Memória

Luiz Carlos Azedo: A memética da Lava-Jato

Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos

Para quem gosta de analogias para explicar o que está acontecendo no mundo da política, o livro Sapiens, uma breve história da humanidade, do israelense Yuval Noah Harari (L&PM), é um prato cheio. Uma das pérolas do livro é a referência à tese neodarwiniana de que, além dos genes replicadores das espécies responsáveis pela evolução orgânica da Terra, existiria um replicador responsável pela transmissão de informações culturais de uma geração para a outra: os “memes”.

Com base nela, alguns estudiosos já tratam a cultura como uma espécie de epidemia infecciosa, provocada por um parasita mental, sendo os homens seus hospedeiros voluntários. Harari entra nessa seara para explicar o que poderíamos classificar de “pós-fim da história”. Explico: quando acabou a União Soviética e o Leste europeu derivou de volta ao capitalismo, graças a um artigo de Francis Fukuyama (célebre economista e filósofo americano de origem japonesa, que foi um dos ideólogos de Ronald Reagan), que depois virou livro, a velha tese do “fim da História” de Hegel ressurgiu das cinzas. Harari vai além: defende que a História não é feita pelos e para os humanos.

Segundo ele, não há provas disso. O fio condutor do seu livro é a saga de uma das seis espécies de humanos que habitavam a Terra há 100 mil anos, os sapiens, que exterminaram os neandertais. Mas, entretanto, a História não atuaria em prol dos humanos. Ela não seria fruto de decisões de seus governantes e líderes, mas dos tais “memes”: “Os parasitas orgânicos, como os vírus, vivem dentro do corpo de seus hospedeiros. Eles se multiplicam e se espalham de um hospedeiro a outro, alimentando-se deles, enfraquecendo-os e, às vezes, até os matando. Contanto que os hospedeiros vivam o bastante para transmitir o parasita, este pouco se importa com a condição em que o seu hospedeiro se encontra”. Da mesma forma, as ideias culturais viveriam dentro da mente dos humanos. “Elas se multiplicam e se disseminam de um hospedeiro a outro, às vezes enfraquecendo os hospedeiros e até mesmo os matando.”

A tese exposta por Harari é perturbadora e nos remete aos conflitos religiosos e raciais e à crise humanitária do Mediterrâneo, berço da nossa civilização. Desde o fatídico 11 de setembro de 2001, dia do atentado às Torres Gêmeas de Nova York, as cidades mais cosmopolitas do mundo deixaram de ser lugares seguros para morar, trabalhar e visitar. “Uma ideia cultural — tal como a crença no paraíso cristão nos céus ou no paraíso comunista aqui na Terra — pode forçar um ser humano a dedicar sua vida a espalhá-la, às vezes tendo a morte como preço. O humano morre, mas a ideia se espalha.”

Narrativas
A memética é uma polêmica abordagem antropológica: “Culturas bem-sucedidas são aquelas que se sobressaem ao reproduzir seus memes, independentemente dos custos e benefícios aos hospedeiros humanos. Essa forma de abordagem é tratada como um amadorismo pela academia, que considera essa analogia muito tacanha. Mas, com a mais fina ironia, Harari situa o pós-modernismo acadêmico como uma espécie de irmão gêmeo da memética, pois seus defensores falam que os discursos, como os blocos construtores de cultura, também se propagam sozinhos. O nacionalismo e a guerra seriam frutos desse fenômeno. A pós-verdade estaria ainda mais associada aos “memes” com suas “narrativas”.

Mas o que isso tem a ver com a crise ética, política e econômica que estamos vivendo? Ora, muita coisa. Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos. Além da reprodução biológica facilmente constatável pelos velhos sobrenomes de batismo das oligarquias — a genealogia começa no Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre —, a cultura do desvio de dinheiro público e do caixa dois tornou-se tão dominante na política que os investigados na Operação Lava-Jato, mesmo sabendo das quebras de sigilo bancário, das escutas telefônicas, das buscas e apreensões e prisões, não conseguem viver sem maços de dinheiro vivo guardados nos armários, caixas de joias, viagens de jatinho e contas bancárias milionárias.

A Operação Lava-Jato desencadeou uma espécie de guerra de “memes” entre políticos, magistrados, promotores, delegados, auditores e advogados, no qual duas grandes correntes se digladiam, uma quer nos livrar dos “memes” da corrupção, outra tenta nos salvar dos “memes” do autoritarismo. E bilhões de reais deixam de ser gastos em saúde e educação. Outra vez, a tese do Harari: a História não leva em conta a vida dos indivíduos. Bom domingo!


Luiz Carlos Azedo: A crise dos partidos

Três grandes partidos derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira

A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ocorre em todo o mundo, em consequência de vários fenômenos, alguns mais antigos, como o surgimento dos meios de comunicação de massas, outros mais recentes, como o crescente papel das redes sociais na formação de opinião. Mas, no caso brasileiro, tem ingredientes que são bem característicos da nossa formação política.

Os partidos políticos, tal como os conhecemos, surgiram após a Revolução Francesa e na sociedade industrial estruturada em classes mais ou menos definidas. Sua transformação em partidos de massa, com características ideológicas definidas, a partir do final do século XIX, decorreu de projetos programáticos e do surgimento de democracias de massa, mas não se pode dizer que estivessem intrinsecamente comprometidos com elas. Os partidos comunista e fascista, por exemplo, foram vocacionados para assaltar e manter o poder pela força, não para exercê-lo no âmbito da democracia representativa.

No Brasil, onde as ideias políticas acabam sempre mitigadas, os partidos já nasceram dissociados de seus objetivos programáticos. No Império, por exemplo, a luta de liberais (luzias) e conservadores (saquaremas) gravitava em torno do tema centralização/descentralização, ou seja, do exercício e controle do poder nas províncias; do ponto de vista programático, porém, ambos eram monarquistas e intransigentes defensores da escravidão. O movimento abolicionista desenvolveu-se à margem dos partidos; assim como o movimento republicano, era mais bem representado pela Escola Militar da Praia Vermelha do que pelo minúsculo partido ao qual emprestava o nome.

De certa maneira, o mesmo fenômeno se repete na crise da República Velha, na qual as elites regionais se digladiaram na luta pelo poder, até que as sucessivas crises da economia do café e o grande debate “agrarismo e/ou industralização” implodiram o pacto perverso das elites oligárquicas e seu sistema excludente e elitista de partidos regionais que se revezavam no poder a partir do eixo Rio-São Paulo.

A opção da elite cafeeira paulista pela industrialização gerou uma disjuntiva na qual o eixo da modernização se deslocou da República Velha para o Estado Novo, depois da Revolução de 1930, da fracassada Revolta Constitucionalista de 1932 e do incipiente levante comunista de 1935. A tentativa de constituir um sistema de representação corporativista na Constituinte de 1937, claramente de inspiração fascista, com a entrada do Brasil na guerra contra o nazifascismo, morreu no nascedouro.

Com a redemocratização, em 1945, a Guerra Fria se encarregou de fraudar o sistema representativo da Segunda República. O Partido Comunista (PCB), que ressurge no pós-guerra como um partido de massas, foi posto na ilegalidade, o que reforçou sua vertente golpista; e a antiga União Democrática Nacional (UDN), que nasceu da resistência à ditadura de Vargas, derivou de forma irreversível para o golpismo. Os três partidos de vocação verdadeiramente democrática eram o Partido Social-Democrata (PSD), conservador, elitista e ligado às oligarquias; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido de massas, nacionalista e populista; e o pequeno Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma pequena agremiação de intelectuais progressistas.

