, para libertar os cultos.

Houve reação entre seus colegas do Supremo. Além das críticas públicas do decano Marco Aurélio Mello, ontem, o ministro do STF Gilmar Mendes, ao negar uma ação do PSD, manteve o decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que restringiu as atividades religiosas de igrejas no estado. Contrariou a decisão de Kassio Marques, que havia liberado celebrações presenciais em todo o país. À tarde, o procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro e cotado para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que está prestes a se aposentar, protocolou no Supremo um pedido para retirar de Gilmar Mendes e transferir para Kassio Marques a ação do PSD contra a proibição de cultos e missas coletivas em São Paulo, porque é relator de uma ação mais antiga: a do PSD é de março deste ano.

O presidente do STF, ministro Luiz Fux, decidiu pôr o assunto em votação amanhã, na reunião plenária da Corte. A decisão de Kassio Marques, a pretexto de garantir a liberdade religiosa, está em contradição com a jurisprudência do Supremo, que atribuiu aos estados e municípios autoridade para fixar medidas restritivas de enfrentamento da pandemia, inclusi- ve, o fechamento de templos e igrejas.

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Cristovam Buarque: Olhe a responsabilidade, gente

Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo

Nesta semana, a reforma ministerial mostrou que Bolsonaro já está trabalhando para o pós-segundo turno, enquanto os líderes e partidos de oposição continuam no pré-primeiro. Com o novo Ministro da Defesa, ele deseja controlar as Forças Armadas; com o novo Ministro da Justiça busca o controle sobre as polícias estaduais; com a liberação da compra e porte de armas, equipa sua milícia paralela. Com Forças Armadas, polícias e milícias, Bolsonaro passa a ter forças armadas nas ruas, para contestar derrota por pequena margem de eleitores, caso não consiga argumento para contestar o resultado na Justiça Eleitoral.

Enquanto isto, as oposições continuam divididas entre os possíveis candidatos que depois disputarão entre eles qual vai ao segundo turno. Estes embates deixam marcas que poderão levar outra vez a abstenções e votos nulos no segundo turno, como aconteceu em 2018. Difícil imaginar os eleitores do PT votando em Ciro ou outro candidato, e eleitores do Ciro e de outros candidatos votando no Lula ou outro do PT, salvo se fosse construída uma aliança ampla de todos desde o primeiro turno.

Felizmente, tudo indica que o exército não está aceitando o papel de milícia do Bolsonaro, e alguns dos candidatos pela oposição assinaram um manifesto conjunto em defesa da democracia. Mas todos que percebem as consequências da reeleição do atual governo sobre o futuro do Brasil, deveriam se encontrar em um debate franco sobre qual deles tem mais chance de vencer a eleição; também quais as qualidades, erros e méritos que se reconhecem; em que princípios estariam unidos no governo seguinte. Esta reunião poderia ter a participação de entidades da sociedade civil, como ocorreu em momentos decisivos da história. Poderia inclusive ser presidida por uma ou mais destas entidades.

Pena que a política é mais dominada pela arrogância do otimismo do que pela consciência dos riscos. Cada candidato já se considera com um pé no segundo turno, e tem confiança que unirá os eleitores dos que ficaram para trás. Imaginaram isto em 2018, mas nem a boa qualidade do candidato do PT foi suficiente para evitar a rejeição que o partido tinha. Pode ser diferente agora, se o candidato for Lula e o PT tiver rejeição menor, sobretudo depois da anulação Lava Jato de Curitiba; ainda mais com o reconhecimento oficial de que houve parcialidade do juiz contra Lula. Mesmo assim, não é claro se ele e o PT teriam menos rejeição. É possível que mesmo sabendo o que Bolsonaro representa, muitos eleitores ficarão em casa, ou viajarão para não votar, ou votarão nulo, induzidos pela ideia divulgada pela própria oposição, de “nem Bolsonaro, nem PT”. Possível também que eleitores do PT façam agora o que foi feito com Haddad em 2018, anulando o voto e se abstendo.

Estes líderes precisam entender que, divididos, dificilmente qualquer deles tomará o lugar do candidato do PT, mas o PT deve entender que, solitário, dificilmente ganhará no segundo turno se não tiver o apoio dos outros candidatos e partidos. Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo.

