Memória

Luiz Carlos Azedo: O homem que virou suco

A saída de João Batista da Cultura não foi boa para o governo, a senadora Marta Suplicy (PMDB) recusou convite para voltar à pasta

O drama da resistência de um poeta popular diante de uma sociedade opressora, que o obriga a eliminar suas raízes, é simultaneamente uma alegoria do desenraizamento, da clandestinidade e do exílio, aos quais muitos dos opositores do antigo regime militar foram submetidos. Esse é o enredo do filme O homem que virou suco, do diretor João Batista de Andrade, lançado num momento decisivo da história política do país, após a anistia e o fim do bipartidarismo. Em 1981, a oposição ao regime militar já havia ganho as ruas, mas enfrentava a resistência terrorista dos porões da ditadura, cujo momento mais dramático foi o frustrado atendado à bomba do Rio Centro, em 30 de abril daquele ano.

Deraldo é um nordestino esclarecido que busca sobreviver em São Paulo apenas de suas poesias e folhetos, o que ainda hoje é comum na capital paulista. De camiseta, calção e chinelos, Plínio Marcos, o consagrado dramaturgo de Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, por exemplo, era visto com frequência vendendo seus livros nos eixos São João-Ipiranga, São Luiz -Augusta, Angélica-Consolação. Tudo vai muito bem com o herói do filme, até ele ser confundido com um funcionário de multinacional que matou o patrão na festa em que recebeu o título de operário padrão.

Perseguido pela polícia, Deraldo perde a identidade e a cidadania. Para sobreviver, refaz a trajetória da maioria dos nordestinos numa grande metrópole: vai trabalhar na construção civil, aceita realizar serviços domésticos, vaga pelo metrô, sofre toda sorte de humilhação e violências. Até que resolve contar a história do assassino e escreve o livro O homem que virou suco.

Além de consagrar seu diretor, o filme revelou o grande talento de José Dumont, ao lado de Denoy de Oliveira, Raphael de Carvalho, Ruth Escobar e Dulcinéia de Moraes. Colecionou prêmios em festivais: Melhor Filme em Moscou; Melhor Ator (José Dumont) em Nevers (França); Prêmio da Crítica em Huelva (Espanha); Melhor Roteiro, Melhor Ator (José Dumont), Melhor Ator Coadjuvante (Denoy de Oliveira) no Festival de Gramado; Melhor Roteiro, Melhor Ator (José Dumont) em Brasília; São Saruê da Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro; e Prêmio Qualidade (Brasil) no Concine.

Liquidificador
Na sexta-feira, para não virar suco na crise ética e política, João Batista de Andrade entregou sua carta de demissão ao presidente Michel Temer. Ministro da Cultura interino, pegou o boné porque já estava sendo moído pelo Palácio do Planalto, depois de uma queda de braços em torno da indicação do presidente da Ancine. Queria emplacar no cargo um nome de consenso no meio artístico: “A Débora Ivanov era a indicação de todas as entidades do cinema e também do Ministério da Cultura. O governo resolveu que vai nomear outra pessoa”. O candidato de preferência do presidente Michel Temer é Sérgio Sá Leitão, que já ocupa uma diretoria da Ancine.

O cineasta foi para a secretaria executiva do Ministério da Cultura a convite do ex-ministro Roberto Freire (PPS), a quem é ligado por laços partidários. Foi destacado membro do chamado “Setor Cultural” do antigo PCB, ao lado de outros cineastas, como Alex Viany, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos e Zelito Viana. Ex-secretário de Cultura de São Paulo, Batista presidia o Memorial da América Latina quando foi convocado por Freire, em meio à crise provocada pela barulhenta demissão do seu antecessor: o ex-ministro Marcelo Calero gravou uma conversa politicamente incorreta com Temer, na qual o presidente da República pedia que atendesse um pleito do ex-ministro da Articulação Política Geddel Vieira Lima, que também acabou caindo.
Batista pavimentou o caminho para Freire assumir a pasta, desarmando bombas junto à classe artística, na qual sempre foi muito respeitado. Com a saída do titular, a seu pedido, permaneceu à frente do ministério, interinamente, com toda a equipe que havia sido montada pelo presidente do PPS. O cineasta, porém, nunca foi um homem de aparelho partidário. Antes mesmo da saída de Freire, já se queixava das pressões do Palácio do Planalto em relação à Ancine.

Na semana passada, sua posição tornou-se insustentável. Temer mandou um oficial de gabinete ligar para o ministro interino e comunicar sua indicação para a presidência da Ancine, Sá Leitão. Batista já havia anunciado publicamente o nome de Débora Ivanov e disse ao auxiliar de Temer que a nomeação seria acompanhada de sua exoneração. A saída de João Batista não é uma boa notícia para o governo, ainda mais porque logo veio acompanhada da informação de que a senadora Marta Suplicy, que já foi ministra da Cultura, já havia recusado o convite para voltar à pasta. A bancada do PMDB na Câmara, agora, pleiteia o cargo para o deputado André Amaral (PB). Temer só pretende anunciar o próximo ministro quando voltar da viagem à Rússia.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista

Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-homem-que-virou-suco/

 


Luiz Carlos Azedo: Para onde vamos?

Com o avanço da Operação Lava-Jato, Temer deslocou o eixo de sua atuação das reformas para a preservação do próprio mandato

Boa parte do que pensamos hoje sobre a relação entre economia e política é fruto de um grande debate ocorrido na Europa após a II Guerra Mundial, no qual alguns intelectuais analisaram profundamente as causas do colapso político e econômico do começo do século passado e a ascensão do fascismo. Esse debate proporcionou um período de grande estabilidade. Aqui no Brasil, porém, ocorreu o contrário: por causa da Guerra Fria, esse período foi marcado por crises sucessivas, que resultaram no golpe militar de 1964, ou seja, em 20 anos de ditadura. Quem são esses intelectuais e quais as suas ideias básicas?

Em primeiro lugar, os fundadores da Escola de Chicago, Ludwigh Von Mises e Friedrich Hayek, ambos austríacos, cuja defesa do liberalismo, ou seja, de uma sociedade aberta e livre, visava manter o Estado o mais longe possível da economia, para isolar os radicais de direita ou de esquerda e impedi-los de planejar, dirigir ou manipulá-la.

Com as mesmas preocupações quanto ao passado, em segundo lugar, o economista britânico John Maynard Keynes, chegou a conclusões completamente diferentes, defendendo a intervenção do Estado na economia para garantir a segurança social com políticas anticíclicas e isolar os radicais. Com base nas suas ideias, governos social-democratas e neokeynesianos construíram o Estado de bem-estar social na Europa, até que a onda neoliberal de Margaret Tatcher, na Inglaterra, nos anos 1980, colocasse em xeque essa política.

Somente após a redemocratização, em 1985, as ideias liberais e social-democratas que proporcionaram estabilidade e progresso à Europa Ocidental encontraram um ambiente favorável ao debate aberto e livre aqui no Brasil, sem as contingências da radicalização política causada pela Guerra Fria desde o governo Dutra, em 1946. Entretanto, vivíamos o esgotamento do modelo de substituição de importações e uma profunda crise de financiamento do Estado, o que resultou na hiperinflação do governo Sarney (1985-1989). Foi a partir desse debate que conseguimos controlar a inflação e consolidar a democracia, o que nos proporcionou três inéditas décadas de estabilidade política, em que pese os impeachments de Collor de Mello (1992) e Dilma Rousseff (2016).