Depois do golpe

Esses partidos protagonizaram os melhores e piores momentos da vida nacional, até o golpe de 1964, após o qual foram todos expurgados da vida política, com a reforma partidária imposta pelos militares, uma tentativa frustrada de implantar o bipartidarismo no Brasil. O projeto de institucionalização do regime autoritário, que havia derivado para o fascismo após o Ato Institucional no. 5, era uma espécie de “mexicanização” do país, no qual a hegemonia absoluta da Arena seria a via de transferência do poder para os civis.

Esse projeto sofreu sucessivas derrotas eleitorais — 1974 e 1978 — e foi sepultado com a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979. Nova derrota do regime nas eleições de 1982, nas quais a oposição conquistou os principais governos estaduais, e a campanha das Diretas, Já!, apesar de frustrada, resultaram na derrota definitiva do regime, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, que não assumiu, mas cujo vice, José Sarney, convocou uma Constituinte e completou a transição.

O regime partidário que resultou da Constituição de 1988, cuja marca é a ampla liberdade para formação de partidos, já surgiu, porém, em meio às mudanças no mundo descritas no começo desse artigo, embora com a aparência de que algo novo estava nascendo. O PMDB emergiu da ditadura como o grande partido político liberal democrático. Com o colapso do socialismo real no Leste Europeu, o surgimento do PT como partido de massas, ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais, sinalizava, porém, uma ruptura com o comunismo e o populismo. Fundado por políticos e intelectuais progressistas, o PSDB oferecia à sociedade brasileira um programa social-democrata moderno, em sintonia com as necessidades de modernização do país.

Esses três grandes partidos, mas não somente, derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira, como principais artífices de uma reforma política cujo objetivo principal é salvar seus quadros enrolados na Operação Lava-Jato de uma degola eleitoral, em vez de renovar os costumes políticos do país.

 


O julgamento é político

Para uma parte da oposição, como é o caso do PT, alongar a crise e desgastar o governo pode ser melhor até do que afastar Temer

A votação de hoje na Câmara dos Deputados sobre a admissibilidade da denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o presidente Michel Temer é um julgamento político. Não tem nada a ver com a consistência ou não das acusações, uma atribuição do Supremo Tribunal Federal (STF), que julgará Temer se a denúncia for aceita ou congelará o processo até que seu mandato acabe.

Essa é a regra do jogo, estabelecida pela Constituição de 1988, para garantir o equilíbrio entre os poderes e o Estado de direito democrático. Ou seja, para evitar que um poder não eleito, no caso o Judiciário, provocado pelo Ministério Público Federal, afaste um governante eleito com apoio de uma maioria eventual no Congresso. Pela mesma razão, todo presidente da República é blindado pela Constituição: não pode ser investigado por atos cometidos antes do exercício do mandato.

Essa blindagem, porém, foi rompida quando Temer recebeu o empresário Joesley Batista em sua residência oficial, o Palácio do Jaburu, e por este foi gravado em conversa privada e nebulosa, supostamente para acertar propina, segundo a denúncia do procurador-geral Rodrigo Janot. Com a delação premiada do dono da JBS, Temer ficou na berlinda. Caso a denúncia seja rejeitada, como tudo indica, uma pedra será colocada temporariamente sobre o assunto, apesar do burburinho das ruas. A blindagem estará restabelecida.

É bem verdade que outra denúncia está sendo preparada por Janot, mas nada indica que isso modificará a situação no Congresso. É bom lembrar que a Constituição de 1988 foi elaborada durante o governo Sarney, que amargou grande impopularidade depois do fracasso do Plano Cruzado, até concluir seu mandato em 1989. Ou seja, foi concebida para evitar crises políticas que levem a rupturas institucionais. É preciso a total falta de governabilidade para que o afastamento do cargo ocorra, como aconteceu nos impeachments de Collor de Mello e Dilma Rousseff. Basta o apoio de 172 deputados para barrar qualquer intenção de destituição do presidente da República.

Nos bastidores do Congresso, consta que Temer somente não renunciou ao mandato porque foi aconselhado a resistir pelo ex-presidente José Sarney, o político mais longevo em atividade no país, cuja influência no governo se mantém, mesmo já estando sem o mandato de senador. Sarney viveu todas as crises políticas desde 1955. Temer foi incentivado a usar todo o poder de que dispõe na Presidência para barrar a denúncia. E não está vacilando nisso.

Maioria
Hoje, 11 dos 12 ministros que são deputados devem voltar à Câmara para votar a favor de Temer (a exceção é o da Defesa, Raul Jungmann, que é suplente). É uma sinalização de que o jogo está mesmo pesado e aqueles que não conseguirem mobilizar suas bancadas ficarão lá mesmo, na Câmara, não voltarão aos seus cargos. O partido que ficou na maior saia justa foi o PSDB, cuja bancada federal é majoritariamente a favor da denúncia. A cúpula da legenda, porém, trabalha para rejeitá-la , inclusive o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.

Não interessa ao governo adiar a votação; somente à oposição. Para uma parte da oposição, como é o caso do PT, alongar a crise e desgastar o governo pode ser melhor até do que afastar Temer. Mas o Palácio do Planalto tem interesse em encerrar o assunto ainda hoje, com a maior demonstração de força possível. Mesmo com a certeza de que a denúncia será barrada, um resultado no qual o governo não mostre músculos poderosos pode ser o começo do fim. Outra denúncia será apresentada por Janot, antes de completar seu mandato, em setembro, e há muitas medidas provisórias que precisam ser aprovadas no Congresso.

Temer precisa do apoio de pelo menos 257 deputados para demonstrar que tem força para barrar a denúncia e também para garantir a sua governabilidade. Essa contabilidade é importante diante da sua agenda legislativa. Não se trata apenas da reforma da Previdência, que para muitos subiu no telhado. Com o estouro das contas públicas, o governo precisa aumentar impostos e mudar a meta fiscal, cujo deficit previsto é de R$ 139 bilhões, mas já estourou. Se não mudar a meta, Temer pode ser enquadrado em crime de responsabilidade. E aí a situação se complica ainda mais.

 

 


O eleitor espreita

A mais de um ano das eleições, os políticos não querem ficar no sereno. Precisam da máquina estatal para fazer política nos seus estados e municípios

Uma das características da política brasileira é o fato de que somos uma democracia de massas, do ponto de vista da escala de eleitores e do voto direto, secreto e universal; ao mesmo tempo, temos um sistema eleitoral e partidário que bloqueia o seu desenvolvimento no sentido da renovação de costumes políticos, o que nos faz presas fáceis do patrimonialismo e do clientelismo. Esse tipo de contradição já nos levou a algumas rupturas institucionais e, neste momento, submete a duro teste de resistência o regime constitucional vigente desde 1988, pois as vísceras da nossa política estão expostas pela Operação Lava-Jato.