Os candidatos e líderes de partidos que se opõem à estratégia da reeleição de Bolsonaro têm diante deles a imensa responsabilidade de não falharem por arrogância, por vaidade, preconceito. Não podem neste momento colocar seus partidos e suas propostas na frente do interesse maior da democracia e do futuro do país. É preciso unidade com um candidato de baixa rejeição que leve a uma vitória expressiva, cale os fanáticos e desarme as milícias, oficiais ou não.

*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro


Luiz Carlos Azedo: A Páscoa na pandemia

O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos

Antes de mais nada, feliz Páscoa para todos. É uma data ecumênica por sua própria origem, pois foi ressignificada pelos cristãos como um momento de renovação das esperanças. A origem da Páscoa é o Pesach, a comemoração judaica da libertação dos hebreus da escravidão do Egito. Narrada nos Pentateucos, os primeiros cinco livros da Bíblia, em hebraico, a palavra significa “passagem” e faz menção ao anjo da morte no Egito — a décima praga, conforme a narrativa bíblica. A festa foi reinventada pelos cristãos, passando a se remeter à crucificação e à ressurreição de Cristo.

“E, se Cristo não ressuscitou, logo logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”, diz o apóstolo Paulo, em I Coríntios 15:14. Na fé católica, foi por meio da ressurreição que a humanidade teve a redenção de seus pecados. Jesus Cristo sacrificou-se para redimir o povo e dar-lhe uma nova chance de salvação. No seu sacrifício, o poder de Deus teria se manifestado.

Estamos encerrando a Semana Santa sem procissões nem missas campais, porém, plena de simbolismo. O Brasil vive uma das maiores tragédias de sua história, com uma média de mais de 3 mil mortos por dia nas últimas semanas, em razão do descontrole da pandemia da covid-19. Existe uma energia humana nos subterrâneos dessa tragédia social que, em algum momento, transbordará para as ruas. Essa resiliência, que seria traduzida nas cerimônias religiosas tradicionais, de alguma forma, acabará se transformando em manifestação política.

Além do agravamento da crise sanitária, também há desorganização da economia. Não estamos falando da redução das atividades econômicas em razão do distanciamento social, mas da desestruturação das contas públicas e da falta de um projeto de retomada do crescimento econômico. É um problema anterior à pandemia, mas que se agravou com ela, principalmente agora, com a aprovação de um Orçamento da União completamente fora da realidade, que agrava as dificuldades já existentes e cria novos problemas, contratados para o pós-pandemia.

Perda de tempo
Há um estresse político criado por arroubos autoritários e tentativas de ruptura do pacto federativo da Constituição de 1988. À época da Constituinte, como tudo estava em discussão, havia moedas de troca suficientes para construção dos acordos entre União, estados e municípios. Agora, uma das dificuldades para aprovação da reforma tributária, por exemplo, é a escassez dessas moedas. O xis da questão acaba sendo sempre a polêmica sobre a arrecadação do ICMS na origem ou no destino das mercadorias, além dos termos da partilha das receitas dos impostos entre os entes federados.

O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante como a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos políticos — na política externa e na Defesa, no meio ambiente e na segurança pública, no respeito aos direitos humanos e às minorias —, desloca a ação do governo dos verdadeiros problemas do nosso desenvolvimento. A janela de oportunidade das reformas, o primeiro ano de mandato, foi desperdiçada. Agora, em plena pandemia, antecipou-se a disputa eleitoral, porque Bolsonaro conseguiu fazer com que sua reeleição subisse no telhado.

A expectativa de poder está se deslocando de Bolsonaro para a oposição. Mesmo com os desgastes causados pela Lava-Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se coloca na arena em vantagem, ao comparar suas realizações de governo com as de Bolsonaro. A última proeza do presidente da República foi unir os demais pré-candidatos, no episódio de demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. O governador paulista João Doria (PSDB), o ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT), o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM), o empresário João Amoedo (Novo) e o comunicador Luciano Huck (sem partido) mandaram o recado: Bolsonaro, não! Podem não se unir no primeiro turno, mas estão contra a reeleição.