Entretanto, esse debate foi mitigado e hegemonizado pela polarização PSDB-PT, desde a eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994. Num primeiro momento, em decorrência do sucesso do Plano Real e da estabilização da moeda. As correntes neoliberais e desenvolvimentistas foram neutralizadas pelo pensamento social liberal predominante na equipe do ministro da Fazenda, Pedro Malan, além da forte influência do pensamento de Peter Ducker nas políticas públicas (fazer com que os serviços públicos adotassem métodos e práticas de gestão das empresas privadas).

A chegada do PT ao poder, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, com sua “Carta aos Brasileiros”, num primeiro momento, garantiu certa continuidade dessas políticas, com ênfase no “focalização” dos gastos sociais nas camadas mais pobres da população, via programas compensatórios de transferência de renda. Esse curso, porém, já no fim do primeiro mandato de Lula, foi alterado profundamente, com a adoção de práticas populistas e medidas nacionais desenvolvimentistas focadas no adensamento cartorial das cadeias produtivas.

E as reformas?

Tal política foi exacerbada ainda mais no governo Dilma. A “nova matriz”, porém, nada mais era do que a fusão do velho “capitalismo de laços” com um novo “capitalismo de Estado”, a serviço da formação de cartéis e grandes empresas monopolistas, os chamados “campeões nacionais”, que garantiram, por meios ilegais, a reprodução eleitoral do bloco político no poder. Esse processo ampliou o patrimonialismo, a corrupção e o fisiologismo, que estão sendo desnudados pela Operação Lava-Jato. E mergulhou o país na mais dura recessão, o que provocou o impeachment de Dilma.

Assim, chegamos ao atual governo. O velho PMDB, fisiológico e patrimonialista, continua o grande fiador da governabilidade e da estabilidade do sistema político. O presidente Michel Temer, o vice que assumiu o poder, recebeu pleno apoio das forças políticas que apoiaram o impeachment, mas não da opinião pública que se contrapôs ao governo Dilma. Seus cacifes: a forte base parlamentar e grande capacidade de articulação no Judiciário.

Temer assumiu o governo com um programa de combate à inflação, recuperação de estatais, limitação de gastos públicos e reformas da Previdência e das relações trabalhistas. Com o avanço das investigações da Operação Lava-Jato, que chegou às cúpulas do PMDB e do PSDB, deslocou o eixo de sua atuação das reformas para a preservação do mandato de presidente da República. Para onde vamos? Ninguém sabe. O cenário é de instabilidade política, incerteza econômica e inquietação social.


Luiz Carlos Azedo: A porta dos fundos

As provas da propina e do caixa dois na campanha da chapa Dilma-Temer podem não ser consideradas no julgamento da eleição, mas continuarão existindo nos processos da Lava-Jato

O relator do pedido de cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Herman Benjamin, durante a leitura de seu voto, independentemente do desfecho do julgamento — que deve ser concluído hoje —, abriu uma discussão sobre a utilização de propina nas eleições pelos maiores partidos do país que deve ir longe, muito longe, chegando mesmo ao Supremo Tribunal Federal (STF), quando ocorrerem os julgamentos dos políticos investigados na Operação Lava-Jato. Segundo o ministro, ao pedir a cassação da chapa, “os partidos que encabeçaram a coligação Com a Força do Povo acumularam recursos de ‘propina-gordura’, ou ‘propina-poupança’, que os favoreceram na campanha eleitoral de 2014”.

Herman Benjamin pôs o dedo na ferida da crise do sistema político e eleitoral: “Trata-se de abuso de poder político e ou econômico em sua forma continuada, cujos impactos, sem dúvida, são sentidos por muito tempo no sistema político-eleitoral”. O que não faltam são provas de caixa dois e de que a propina jorrou da Petrobras para a campanha eleitoral, o que seria motivo de sobra para a cassação da chapa. Mas não é aí que está a disputa no âmbito do TSE. A condenação ou absolvição de Temer depende da interpretação preliminar sobre a validade dessas provas, por parte dos ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Admar Gonzaga, Tarcísio Neto, Luiz Fux, Rosa Weber e Gilmar Mendes. Segundo o presidente do TSE, Gilmar Mendes, os fatos novos ligados à Odebrecht extrapolam os limites da ação.

Benjamin fez um diagnóstico do sistema de financiamento eleitoral: “Os dois partidos da coligação usufruíram, ao longo dos anos, de valores ilícitos, derivados de práticas corruptas envolvendo a Petrobras”. Segundo ele, ambos “estabeleceram fontes de financiamento contínuo, as quais sem dúvida permitiram-lhes desequilibrar a balança da disputa eleitoral”. Mas o modelo não se restringiria ao PT e ao PMDB: “Chamo atenção que não foram esses os dois únicos partidos a agir dessa forma. Há vastos documentos probatórios nos autos em relação aos outros partidos. Mas, como relator, e nós como juízes, só podemos analisar a coligação vencedora na eleição presidencial de 2014”.

Vamos supor que Benjamin perca a discussão nas preliminares, como tudo leva a crer, por 4 a 3, na queda de braços jurídica com o presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, contrário à inclusão das provas. O resultado do julgamento será o reflexo de um duplo posicionamento: primeiro, de natureza processual (as provas não são válidas); segundo, de mérito (Dilma já não é presidente; e/ou Temer não era responsável por suas contas). Essa daria alento às forças que participam do governo Temer, mas certamente será submetida por recurso do Ministério Público ao Supremo, que terá que examinar a questão, ou seja, anular o julgamento e mandar incluir as provas ou referendá-lo e encerrar esse assunto. E o que fazer com o caixa dois e a propina?

Partidos
Mais cedo ou mais tarde esse assunto voltará à baila, em razão da Lava-Jato. O que estará em jogo não é apenas o julgamento dos políticos que estão sendo investigados, inclusive o presidente Michel Temer, que corre o risco de ser denunciado pelo Ministério Público em razão da delação premiada do empresário Joesley Batista, dono da JBS. As provas cabais de que houve propina e caixa dois na campanha da chapa Dilma Rousseff- Michel Temer podem não ser consideradas no julgamento da eleição, mas continuarão existindo nos processos da Lava-Jato.

Também chegará um momento em que os partidos serão julgados pela “propina-poupança” e “propina-gordura”. Há, no próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE), três processos que ameaçam PT, PMDB e PP. A ministra Rosa Weber é a relatora das ações que podem cassar os registros de PT e PP, enquanto Luiz Fux é o do processo aberto contra o PMDB. Ninguém menos do que próprio presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, no ano passado, autorizou a investigação sobre o uso de verbas públicas da Petrobras em benefício do PT no âmbito da Operação Lava-Jato. Se a apuração concluir que houve uso de financiamento vedado pela legislação eleitoral, o resultado pode ser a extinção da sigla.

Gilmar também autorizou investigações contra o PMDB e o PP, com base em suspeitas similares levantadas nas investigações da Lava-Jato. Em fevereiro passado, o TSE destravou o andamento dos três processos, por 5 a 2, ao retirá-lo do então corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Herman Benjamin. No julgamento em curso hoje, Rosa Weber e Luiz Fux apoiam Benjamin. Parece coisa de maluco aventar essa hipótese, mas a legislação eleitoral, cumprida à risca, pode levar a isso. O julgamento de hoje, porém, parece abrir uma saída pragmática e conciliadora para o establishment político do país. Mas é a porta dos fundos.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista

 


Luiz Carlos Azedo: Truco na Lava-Jato

O polêmico acordo de delação da JBS na Operação Lava-Jato virou o jogo na opinião pública sobre as delações premiadas de empresários corruptos

De origem espanhola, o jogo de truco foi popularizado na América Latina por imigrantes espanhóis e italianos, sendo muito popular em São Paulo, Minas, Goiás e no Rio Grande do Sul. O apelo popular do jogo vem do sistema emocionante de apostas, nas quais cada tipo de pontuação pode ser escolhido para marcar mais pontos para a equipe. As propostas são aceitas, rejeitadas ou aumentadas. O blefe e o engano também são fundamentais para o jogo, inclusive na distribuição das “mãos” de cartas, cujo número precisa ser conferido a cada rodada. Com todo respeito, a crise chegou aos tribunais superiores como uma espécie de jogo de truco.