Na verdade, é um velho dilema nacional: de um lado, a política controlada pelas elites; de outro, a sociedade civil, na qual os cidadãos têm um caminhão de direitos, mas permanecem na arquibancada. É aí que surge um fenômeno que marca o nosso desenvolvimento: a busca de espaços na estrutura do Estado para influir nos destinos do país, uma vez que os partidos políticos mantêm a sociedade à margem da política.

A crise na base do governo Temer reflete isso. Em circunstâncias normais, um governo com 5% de aprovação popular não teria a menor chance de sobreviver, mas não é o que acontece. A mais de um ano das eleições, os políticos não querem ficar no sereno. Precisam da máquina estatal para fazer política nos seus estados e municípios.

Muito provavelmente, o Palácio do Planalto conseguirá barrar a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) contra o presidente da República, cuja admissibilidade está na pauta do Congresso para ser votada, quiçá amanhã mesmo. Se houver quórum para votação, bastará Temer ter um de 342 votos para os governistas rejeitarem a proposta. Por essa razão, setores da oposição não pretendem dar quórum para votação enquanto não estiverem em número superior a isso, o que é improvável. Previsões conservadoras do Palácio do Planalto garantem que há pelo menos 250 deputados federais fiéis a Temer.

O imponderável
Historicamente, no Brasil, o liberalismo tem duas vertentes: uma conservadora, que evoluiu do escravagismo para o neoliberalismo; e outra radical-democrática, que evoluiu do abolicionismo republicano para o nacional-desenvolvimentismo. Mas é o positivismo castilhista que acabou levando a melhor na configuração do Estado brasileiro, graças à Revolução de 1930 e ao golpe de 1964. Por causa disso, a forte presença na máquina pública, desde a República Velha, é o principal instrumento de participação política para as camadas “mais esclarecidas” da população.

Positivistas reconhecem os direitos civis e sociais da grande massa trabalhadora, mas não valorizam e prestigiam a democracia representativa. Preferem atuar como poderosas corporações na máquina administrativa ou como “tecnocratas sem partido”. Apostam no paternalismo e na intervenção do Estado para resolver os problemas da sociedade. Há que se considerar também o fato de que o positivismo no Brasil desaguou no nacional-populismo. Sua recidiva mais recente ocorreu nos governos Lula e Dilma, nos quais o jacobinismo foi abduzido pelo “transformismo” petista.

A redemocratização do país, com a Constituição “Cidadã” de 1988, ampliou tremendamente os direitos sociais — desenhou um Estado de bem-estar social que só existe no papel —, mas não resolveu o problema do exercício democrático da cidadania. E ainda “estatizou” os partidos políticos, seja pela via dos meios de funcionamento regulados pela Justiça Eleitoral, seja pela forte presença de seus militantes e quadros na máquina do Estado, que é partidarizada.

Resultado: é muito fácil cooptar os partidos e seus quadros para o governo, mesmo impopular; e muito difícil fazer política e conseguir uma vaga no parlamento estando fora da máquina pública, seja federal, estadual ou municipal. Mesmo partidos robustos, com uma proposta política moderna, têm dificuldade para fazer política fora da estrutura do Estado.

Em contrapartida, devido ao nosso sistema eleitoral e partidário, que privilegia os grandes partidos e o controle dos seus caciques sobre as legendas, cada vez mais o chamado voto de opinião tem dificuldade para se fazer representar no Congresso. Mas isso é agora uma contradição tremenda, haja vista o peso e a influência crescente das redes sociais.

Dois momentos são significativos quanto a isso: as manifestações espontâneas de 2013 e a campanha do impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Nas eleições municipais passadas, o imponderável rondou o status quo e um tsunami varreu da cena política prefeitos candidatos à reeleição e seus candidatos; o imponderável de 2018 é um fenômeno parecido. Na verdade, o eleitor “astucia coisas” e espreita a política.


Foto: EBC

Luiz Carlos Azedo: O busílis é a política

As forças que hoje dão sustentação ao governo Temer não têm um discurso para enfrentar o populismo, à direita e à esquerda, porque a retórica economicista é um haraquiri eleitoral

Deve-se ao marqueteiro de Bill Clinton, James Carville, a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!”. Em 1991, o presidente dos Estados Unidos, George Bush, havia vencido a Guerra do Golfo e resgatado a autoestima dos americanos após a dolorosa derrota no Vietnã. Assim, era o favorito absoluto nas eleições de 1992 ao enfrentar o então desconhecido governador de Arkansas. Clinton apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e a frase de Carville virou a cabeça do eleitor.

Desde então, virou uma espécie de varinha de condão para governantes e candidatos em apuros, que apostam tudo na economia para enfrentar seus desafios eleitorais. Foi assim nas últimas eleições, quando a oposição achava que ganharia a eleição por causa da máxima de Carville. Logo no começo do segundo turno, Aécio Neves (PSDB) estava à frente de Dilma e os dados da economia eram muito negativos. As projeções do PIB em 2014 não passavam de 0,3%, mesmo com as pedaladas. A inflação chegava a 6,75% nos últimos 12 meses, com a taxa de juros (Selic) na casa dos 11% e do congelamento dos preços administrados, principalmente o preço da gasolina. Dos 48.747 empreendimentos da segunda versão do Programa de Aceleração do Crescimento, apenas 15,8% estavam concluídos.

Mas a oposição perdeu. Não apenas porque houve abuso de poder econômico (eis uma discussão vencida, que ironia, porque o TSE, em julgamento inédito, absolveu a chapa dessa acusação), mas porque Dilma, Lula e o PT politizaram a eleição na base do “nós contra eles”. Acusaram a oposição de querer acabar com os programas sociais petistas para favorecer os interesses dos mais ricos. Era música para 14 milhões de beneficiários do Bolsa Família, ou seja, 56 milhões de pessoas. Além disso, havia 1,5 milhão de beneficiados no Minha Casa, Minha Vida e um exército de 97 mil ocupantes de cargos comissionados defendendo o governo com unhas e dentes, temerosos de perderem o que tinham. O tempo da política não é o da economia, a recessão só veio depois, para embalar a campanha do impeachment.

O economicismo é uma praga na análise política, cuja origem é atribuída ao determinismo econômico marxista. É uma injustiça com Marx, embora essa responsabilidade seja dos teóricos social-democratas do começo do século, principalmente do teórico alemão Eduard Bernstein, para quem o desenvolvimento das forças produtivas pelo capitalismo levaria ao socialismo. Outros teóricos marxistas criticaram essas interpretações. O economicismo sobrevaloriza os fatores considerados econômicos na evolução dos processos sociais e políticos, porém, a política é a economia concentrada.

Quem tiver oportunidade de ler o 18 Brumário, de Luís Bonaparte, que trata da restauração da monarquia na França após a revolução burguesa — na verdade, uma grande reportagem sobre os acontecimentos da época — , verá ali a centralidade da política na visão do autor d’O Capital. Na década de 1930, por exemplo, a ascensão do fascismo na Itália foi vista como uma via de industrialização de um país economicamente atrasado. Pois bem, não era um fenômeno determinado pela economia, mas pela política. Tanto que assombrou o mundo quando a Alemanha, um dos países mais desenvolvidos da Europa, sucumbiu à loucura nazista. No pós-guerra, o economicismo tornou-se uma presa fácil do nacionalismo e do populismo, que nos rondam novamente, inclusive na Europa.