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Luiz Carlos Azedo: Como no quartel de Abrantes

A crise militar foi pura perda de tempo, tirou o foco do principal problema do país: a pandemia da covid-19, que ontem registrou novo recorde, 3.869 óbitos em 24 horas

A frase “tudo como dantes no quartel de Abrantes” é uma herança lusitana. Chegou ao Brasil em 1808, a bordo dos navios que trouxeram a família real e sua corte para o Rio de Janeiro. Surgiu durante a invasão de Napoleão Bonaparte à Península Ibérica. Portugal havia se oposto ao Bloqueio Continental, que obrigava o fechamento dos seus portos a qualquer navio inglês. Em 1807, o general Jean Androche Junot, braço-direito de Napoleão, atravessou a fronteira com a Espanha e ocupou Abrantes, a 152 quilômetros de Lisboa, na margem do rio Tejo. Lá, instalou seu quartel-general e, meses depois, se fez nomear duque d’Abrantes.

Com a fuga do príncipe-regente Dom João VI para o Brasil, o general francês praticamente não enfrentou oposição. Isso despertou a ironia popular, registrada por Orlando Neves no Dicionário de Expressões Correntes (Editorial Notícias, Lisboa): “‘Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. Esse é o saldo da crise militar provocada pela demissão do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e dos comandantes militares do Exército, Edson Leal Pujol; da Marinha, Ilques Batista; e da Aeronáutica, tenente- brigadeiro Antônio Carlos Bermudez.

Ontem, o presidente Jair Bolsonaro escolheu os novos comandantes militares, apresentados pelo novo ministro da Defesa, general Braga Netto: Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; Marinha, almirante de esquadra Almir Garnier Santos; e Aeronáutica, tenente- brigadeiro do ar Carlos Baptista Junior. A péssima repercussão da forma como Azevedo e os comandantes militares foram despachados para casa levou a uma solução de compromisso: Bolsonaro aceitou o nome do general Paulo Sérgio, autor da entrevista ao Correio Braziliense, de domingo passado, que tanto o desagradou, mas levou a melhor na Marinha e na Aeronáutica, cujos comandantes serão mais afinados com o Palácio do Planalto do que os antecessores.

O novo ministro da Defesa, general Braga Netto, saiu do episódio desgastado com seus colegas. Foi a primeira vez, desde 1985, que os comandantes das três Forças Armadas deixaram o cargo ao mesmo tempo sem ser em período de troca de governo. A escolha do general Paulo Sérgio foi uma imposição do Alto-Comando do Exército. Com 62 anos, cearense de Iguatu, é general do Exército desde março de 2018. Serviu em unidades de infantaria em João Pessoa (PB), Garanhuns (PE), Belém (PA) e Juiz de Fora (MG). Antes de chefiar o Departamento de Pessoal do Exército, foi comandante militar do Norte, em Belém (PA). Ao contrário de Pujol, Paulo Sérgio mantém ativa presença nas redes sociais.

Perda de tempo
Almir Garnier Santos, 60 anos, é almi- rante de esquadra desde novembro de 2018. Carioca de Cascadura (RJ), é especialista em guerra eletrônica e logística naval. Tem traquejo político, tendo assessorado os ex-ministros da Defesa Celso Amorim, Jaques Wagner, Aldo Rebelo e Raul Jungmann. Carlos de Almeida Baptista Júnior é tenente-brigadeiro desde março de 2018. Carioca, é filho do ex- comandante da Aeronáutica Carlos de Almeida Baptista. Serviu como adido adjunto de Defesa e Aeronáutica nos Estados Unidos e foi comandante da Base Aérea de Fortaleza. Em Brasília, foi assessor de Orçamento da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência.

A crise militar foi pura perda de tempo, tirou o foco do governo do principal problema do país: a pandemia da covid- 19, que ontem registrou novo recorde: 3.869 óbitos em 24 horas. É a quinta vez que o país registra mais de 3 mil vítimas por dia. Enquanto isso, Bolsonaro continua combatendo prefeitos e governadores que adotam medidas de distanciamento social mais rígidas. Sabota os esforços do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ).