A defesa do presidente Michel Temer pediu, na sexta-feira, ao ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, o desmembramento do inquérito da JBS. O presidente da República é investigado com o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e o deputado federal Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR). O advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira sustenta que os fatos narrados sobre os três políticos na delação do empresário Joesley Batista, dono da JBS, não têm relação entre si. Em outra petição, Mariz pleiteou ao relator da Lava-Jato a “livre distribuição” do inquérito; ou seja, que outro ministro seja sorteado para cuidar do caso, em vez de permanecer com Fachin, como havíamos antecipado no domingo passado. Truco paulista!

No mesmo dia, quando parecia que a iniciativa estava com o presidente da República, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) autorização para que sejam interrogados Temer, Aécio e Rocha Loures, bem como outros citados na delação da JBS. Quem vai decidir a questão é o ministro Édson Fachin, que a defesa não reconhece como juiz natural, porque o caso não está ligado ao escândalo da Petrobras. Janot pede ao relator para definir como será feito o depoimento, que normalmente fica a cargo da Polícia Federal. Truco mineiro? Pode ser que não: o pleito da defesa de Temer é que seja feito por escrito, após a perícia da gravação do empresário Joesley Batista. O presidente da República é investigado no STF por suspeita de corrupção, organização criminosa e obstrução de Justiça. Ou seja, virou pivô da crise.

Para embaralhar as cartas, o ministro Gilmar Mendes trucou de verdade, à moda goiana. Anunciou que pretende rediscutir a forma como delações premiadas devem ser homologadas (validadas juridicamente) e também a decretação de prisão após a condenação em segunda instância. A oportunidade veio com o polêmico acordo de delação da JBS na Operação Lava-Jato, que virou completamente o jogo na opinião pública sobre as colaborações feitas por empresários corruptos. Mendes quer que as delações deixem de ser uma espécie de monopólio do relator e passem a ser homologadas de forma colegiada, pelos 11 ministros do STF, em sessão plenária, ou por uma de suas duas turmas, cada qual com cinco ministros.

Gilmar disse que o falecido ministro Teori Zavascki, antigo relator da Operação Lava-Jato, havia conversado com ele sobre essa questão. Se houver mais interlocutores com os quais o antigo relator tenha conversado, a chance desse truco é grande. “O que a lei diz? Que o juiz é quem homologa, mas o juiz aqui não é o relator, quando se trata de tribunal, é o próprio órgão. Ele pode até fazer a homologação prévia, mas sujeita a referendo.” O fato de o caso envolver o presidente da República praticamente consagra a tese, pois não há como deixar de discutir o tema no próprio plenário.

“Mão” gaúcha
O truco gaúcho é jogado com baralho espanhol, não o francês, e será a rediscussão da execução penal após a condenação em segunda instância, que tanto apavora os envolvidos na Operação Lava-Jato sem direito a foro especial, ou seja, principalmente aqueles que estão sendo julgados em Curitiba pelo juiz federal Sérgio Moro, cujas decisões quase sempre são referendadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre. Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello discordam das prisões após decisão em segunda instância e defendem que ocorra somente após a terceira instância, no caso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com base nisso, Gilmar pretende propor uma revisão da questão pelo Supremo, o que muda muito as regras do jogo para a força-tarefa da Operação Lava-Jato.

O ministro Gilmar Mendes vinha se mantendo em silêncio nas últimas semanas, quebrado ontem com novas e polêmicas declarações sobre a Lava-Jato. Mas confirmou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) iniciará em 6 de junho o julgamento da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, cuja eleição pode ser anulada por abuso de poder econômico, a pedido do PSDB. O vice-procurador-geral eleitoral, Nicolau Dino, pediu a cassação da chapa, ou seja, do mandato de Temer, e dos direitos políticos da ex-presidente Dilma Rousseff, por oito anos. O voto do ministro relator do caso, Herman Benjamin, anterior à delação premiada de Joesley Batista, pede a cassação. Hoje, teria apoio da maioria do plenário. Entretanto, é dado como certo o pedido de vista por um dos ministros indicados pelo presidente Michel Temer. Nesse caso, o julgamento vai para as calendas.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista



Luiz Carlos Azedo: O juiz de Bruzundanga

Afinal, o que seria de Bruzundangas se todos tivessem a mesma aposentadoria e os mesmos direitos?

A República de Bruzundanga, de Lima Barreto, completa 95 anos, uma efeméride pouquíssimo lembrada, a não ser por alguns estudantes de Literatura. Às vésperas de Natal de 2014, ela já havia sido abalada por um escândalo envolvendo a maior empresa estatal do país, uma petroleira, e os donos da nação, entre os quais estavam a Mandachuva — a primeira mulher a assumir a Presidência — e seu padrinho, o Mandachuva que a antecedera. O problema é que ninguém ainda sabia disso, a não ser o cronista que reconta essa história, num tributo ao escritor carioca maldito (ele era pobre, mulato e gay).

No país imaginário de Lima Barreto, a esposa do presidente de uma grande empresa que estava preso ameaçara contar tudo o que sabia à polícia e à Justiça sobre o maior escândalo de corrupção da nação, se o marido passasse o ano-novo na cadeia. Estava revoltada porque os donos da empresa decidiram demitir todos os executivos e foram passar o Natal em um balneário do Caribe, depois de encerrar os negócios no ramo da construção para viver de outras fontes de renda. O recado veio cifrado numa nota de coluna de jornal.

Por essa razão, o executivo foi solto, chegou a fazer uma delação premiada, mas ela foi incinerada pelas autoridades porque houve um vazamento do conteúdo para jornais e revistas sensacionalistas, que insistiam em escandalizar o povo com os podres da República. O problema é que ele não desistiu, negociou nova delação, com mais 40 executivos da empresa. Em sua obra póstuma, o mestre do escárnio já havia desnudado a essência de Bruzundanga. Quase cem anos depois, nada havia mudado quanto aos costumes políticos. Só as velhas patacas foram substituídas pelo barusco, a moeda criada em homenagem ao ex-diretor da petroleira local que resolveu denunciar as falcatruas que escandalizavam o mundo naquele Natal. Mas já estavam inflacionadas pela enxurrada de dólares que jorraram das plataformas da petroleira para misteriosas contas no exterior.

O ex-mandachuva continuou a trajetória como aquele personagem de Todos os homens são mortais, de Simone de Beauvoir, o Conde Fosca, já citado em 2014, quando começou a Operação Enxuga Devagar. Se vocês não se lembram, por ser imortal, esse personagem podia decidir o que quisesse, os outros pagavam com a própria vida quando algo dava errado. Naquele Natal, a esposa de um executivo da petroleira que havia sido preso procurara o secretário particular do ex-mandachuva e avisara que contaria tudo se o marido continuasse em cana. Ele também foi solto a tempo de participar do amigo oculto da família, graças à Mandachuva, que gastou um dos cartuchos que tinha no tribunal para conseguir-lhe um habeas corpus. Coisas que ainda aconteciam em Bruzundangas.

Privilégios

Mas havia um juiz ferrabrás numa das províncias que resolveu subverter a ordem natural das coisas e pôs em cana todos os envolvidos no escândalo ao seu alcance. O ex-diretor da petroleira, convencido pela família, resolveu falar o que sabia. Relatou três encontros com o ex-mandachuva, que tinha conhecimento de tudo o que se passava na petroleira e agora ele está na iminência de ser preso. O executivo da estatal também entregou a ex-mandachuva, que meteu as mãos pelos pés e, no passado, acabou apeada do poder. Agora, também corre o risco de ser condenada e presa.

No meio de tanta confusão, o vice-mandachuva assumira o poder. Nele ainda se equilibra para terminar o mandato e chegar às eleições nacionais do ano que vem. A situação no país continua delicada. Durante a crise mundial, o povo viveu no mundo da fantasia, gastando mais do que podia, como naquela fábula da cigarra e da formiga. Agora, a saída é acabar com os privilégios e reinventar a economia, mas a elite política, os empresários que mamam nas tetas do governo e a alta burocracia resistem às reformas. Afinal, o que seria de Bruzundangas se todos tivessem a mesma aposentadoria e os mesmos direitos? O escândalo na petroleira virou o país de cabeça pra baixo. Quem foi mandachuva em Bruzundanga jamais perde a majestade. Na quarta-feira, ele será interrogado pelo juiz ferrabrás. O problema é que o tal magistrado veio de Curitiba.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista.


Luiz Carlos Azedo: A greve geral

“Não houve greve geral, houve paralisações de servidores e nos transportes, muita agitação e vandalismo”, disparou o Sueco

“No meu tempo, Saldanha, essa greve seria considerada um fracasso; cadê a classe operária? Greve foi a de 1953, em São Paulo. O que você acha, Chamorro?”, indagou o Sueco, como era conhecido Geraldo Rodrigues dos Santos, o Geraldão, um negro alto, de fala mansa e sorriso fácil. Santista, Geraldão era portuário e participou intensamente da greve que parou São Paulo e o Porto de Santos na década de 1950. Durante o regime militar, dirigiu o PCB na antiga Guanabara, na mais rigorosa clandestinidade, onde reencontrou os dois camaradas.

Seu amigo João Saldanha, o Souza, ficou famoso como comentarista esportivo e técnico da seleção brasileira de futebol, mas, na década de 1950, era dirigente do PCB no bairro paulista da Moóca, onde a greve começou. Fazia a ligação entre o líder comunista Carlos Marighella e o comando de greve. Durante a ditadura, deu cobertura para o velho amigo Geraldo, que andava com uma cápsula de cianureto no bolso para ingerir caso fosse preso. O Sueco havia jurado não delatar nenhum companheiro na tortura; preferiria morrer se fosse preso.

Geraldão vivia num “aparelho” na Favela da Maré, que somente alguns familiares e o motorista Dedé, que tinha um táxi, conheciam. O terceiro camarada na conversa vivia clandestino em Niterói, com o nome de Paulinho, onde organizava os trabalhadores têxteis e operários navais. Era ninguém menos do que Antônio Chamorro, um dos líderes da greve geral, ao lado da também tecelã Maria Sallas e do metalúrgico Eugênio Chemp.

“O Marighella chegou na redação do Notícias de Hoje, reuniu todo mundo e apresentou o plano de parar a capital, a ferrovia e o porto de Santos. Depois, pretendia abrir as sedes do partido na marra”, relata Saldanha, que já era jornalista. O PCB vinha de uma derrota eleitoral fragorosa para Jânio Quadros, que obtivera 285 mil votos na disputa pela Prefeitura da capital, na capital paulista, enquanto André Nunes Júnior, apoiado pelos comunistas, não chegara a 17 mil votos. A eleição havia acontecido três dias antes, em 22 de março. A tese parecia uma loucura do líder comunista, que, na década de 1970, viria a aderir à luta armada e acabou morto pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, durante a Operação Bandeirantes.

Naquele 25 de março, o PCB completava 31 anos. Chamorro e Maria Sallas lideravam uma assembleia de trabalhadores da indústria têxtil no Salão Piratininga, na rua da Moóca, na qual reivindicavam 60% de aumento salarial. Por causa da inflação, o apoio à greve foi quase unânime. No dia seguinte, encabeçados por Eugênio Chemp, os metalúrgicos aderiram à greve, lutavam por 800 cruzeiros a mais nos salários. No terceiro dia de greve, eram 70 mil operários concentrados no antigo hipódromo da Moóca. Piquetes de mil trabalhadores saíram em direção às demais fábricas de São Paulo, parando 70 empresas no dia seguinte. Houve repressão, mais de duas mil pessoas foram presas, Chemp quase levou um tiro. Uma tecelã e um metalúrgico foram feridos à bala. Mesmo assim, marceneiros, carpinteiros, padeiros, sapateiros, vidreiros, gráficos e até os trabalhadores da cervejaria Brahma pararam. Eram 300 mil operários de braços cruzados.

Chemp encerrava ali sua carreira paralela de craque do São Paulo Futebol Clube, onde até hoje figura na lista dos estrangeiros que mais brilharam no clube: 14 gols em 19 jogos, em oito vitórias, seis empates e cinco derrotas. Nasceu em Kiev, na Ucrânia, mas tinha nacionalidade uruguaia. Chamorro era brasileiro, descendente de espanhóis. O Brasil transitava do rural para o urbano com a industrialização de São Paulo, cuja capital passara a ser a maior cidade do país. No começo da década de 1950, mais de 1 milhão de trabalhadores fizeram greves, que traziam a novidade de lutar contra a carestia, ou seja, contra a inflação, e não apenas por aumentos salariais.

Paraquedas
O Pacto de Unidade Intersindical (PUI), que resultou dessas greves, foi uma reação à CLT de Vargas e ao atrelamento dos sindicatos ao Ministério do Trabalho, que hoje as centrais sindicais estão defendendo, num período de expansão da indústria e do trabalho assalariado no campo; em contrapartida, havia inflação alta e superexploração do trabalho. Com o fortalecimento dos sindicatos, o movimento desaguou na greve geral de julho de 1962, quase dez anos depois, que resultou na conquista da lei do 13º salário, sancionada pelo presidente João Goulart. Mas voltemos à conversa entre os três amigos, sentados na beira de uma nuvem bem alta, lá no céu.

“O que você achou da greve, Geraldo?”, perguntou Saldanha. “Não houve greve geral, houve paralisações de servidores e nos transportes, muita agitação e vandalismo”, disparou o Sueco. “Só espero que ninguém morra”, completou Chamorro. Foi uma alusão ao Primeiro de Maio de 1953, comemorado no antigo hipódromo da Moóca, após a conquista de 32% de aumento salarial para praticamente todas as categorias grevistas.

A história é a seguinte: Um anarquista italiano, para abrilhantar a festa, resolveu saltar de paraquedas. Acontece que o equipamento não abriu e a festa virou tragédia. Revoltada, a família não queria um enterro de herói da classe operária. Os grevistas, porém, insistiram e fizeram, na marra, um funeral de gala. Bradavam: “O cadáver é nosso!”

Luiz Carlos Azedo é jornalista

 


Luiz Carlos Azedo: Outro rombo no casco

O coração da investigação sobre Duque é a criação da Sete Brasil, pela Petrobras, para a construção de 21 sondas de perfuração no pré-sal

Às vésperas da greve geral convocada para hoje, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu mais um torpedo abaixo da linha d’água: a notícia de que o ex-diretor de Serviços da Petrobras Renato Duque fará delação premiada. Preso em Curitiba, a sua defesa protocolou ontem um pedido de novo interrogatório ao juiz federal Sérgio Moro, no qual os advogados afirmam que “o acusado de forma espontânea e sem quaisquer reservas mentais, pretende exercer o direito de colaborar com a Justiça”. Ao lado do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto, Duque fazia parte da blindagem petista a Lula e Dilma Rousseff no escândalo da Petrobras.

Duque mira a redução da pena. Em quatro ações penais, uma das quais por lavagem de dinheiro e ocultação de bens e valores, foi condenado a mais de 50 anos de prisão e responde a outros seis processos na 13ª Vara Federal de Curitiba. Tudo indica que sua delação está em linha com a do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci, que também tentou convencer Vaccari a contar tudo o que sabe sobre o esquema de corrupção que operava em nome da cúpula do PT. Se Vaccari aceitar o acordo, a situação da cúpula petista, de Lula e de Dilma ficará mais complicada.

O coração da investigação sobre Duque é a criação da Sete Brasil, pela Petrobras, para a construção de 21 sondas de perfuração no pré-sal, com a participação da Odebrecht, dos fundos de pensão, do BNDES e alguns bancos. O caso foi delatado pelo ex-gerente de Serviços da Petrobras Pedro Barusco, que presidiu a empresa. A Odebrecht chegou a pagar propinas no valor de R$ 252,5 milhões aos envolvidos no escândalo, em troca de contratos no valor de R$ 28 bilhões. Duque pode relatar como foi o processo decisório na Petrobras, do qual o ex-presidente Lula teria tomado parte, segundo as delações de Marcelo e Emílio Odebrecht.

Mesmo em Vaccari, as duas delações vão apertar o cerco ao ex-presidente da República que deverá ser interrogado pelo juiz federal Sérgio Moro no próximo dia 10, em Curitiba. O depoimento estava marcado para o dia 3, mas acabou adiado a pedido da Polícia Federal. Ciente de que sua situação está se complicando cada vez mais, o petista aposta na politização do processo e antecipou o lançamento de sua candidatura a presidente da República em 2018. Além disso, vem subindo o tom contra Sérgio Moro, a ponto de dizer que vai se mudar para Curitiba e, assim, comparecer às audiências das 87 testemunhas que indicou, atendendo intimações do juiz. Ou seja, fará do julgamento um palanque eleitoral.

Mas se engana quem pensa que Lula escolheu Moro como adversário eleitoral. O petista já apontou as baterias para o prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), que não se fez de rogado e também se movimenta como candidato a presidente da República, encarnando o figurino do anti-Lula. Nesse aspecto, hoje, em São Paulo, que as centrais sindicais pretendem parar, haverá um duelo entre Lula e o prefeito tucano, que gravou um vídeo convocando os funcionários da prefeitura ao trabalho e oferecendo transporte alternativo para os que desejarem trabalhar.

A greve geral

Desde o Germinal, de Émile Zola, cuja história se desenrola durante a preparação e eclosão de uma greve de mineiros no norte da França, a greve é descrita como a forma de luta mais eficaz e radical dos trabalhadores. O autor chegou a viver alguns meses entre os mineiros para reproduzir as condições de trabalho e vida deles, os primórdios da organização política e sindical e as divisões entre marxistas e anarquistas, que já existiam quando o livro foi lançado, em 1888. Germinal é o nome do primeiro mês da primavera no calendário da Revolução Francesa. Clássico do naturalismo, Zola associa as sementes das novas plantas à possibilidade de transformação social: os brotos das mudanças sempre voltarão a germinar. A história se passa na segunda metade do século XIX e virou leitura quase obrigatória de sindicalistas e militantes de esquerda no século passado.

A greve convocada para hoje contra a reforma trabalhista e a reforma da Previdência ocorre num mundo completamente diferente daquele que inspirou a criação das grandes centrais sindicais e o chamado Estado de bem-estar social, que se baseava na grande indústria mecanizada e nas linhas de produção do taylor-fordismo. Essa é uma realidade que já não existe mais nos setores mais dinâmicos da economia, haja vista as montadoras de automóveis completamente robotizadas e as modernas colheitadeiras de soja, que realizam em meia hora o trabalho de um dia. É uma greve de sindicalistas em defesa do imposto sindical e servidores públicos que não querem abrir mão do regime de Previdência diferenciado.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista.

Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-outro-rombo-no-casco/


Luiz Carlos Azedo: Cresos e Cassandras

Uma das dificuldades do país hoje são as previsões extremas e antagônicas sobre os problemas nacionais que estão na ordem do dia

O físico Carl Sagan, na coletânea Bilhões e bilhões (Companhia de Bolso), tem um artigo muito interessante, embora publicado há mais de 20 anos, sobre as profecias e previsões entre cientistas preocupados com a poluição e a camada de ozônio às vésperas do Terceiro Milênio. Creso e Cassandra representam, na mitologia grega, as reações extremas às predições de perigo mortal e catástrofe iminente. Num ambiente de radicalização e narrativas exageradas como as que estamos vivendo, vale a pena revistá-los.

Creso, rei da Lídia (hoje Anatólia, na Turquia), conhecido na História pela riqueza e pela criação da moeda no século VII a.C., tinha uma ambição maior que os limites de sua nação. Imaginou que seria vantajoso invadir a Pérsia, a superpotência da Ásia Ocidental, que Ciro havia construído ao unir persas e medas. Para isso, mandou emissários ouvirem a sacerdotisa do Oráculo de Delfos, criado por Apolo para oferecer aos humanos previsões do futuro. Conta Heródoto que chegaram carregados de presentes e uma pergunta: “O que acontecerá, se Creso declarar guerra à Pérsia?”.

A resposta de pítia, a serpente, uma das encarnações da sacerdotisa, foi categórica: “Ele vai destruir um poderoso império”. Quando os emissários relataram a resposta a Creso, ele imaginou que tinha o apoio dos deuses e resolveu invadir a Pérsia. Sofreu uma derrota humilhante, seu reino foi destruído e Creso passou o resto dos dias como funcionário da corte persa, distribuindo conselhos inúteis, porque ninguém o levava a sério. Seu erro foi não mandar os emissários perguntarem quem seria destruído. Na política brasileira, abundam situações parecidas. Um dos erros mais frequentes é permitir que as próprias ambições atrapalhem a compreensão da correlação de forças e dos obstáculos políticos.

Outra história sobre os oráculos lembrada por Carl Sagan é a de Cassandra, a princesa de Troia, a mais bela filha de Príamo, por quem Apolo era apaixonado, sem ser correspondido. Para seduzi-la, ofereceu-lhe o dom das profecias. Cassandra aceitou a oferta, mas resistiu aos assédios. Na peça Agamenon, Ésquilo conta que Apolo ficou furioso. Não podia retirar os poderes, porém, por vingança, decidiu que ninguém acreditaria nas suas profecias. Cassandra previu a queda de Troia, mas ninguém levou a sério; como também não a levaram quanto à morte de Agamenon. Cassandra previu a própria morte e é chamada de profetiza do abismo e das trevas. Na política, quando alguém faz uma previsão pessimista, é chamado de Cassandra.

Uma das dificuldades do país hoje são as previsões extremas e antagônicas sobre os problemas nacionais, alguns dos quais estão mesmo na ordem do dia. Por exemplo, a reforma da Previdência. De fato há um grande interesse do sistema financeiro numa reforma radical, que transforme a previdência privada numa necessidade real para a grande massa de servidores públicos e trabalhadores assalariados de nível superior, que futuramente teriam que recorrer a alguma forma de fundo previdenciário para garantir uma renda satisfatória para compensar o novo teto das aposentadorias.

Se opor à reforma por causa dessas intenções, porém, seria uma aposta parecida com a de Creso, pois o adiamento da reforma pode ser um tiro no pé. A médio e longo prazos, a Previdência não tem sustentabilidade. O exemplo do que pode acontecer é a situação daqueles que estão sem receber suas aposentadorias e pensões no Rio de Janeiro, porque o sistema quebrou. De igual maneira, apoiar a reforma incondicionalmente pode não ser a melhor opção. É um erro tratar todos os críticos da reforma da Previdência como os troianos trataram Cassandra.

Apostas radicais

A mesma coisa vale para a legislação trabalhista. A recente votação do projeto de terceirização, por exemplo, se enquadra numa situação semelhante. Os defensores incondicionais da atual legislação trabalhista estão adotando como paradigma o sistema relação taylor-fordista, que foi completamente superado. O toyotismo, os sistemas flexíveis de produção, a automação e a robotização estão revolucionando as formas de produção, as condições de trabalho e as próprias profissões, pois algumas deixam de existir e outras surgem. Talvez o mais emblemático exemplo seja a difícil coexistência entre os táxis e o Uber.

Lidar com apostas radicais é sempre um risco. É a situação do presidente do PSDB, Aécio Neves (MG), autor da ação que pede a cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer. O tucano está mais ou menos como Creso na campanha contra Ciro, pois Dilma foi afastada pelo impeachment, mas agora, no julgamento da chapa, quem está na berlinda é o presidente Michel Temer. Além disso, as investigações sobre o caixa dois da Odebrecht, que alimentou a campanha da petista, foram regionalizadas e derivaram para os demais partidos, inclusive o PSDB mineiro.

Deixando a mitologia de lado, o risco de “judicializar” as disputas políticas sempre é perder o controle da situação. No ano passado, a cassação da chapa poderia ter resultado numa eleição direta na qual Aécio teria possibilidades reais; hoje, não, a eleição seria indireta. E a cassação de Temer pelo TSE, em razão da condenação da chapa, lançaria o país num cenário de turbulência exacerbada e absoluta imprevisibilidade política.


Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br/azedo


Palocci

Luiz Carlos Azedo: Monopólio da política

Publicado no Correio Braziliense em 07/03/2017

Há uma contradição entre a sensível melhora do ambiente econômico e a deterioração crescente do ambiente político, em razão da degenerescência dos partidos

Há muito que a política deixou de ser monopólio dos políticos, dos diplomatas e dos militares. No caso brasileiro, embora pareça o contrário, os atores políticos decisivos para a irrupção de crises que balançam o coreto dos mais poderosos costumam ser personagens à margem do processo decisório, como o motorista do ex-presidente Fernando Collor de Mello, o caseiro do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci e, mais recentemente, a secretária do Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, Maria Lúcia Tavares, que, por 11 anos, cuidou dos pagamentos nacionais do caixa dois da empreiteira. Os pagamentos internacionais são outra história, que já começa a aparecer.

No Tribunal Superior Eleitoral, Maria Lúcia explicou ao ministro Hermann Benjamin, relator da ação do PSDB que pede a cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, a atual dor de cabeça do Palácio do Planalto e do stablishment político do país. “A gente recebia uma planilha. Nessa planilha havia uns codinomes, esses codinomes vinham com os valores e a data da entrega. Esperava o chefe mandar pra mim os endereços e eu passava para o prestador de serviço”, disse Maria Lúcia. Uma das planilhas, chamada Programa Especial Italiano, contabilizava os repasses para o Partido dos Trabalhadores. Entre 2008 e 2013, teriam sido R$ 128 milhões.

Ontem, o engenheiro civil Fernando Sampaio Barbosa, ex-diretor da Odebrecht, arrolado como testemunha de defesa do ex-presidente da Odebrecht S.A. Marcelo Odebrecht e, ao prestar depoimento ao juiz federal Sérgio Moro, em Curitiba, confirmou o que os investigadores da Operação Lava-Jato já sabiam: o operador do esquema de caixa dois do PT na campanha de 2010 era o ex-ministro da Fazenda de Lula, que chefiou a Casa Civil nos primeiros meses do governo Dilma Rousseff, posição conquistada por sua atuação na campanha. “A gente sabia que o ‘Italiano’ era o Palocci”, disse Barbosa. O petista é réu no processo porque recebeu R$ 128 milhões em propinas e repassou ao PT, entre os anos de 2008 e 2013. O “Italiano” era citado num e-mail enviado por Marcelo Odebrecht para Barbosa e outros executivos da empresa. Palocci nega. Havia outro italiano no esquema da campanha de 2014: o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, denunciado pelo próprio Marcelo Odebrecht na semana passada.

A débâcle

Ontem, três delatores da Odebrecht prestaram depoimentos sigilosos no Tribunal Superior Eleitoral: os ex-executivos Cláudio Melo Filho, Hilberto Mascarenhas e Alexandrino de Salles Ramos de Alencar, que ocupou a diretoria de Relações Institucionais da Odebrecht; na semana passada, depuseram Marcelo Odebrecht, ex-presidente da companhia; Benedicto Júnior, ex-presidente da Odebrecht Infraestrutura; e Fernando Reis, ex-presidente da Odebrecht Ambiental. Cláudio Melo Filho era responsável pelo contato da cúpula da empresa com políticos no Congresso. Revelou que a doação de R$ 10 milhões para o PMDB em 2014 foi feita a pedido do presidente Temer, então vice de Dilma Rousseff.

Vem muito mais por aí. Alexandrino de Alencar era o companheiro de viagens internacionais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, patrocinadas pela Odebrecht, na prospecção, digamos, assim, de negócios no exterior, principalmente grandes obras de engenharia. Hilberto Mascarenhas era um dos executivos do “Setor de Operações Estruturadas”, uma engrenagem complexa, com empresas que lavavam dinheiro, como cervejarias, e até mesmo uma transportadora de valores. A conexão entre as investigações da Operação Lava-Jato e o julgamento da ação do PSDB contra a chapa Dilma-Temer são dois lados de um triângulo de fogo. A incógnita é a temperatura de ignição, ou seja, o clima político no país.

A decisão estratégica de promover uma ampla, geral e irrestrita delação do esquema de propina da Odebrecht, que era considerado inexpugnável até a secretária entregar o ouro, depois de 10 dias de prisão, foi tomada por Emílio Odebrecht, que reassumiu o comando da empresa para tentar salvá-la do colapso total. O acordo de delação premiada deslocou o eixo das investigações do modus operandi das grandes empreiteiras e do nosso capitalismo de laços para o financiamento eleitoral dos partidos e dos políticos, que se confunde com os desvios de recursos públicos, o enriquecimento ilícito e a lavagem de dinheiro. Engenheiros conhecem muito bem a teoria do caos e parece ter sido essa a grande aposta para escapar de longas penas de prisão, como a de Katia Rabelo, do banco Rural, no julgamento do mensalão.

Há uma contradição entre a sensível melhora do ambiente econômico e a deterioração crescente do ambiente político, em razão da degenerescência dos partidos. Para que o país possa reencontrar o rumo do desenvolvimento, terá que fazer escolhas difíceis. O grande problema é que os políticos acreditam que têm o monopólio da política. Temos, porém, uma Constituição democrática, um calendário eleitoral e uma democracia de massas, com 145 milhões de eleitores. Se a Constituição for respeitada, sempre haverá uma saída democrática, mesmo se houver uma implosão do sistema partidário por causa da Lava-Jato.


Luiz Carlos Azedo: Os limites da União

O poder centralizador da União se manteve como herança do regime militar. Vem daí o desequilíbrio na relação entre os entes federados

O pacto federativo é assim chamado porque pressupõe, digamos, uma grande aliança nacional e acordos entre os estados e a União. Não é uma coisa simples. Muito sangue já correu no Brasil por causa disso. A Revolução Pernambucana, por exemplo, que completará 200 anos no próximo dia 6 de março, foi provocada pela insatisfação popular causada pela Corte de D. João VI, desde sua chegada ao Brasil, em 1808. A ocupação dos cargos públicos pelos apaniguados portugueses e os impostos e tributos criados por D. João VI causaram a revolução, que fechou o ciclo das revoltas do período colonial e, de certa forma, precipitou a Independência, pois seu caráter era emancipacionista.

Os pernambucanos sofreram grande influência das ideias iluministas, que se opunham à monarquias absolutas, a partir da Revolução Francesa. Liberdade, igualdade e fraternidade eram as bandeiras dos revoltosos. A crise econômica provocada pela queda das exportações de açúcar, consequência da guerra na Europa, foi agravada pela seca de 1816, que aumentou a fome e a miséria no sertão pernambucano. Seus revolucionários, liderados por Domingos José Martins, com apoio de Frei Caneca e Antônio Carlos de Andrada e Silva, queriam a independência, a República e uma Constituição. Mas foram duramente reprimidos e a revolta acabou esmagada.

A centralização política sempre foi submetida à prova. No Império, na Confederação do Equador (1824), uma espécie de repeteco da Revolução Pernambucana; na Cabanagem (1835 a 1840), no Pará; na Balaiada (1838 a 1841), no Maranhão; na Sabinada (1837 a 1838), na Bahia; na Guerra dos Farrapos (1835 a 1845), no Rio Grande do Sul e Santa Catarina; e na Revolta dos Malês (1835), uma rebelião de escravos muçulmanos em Salvador. Durante a República, pela revolta de Canudos, pelo movimento tenentista e, principalmente pela Revolução de 1930. O golpe militar de 1964 também teve elementos de esgarçamento das relações entre os estados e União, mas a influência da Guerra Fria e da radicalização política dela decorrente fizeram toda diferença.
Talvez a grande singularidade de hoje, em relação às situações anteriores, seja o fato de que o atual pacto federativo não se baseia apenas na relação entre a União e as oligarquias regionais, embora essa característica também dela faça parte. Na Constituinte de 1987, houve um pacto do Estado com sociedade em bases democráticas. O poder dos governadores acabou mitigado pela emancipação dos municípios, que passaram a ser considerados entes federados. Em contrapartida, o poder centralizador da União se manteve como herança do regime militar. Vem daí um desequilíbrio na relação entre os entes federados que foi exacerbado durante os governos Lula e Dilma. Como? Via desonerações fiscais (principalmente dos tributos compartilhados) e transferência seletiva de recursos para estados e municípios controlados pelos petistas e seus aliados.

Descompressão

O impeachment da presidente Dilma Rousseff funcionou como uma espécie de válvula de descompressão nessa relação com os governadores, que agora buscam jogar nas costas da União toda a responsabilidade pela crise fiscal. Tentam se aproveitar da fraqueza do governo Temer, numa hora em que o equilíbrio das contas públicas é o único caminho viável para o controle da inflação e a retomada do crescimento. Dos nove estados com folha salarial acima do limite estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, apenas três realmente estão em situação de calamidade: Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Estão sem condições de pagar servidores e aposentados. Mato Grosso do Sul, Paraíba, Goiás, Paraná, Roraima e o Distrito Federal ainda podem segurar a onda se voltarem atrás na farra dos aumentos salariais.

Os demais estados apresentam situação fiscal sob controle, mas também tentam tirar vantagem da negociação do governo federal com os estados quebrados, principalmente a negociação com o Rio de Janeiro.Vários estados ingressaram com ações no Supremo Tribunal Federal (STF), que deu um prazo de 60 dias para que o governo federal chegasse a um acordo com os governadores que mitigasse os efeitos da crise sobre as finanças estaduais. O acordo foi feito e o Congresso aprovou uma lei dando um prazo de mais 20 anos para que os Estados quitassem a dívida que já tinha sido renegociada pela União, suspendendo o pagamento das parcelas mensais até o fim de 2016. O pagamento das prestações será retomado neste mês, com elevação gradual de 5,26 pontos percentuais até 2018. Foram ampliados também os prazos de créditos dos estados com o BNDES. O acordo vale R$ 26 bilhões (R$ 20 bilhões com o Tesouro e R$ 6 bilhões com o BNDES). Quem pagará essa conta? Todos nós!


Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br/azedo


Luiz Carlos Azedo: Vastas emoções e pensamentos imperfeitos

Quem já estava achando que a Lava-Jato havia ultrapassado os limites, que se prepare: o strike vem agora

Tomo emprestado o título da coluna do livro de Rubem Fonseca sobre um cineasta sem nome, escolhido para fazer um filme inspirado no romance A Cavalaria Vermelha, de Isaac Bábel. O personagem vai se degradando ao longo da narrativa e se aproximando cada vez mais de uma moral marginalizada, até atingi-la por completo. É uma história completamente tresloucada, na qual se misturam cinema e literatura, sonho e realidade. Para mostrar a decadência moral do protagonista/narrador, o escritor utilizou todos os seus dotes de ensaísta, contista, romancista e roteirista. Ex-comissário de polícia e ex-professor de psicologia da Fundação Getulio Vargas, Rubem Fonseca bem que poderia escrever um romance sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a Operação Lava-Jato.

Ontem, o Ministério Público Federal anunciou o acordo de delação premiada de Marcelo Odebrecht, que se encontra preso, e mais 78 executivos da empresa. Fala-se em cerca de 200 políticos denunciados, dos quais seriam 20 governadores. “Passarinho que come pedra sabe o fiofó que tem”, diz o ditado popular. Há um clima de desespero no Congresso, uma vez que tal fato pode aniquilar a elite política do país. É uma espécie de efeito Orloff, no qual os políticos com mandato imaginam o próprio destino a partir dos colegas que estão presos porque perderam o foro privilegiado: José Dirceu, Antônio Palocci, Delcídio do Amaral, Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, todos foram muito poderosos e são dignos de um romance de Rubem Fonseca.

Cada político reage de uma maneira, não existe um padrão de “gerenciamento de crise” para a Lava-Jato. O maior especialista no assunto, o jornalista Mario Rosa, foi um dos que viram a carreira desmoronar porque alguns de seus melhores clientes foram levados de roldão pelo escândalo e ele próprio se viu diante da necessidade de dar explicações sobre seu trabalho com eles. Agora, conta os bastidores dos escândalos que gerenciou num boletim eletrônico. O que será que se passa na cabeça dos políticos citados na delação? Embora seus nomes não tenham sido divulgados, sabem o que fizeram nos verões passados. Onde termina o caixa dois eleitoral e começa a lavagem de dinheiro e o enriquecimento ilícito?

Nos bastidores de Brasília, alguns atores já não conseguem esconder a depressão com essa situação. Diante da decadência moral, não estão apenas mergulhados, estão em crise pessoal, a ponto de preocupar os amigos. Por uma dessas coisas que só acontecem no Brasil, até agora, ninguém morreu. Não houve assassinatos de investigadores, promotores e juízes como na Itália. Não houve até agora nenhuma queima de arquivo, ninguém tentou o suicídio. “Isso é coisa da antiga, não existe mais isso”, ironiza um velho criminalista. Quem já estava achando que a Lava-Jato havia ultrapassado os limites, que se prepare: o strike vem agora.

Anistia geral

Como reagirão os políticos diante de tudo isso? Os mais enrascados articulam uma anistia ao caixa dois eleitoral de carona nas 10 medidas de combate à corrupção propostas pelo Ministério Público. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva partiu para o ataque frontal contra o juiz federal Sérgio Moro. Como seu prestígio eleitoral é cadente, faz uma campanha internacional com relativo sucesso, mas não a ponto de as autoridades da Suíça e dos Estados Unidos deixarem de subsidiar os procuradores brasileiros com a rota da grana desviada da Petrobras e das obras públicas.

O outro a encarar a situação é o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que pretende votar em regime de urgência o seu projeto de nova lei de abuso de autoridade. “Nenhum agente de Estado, de nenhum poder, está autorizado a usar suas atribuições legais para ofender, humilhar, agredir quem quer que seja”, argumenta. Renan quer revogar a legislação sobre abuso de autoridade em vigor, que é de 1965, e cria uma nova lei, com penas mais rígidas. A resposta veio do Supremo Tribunal Federal (STF), cuja presidente, ministra Cármem Lúcia, pautou o julgamento de Renan para a semana que vem. O presidente do Senado é acusado de receber dinheiro de empreiteira para pagar a pensão da filha fora do casamento.


Fonte: correiobraziliense.com.br


Luiz Carlos Azedo: Rio, 40 graus

Agora, a Operação Calicute investiga a conexão entre o escândalo da Petrobras e a política do Rio de Janeiro

Com dois ex-governadores na cadeia, Anthony Garotinho (PR) e Sérgio Cabral Filho (PMDB), em menos de 48 horas, e um governador que ninguém sabe como terminará seu mandato, Luiz Fernando Pezão (PMDB), seja em decorrência da Operação Lava-Jato (ele também é investigado, mas tem foro privilegiado), seja em razão do colapso financeiro, o Rio de Janeiro chegou ao fundo do poço. É o fim melancólico de um projeto concebido para ser a sede do capitalismo de Estado no Brasil, no auge do sonho de Brasil potência do governo Geisel. E da tentativa de revivê-lo, durante os governos Lula e Dilma, para se contrapor e neutralizar o peso econômico e político de São Paulo.

Sim, porque esse foi o objetivo da fusão da antiga Guanabara, o centro nervoso da política nacional, após a inauguração de Brasília, com o antigo Estado do Rio de Janeiro, cuja política gravitava de Niterói a Campos, enquanto a economia girava no eixo Duque de Caxias-Volta Redonda. De um lado, o mandachuva era o governador Chagas Freitas, do MDB, aliado do regime disfarçado de oposição; do outro lado da baía, Raimundo Padilha, da Arena, remanescente do Integralismo. A decisão foi autocrática, com a nomeação de um interventor para comandar a fusão, o brigadeiro Faria Lima, mas o desenho da estrutura do novo estado foi traçado por uma Constituinte eleita em 1974.

A memória política dos dois estados cultuava dois governadores: o udenista Carlos Lacerda (1914-1977), na capital, que fora cassado mas ainda estava vivo, e o petebista Roberto da Silveira (1923-1961), no antigo Estado do Rio, que morrera num desastre de helicóptero. O projeto de transformação do novo estado numa potência econômica, a partir do setor produtivo estatal, era ancorado nas sedes das principais empresas estatais: a Petrobras e a Vale do Rio Doce, bem como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco Nacional de Habitação (BNH), na capital, além da Refinaria Duque de Caxias, a Fábrica Nacional de Motores, a Companhia Brasileira de Álcalis e a Companhia Siderúrgica Nacional, no interior.

O primeiro sinal de que isso daria errado foi até prosaico. A larga Avenida Norte-Sul, dos Arcos da Lapa à Rua da Carioca, fora projetada para fazer a ligação rápida entre as sedes das estatais, tanto na Avenida Chile como na Presidente Vargas, e a Avenida Perimetral. Nada que não pudesse ser feito, se o tradicional Bar Luiz não estivesse no caminho. Artistas e intelectuais boêmios do Rio de Janeiro resolveram fazer uma campanha para salvar o Bar Luiz e tombar a Rua da Carioca. A nova avenida morreu ali.

Como Plano Nacional de Desenvolvimento de Geisel, a fusão também foi um tremendo desastre na política. Vitorioso em 1974, o MDB também fez bigode, cabelo e barba nas eleições de 1978, o que levou Faria Lima a uma composição com os políticos mais adesistas e fisiológicos dos dois estados. Resultado: na Constituinte, as antigas estruturas dos estados foram superpostas e ampliadas: a administração da antiga Guanabara foi servir à Prefeitura do Rio; a do antigo estado do Rio, ampliada para atender as necessidades do novo estado. O novo estado já nasceu inchado: de um lado, pelos apadrinhados de Chagas; de outro, por apaniguados de Padilha; e, finalmente, pela turma que chegou com Faria Lima. Todos efetivados pela Constituinte. Depois, vieram os governos de Leonel Brizola (PDT), em 1982, e de Moreira Franco (PMDB), em 1986, aos quais se seguiu a Constituinte de 1988. Mais uma leva de funcionários foi efetivada.

Calicute

Seguiram-se o segundo governo de Brizola, que renunciou ao mandato, e os governos Nilo Batista, Marcelo Alencar, Anthony Garotinho, Benedita da Silva e Rosinha Garotinho, um nascendo praticamente dentro do outro, até a eleição de Sérgio Cabral, em 2006. Seu governo foi dos mais exitosos, por causa da economia do petróleo e da política de segurança pública. Carioca da gema, Cabral parecia redimir seus conterrâneos da frustração com a fusão, até que entrou no oba-oba do petróleo da camada pré-sal e aceitou a mudança do regime de concessão para o de partilha. Também embarcou nos delírios de Eike Batista e apostou as fichas no novo Maracanã da Copa do Mundo e nas obras das Olimpíadas. Além disso, não se contentou com o apoio da velha elite carioca – resolveu fazer parte dela.

A mudança do regime de concessão para regime de partilha seria mais do que suficiente para uma ruptura entre Cabral e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como fora a ruptura de Moreira Franco com José Sarney por causa do polo petroquímico, cuja planta foi transferida do Rio para Camaçari (BA). Por que não houve a ruptura? Ora, porque essa aliança – que possibilitou a reeleição de Lula e Cabral e, depois, a eleição e reeleição de Dilma Rousseff e Pezão – estava muito bem azeitada pelas empreiteiras, e contou com apoio maciço da massa de servidores federais e estaduais e funcionários das estatais que hoje pagam essa conta. Agora, a Operação Calicute, desfechada ontem pelos juízes federais Marcelo Bretas, do Rio, e Sérgio Moro, de Curitiba, investiga a conexão entre o escândalo da Petrobras e a política do Rio de Janeiro.

https://youtu.be/AhuJ3dUVQvc


Fonte: blogs.correiobraziliense.com.br