Qual é a agenda?

Temos um governo que assumiu o poder e herdou o desgaste de Dilma Rousseff — até porque Michel Temer era o vice-presidente da República e o PMDB, o aliado principal do PT —, com o país em recessão e o desemprego em massa, além de ser assediado por denúncias de corrupção contra o próprio presidente da República. O governo adotou uma política de ajuste fiscal de longo prazo — a meta fiscal é um deficit de 139 bilhões — e promoveu reformas de cima para baixo, necessárias para enfrentar a crise e reorganizar a economia, mas sem apoio popular. Além disso, não cortou na própria carne como deveria: a relação dívida/PIB se aproximará de 80% no final do próximo ano.

As forças do impeachment de Dilma, que hoje dão sustentação ao governo Temer, não têm um discurso para enfrentar o populismo, à direita e à esquerda, porque a retórica economicista é um haraquiri eleitoral. As reformas não garantirão um crescimento espetacular, capaz de resgatar os empregos perdidos na escala necessária. Não haverá sequer um voo de galinha da economia, embora possa haver um ganho real com a redução da inflação. Além disso, espinafrar a Operação Lava-Jato não resolve o problema da crise ética, pode até agravá-la. No máximo, nivela na lama a disputa entre governo e oposição. O país precisa de um novo projeto político, que reinvente o Estado e a economia, a partir dos interesses da sociedade, e combata a corrupção, a violência e os privilégios. Esse é o desafio principal para tirar o país do atraso e garantir o futuro das novas gerações.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-busilis-e-politica/

 


Luiz Carlos Azedo: A crise do corporativismo

A alta burocracia estatal, para manter os privilégios, aliou-se à elite política e fechou os olhos para o clientelismo e o patrimonialismo, quando não incorreu nas mesmas práticas

A Era Vargas sempre foi um tema controverso na história do Brasil. Nélson Werneck Sodré e Hélio Jaguaribe, por exemplo, viram a Revolução de 1930 como um movimento de classes médias, fruto das contradições econômicas entre esses setores médios da sociedade e os grandes fazendeiros que controlavam a República Velha. Wanderley Guilherme dos Santos e Ruy Mauro, em contraponto, foram os primeiros a defender a tese de que, na verdade, resultou da cisão da burguesia nacional e da ascensão da burguesia industrial ao aparelho do Estado.

Na década de 1970, Boris Fausto publicou tese sobre a Revolução de 1930, caracterizada como o resultado do conflito intraoligárquico, no qual movimentos militares dissidentes liquidaram a hegemonia da burguesia cafeeira. Em virtude da incapacidade de as demais frações de classe assumirem o poder de maneira exclusiva, e com o colapso da burguesia do café, abriu-se um espaço vazio que possibilitou o surgimento de um “Estado de compromisso”, fruto de um grande acordo entre as várias frações de classe e “aqueles que controlam as funções do governo”, sem vínculos de representação direta.

No ambiente de radicalização política da década de 1930, que resultou na II Guerra Mundial, embora o Brasil tenha tomado o lado dos Aliados, Vargas flertou com o fascismo de Mussolini. Isso se traduziu no golpe de 1937 e na implantação do chamado Estado Novo, a forma institucional que encontrou para o tal “Estado de compromisso”, a pretexto de combater a ameaça comunista. Ao lado do patrimonialismo e do clientelismo, velhos conhecidos, emergiu no Brasil o corporativismo, consagrado pelo jurista Francisco Campos, na Constituição de 1937.

No corporativismo, o poder Legislativo é atribuído a corporações representativas dos interesses econômicos, industriais ou profissionais, por meio de representantes de sindicatos de trabalhadores e patronais, associações de comércio, indústria e agricultura, academias, universidades e etc. Conhecida como “Polaca”, a nova constituição ampliou os poderes de Vargas. A inexistência de um partido que intermediasse a relação entre o povo e o Estado não impediu o ditador de construir uma ampla rede de apoio, por meio de mecanismos de controle e da negociação política com os caciques regionais.

Além disso, a nova legislação trabalhista, inspirada na Carta Del Lavoro, garantiu o apoio dos sindicatos, até então tratados como caso de polícia. Ao conter o conflito de interesses entre trabalhadores e empresários, Vargas criou condições favoráveis ao desenvolvimento do setor industrial brasileiro. Foram criadas a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Companhia Vale do Rio Doce (1942), a Fábrica Nacional de Motores (1943) e a Hidrelétrica do Vale do São Francisco (1945). Entre os novos órgãos criados pelo governo, como o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que era responsável por controlar os meios de comunicação da época, o novo Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) deu origem a uma nova burocracia, menos afeita ao tráfico de influências, às práticas nepotistas e a outras regalias.

Os privilégios
Em 1943, um documento intitulado Manifesto dos Mineiros, assinado por intelectuais e influentes figuras políticas, exigiu o fim do Estado Novo e a retomada da democracia. Vargas criou uma emenda constitucional que permitia a criação de partidos políticos e anunciava novas eleições para 1945. Em 1945, com o fim da II Guerra, a saída de Vargas tornou-se inevitável, mas não é o caso de tratar disso aqui. O que nos interessa destacar é o legado corporativista que lhe garantiu um mandato como senador, entre 1945 e 1951, e o retorno ao poder nas eleições de 1951.

O corporativismo sobreviveu ao suicídio de Vargas, na crise de 1954, e ao golpe ocorrido 10 anos depois. O regime militar se utilizou de sindicatos patronais e de trabalhadores, dependentes do imposto sindical criado por Vargas e da Justiça do Trabalho, e ainda ampliou a alta burocracia federal, que adotou uma ideologia tecnocrática para legitimar o apoio ao autoritarismo. O corporativismo na burocracia estatal, com a formação de núcleos de excelência em órgãos públicos e empresas estatais, ganhou ainda mais força com a democratização, graças aos Poderes e direitos adquiridos com a Constituição de 1988. Na verdade, a alta burocracia estatal, para manter os privilégios, aliou-se à elite política e fechou os olhos para o clientelismo e o patrimonialismo, quando não incorreu nas mesmas práticas.

Isso resultou na acumulação de mordomias, privilégios e altos salários por esses setores, equivalentes aos executivos das empresas privadas, ao contrário da grande massa de servidores responsáveis diretos pela prestação de serviços à população que tiveram salários aviltados. Parte da crise de financiamento do Estado brasileiro decorre desses privilégios, principalmente, na Previdência, que garante aposentadorias com vencimento integral, incorporando gratificações, muito acima do que recebem os trabalhadores que se aposentam no setor privado. Agora, com a crise fiscal, tudo isso entrou em xeque.

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Luiz Carlos Azedo: A conta do desajuste

A política de conciliação continua vivíssima. Tornou-se, mais uma vez, a tábua de salvação do velho patrimonialismo. Estão aí o clientelismo com gastos públicos e as articulações contra a Lava-Jato

Não existe política de conciliação no Brasil sem uma grande dose de patrimonialismo, que é a marca registrada das práticas políticas que não distinguem os limites do público e do privado. O patrimonialismo surgiu com a decadência do Império Romano, por influência dos bárbaros germânicos, quando os governantes começaram a se apropriar privadamente dos antigos bens da República. Tornou-se uma característica do absolutismo e, assim, chegou ao Brasil, com a concessão de títulos, sesmarias e poderes quase absolutos aos senhores de terra pela Coroa portuguesa.