Em tempo: Junot marchou tranquilamente para Lisboa. Na Praça do Rossio, em janeiro de 1808, hasteou a bandeira francesa, declarou extinta a Casa Real de Bragança e dissolveu o Exército português.

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Luiz Carlos Azedo: É autoritarismo mesmo

Não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes em apuros, que começam a recorrer à força do Estado contra a opinião pública

O professor e historiador Alberto Aggio é um estudioso da política latino-americana, seu livro Um lugar no mundo (Fundação Astrojildo Pereira/ Fondazione Instituto Gramsci) dedica especial atenção à discussão do conceito de populismo. É um crítico tanto de sua “banalização”, como um termo que expressa estilos políticos de caráter depreciável, quanto do seu uso como “teoria explicativa” do desastrado percurso histórico latino- americano rumo à modernidade, “na qual a presença do Estado na vida social e econômica se fixa como seu elemento mais negativo e que necessita ser superado ou destruído”. Na sua avaliação, o populismo emergiu num cenário de crise do liberalismo, buscava a construção de uma sociedade industrial e moderna, politicamente orientada pelo Estado, incorporando as massas à cidadania pela via dos direitos sociais. Foi “uma fuga para frente”.

Tratava-se de promover transformações sem rupturas violentas, revolucionárias, como em outros processos de industrialização. Interditou a via clássica de passagem à modernidade, caracterizada pela incorporação dos trabalhadores à democracia liberal. No caso brasileiro, o populismo emergiu após a Revolução de 1930, com Getúlio Vargas, e ganhou feições democráticas em seu segundo governo, na década de 1950. Caracterizou-se como um Estado de bem-estar social incompleto, com programa nacionalista que estatizava alguns setores da economia e legislação trabalhista e corporativista, que organizou e concedeu direitos sociais aos trabalhadores, mas também lhes retirou a autonomia.

O que isso tem a ver com o governo Bolsonaro? Nada! Por isso mesmo, não tem sentido as preocupações com uma possível “guinada populista” do atual governo. O risco é outro: a transformação de um governo bonapartista, com clara hegemonia de um determinado grupo de militares, num governo autoritário que confronta os demais Poderes e, de certa forma, o regime democrático no qual se instalou e funciona. O presidente Jair Bolsonaro não esconde de ninguém que seu espelho é o regime militar instalado após o golpe de 1964, que fará aniversário no último dia deste mês, cujas comemorações estão sendo preparadas por seus aliados, dentro e fora dos quartéis.

Desastre sanitário
No momento mais dramático da pandemia de covid-19, Bolsonaro insiste em suas teses negacionista, apesar de forçado a substituir o general Eduardo Pazuello no comando do Ministério da Saúde, em razão do seu fracasso. Colocou no cargo o médico cardiologista Marcelo Queiroga, que ainda não substituiu os militares neófitos em saúde pública corresponsáveis pelo desastre sanitário que estamos vivendo. Sua mais recente decisão sobre a pandemia foi entrar com uma ação contra governadores e prefeitos que adotaram o “toque de recolher”, que são medidas de restrição de circulação noturna dos habitantes das cidades nas quais a pandemia está fora de controle, preconizadas por sanitaristas, não se compara a um “estado de sítio”. Bolsonaro sabe que está afrontando o pacto federativo, a autonomia de estados e municípios. Sua intenção é responsabilizar o Supremo pela crise econômica provocada pela pandemia. Prefeitos e governadores também não são responsáveis pelo colapso sanitário e a crise econômica, a grande responsabilidade é do presidente da República, pessoal e indivisível.

Há outros fatos ainda mais graves em relação aos impulsos autoritários de Bolsonaro, como as ações da Advocacia-Geral da União (AGU), do Ministério da Justiça e da Polícia Federal com intuito de processar, investigar e prender oposicionistas. O uso político e abusivo desses aparatos de coerção do Estado para intimidar àqueles que criticam seu governo e sua atuação, com base numa anacrônica Lei de Segurança Nacional herdada da ditadura, é muito preocupante. Não, não se trata de uma guinada populista à vista, mas de um comportamento típico de governantes autoritários em apuros, que começam a recorrer à força do Estado para exercer o poder contra a opinião pública, sem considerar os direitos das minorias e a legitimidade do dissenso numa ordem democrática.

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