No clássico Coronelismo: enxada e voto, Vitor Nunes Leal descreve como o patrimonialismo sobreviveu ao Império e chegou à República Velha. Em troca dos votos dos coronéis fazendeiros, o Estado brasileiro homologou seus poderes formais e informais. Em contrapartida, os senhores de terra foram se adaptando aos novos tempos políticos, entregando os anéis para não perderem os dedos. Isso não seria possível sem a velha política de conciliação do Império, inaugurada no gabinete do Marquês de Paraná.

Entre a abdicação de Dom Pedro I e o Golpe da Maioridade de Dom Pedro II, os partidos liberal e conservador protagonizavam disputas políticas da época. Os liberais (luzias) reivindicavam a ampliação da autonomia dos governos provinciais e a reforma de alguns aspectos contidos na Constituição de 1824; os conservadores (saquaremas) eram favoráveis à manutenção da estrutura política centralizada e à preservação dos poderes reservados ao imperador.

A eclosão das rebeliões e de outros movimentos de contestação que questionavam as determinações da Regência resultou, em 1840, no Golpe da Maioridade. Dom Pedro II assumiu o governo, foi apoiado e prestigiou a presença de figuras liberais em seu ministério. Escândalos de violência e corrupção envolvendo os liberais nas eleições, porém, provocaram a dissolução do ministério, em 1853, e a convocação de Honório Carneiro Leão, o Marquês de Paraná, um político conservador que estava havia 10 anos rompido com Dom Pedro II, para compor um novo gabinete. No regime parlamentarista da época, o imperador escolhia o presidente do Conselho de Ministros, e este formava o gabinete, escolhendo os demais ministros. Carneiro Leão montou um gabinete de liberais e conservadores mais leais a Dom Pedro II do que aos seus partidos.

O Gabinete Paraná representou a consolidação de uma inédita estabilidade, que proporcionou conquistas inimagináveis em tempos de ferrenha disputa política. Como havia unidade de interesses das elites liberais e conservadoras, principalmente em defesa da escravidão, o Segundo Reinado conseguiu manter a sua estrutura centralizada sem maiores sobressaltos. Carneiro Leão, que fora nomeado presidente da província de Pernambuco após a repressão à Revolução Praieira, descobriu em primeira mão que os princípios partidários eram vistos como irrelevantes e ignorados em níveis provinciais e locais. Um gabinete poderia ganhar o apoio de chefes locais para candidatos nacionais usando apenas o clientelismo.

Quem narra muito bem esse período é Joaquim Nabuco, no livro Um Estadista no Império, que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não cansou de recomendar aos tucanos inconformados com sua aliança com o PFL, como o falecido governador paulista Mário Covas. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seguiu seus passos com sinal trocado, o que resultou no transformismo petista. Dilma Rousseff, também desse ponto de vista, fez tudo errado e perdeu o apoio das velhas oligarquias e dos novos chefes políticos.

Clientelismo
Na chamada Nova República, o grande partido da conciliação vem sendo o PMDB, que soube conviver em conflito com o PT nos estados e a ele se aliar no poder central, como os saquaremas fizeram com os luzias no Império. A política de conciliação sobreviveu a duas ditaduras e continua vivíssima. Tornou-se, mais uma vez, a tábua de salvação do velho patrimonialismo. Estão aí o clientelismo com gastos públicos e as articulações para salvar da Operação Lava-Jato os que foram pegos se apropriando de bens públicos.

O problema é o custo dessas alianças para os cofres públicos, como acontece agora. Ontem, o governo anunciou mais um aumento de impostos, para obter uma receita adicional de R$ 10,4 bilhões. O objetivo das medidas é cumprir a meta fiscal de 2017, um deficit (despesas maiores que receitas) de R$ 139 bilhões. A conta não inclui as despesas com pagamento de juros da dívida pública. Para compensar a tunga no bolso do contribuinte, fará um bloqueio adicional de R$ 5,9 bilhões em gastos no orçamento federal.

A tributação sobre a gasolina subirá R$ 0,41 por litro, ou seja, mais que dobrou, já que passará a 0,89 cada litro de gasolina, considerando a incidência da Cide, que é de R$ 0,10 por litro. O diesel subirá em R$ 0,21 e ficará em R$ 0,46 por litro. Segundo a Receita Federal, o crescimento de 0,77% na receita foi insuficiente para fechar as contas públicas. Na verdade, a receita com impostos e contribuições caiu 0,20% no período. O resultado positivo foi salvo pelos royalties pagos por empresas que exploram petróleo. O governo Temer não cortou na própria carne; pendurou a conta do ajuste fiscal na lei do teto de gastos. Ou seja, empurrou com a barriga.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista

 


Luiz Carlos Azedo: O homem que virou suco

A saída de João Batista da Cultura não foi boa para o governo, a senadora Marta Suplicy (PMDB) recusou convite para voltar à pasta

O drama da resistência de um poeta popular diante de uma sociedade opressora, que o obriga a eliminar suas raízes, é simultaneamente uma alegoria do desenraizamento, da clandestinidade e do exílio, aos quais muitos dos opositores do antigo regime militar foram submetidos. Esse é o enredo do filme O homem que virou suco, do diretor João Batista de Andrade, lançado num momento decisivo da história política do país, após a anistia e o fim do bipartidarismo. Em 1981, a oposição ao regime militar já havia ganho as ruas, mas enfrentava a resistência terrorista dos porões da ditadura, cujo momento mais dramático foi o frustrado atendado à bomba do Rio Centro, em 30 de abril daquele ano.

Deraldo é um nordestino esclarecido que busca sobreviver em São Paulo apenas de suas poesias e folhetos, o que ainda hoje é comum na capital paulista. De camiseta, calção e chinelos, Plínio Marcos, o consagrado dramaturgo de Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, por exemplo, era visto com frequência vendendo seus livros nos eixos São João-Ipiranga, São Luiz -Augusta, Angélica-Consolação. Tudo vai muito bem com o herói do filme, até ele ser confundido com um funcionário de multinacional que matou o patrão na festa em que recebeu o título de operário padrão.

Perseguido pela polícia, Deraldo perde a identidade e a cidadania. Para sobreviver, refaz a trajetória da maioria dos nordestinos numa grande metrópole: vai trabalhar na construção civil, aceita realizar serviços domésticos, vaga pelo metrô, sofre toda sorte de humilhação e violências. Até que resolve contar a história do assassino e escreve o livro O homem que virou suco.

Além de consagrar seu diretor, o filme revelou o grande talento de José Dumont, ao lado de Denoy de Oliveira, Raphael de Carvalho, Ruth Escobar e Dulcinéia de Moraes. Colecionou prêmios em festivais: Melhor Filme em Moscou; Melhor Ator (José Dumont) em Nevers (França); Prêmio da Crítica em Huelva (Espanha); Melhor Roteiro, Melhor Ator (José Dumont), Melhor Ator Coadjuvante (Denoy de Oliveira) no Festival de Gramado; Melhor Roteiro, Melhor Ator (José Dumont) em Brasília; São Saruê da Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro; e Prêmio Qualidade (Brasil) no Concine.

Liquidificador
Na sexta-feira, para não virar suco na crise ética e política, João Batista de Andrade entregou sua carta de demissão ao presidente Michel Temer. Ministro da Cultura interino, pegou o boné porque já estava sendo moído pelo Palácio do Planalto, depois de uma queda de braços em torno da indicação do presidente da Ancine. Queria emplacar no cargo um nome de consenso no meio artístico: “A Débora Ivanov era a indicação de todas as entidades do cinema e também do Ministério da Cultura. O governo resolveu que vai nomear outra pessoa”. O candidato de preferência do presidente Michel Temer é Sérgio Sá Leitão, que já ocupa uma diretoria da Ancine.

O cineasta foi para a secretaria executiva do Ministério da Cultura a convite do ex-ministro Roberto Freire (PPS), a quem é ligado por laços partidários. Foi destacado membro do chamado “Setor Cultural” do antigo PCB, ao lado de outros cineastas, como Alex Viany, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos e Zelito Viana. Ex-secretário de Cultura de São Paulo, Batista presidia o Memorial da América Latina quando foi convocado por Freire, em meio à crise provocada pela barulhenta demissão do seu antecessor: o ex-ministro Marcelo Calero gravou uma conversa politicamente incorreta com Temer, na qual o presidente da República pedia que atendesse um pleito do ex-ministro da Articulação Política Geddel Vieira Lima, que também acabou caindo.
Batista pavimentou o caminho para Freire assumir a pasta, desarmando bombas junto à classe artística, na qual sempre foi muito respeitado. Com a saída do titular, a seu pedido, permaneceu à frente do ministério, interinamente, com toda a equipe que havia sido montada pelo presidente do PPS. O cineasta, porém, nunca foi um homem de aparelho partidário. Antes mesmo da saída de Freire, já se queixava das pressões do Palácio do Planalto em relação à Ancine.

Na semana passada, sua posição tornou-se insustentável. Temer mandou um oficial de gabinete ligar para o ministro interino e comunicar sua indicação para a presidência da Ancine, Sá Leitão. Batista já havia anunciado publicamente o nome de Débora Ivanov e disse ao auxiliar de Temer que a nomeação seria acompanhada de sua exoneração. A saída de João Batista não é uma boa notícia para o governo, ainda mais porque logo veio acompanhada da informação de que a senadora Marta Suplicy, que já foi ministra da Cultura, já havia recusado o convite para voltar à pasta. A bancada do PMDB na Câmara, agora, pleiteia o cargo para o deputado André Amaral (PB). Temer só pretende anunciar o próximo ministro quando voltar da viagem à Rússia.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista

Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-homem-que-virou-suco/

 


Luiz Carlos Azedo: Para onde vamos?

Com o avanço da Operação Lava-Jato, Temer deslocou o eixo de sua atuação das reformas para a preservação do próprio mandato

Boa parte do que pensamos hoje sobre a relação entre economia e política é fruto de um grande debate ocorrido na Europa após a II Guerra Mundial, no qual alguns intelectuais analisaram profundamente as causas do colapso político e econômico do começo do século passado e a ascensão do fascismo. Esse debate proporcionou um período de grande estabilidade. Aqui no Brasil, porém, ocorreu o contrário: por causa da Guerra Fria, esse período foi marcado por crises sucessivas, que resultaram no golpe militar de 1964, ou seja, em 20 anos de ditadura. Quem são esses intelectuais e quais as suas ideias básicas?

Em primeiro lugar, os fundadores da Escola de Chicago, Ludwigh Von Mises e Friedrich Hayek, ambos austríacos, cuja defesa do liberalismo, ou seja, de uma sociedade aberta e livre, visava manter o Estado o mais longe possível da economia, para isolar os radicais de direita ou de esquerda e impedi-los de planejar, dirigir ou manipulá-la.

Com as mesmas preocupações quanto ao passado, em segundo lugar, o economista britânico John Maynard Keynes, chegou a conclusões completamente diferentes, defendendo a intervenção do Estado na economia para garantir a segurança social com políticas anticíclicas e isolar os radicais. Com base nas suas ideias, governos social-democratas e neokeynesianos construíram o Estado de bem-estar social na Europa, até que a onda neoliberal de Margaret Tatcher, na Inglaterra, nos anos 1980, colocasse em xeque essa política.

Somente após a redemocratização, em 1985, as ideias liberais e social-democratas que proporcionaram estabilidade e progresso à Europa Ocidental encontraram um ambiente favorável ao debate aberto e livre aqui no Brasil, sem as contingências da radicalização política causada pela Guerra Fria desde o governo Dutra, em 1946. Entretanto, vivíamos o esgotamento do modelo de substituição de importações e uma profunda crise de financiamento do Estado, o que resultou na hiperinflação do governo Sarney (1985-1989). Foi a partir desse debate que conseguimos controlar a inflação e consolidar a democracia, o que nos proporcionou três inéditas décadas de estabilidade política, em que pese os impeachments de Collor de Mello (1992) e Dilma Rousseff (2016).

Entretanto, esse debate foi mitigado e hegemonizado pela polarização PSDB-PT, desde a eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994. Num primeiro momento, em decorrência do sucesso do Plano Real e da estabilização da moeda. As correntes neoliberais e desenvolvimentistas foram neutralizadas pelo pensamento social liberal predominante na equipe do ministro da Fazenda, Pedro Malan, além da forte influência do pensamento de Peter Ducker nas políticas públicas (fazer com que os serviços públicos adotassem métodos e práticas de gestão das empresas privadas).

A chegada do PT ao poder, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, com sua “Carta aos Brasileiros”, num primeiro momento, garantiu certa continuidade dessas políticas, com ênfase no “focalização” dos gastos sociais nas camadas mais pobres da população, via programas compensatórios de transferência de renda. Esse curso, porém, já no fim do primeiro mandato de Lula, foi alterado profundamente, com a adoção de práticas populistas e medidas nacionais desenvolvimentistas focadas no adensamento cartorial das cadeias produtivas.

E as reformas?

Tal política foi exacerbada ainda mais no governo Dilma. A “nova matriz”, porém, nada mais era do que a fusão do velho “capitalismo de laços” com um novo “capitalismo de Estado”, a serviço da formação de cartéis e grandes empresas monopolistas, os chamados “campeões nacionais”, que garantiram, por meios ilegais, a reprodução eleitoral do bloco político no poder. Esse processo ampliou o patrimonialismo, a corrupção e o fisiologismo, que estão sendo desnudados pela Operação Lava-Jato. E mergulhou o país na mais dura recessão, o que provocou o impeachment de Dilma.

Assim, chegamos ao atual governo. O velho PMDB, fisiológico e patrimonialista, continua o grande fiador da governabilidade e da estabilidade do sistema político. O presidente Michel Temer, o vice que assumiu o poder, recebeu pleno apoio das forças políticas que apoiaram o impeachment, mas não da opinião pública que se contrapôs ao governo Dilma. Seus cacifes: a forte base parlamentar e grande capacidade de articulação no Judiciário.

Temer assumiu o governo com um programa de combate à inflação, recuperação de estatais, limitação de gastos públicos e reformas da Previdência e das relações trabalhistas. Com o avanço das investigações da Operação Lava-Jato, que chegou às cúpulas do PMDB e do PSDB, deslocou o eixo de sua atuação das reformas para a preservação do mandato de presidente da República. Para onde vamos? Ninguém sabe. O cenário é de instabilidade política, incerteza econômica e inquietação social.


Luiz Carlos Azedo: A porta dos fundos

As provas da propina e do caixa dois na campanha da chapa Dilma-Temer podem não ser consideradas no julgamento da eleição, mas continuarão existindo nos processos da Lava-Jato

O relator do pedido de cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Herman Benjamin, durante a leitura de seu voto, independentemente do desfecho do julgamento — que deve ser concluído hoje —, abriu uma discussão sobre a utilização de propina nas eleições pelos maiores partidos do país que deve ir longe, muito longe, chegando mesmo ao Supremo Tribunal Federal (STF), quando ocorrerem os julgamentos dos políticos investigados na Operação Lava-Jato. Segundo o ministro, ao pedir a cassação da chapa, “os partidos que encabeçaram a coligação Com a Força do Povo acumularam recursos de ‘propina-gordura’, ou ‘propina-poupança’, que os favoreceram na campanha eleitoral de 2014”.

Herman Benjamin pôs o dedo na ferida da crise do sistema político e eleitoral: “Trata-se de abuso de poder político e ou econômico em sua forma continuada, cujos impactos, sem dúvida, são sentidos por muito tempo no sistema político-eleitoral”. O que não faltam são provas de caixa dois e de que a propina jorrou da Petrobras para a campanha eleitoral, o que seria motivo de sobra para a cassação da chapa. Mas não é aí que está a disputa no âmbito do TSE. A condenação ou absolvição de Temer depende da interpretação preliminar sobre a validade dessas provas, por parte dos ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Admar Gonzaga, Tarcísio Neto, Luiz Fux, Rosa Weber e Gilmar Mendes. Segundo o presidente do TSE, Gilmar Mendes, os fatos novos ligados à Odebrecht extrapolam os limites da ação.

Benjamin fez um diagnóstico do sistema de financiamento eleitoral: “Os dois partidos da coligação usufruíram, ao longo dos anos, de valores ilícitos, derivados de práticas corruptas envolvendo a Petrobras”. Segundo ele, ambos “estabeleceram fontes de financiamento contínuo, as quais sem dúvida permitiram-lhes desequilibrar a balança da disputa eleitoral”. Mas o modelo não se restringiria ao PT e ao PMDB: “Chamo atenção que não foram esses os dois únicos partidos a agir dessa forma. Há vastos documentos probatórios nos autos em relação aos outros partidos. Mas, como relator, e nós como juízes, só podemos analisar a coligação vencedora na eleição presidencial de 2014”.

Vamos supor que Benjamin perca a discussão nas preliminares, como tudo leva a crer, por 4 a 3, na queda de braços jurídica com o presidente do TSE, ministro Gilmar Mendes, contrário à inclusão das provas. O resultado do julgamento será o reflexo de um duplo posicionamento: primeiro, de natureza processual (as provas não são válidas); segundo, de mérito (Dilma já não é presidente; e/ou Temer não era responsável por suas contas). Essa daria alento às forças que participam do governo Temer, mas certamente será submetida por recurso do Ministério Público ao Supremo, que terá que examinar a questão, ou seja, anular o julgamento e mandar incluir as provas ou referendá-lo e encerrar esse assunto. E o que fazer com o caixa dois e a propina?

Partidos
Mais cedo ou mais tarde esse assunto voltará à baila, em razão da Lava-Jato. O que estará em jogo não é apenas o julgamento dos políticos que estão sendo investigados, inclusive o presidente Michel Temer, que corre o risco de ser denunciado pelo Ministério Público em razão da delação premiada do empresário Joesley Batista, dono da JBS. As provas cabais de que houve propina e caixa dois na campanha da chapa Dilma Rousseff- Michel Temer podem não ser consideradas no julgamento da eleição, mas continuarão existindo nos processos da Lava-Jato.

Também chegará um momento em que os partidos serão julgados pela “propina-poupança” e “propina-gordura”. Há, no próprio Tribunal Superior Eleitoral (TSE), três processos que ameaçam PT, PMDB e PP. A ministra Rosa Weber é a relatora das ações que podem cassar os registros de PT e PP, enquanto Luiz Fux é o do processo aberto contra o PMDB. Ninguém menos do que próprio presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, no ano passado, autorizou a investigação sobre o uso de verbas públicas da Petrobras em benefício do PT no âmbito da Operação Lava-Jato. Se a apuração concluir que houve uso de financiamento vedado pela legislação eleitoral, o resultado pode ser a extinção da sigla.

Gilmar também autorizou investigações contra o PMDB e o PP, com base em suspeitas similares levantadas nas investigações da Lava-Jato. Em fevereiro passado, o TSE destravou o andamento dos três processos, por 5 a 2, ao retirá-lo do então corregedor-geral da Justiça Eleitoral, Herman Benjamin. No julgamento em curso hoje, Rosa Weber e Luiz Fux apoiam Benjamin. Parece coisa de maluco aventar essa hipótese, mas a legislação eleitoral, cumprida à risca, pode levar a isso. O julgamento de hoje, porém, parece abrir uma saída pragmática e conciliadora para o establishment político do país. Mas é a porta dos fundos.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista

 


Luiz Carlos Azedo: Truco na Lava-Jato

O polêmico acordo de delação da JBS na Operação Lava-Jato virou o jogo na opinião pública sobre as delações premiadas de empresários corruptos

De origem espanhola, o jogo de truco foi popularizado na América Latina por imigrantes espanhóis e italianos, sendo muito popular em São Paulo, Minas, Goiás e no Rio Grande do Sul. O apelo popular do jogo vem do sistema emocionante de apostas, nas quais cada tipo de pontuação pode ser escolhido para marcar mais pontos para a equipe. As propostas são aceitas, rejeitadas ou aumentadas. O blefe e o engano também são fundamentais para o jogo, inclusive na distribuição das “mãos” de cartas, cujo número precisa ser conferido a cada rodada. Com todo respeito, a crise chegou aos tribunais superiores como uma espécie de jogo de truco.

A defesa do presidente Michel Temer pediu, na sexta-feira, ao ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, o desmembramento do inquérito da JBS. O presidente da República é investigado com o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e o deputado federal Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR). O advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira sustenta que os fatos narrados sobre os três políticos na delação do empresário Joesley Batista, dono da JBS, não têm relação entre si. Em outra petição, Mariz pleiteou ao relator da Lava-Jato a “livre distribuição” do inquérito; ou seja, que outro ministro seja sorteado para cuidar do caso, em vez de permanecer com Fachin, como havíamos antecipado no domingo passado. Truco paulista!

No mesmo dia, quando parecia que a iniciativa estava com o presidente da República, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) autorização para que sejam interrogados Temer, Aécio e Rocha Loures, bem como outros citados na delação da JBS. Quem vai decidir a questão é o ministro Édson Fachin, que a defesa não reconhece como juiz natural, porque o caso não está ligado ao escândalo da Petrobras. Janot pede ao relator para definir como será feito o depoimento, que normalmente fica a cargo da Polícia Federal. Truco mineiro? Pode ser que não: o pleito da defesa de Temer é que seja feito por escrito, após a perícia da gravação do empresário Joesley Batista. O presidente da República é investigado no STF por suspeita de corrupção, organização criminosa e obstrução de Justiça. Ou seja, virou pivô da crise.

Para embaralhar as cartas, o ministro Gilmar Mendes trucou de verdade, à moda goiana. Anunciou que pretende rediscutir a forma como delações premiadas devem ser homologadas (validadas juridicamente) e também a decretação de prisão após a condenação em segunda instância. A oportunidade veio com o polêmico acordo de delação da JBS na Operação Lava-Jato, que virou completamente o jogo na opinião pública sobre as colaborações feitas por empresários corruptos. Mendes quer que as delações deixem de ser uma espécie de monopólio do relator e passem a ser homologadas de forma colegiada, pelos 11 ministros do STF, em sessão plenária, ou por uma de suas duas turmas, cada qual com cinco ministros.

Gilmar disse que o falecido ministro Teori Zavascki, antigo relator da Operação Lava-Jato, havia conversado com ele sobre essa questão. Se houver mais interlocutores com os quais o antigo relator tenha conversado, a chance desse truco é grande. “O que a lei diz? Que o juiz é quem homologa, mas o juiz aqui não é o relator, quando se trata de tribunal, é o próprio órgão. Ele pode até fazer a homologação prévia, mas sujeita a referendo.” O fato de o caso envolver o presidente da República praticamente consagra a tese, pois não há como deixar de discutir o tema no próprio plenário.

“Mão” gaúcha
O truco gaúcho é jogado com baralho espanhol, não o francês, e será a rediscussão da execução penal após a condenação em segunda instância, que tanto apavora os envolvidos na Operação Lava-Jato sem direito a foro especial, ou seja, principalmente aqueles que estão sendo julgados em Curitiba pelo juiz federal Sérgio Moro, cujas decisões quase sempre são referendadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre. Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello discordam das prisões após decisão em segunda instância e defendem que ocorra somente após a terceira instância, no caso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Com base nisso, Gilmar pretende propor uma revisão da questão pelo Supremo, o que muda muito as regras do jogo para a força-tarefa da Operação Lava-Jato.

O ministro Gilmar Mendes vinha se mantendo em silêncio nas últimas semanas, quebrado ontem com novas e polêmicas declarações sobre a Lava-Jato. Mas confirmou que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) iniciará em 6 de junho o julgamento da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, cuja eleição pode ser anulada por abuso de poder econômico, a pedido do PSDB. O vice-procurador-geral eleitoral, Nicolau Dino, pediu a cassação da chapa, ou seja, do mandato de Temer, e dos direitos políticos da ex-presidente Dilma Rousseff, por oito anos. O voto do ministro relator do caso, Herman Benjamin, anterior à delação premiada de Joesley Batista, pede a cassação. Hoje, teria apoio da maioria do plenário. Entretanto, é dado como certo o pedido de vista por um dos ministros indicados pelo presidente Michel Temer. Nesse caso, o julgamento vai para as calendas.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista



Luiz Carlos Azedo: O juiz de Bruzundanga

Afinal, o que seria de Bruzundangas se todos tivessem a mesma aposentadoria e os mesmos direitos?

A República de Bruzundanga, de Lima Barreto, completa 95 anos, uma efeméride pouquíssimo lembrada, a não ser por alguns estudantes de Literatura. Às vésperas de Natal de 2014, ela já havia sido abalada por um escândalo envolvendo a maior empresa estatal do país, uma petroleira, e os donos da nação, entre os quais estavam a Mandachuva — a primeira mulher a assumir a Presidência — e seu padrinho, o Mandachuva que a antecedera. O problema é que ninguém ainda sabia disso, a não ser o cronista que reconta essa história, num tributo ao escritor carioca maldito (ele era pobre, mulato e gay).

No país imaginário de Lima Barreto, a esposa do presidente de uma grande empresa que estava preso ameaçara contar tudo o que sabia à polícia e à Justiça sobre o maior escândalo de corrupção da nação, se o marido passasse o ano-novo na cadeia. Estava revoltada porque os donos da empresa decidiram demitir todos os executivos e foram passar o Natal em um balneário do Caribe, depois de encerrar os negócios no ramo da construção para viver de outras fontes de renda. O recado veio cifrado numa nota de coluna de jornal.

Por essa razão, o executivo foi solto, chegou a fazer uma delação premiada, mas ela foi incinerada pelas autoridades porque houve um vazamento do conteúdo para jornais e revistas sensacionalistas, que insistiam em escandalizar o povo com os podres da República. O problema é que ele não desistiu, negociou nova delação, com mais 40 executivos da empresa. Em sua obra póstuma, o mestre do escárnio já havia desnudado a essência de Bruzundanga. Quase cem anos depois, nada havia mudado quanto aos costumes políticos. Só as velhas patacas foram substituídas pelo barusco, a moeda criada em homenagem ao ex-diretor da petroleira local que resolveu denunciar as falcatruas que escandalizavam o mundo naquele Natal. Mas já estavam inflacionadas pela enxurrada de dólares que jorraram das plataformas da petroleira para misteriosas contas no exterior.

O ex-mandachuva continuou a trajetória como aquele personagem de Todos os homens são mortais, de Simone de Beauvoir, o Conde Fosca, já citado em 2014, quando começou a Operação Enxuga Devagar. Se vocês não se lembram, por ser imortal, esse personagem podia decidir o que quisesse, os outros pagavam com a própria vida quando algo dava errado. Naquele Natal, a esposa de um executivo da petroleira que havia sido preso procurara o secretário particular do ex-mandachuva e avisara que contaria tudo se o marido continuasse em cana. Ele também foi solto a tempo de participar do amigo oculto da família, graças à Mandachuva, que gastou um dos cartuchos que tinha no tribunal para conseguir-lhe um habeas corpus. Coisas que ainda aconteciam em Bruzundangas.

Privilégios

Mas havia um juiz ferrabrás numa das províncias que resolveu subverter a ordem natural das coisas e pôs em cana todos os envolvidos no escândalo ao seu alcance. O ex-diretor da petroleira, convencido pela família, resolveu falar o que sabia. Relatou três encontros com o ex-mandachuva, que tinha conhecimento de tudo o que se passava na petroleira e agora ele está na iminência de ser preso. O executivo da estatal também entregou a ex-mandachuva, que meteu as mãos pelos pés e, no passado, acabou apeada do poder. Agora, também corre o risco de ser condenada e presa.

No meio de tanta confusão, o vice-mandachuva assumira o poder. Nele ainda se equilibra para terminar o mandato e chegar às eleições nacionais do ano que vem. A situação no país continua delicada. Durante a crise mundial, o povo viveu no mundo da fantasia, gastando mais do que podia, como naquela fábula da cigarra e da formiga. Agora, a saída é acabar com os privilégios e reinventar a economia, mas a elite política, os empresários que mamam nas tetas do governo e a alta burocracia resistem às reformas. Afinal, o que seria de Bruzundangas se todos tivessem a mesma aposentadoria e os mesmos direitos? O escândalo na petroleira virou o país de cabeça pra baixo. Quem foi mandachuva em Bruzundanga jamais perde a majestade. Na quarta-feira, ele será interrogado pelo juiz ferrabrás. O problema é que o tal magistrado veio de Curitiba.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista.