Memória
Luiz Carlos Azedo: A lei de Murici
A saída de Jucá da liderança sinaliza descolamento do governo Temer da poderosa bancada de senadores do PMDB, que pode diminuir de tamanho nas eleições deste ano
O senador Romero Jucá (MDB-RR) anunciou sua saída da liderança do governo no Senado, o que é um fato extraordinário, em se tratando de um parlamentar que se notabilizou por servir a todos os governos e só deixar o cargo contra a própria vontade, a pedido do presidente da República. Alegou não concordar com a forma como o Palácio do Planalto tem conduzido a crise dos imigrantes venezuelanos em Roraima. Jucá bateu em retirada defendendo o fechamento da fronteira do Brasil com a Venezuela, o que seria uma inconstitucionalidade. Foi uma jogada política para evitar uma derrota eleitoral acachapante.
Ex-interventor federal em Roraima no governo de José Sarney, embora seja pernambucano de origem, Jucá é o político mais importante da história do estado. Roraima somente adquiriu esse status com a promulgação da Constituição de 1988, ocasião em que se tornou seu primeiro governador. O antigo território federal de Rio Branco (criado em 1943, por causa da II Guerra Mundial) faz parte do Brasil desde a construção do Forte de São Joaquim, em 1778.
Graças à localização na confluência do rio Uraricoiera com o rio Tacutu, que formam o Rio Branco, a fortificação (que não existe mais) impediu que espanhóis, ingleses e neerlandeses se apossassem do território. No extremo Norte da Amazônia, faz fronteira com a Venezuela e a Guiana. Roraima tem enfrentado dificuldades para lidar com o volume de estrangeiros que deixam a Venezuela para fugir da crise econômica e social.
Presidente do PMDB, sua saída do governo Temer sinaliza um processo muito mais amplo de descolamento do partido do Palácio do Planalto, principalmente no Senado, onde a poderosa bancada de senadores pode diminuir bastante de tamanho. O ex-presidente do senado Renan Calheiros (AL) e o atual presidente da Casa, Eunício de Oliveira (CE), que também disputam a reeleição, já estão aliados ao PT.
Com 25% das intenções de voto na mais recente pesquisa do Ibope, Jucá está tecnicamente empatado com Ângela Portela (PDT), com 30%, e Mecias de Jesus (PRB), que aparece com 26%. Ambos defendem o fechamento da fronteira, juntamente à governadora Sueli Campos (PP). Na carta entregue pessoalmente ao presidente Temer, o senador nega um rompimento com Temer, mas diz que discorda “da forma como o governo federal está tratando a questão dos venezuelanos em Roraima”.
“O governo disse que é inegociável fechar a fronteira sob qualquer ponto de vista, e eu entendo que sem o fechamento da fronteira para organizar o trabalho, o assunto só vai agudizar”, justificou depois, em entrevista coletiva. Além do fechamento provisório da fronteira com a Venezuela, Jucá defende a fixação de cotas para imigrantes e a criação de um corredor humanitário para levá-los para outros estados. Com essas bandeiras, acredita que pode neutralizar o desgaste político e evitar a derrota eleitoral. Sem o mandato de senador, corre sério risco de ser julgado pelo juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, o grande temor dos políticos sem mandato.
A borrasca
As pesquisas estão mostrando que o MDB corre risco de reduzir a atual bancada no Senado de 16 senadores para nove. Além de Renan e Eunício, têm possibilidades de reeleição Roberto Requião (PR), Jader Barbalho (PA), Edison Lobão (MA) e Eduardo Braga (AM) e Jarbas Vasconcelos (PE), que hoje é deputado federal, todos em aliança com o PT, apesar de o MDB ter lançado a candidatura do ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles. Jucá e Garibaldi Filho (RN) estão em dificuldades eleitorais.
O controle do Senado sempre foi o maior trunfo do MDB, porque a Casa tem muito poder e cada senador, grande visibilidade, por dispor de acesso pleno à tribuna da Casa e à TV Senado, além de grande número de assessores. Compete ao Senado processar o presidente e o vice-presidente da República nos crimes de responsabilidade e outras autoridades federais civis e militares; e aceitar ou não a nomeação de ministros de tribunais superiores e do Tribunal de Contas; presidente e diretores do Banco Central; o procurador-geral da República e embaixadores, além de autorizar operações financeiras de interesse da União, dos estados, do Distrito Federal e municípios.
Apesar de ter muito tempo de televisão (1m55s de programa eleitoral e 151 inserções diárias), Meirelles já está sendo “cristianizado” pelos caciques peemedebistas do Senado. Nas eleições regionais, o MDB disputa para valer os estados de São Paulo, com Paulo Skaf; Santa Catarina, com Mauro Mariani; Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori; Alagoas, Renan Filho; Pará, Helder Barbalho; e Paraíba; Zé Maranhão. Se esses resultados se confirmarem, a legenda poderá manter sua representação na Câmara, mas não necessariamente no Senado, por causa das alianças locais.
O desembarque do governo Temer, que continua registrando baixos índices de aprovação, já era esperado, uma vez que a sobrevivência dos caciques regionais da legenda segue a Lei de Murici: cada um cuida de si. Foi o que sinalizou o presidente do MDB, Romero Jucá, ao deixar a liderança do governo no Senado para tentar salvar a própria pele. A máxima do coronel Tamarindo, na terceira campanha de Canudos, entrou para a história do Brasil como símbolo de um grande desastre militar, que resultou no esquartejamento do próprio e do seu comandante, o sanguinário coronel Moreira Cesar, pelos jagunços de Antônio Conselheiro.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lei-de-murici/
Luiz Carlos Azedo: Militares na política
Com a candidatura de Bolsonaro, além do general Mourão, mais de uma centena de militares disputam as eleições, em todos os níveis. São raros os que não apoiam o ex-capitão do Exército
A última vez que um militar disputou a presidência da República em eleições diretas foi em 1960. No final do governo, em meio à crise econômica e a ampliação das demandas sociais, Juscelino Kubitschek tentou costurar uma aliança entre o bloco PSD-PTB e a UDN. A proposta, porém, foi rechaçada por Carlos Lacerda, que decidiu apoiar Jânio Quadros, que havia se notabilizado como bom administrador em São Paulo e não tinha compromisso com partidos. Filiado ao Partido Trabalhista Nacional (PTN), o político populista contava com o apoio de três pequenas agremiações — o Partido Libertador (PL), o Partido Democrata Cristão (PDC) e o Partido Republicano (PR) — e se colocava acima delas. A mesma postura adotou em relação à UDN.
Diante do impasse, sem um nome que unificasse a elite política, PSD e o PTB resolveram lançar o marechal Henrique Teixeira Lott, um líder militar de muito prestígio entre os políticos por posições legalistas. Era ministro da Guerra desde de 1954, escolhido pelo vice-presidente João Café Filho, logo após tomar posse na Presidência da República, no mesmo dia do suicídio de Getúlio Vargas: 24 de agosto. Conhecido por sua intolerância a qualquer indisciplina militar, foi mantido no cargo por Juscelino, que em fevereiro de 1956, logo após tomar posse, teve que enfrentar uma rebelião militar, conhecida como Revolta de Jacareacanga, no Pará. Lott agiu com vigor, mas Juscelino, depois, concedeu uma anistia aos insubordinados para pacificar a caserna.
Jânio venceu as eleições presidenciais de outubro de 1960 com 48% dos votos do eleitorado, contra 32% dados a Lott e 20% a Ademar de Barros. Tomou posse com João Goulart, que foi eleito graças à manobra dos sindicalistas de São Paulo, que lançaram a chapa Jan-Jan, uma dobradinha pirata entre o candidato da UDN e o vice do PTB, rifando o cabeça de chapa do PSD (naquela época, votava-se separadamente no vice). Lott foi um desastre como candidato, embora sua campanha tenha se notabilizado pelo marketing político profissional. Anos Dourados, seu jingle de campanha, ainda hoje é considerado um dos melhores de todos os tempos. A espada como símbolo, porém, não foi boa ideia; em contraponto, Jânio escolheu uma vassoura, que fez enorme sucesso graças ao jingle Varre, varre, vassourinha, no qual prometia uma faxina no governo. Na reta final da campanha, perguntava aos correligionários para onde iria o marechal, em tom de piada, e dizia que mandaria cancelar os comícios nas cidades por onde o militar passasse”.
Ao contrário de Lott, cujo vice era um político profissional, o deputado Jair Bolsonaro (PSL) escolheu um general de quatro estrelas para companheiro de chapa: o gaúcho Antônio Hamilton Martins Mourão. Sua estreia na campanha foi desastrosa. Em Caxias do Sul, ao falar sobre o desenvolvimento do país, disse bobagem: “E o nosso Brasil? Já citei nosso porte estratégico. Mas tem uma dificuldade para transformar isso em poder. Ainda existe o famoso ‘complexo de vira-lata’ aqui no nosso país, infelizmente (…) Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem. Nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano. Então, esse é o nosso ‘cadinho’ cultural.”
Estrela
A “lição de antropologia” não tem nada a ver com o mito fundador do próprio Exército, que cultua a memória dos heróis da Batalha de Guararapes, na expulsão dos invasores holandeses: o índio potiguar Filipe Camarão, o negro Henrique Dias e o mazombo André Vidal de Negreiros. Mourão tentou se justificar para a imprensa: “Quiseram colocar que o Bolsonaro é racista, agora querem colocar em mim. Não sou racista, muito pelo contrário. Tenho orgulho da nossa raça brasileira”, disse. Mourão se notabilizou quando era Comandante Militar do Sul, ao prestar homenagem ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ultra, conhecido torturador, que chamou de herói em solenidade militar oficial. Após o episódio, foi transferido para um cargo burocrático, embora importante: a Secretaria de Economia e Finanças do Exército. Numa palestra na Maçonaria, em Brasília, após criticar o governo Temer, porém, voltou a falar demais e defendeu uma intervenção militar. Perdeu a função e ficou na geladeira até passar à reserva.
Com a candidatura de Bolsonaro, além de Mourão, mais de uma centena de militares disputam as eleições, em todos os níveis. São raros os que não apoiam o ex-capitão do Exército. Muito da resiliência e capilaridade da sua campanha se deve ao apoio maciço de militares da ativa e da reserva à sua candidatura. No alto-comando, quatro generais são seus companheiros de turma. Inicialmente, a indicação de Mourão foi vista como uma espécie de blindagem, para barrar um eventual processo de impeachment pelo Congresso, caso Bolsonaro seja eleito. Nesse caso, seria substituído por um militar de alta patente. Entretanto, Mourão já se tornou uma estrela da campanha e ofuscou o próprio Bolsonaro no noticiário político.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-militares-na-politica/
Luiz Carlos Azedo: A frente ampla
O instinto de sobrevivência das elites políticas leva ao caminho do meio, no caso o tucano Geraldo Alckmin, testado e aprovado pelo establishment como governador de São Paulo
Durante o regime militar, nunca houve consenso entre as elites do país. Sempre houve uma resistência política organizada, institucional, nos espaços legais, o que, no decorrer do processo, se demonstrou mais eficiente e produtiva — e capaz de conquistar adesão popular —, do que a agitação pura e simples ou a desastrada luta armada. Antes da consolidação do antigo MDB como frente eleitoral das oposições, o que somente se deu após as eleições de 1974, essa elite dissidente foi representada pela chamada Frente Ampla, formada em 1966. Reunia a oposição trabalhista liderada por João Goulart e dois políticos que haviam apoiado o golpe, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, do antigo PSD, e, para espanto de muitos, o ex-governador carioca Carlos Lacerda, líder inconteste da UDN, além do líder comunista Luiz Carlos Prestes (PCB), na clandestinidade.
O programa da Frente Ampla era essencialmente democrático: retorno às eleições diretas, anistia, pluripartidarismo e direito de greve. A aliança de Lacerda com Jango, JK e Prestes foi uma decorrência óbvia da suspensão das eleições diretas à Presidência da República, que estavam marcadas para 1965, na qual o udenista seria candidato. A edição do AI-1 anulou as esperanças de Lacerda, que passou à oposição, embora fosse um dos líderes civis do golpe. Com um manifesto no jornal Tribuna de Imprensa, do qual era fundador e diretor, o ex-governador exigia eleições diretas, desenvolvimento econômico, reforma partidária e uma política externa soberana.
Com comícios e mobilizações, a Frente Ampla conquistou adesão popular e promoveu grandes manifestações no ABC Paulista, em Londrina e em Maringá, assustando o presidente Costa e Silva, o general que havia substituído o marechal Castelo Branco no Palácio do Planalto. Ainda mais após a morte do estudante Edson Luiz, em 28 de março daquele ano, que provocou grandes manifestações estudantis e levou o alto clero católico à oposição. Em abril, a Frente Ampla foi cassada; na sequência, motivado também pelas ações armadas da esquerda radical, que optou pelas guerrilhas urbana e rural, Costa e Silva editou o AI-5, em 13 de dezembro daquele ano. Lacerda teve os direitos políticos cassados e acabou preso, porém, após uma semana de greve de fome, foi libertado.
Os líderes da Frente Ampla mantiveram certa influência política, mas foram impedidos de participar de eleições. Morreram antes da anistia: Juscelino em 22 de agosto de 1976, em um acidente de carro na Via Dutra; João Goulart, no exílio, em 6 de dezembro de 1976, em Mercedes, na Argentina, de um ataque cardíaco; Lacerda, em 21 de maio de 1977, após ter sido internado por desidratação, devido a uma infecção no coração. Suspeitas de que essas mortes tão próximas umas das outras estejam relacionadas à Operação Condor, montada em 1975 entre militares do Chile, Argentina, Brasil e Paraguai para combater seus opositores, nunca foram comprovadas.
Alckmin
Ontem, líderes do “Centrão” anunciaram o apoio à pré-candidatura do ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) à Presidência da República, reeditando uma frente ampla que reúne o establishment político do país. O grupo é formado por DEM, PP, PR, PRB e Solidariedade, que agora se juntam ao PSDB, ao PSD, ao PTB e ao PPS. O deputado federal Paulo Pereira da Silva (SD-SP) resumiu o significado do apoio: “Estamos convencidos de que para tirar o Brasil desse buraco que estamos só com um conjunto de forças como esse, que se junta em torno dessa candidatura”. O presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), afirmou que o tucano poderá contar com a “militância aguerrida” do partido. Ambos eram aliados de Lula, derivaram para a oposição à Dilma Rousseff, namoraram a candidatura de Ciro Gomes e acabaram junto ao tucano paulista. Formou-se uma frente que terá quase 50% dos meios de campanha destinado a todos os partidos, principalmente o tempo de televisão: 14 minutos e 47 segundos a mais de tempo de TV, contando os programas eleitorais diários e as inserções na programação.
Ao contrário da Frente Ampla da década de 1960, essas forças não estão na oposição, apenas mantêm distância regulamentar do MDB, que deve confirmar a candidatura do ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles. Nos bastidores, houve um empurrãozinho do presidente do Michel Temer para que a aliança não sofresse obstrução do governo. O que motiva essas forças? É a aposta nas estruturas partidárias existentes e seus mecanismos de reprodução de poder. O instinto de sobrevivência das elites políticas leva ao caminho do meio, no caso o tucano Geraldo Alckmin, testado e aprovado pelo establishment como governador de São Paulo por quatro mandatos.
No fundo, a reação dos políticos do “Centrão” às candidaturas de Jair Bolsonaro (PSL) e de Ciro Gomes (PDT) tem o seu DNA na crise de 1964 e na reação dos políticos daquela época ao que aconteceu, principalmente os que apoiaram o golpe militar e se arrependeram. Representa também o convencimento de que o projeto do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que mantém uma candidatura inelegível a qualquer preço, não tem a menor viabilidade.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-frente-ampla/
Luiz Carlos Azedo: candidato dos violentos
É cultura política arraigada, fingir que a violência não é um problema do presidente da República, é agenda de governador. Era, não é mais
De onde vem a resiliência do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ), que lidera as pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República com Lula fora da disputa? Com toda certeza, vem da violência presente no cotidiano da população, que tem raízes profundas na sociedade brasileira, por causa do nosso passado escravocrata, mas ganhou contornos de guerra civil não declarada em razão do tráfico de drogas e da explosiva situação dos presídios brasileiros.
Há outras causas para o enraizamento popular de sua candidatura, como o desemprego escandaloso, que atinge 13 milhões de trabalhadores, e a desestruturação da família unicelular patriarcal em decorrência da revolução dos costumes, mas são temas em disputa eleitoral que não foram monopolizados por Bolsonaro. O tema da violência, não, é dele e ninguém tasca, porque Bolsonaro tem uma proposta de tratamento de choque para o problema: a pena de morte. Ou seja, tratar os criminosos com intensidade igual ou superior à natureza de suas ações, em todos os casos. Música para os violentos.
Ironicamente, o maior legado que o presidente Michel Temer deixará para os seus sucessores é a organização do Sistema Unificado de Segurança Pública (SUSP), recentemente criado, cuja implantação está a cargo do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann. Pela primeira vez na história, o governo federal assumirá responsabilidade em relação ao problema em caráter nacional e permanente. Desde a Constituição de 1924, era assunto dos estados, fazia parte da política de conciliação do poder central com as oligarquias regionais.
O combate à violência era uma das bandeiras de Temer para tentar a reeleição, mas o presidente da República foi engolido pelas duas denúncias do ex-procurador-geral Rodrigo Janot e por investigações em curso da Operação Lava-Jato, sob orientação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Barroso. A economia não cresceu como se esperava e a intervenção federal no Rio de Janeiro, ato de grande repercussão, não deu os resultados que o governo esperava.
A mudança que Temer promoveu foi estrutural e terá resultados a longo prazo, com a criação de um fundo de financiamento do sistema, uma escola de segurança e inteligência e um sistema integrado de dados. Como a abertura comercial feita pelo ex-presidente Collor de Mello, que renunciou ao mandato para evitar o impeachment, somente com o tempo a mudança será sentida pela população. Mas estarão dadas condições efetivas para que o futuro governo lidere o combate à violência e ao crime organizado, que se tornou um problema de segurança nacional.
Acontece que nenhum candidato, com exceção de Bolsonaro, pretende tratar desse assunto como prioridade. É cultura política arraigada, fingir que a violência não é um problema do presidente da República, é agenda de governador. Era, não é mais. Vejam o caso do governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB). Em 2010, deixou o governo com uma crise nos presídios que arranhou sua imagem de político comprometido com os direitos humanos e a questão social. Agora, encerra o terceiro mandato sem condições de disputar a reeleição, desgastado em razão da crise do sistema de segurança pública capixaba, cujo ápice foi a greve dos policiais militares.
Classes perigosas
Um dos intérpretes do Brasil, o alagoano Alberto Passos Guimarães (1908-1993), autor de Quatro séculos de latifúndio, foi um dos primeiros a estudar o fenômeno da criminalidade (ou da criminalização, como preferem estudiosos do tema) e da violência nos grandes centros urbanos brasileiros, no rastro dos seus estudos sobre a questão agrária e a urbanização do país.
Na obra As classes perigosas — banditismo urbano e rural (Editora UERJ), publicada em 1982, fez um diagnóstico preciso do problema: “À violência dos criminosos se junta à violência das próprias vítimas e, a essas duas, uma terceira se vem juntar: a violência dos órgãos policiais, que, pouco fazendo para prevenir o crime, querem compensar sua ineficácia tentando inútil e injustificadamente eliminar o crime aumentando o grau de ferocidade da repressão”.
A “via prussiana” de modernização do país, durante o regime militar, gerou um contingente populacional “excedente”, que fora expulso do campo pela mecanização da agricultura, e despreparado para ser absorvido nos marcos da urbanização. Houve desestruturação de grande número de famílias, cuja pauperização, pela concentração da propriedade da terra e pelo desemprego, foi o caldo de cultura para o banditismo tal como conhecemos hoje.
O Brasil entrou num novo ciclo de ampliação das desigualdades na crise do governo de Dilma Rousseff. Apesar da retórica petista e dos programas de transferência de renda do governo, a recessão ampliou os desequilíbrios demográficos e sociais. Além disso, a crise ética mudou o comportamento social das camadas urbanas, que utilizam códigos ou símbolos morais diferentes para entender e resolver seus problemas. O entendimento do direito à propriedade já não é o mesmo. Os que têm o maior interesse em resguardá-lo não o fazem. E o respeito sagrado inoculado na consciência das classes pobres foi profundamente desgastado, como já advertia Guimarães.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-candidato-dos-violentos/
Luiz Carlos Azedo: A politização da Justiça
O caso Lula pôs a crise ética no colo do Supremo Tribunal Federal, que está como homem da caverna de Platão
As fortes ligações dos membros das cortes superiores e tribunais de justiça com políticos não são nenhuma novidade, o fato novo é a punição dos políticos pelos juízes e tribunais, entre os quais o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), condenado a 12 anos e um mês de prisão em regime fechado. É o primeiro caso de um presidente da República levado à prisão no Brasil. Isso não aconteceu na Revolução de 1930 nem no golpe militar de 1964. Os ex-presidentes Washington Luiz e João Goulart, depostos, foram para o exílio. Poderiam ter sido presos, se Getúlio Vargas e Castelo Branco quisessem fazê-lo.
Após a redemocratização, o ex-presidente Fernando Collor de Mello, que renunciou ao sofrer um processo de impeachment, não foi preso. Respondeu a processo em liberdade e acabou absolvido, sem passar pelas instâncias de primeiro e segundo grau. A ex-presidente Dilma Rousseff, deposta no impeachment, nem os direitos políticos perdeu. Todos os ex-presidentes vivos têm alguma influência nos tribunais. Não tem fundamento constitucional a narrativa do PT de que Lula é um preso político, de que sua prisão é uma perseguição dos “jacobinos de toga”. Lula está preso porque recebeu vantagens indevidas no exercício do cargo e isso é crime comum. Foi condenado em duas instâncias e estará fora da disputa eleitoral por causa da Lei da Ficha Limpa. Os fatos jurídico-políticos são esses, o resto é discurso eleitoral e muita luta pelo poder.
É nesse contexto que os fatos de domingo passado, envolvendo o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que mandou soltar Lula, e os juízes naturais do caso do tríplex de Guarujá, o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal, de Curitiba, responsável pela execução da pena, o desembargador João Pedro Gebran Neto, relator do caso, e o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, desembargador Trompson Flores, que mantiveram a prisão, precisam ser analisados.
A luta política chegou à Lava-Jato em todas as instâncias. Num país de dimensões continentais, que somente veio a completar sua revolução burguesa na década de 1930, mesmo considerando-se o importante papel do Exército brasileiro e da diplomacia na preservação da integridade territorial e consolidação de nossas fronteiras, seria inimaginável a construção do Estado nacional sem a existência de uma Justiça capaz de se fazer presente em todas as cidades. No período colonial, a Justiça local era exercida por cidadãos designados pelas Câmaras Municipais eleitas; com a chegada da Corte portuguesa, essa estrutura não mudou muito; depois da Independência, o sistema passou a ser híbrido, com a nomeação dos juízes pelo imperador e a criação de juris formados por eleitores, que anualmente eram alistados para julgarem devassas e querelas em processo público e oral. Impossível não haver politização.
Caverna
A centralização e profissionalização da magistratura só veio em 1850, quando o impedor D. Pedro II, por decreto, estabeleceu que os juízes seriam nomeados por ele, entre bacharéis, após servirem como juiz municipal, de órfãos, ou promotor público. Os habilitados deveriam ser matriculados com base nas informações prestadas pelos presidentes de Província e pela documentação apresentada pelo requerente, o que garantiu o controle do Judiciário pelo Partido Conservador. Após a proclamação da República, com a Constituição de 1891, a grande mudança foi a realização de concursos: “A nomeação de juízes de direito será precedida de noviciado e concurso, e a dos substitutos, de noviciado”. Mesmo assim, somente no final do regime militar, em 14 de março de 1979, foi editada a Lei Complementar nº 35, instituindo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Entre outras disposições, essa lei criou o Conselho Nacional da Magistratura, que foi extinto em 1998 por simples despacho de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Renasceu das cinzas, porém, com a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004., recebendo a denominação de Conselho Nacional de Justiça. Antes mesmo de sua publicação, a emenda foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3367), proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, mas o Supremo decidiu por maioria julgar improcedente a ação.
Há uma tensão permanente entre os magistrados de carreira e os desembargadores e ministros do chamado quinto constitucional, exacerbada pelo fato de que a composição do Judiciário, mesmo com os concursos, manteve características de casta privilegiada e corporativista. Para o cidadão comum, a Justiça gasta muito, produz pouco e fala uma língua que não se entende. Para os poderosos, os ritos do processo são mais importantes do que os fatos; com os miseráveis, ocorre exatamente o contrário. Com a Operação Lava-Jato, esse modus operandi estolou. O caso Lula pôs a crise ética no colo da Justiça brasileira, que está como homem da caverna de Platão: não sabe se permanece à luz do dia ou volta para a escuridão. Quem vai decidir é o Supremo Tribunal Federal (STF).
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-politizacao-da-justica/
Luiz Carlos Azedo: O mexicano e Neymar
Neymar entrou em campo com disposição de apanhar sem reclamar, como o personagem de Jack London. Foi perseguido, derrubado, chutado, mas não perdeu a cabeça nem se acovardou
Jack London, cujo verdadeiro nome era John Griffith Chaney (1876-1916), escreveu mais de 50 livros, alguns viraram roteiros de cinema, como Chamado selvagem, talvez o mais conhecido. Foi o primeiro escritor norte-americano realmente popular e mundialmente conhecido, o que só não o deixou rico porque gastava demais. Seus biógrafos acreditam que era filho do astrólogo William Chaney. Flora Wellman, sua mãe, uma professora de música e espiritualista que alegava receber o espírito de um chefe indígena, vivia com Chaney em São Francisco. Ele exigiu que ela fizesse um aborto e negou qualquer responsabilidade pela criança quando ela se recusou. Em desespero, Flora tentou suicídio, ficando superficialmente ferida ao atirar em si mesma. Quando o bebê nasceu, Flora entregou-o à ex-escrava Virgínia Prentiss, que criou o autor de Caninos brancos e O lobo do mar, e se tornou a principal referência para London.
As aventuras extremas narradas por London mostram quase sempre o homem como lobo do homem e em luta pela sobrevivência frente aos elementos da natureza, muitas das quais foram realmente vividas por ele. Alcoólatra e brigão, London percorreu os Estados Unidos e o Canadá como vagabundo, pegando carona em trens. Foi operário, mineiro e militante socialista. Marinheiro, caçou focas no Pacífico e participou da corrida do ouro no Alasca na virada do século. Influenciou toda uma geração de escritores, alguns dos quais também tiveram uma vida romanesca, como John dos Passos, John Steinbeck, Ernest Hemingway e Jack Kerouac. London morreu após uma overdose de morfina autoaplicada, no dia 22 de novembro de 1916, aos 40 anos. Teve uma vida urgente, coerente com suas palavras: “Não desperdiçarei meus dias tentando prolongá-los. Usarei meu tempo”.
Materialista, seu último romance, dedicado à mãe, é o Andarilho das estrelas, que muitos consideram uma conversão ao kardecismo. Inspirado pelo relato verídico de um ex-detento da penitenciária de San Quentin, o livro versa sobre um prisioneiro do começo do século 20 que aprende um meio para escapar à tortura da camisa de força a que era constantemente submetido. Através de técnicas de auto-hipnose, concentração mental e extremo domínio da vontade, ele consegue produzir o fenômeno que os parapsicólogos chamam de “desdobramento” e que, na linguagem mística, é conhecido por “viagem astral”. Ao entrar nesse estado de consciência, ele não apenas supera a dor física, como também alcança uma outra dimensão: a viagem às suas vidas passadas, às suas encarnações anteriores.
Maturidade
Um dos personagens mais instigantes de London é o mexicano Felipe Rivera. É aí que entra Neymar, o craque da vitória de ontem contra o México, por 2 a 0. Com o Brasil subindo de produção a cada jogo, Neymar foi o melhor em campo, esqueçam aquele jogador que não parava em pé, discutia com os adversários e reclamava do juiz. A mudança foi radical até no visual. Atento e desconfiado, Rivera é um patriota fanático, que pede ao chefe da Junta de Recrutamento que o deixe trabalhar pela Revolução Mexicana (1910-1921). Os membros da Junta desconfiam do rapaz miúdo e humilde, pois Rivera se dedica integralmente à causa e, às vezes, aparece machucado, mas sempre traz dinheiro para a Junta. Um dia, o segredo de Rivera vem à tona: ele atravessa a fronteira nos dias de folga para lutar box no Texas, nos Estados Unidos. É assim que consegue dinheiro e ouro para a Revolução.
Ontem, em Samara, Neymar entrou em campo com a disposição de apanhar sem reclamar, como o mexicano de Jack London nos ringues texanos. Foi perseguido pelos adversários, derrubado, chutado dentro de campo e até pisoteado fora dele, mas não perdeu a cabeça nem se acovardou. Foi mais o mexicano Rivera do que seus covardes adversários. Como a maioria dos companheiros de equipe que participaram daquela humilhante derrota de 7 a 1 para a Alemanha, na Copa no Brasil, Neymar não é mais um garoto. Parece que a maturidade chegou, finalmente, aos 26 anos. Nessa Copa, os maiores jogadores do mundo, Cristiano Ronaldo e Messi, viram Portugal e Argentina serem eliminadas e o sonho de serem campeões do mundo por seus países se desfazer numa eliminatória. O mesmo trauma de Zico, que foi campeão do mundo apenas de clubes, pelo Flamengo.
Neymar já é o quarto maior artilheiro da história da Seleção, com 57 gols, atrás somente de Zico (66), Ronaldo (67) e Pelé (95). Com o 56º gol, contra a Costa Rica, na fase de grupos, havia se igualado a Romário. A Seleção Brasileira também parece ter atravessado o rubicão. A próxima partida será contra a Bélgica, a grande revelação até agora, que suou a camisa para vencer o Japão por 3 a 2. O Brasil, porém, realmente entrou na disputa da Copa, ao lado da França e do Uruguai. Que venham os belgas!
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-mexicano-e-neymar/
Luiz Carlos Azedo: O abismo à frente
A crise ética, a violência do cotidiano, a desagregação da família e uma economia que demanda mais tecnologia e menos mão de obra explicam muita coisa, inclusive o recrudescimento da misoginia, do preconceito, da intolerância e da radicalização política
A famosa Escola de Frankfurt, que reuniu a nata da inteligência judaico-alemã — Theodor Adorno, Max Horkheimer (os dois apertam as mãos na foto em destaque), Hebert Marcuse, Erich From, Friedrich Pollok, Franz Neumann e Jürgen Haberman, Walter Benjamin, entre outros — exerceu notável influência sobre o pensamento social-democrata e liberal no século passado. Surgiu para explicar o fracasso da revolução socialista (espartaquista) na Alemanha, mas acabou dedicando boa parte de sua “teoria crítica” ao estudo das razões que levaram o povo alemão a apoiar o nazismo.
O livro Grande Hotel Abismo (Companhia das Letras), do jornalista britânico Stuart Jeffries, conta a história desse grupo de jovens intelectuais judeus de famílias abastadas, que foi obrigado a fugir da Alemanha para sobreviver ao nazismo e buscou refúgio nos Estados Unidos. Curiosamente, o Instituto de Pesquisa Social nasceu sob influência soviética e foi financiado por um banqueiro alemão, numa cidade onde os judeus buscavam a plena integração e o sucesso social, tendo eleito o prefeito local em 1924. Em 1933, eram 26 mil asquenazes em Frankfurt; antes que terminasse a Segunda Guerra Mundial, 9 mil haviam sido deportados. Hoje, os mortos do Holocausto são homenageados em 11.134 cubos de metal na Wand der Namen.
Entretanto, a Escola de Frankfurt, como se tornou conhecida, logo renegou a ortodoxia marxista. Seus integrantes não concordavam com a tese de que os intelectuais devem transformar o mundo, eram céticos em relação à luta política e se colocavam acima dos partidos. Haviam abandonado a conexão entre a teoria e a prática, mas não imaginavam que muitos anos depois, após maio de 1968, intelectuais como Adorno e Marcuse seriam os gurus de estudantes radicais e da chamada nova esquerda.
Para a esquerda mais ortodoxa, o fascismo era “a ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas, mais imperialistas do capital financeiro”, uma fórmula simplificada, que permitiria aos comunistas alemães classificarem a socialdemocracia como uma força “social-fascista”, num ajuste de contas pelo fracasso da Liga Espartaquista, que tentou tomar o poder em 1919. Enquanto a esquerda se digladiava, o fascismo se expandia pela Europa, com ajuda das tropas nazistas (Itália, Alemanha, Hungria, Bulgária, Áustria, Espanha, França, Holanda, Romênia, Suíça, Polônia, Grécia e Iugoslávia), chegava ao Oriente (Japão, China e Líbano) e à América Latina (Brasil, Chile e Costa Rica).
Como explicar a adesão das massas ao fascismo? Esse debate emergiu na Escola de Frankfurt por vias completamente diferentes da abordagem tradicional. Wilhelm Reich, por exemplo, em 1933, no livro Psicologia de massas do fascismo, atribuiu sua ascensão à repressão sexual. Para ele, a família não era, como tinha sido para Hegel, uma zona autônoma que resistia ao Estado, mas a miniatura de um Estado autoritário que preparava a criança para sua ulterior subordinação. Esse debate foi retomado por Erich Fromm, o principal formulador do grupo na área de psicanálise, para quem o sadismo era a outra face da moeda do masoquismo, conforme a conclusão de Freud. O sadomasoquismo era caracterizado por um esforço compulsivo em busca de ordem.
Freud explica
Na República de Weimar, quando a Alemanha transitava para o capitalismo monopolista de Estado, o povo alemão estava impotente, esmagado pela crise econômica e espiritualmente alienado. De forma sadomasoquista, não pretendia mudar o próprio destino, preferiu se submeter à autoridade que faria isso por ele. “O desejo de estar sob uma autoridade é canalizado para um líder forte, enquanto outras figuras paternas específicas tornam-se alvo de rebelião”, escreveu Fromm. A personalidade autoritária de Hitler não somente governou a Alemanha em nome de uma autoridade maior, a superioridade racial ariana, como a tornou atraente para o povo alemão, principalmente uma insegura classe média.
Essa abordagem freudiana do fascismo tornou-se predominante na Escola de Frankfurt, mas não era única. Foi contestada por outros intelectuais, que viam o fascismo como a resultante do capitalismo de Estado e do nacionalismo, entre outras causas. Mas há que se reconhecer: ela tem o seu valor, pode ajudar a compreender certos fenômenos que não têm uma explicação aparente e nos surpreendem pelo mundo afora. Não é à toa que a chamada “teoria crítica” da Escola de Frankfurt desperta um novo interesse. A crise das democracias e a estagnação econômica no Ocidente contrastam com a modernização e emergência de regimes autoritários no Oriente.
No Brasil, por exemplo, o buraco negro do chamado centro democrático não tem a ver apenas com a crise ética de nossa elite política; a violência do cotidiano, a desagregação da família unicelular-patriarcal e uma economia que, demandando mais tecnologia e menos mão de obra, explicam muita coisa, inclusive o recrudescimento da misoginia, do preconceito de gênero e racial, da intolerância religiosa e da radicalização ideológica no debate eleitoral. “O indivíduo assustado busca alguém ou algo a que possa atrelar o seu ‘eu’”, diria Fromm. Ou seja, à incapacidade de mudar o seu próprio destino, o cidadão comum desesperançado procura alguém que supostamente possa fazê-lo na marra.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-abismo-frente/
Luiz Carlos Azedo: Cunha livre?
Se a regra fosse adotada para todos os presos, as cadeias brasileiras se esvaziariam em 40%, média de detidos em caráter provisório
O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu ontem um habeas corpus para revogar a prisão preventiva do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ), decretada pelo juízo da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Cunha continua preso, por causa de outros decretos de prisão em Brasília e no Rio de Janeiro, mas a decisão sinaliza mais uma vez que a confusão na Corte é grande, por causa das divergências de entendimento dos ministros em relação à própria jurisprudência. O Supremo parece uma biruta de aeroporto, desnorteia a opinião pública e gera instabilidade política, em meio à crise ética que desmoraliza a elite política do país.
Tecnicamente, a decisão de Marco Aurélio tem fundamento constitucional. Está em linha com as declarações recentes do ministro, entre as quais, suas reiteradas críticas ao fato de o Supremo não rediscutir o mérito da execução das penas em segunda instância. A prisão de Cunha foi decretada em junho do ano passado, com base em “evidências da atuação delitiva no favorecimento do grupo OAS na concessão de aeroportos”. Depoimento de colaborador e dados bancários atestam a transferência de R$ 4 milhões da Odebrecht ao diretório do PMDB no Rio Grande do Norte, utilizados na campanha eleitoral de Henrique Eduardo Alves ao governo do estado.
Em recentes decisões, a segunda turma do Supremo, apelidada de Jardim do Éden, mitigou o instituto da delação premiada, que foi apartado das provas, e desconsiderou doações legais como comprovação de corrupção e lavagem de dinheiro. Marco Aurélio participa da primeira turma, chamada nos bastidores do tribunal como “Câmera de Gás”. A existência das turmas no Supremo, jabuticaba criada para desafogar a Corte, está virando um problema institucional.
A defesa de Cunha alega, entre outros pontos, a invalidade dos fundamentos da custódia cautelar, por considerar inexistente risco à ordem pública diante da ausência de contemporaneidade entre os fatos, ocorridos entre 2012 e 2015, e a prisão. Destaca também que seu cliente não mais concorrerá a cargo eletivo, fato que impede possível atuação na arrecadação de fundos para campanhas eleitorais.
Na liminar, Marco Aurélio destacou que Cunha está preso há um ano e 19 dias, sem que tenha sido julgado pelos fatos em questão. Essa situação, segundo o relator, configura excesso de prazo da custódia. “Privar de liberdade, por tempo desproporcional, pessoa cuja responsabilidade penal não veio a ser declarada em definitivo viola o princípio da não culpabilidade”, afirmou. A manutenção da prisão preventiva, para o relator, seria autorizar a execução antecipada da pena, ignorando-se a garantia constitucional da não culpabilidade.
Se essa regra fosse adotada para todos os presos, as cadeias brasileiras se esvaziariam em 40%, média de detidos em caráter provisório. Os processos da esmagadora maioria dos presos não transitaram em julgado. No Brasil, o direito penal é originário das Ordenações Manuelinas, que estabeleciam penas distintas para os mesmos crimes, dependendo da condição social dos réus. Cortesãos, funcionários públicos e proprietários tinham privilégios em relação ao povo. Vem daí o foro privilegiado.
Cartas de seguro
O rei D. Manuel, o Venturoso (ou Felicíssimo), liderou a formação do Império Ultramarino português, de 1495 a 1521. Os preceitos jurídicos que estabeleceu foram organizados em cinco volumes, publicados de 1512 até a sua morte, ou seja, logo após o Descobrimento. Os réus ficavam à mercê das disparidades de tratamento, segundo suas condições e estado; da discricionariedade e arbitrariedade dos juízes, que não lhes davam conta das razões porque haviam sido condenados; e se sujeitavam às violências do sistema, açoites, mutilações, degredo para os limites mais distantes do reino, quando não à pena de “morte por zelo”.
Dois institutos sobrevivem até hoje na nossa legislação penal: as seguranças reais, que se solicitam à Justiça, não por criminosos, mas por inocentes “que temem com justa causa ser inquietados por outros” (Forais de Fresno); e as cartas de seguro, que consistiam no decreto pelo qual o juiz concedia ao réu pronunciado para captura a faculdade de comparecer em juízo e, sob certas condições, regressar solto do crime de que era acusado, permanecendo em liberdade, até que se concluísse a causa (Cortes d’Elvas, 1361).
Ontem, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu remeter ao plenário o recurso da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que pede a suspensão da condenação de 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso do tríplex do Guarujá. No agravo, a defesa de Lula sustenta que os dias em que ele é mantido em cárcere jamais lhe serão devolvidos. Afirma ainda que, por ser pré-candidato à Presidência da República, o petista corre sérios riscos de ter seus direitos políticos indevidamente cerceados, o que, em vista do processo eleitoral em curso, mostra-se “gravíssimo e irreversível”.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-cunha-livre/
Luiz Carlos Azedo: Uma vírgula
Doa a quem doer, o combate à corrupção pela Lava-Jato se tornou uma prioridade para a sociedade, como foi a luta contra a inflação no Plano Real
Quando a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) completou 100 anos, em 7 de abril de 2008, lançou uma campanha em parceria com o Grupo ABC que tinha a “vírgula” como protagonista. Com produção da agência África, de Nizan Guanaes, e narração do ator Matheus Nachtergaele, a campanha fez enorme sucesso: “Vírgula pode ser uma pausa… Ou não. Não, espere. Não espere… Ela pode sumir com seu dinheiro. 23,4. 2,34. Pode criar heróis… Isso só, ele resolve. Isso só ele resolve. Ela pode ser a solução. Vamos perder, nada foi resolvido. Vamos perder nada, foi resolvido. A vírgula muda uma opinião. Não queremos saber. Não, queremos saber. A vírgula pode condenar ou salvar. Não tenha clemência! Não, tenha clemência! Uma vírgula muda tudo. ABI: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação.”
O presidente Michel Temer é a nova vítima da vírgula. A peça antológica, que virou case nas escolas de propaganda e marketing, foi ignorada pelo Palácio do Planalto, ao lançar o slogan comemorativo dos 24 meses de seu governo: “O Brasil voltou, 20 anos em 2”, em tempos de fake news, virou um tremendo tiro no pé, porque basta retirar a vírgula para mudar radicalmente o sentido da frase. O que era pra ser uma afirmação das realizações de sua administração virou objeto de piada. É óbvio que Temer não passou recibo da mancada, ao fazer um balanço de suas realizações, mas o assunto mais comentado no Palácio do Planalto ontem era a danada da vírgula.
Temer forçou a barra ao comparar seu governo com o de Juscelino Kubitschek, o construtor de Brasília, cujo slogan de governo foi “50 anos em 5”. O Plano de Metas de JK era um projeto de desenvolvimento nacional com 31 objetivos, um dos quais a transferência da capital federal. Baseava-se em estudos realizados pela Comissão Mista Brasil-Estados Unidos entre os anos de 1951 e 1953, cuja missão foi identificar os pontos cruciais de estagnação da economia brasileira que inviabilizavam o crescimento econômico do país em um viés capitalista e liberal.
Para promover “50 anos de progresso em 5 anos de realizações”, Juscelino escolheu cinco setores: energia, transportes, indústrias de base, alimentação e educação. Os três primeiros receberam 93% dos recursos, e educação e alimentação contaram apenas com 7%. Houve crescimento de 100% na indústria de base nacional, mas também um grande desequilíbrio monetário. Em contrapartida, o país esbanjou otimismo, num ambiente de liberdade, sem estado de sítio nem censura à imprensa, apesar da guerra fria.
O saldo de realizações do governo JK foi positivo, mas nem por isso ele deixou de ser atacado pela esquerda, após a renúncia de seu sucessor, Jânio Quadros, e a posse do trabalhista João Goulart, que acabou deposto por um golpe militar, em 1964. Liberal conservador, o PSD de Juscelino, Amaral Peixoto e Tancredo Neves é que dava equilíbrio de centro-esquerda à aliança com trabalhistas e comunistas que garantiu a posse de Jango, que logo se rompeu.
Juscelino era considerado entreguista pela esquerda e sua política de conciliação, uma ameaça de retrocesso, caso voltasse ao poder em 1965. Isso jogou o ex-presidente da República no colo das forças que depuseram João Goulart; quando se arrependeu do apoio aos militares, que suspenderam as eleições presidenciais, já era tarde: foi cassado e obrigado a se exilar. Morreu num desastre de automóvel, em 1976.
Futebol e política
Outra mancada foi misturar o velho slogan reciclado com o grito das torcidas de futebol em “O Brasil voltou”, uma alusão à entrada em campo de jogadores que estavam contundidos ou foram recontratados por suas equipes. Há certo mito em relação ao impacto do desempenho da seleção brasileira em copas do mundo nos anos de eleição. Isso vem da Copa de 1970, no México, quando o Brasil foi tricampeão e a Arena, partido governista do regime militar, obteve uma esmagadora vitória eleitoral. O slogan “Pra frente, Brasil” fez enorme sucesso àquela época, na qual o país vivia a euforia provocada pelas altas de taxas de crescimento do chamado “milagre brasileiro”, acima de 10%. Tanto que na Copa do Mundo de 2014, o traumático vexame da seleção, que perdeu por 7 a 1 para a Alemanha, não impediu a reeleição da presidente Dilma Rousseff.
Não faltam os “causos” de insucesso em relação à mistura de futebol com política. No antigo estado do Rio de Janeiro, um dos mais conhecidos era o da entrega de uniformes completos para um dos times de Niterói, pelo então candidato a governador do PSD, Getúlio de Moura. Depois que começou a partida, a charanga da torcida atacou: “Roberto Silveira, deu camisa e deu chuteira!”. O político trabalhista é que se elegeu governador, mas morreu precocemente num desastre de helicóptero, em 1961.
Voltando ao tema original, há que se reconhecer: diante da recessão que herdou de Dilma Rousseff, o presidente Temer realmente recolocou a economia do país nos trilhos, com o controle da inflação, a redução dos juros e a retomada do crescimento. Mas não resolveu o problema fiscal, porque a reforma da Previdência não foi aprovada, e o governo continua transbordando a Esplanada dos Ministérios. O maior problema do governo, porém, não é nem o desemprego. É a crise ética. Quem quiser que se iluda, doa a quem doer, o combate à corrupção se tornou uma prioridade para a sociedade, como foi a luta contra a inflação no Plano Real.
Vírgula – Campanha dos 100 anos da ABI
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-uma-virgula/
Luiz Carlos Azedo: Ossos da abertura
Durante os governos Lula e Dilma, a Comissão de Verdade teve oportunidade de passar tudo a limpo, mas não revirou os porões do regime militar
A divulgação pelo pesquisador Matias Specktor, da Fundação Getulio Vargas (FGV), de memorando da CIA sobre reunião de 30 de março de 1974, entre o presidente Ernesto Geisel e três subordinados dos órgãos de segurança do Estado (generais Milton Tavares de Souza, Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o chefe que sai e o que entra do Centro de Informações do Exército (CIE), e João Baptista Figueiredo, chefe do SNI) reabriu o debate sobre a anistia na opinião pública.
O documento teve grande repercussão no Brasil e no exterior. “Desconstrói” a imagem do general Geisel, o presidente militar que ampliou a estatização, apostou na exploração de petróleo em alto mar, criou o Proálcool, assinou o acordo nuclear com a Alemanha e reconheceu o governo de Agostinho Neto (MPLA), em Angola, até mesmo antes de a União Soviética fazê-lo. A “distensão” de Geisel permitiu a espetacular vitória do antigo MDB nas eleições de novembro de 1974, quando a oposição renasceu das cinzas, depois do fiasco eleitoral de 1970, momento em que a Arena, o partido do regime, venceu as eleições de ponta a ponta, menos no Rio de Janeiro. Em resposta, Geisel mudou as regras do jogo eleitoral com o Pacote de Abril de 1977, que criou o “senador biônico”, mas nem assim evitou nova derrota acachapante da Arena no pleito de 1978.
Àquela época, qualquer militante de esquerda engajado numa das organizações de oposição ao regime sabia que havia uma política de extermínio de líderes e dirigentes políticos da oposição, estivessem envolvidos com a luta armada ou não. O alto clero católico e a cúpula do regime militar, também, tanto que criaram uma comissão bipartite para tratar das violações de direitos humanos e dos sequestros praticados pelos órgãos de segurança, encabeçada pelo arcebispo do Rio de Janeiro, cardeal Dom Eugênio Salles, e pelo general Antônio Carlos Murici, católico praticante. A comissão teve atuação discreta, mas cumpriu um papel relevante, salvando vidas.
O documento sobre a reunião é horripilante, mostra que o general Milton detalhou o trabalho do CIE durante o governo Médici, revelou a execução de 104 pessoas pelo CIE nos dois anos anteriores. Figueiredo apoiou e insistiu em sua continuidade. Geisel disse que pensaria sobre o assunto no fim de semana. No dia 1ª de abril, disse a Figueiredo para continuar com a política. Relatório da Comissão Nacional da Verdade constatou que 401 pessoas foram mortas ou desapareceram nos 21 anos de ditadura (1964-1985), a maioria no governo Emílio Médici (1969-1974). Já nos governos Geisel e Figueiredo morreram ou desapareceram 89 pessoas (1/4 do total desde o início do regime).
O jornalista Eumano Silva, que pesquisa a atuação dos órgãos de segurança durante o regime militar, pelo Twitter, destaca o impacto imediato da decisão: em 3 de abril de 1974, ou seja, dois dias depois da reunião, foram presos os dirigentes do Comitê Central do PCB João Massena Mello, Luiz Inácio Maranhão Filho e Walter de Souza Lima. Massena era metalúrgico e ex-deputado estadual cassado da antiga Guanabara, havia acabado de cumprir dois anos de prisão. Jornalista e professor universitário, Maranhão era ex-deputado estadual do Rio Grande do Norte, atuava junto ao clero católico, era amigo e interlocutor de Eugênio Salles. Ribeiro era jornalista e ex-tenente do Exército, expulso da Força por se opor ao envio de tropas brasileiras à guerra da Coreia; trabalhou com a equipe de Oscar Niemeyer na Terracap, na construção de Brasília, até o golpe de 1964. Era responsável pela montagem dos “aparelhos” da direção do PCB. Os três foram executados, seus corpos nunca foram localizados, como outros da lista.
Anistia recíproca
Diante dessas revelações estarrecedoras, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que presidiu a Comissão da Verdade em 2013, cobra do Supremo Tribunal Federal (STF) a rediscussão da anistia dada aos agentes da ditadura: “A tortura era uma política de Estado, comandada pela Presidência, e Geisel foi coautor dos homicídios praticados”, argumenta, para concluir: “Neste momento em que corremos o risco de voltarmos à ditadura pelo voto, é importante demonstrar o que ela foi no Brasil”.
Esse é o ponto. A anistia recíproca foi a moeda de troca para a democratização, numa longa transição pacífica, iniciada em 1979 e somente concluída nas eleições diretas de 1989. Na Espanha, o acordo incluiu a restauração da Monarquia; na África do Sul, foi uma das condições para o fim do apartheid e a entrega do poder a Mandela. Aprovada pelo Congresso, fazia parte da estratégia de abertura do regime, que pretendia se institucionalizar via colégio eleitoral. À época, políticos exilados, como Leonel Brizola (PDT), Miguel Arraes, Luiz Carlos Prestes e Hebert de Souza (Betinho), o irmão do Henfil, voltaram ao Brasil.
A abertura de Figueiredo possibilitou o surgimento de partidos, inclusive o PT, mas não a legalização do PCB e do PCdoB. Viabilizou a transição, cujo ponto de ruptura com o regime foi a eleição de Tancredo Neves, um político liberal e moderado, que morreu sem assumir. Não foi à toa que os militares envolvidos nos assassinatos e torturas exigiram a anistia: as ordens vieram da Presidência. Durante os governos Lula e Dilma, a Comissão de Verdade teve oportunidade de passar tudo isso a limpo, mas não revirou os porões do regime militar, nem mesmo em relação à identificação dos ossos do cemitério de Perus nem sobre a atuação dos infiltrados nas organizações de esquerda. Sem embargo de que toda verdade é bem-vinda, e as famílias merecem toda reparação, por que mexer com a anistia recíproca?
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ossos-da-abertura/
Luiz Carlos Azedo: O passado que assusta
Documento mostra que havia uma lista de condenados à morte, que foram executados com prévio conhecimento e autorização de Figueiredo e Geisel
Um documento divulgado ontem pelo pesquisador Matias Specktor, da Fundação Getulio Vargas (FGV), lança por terra todas as versões de que o então presidente Ernesto Geisel não endossou a tortura e os assassinatos de oposicionistas nos quartéis, em razão da demissão sumária do comandante do 2º Exército, Ednardo D’Ávila Mello, após morte do operário Manoel Fiel Filho nas dependências de uma unidade do Exército na Rua Tutóia, em São Paulo.
O metalúrgico morto vivia na capital paulista desde os anos 1950. Havia sido padeiro e cobrador de ônibus antes de exercer a função de prensista na Metal Arte, no bairro da Mooca. Em janeiro de 1976, foi preso por dois agentes do DOI-Codi, na fábrica, sob a acusação de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). No dia seguinte à sua prisão, os órgãos de segurança emitiram nota oficial afirmando que Manuel havia se enforcado em sua cela com as próprias meias. Porém, de acordo com colegas, quando preso, usava chinelos sem meias.
As circunstâncias da morte são muito semelhantes às de Alexandre Vannucchi Leme e Vladimir Herzog, que geraram grandes protestos à época. Segundo relato da esposa, no dia seguinte à prisão, um sábado, às 22h, um desconhecido, dirigindo um Dodge Dart, parou em frente à casa e, diante dela, das duas filhas e de alguns parentes, disse secamente: “O Manuel suicidou-se. Aqui estão suas roupas”. Em seguida, jogou na calçada um saco de lixo azul com as roupas do operário morto. A mulher dele, então, teria começado a gritar: “Vocês o mataram! Vocês o mataram!”. A vida e a morte de Manuel são a base do documentário Perdão, mister Fiel — o operário que derrubou a ditadura no Brasil, dirigido pelo jornalista Jorge Oliveira, que mostra a atuação dos Estados Unidos na caça aos comunistas e nas ditaduras militares na América do Sul.
O episódio da demissão do comandante do Exército foi um momento de inflexão na repressão à oposição e, de certa forma, humanizou a passagem do general Geisel pela Presidência da República, tanto em razão da versão relatada no livro do jornalista Élio Gáspari, como também de sua entrevista autobiográfica a Maia Celina DÁraujo e Celso Castro, historiadores, na qual o episódio também é abordado.
Política de Estado
“Este é o documento secreto mais perturbador que já li em 20 anos de pesquisa”, comentou Matias Specktor. O memorando é um relato da CIA sobre reunião de março de 1974 entre o General Ernesto Geisel, presidente da República recém-empossado, e três assessores: o general que estava deixando o comando do Centro de Informações do Exército (CIE), o general que viria a sucedê-lo no comando e o General João Figueiredo, indicado por Geisel para o Serviço Nacional de Informações (SNI). O primeiro, o quinto e parte do sexto parágrafos do documento permanecem em sigilo:
“2. Em 30 de março de 1974, reuniu-se presidente do Brasil, Ernesto Geisel, com o general Milton Tavares de Souza (chamado de general Milton) e o general Confúcio Danton de Paula Avelino, respectivamente o chefe que sai e o que entra do Centro de Informações do Exército (CIE). Também esteve presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do SNI.
3. O general Milton, que falou durante a maior parte do tempo, detalhou o trabalho da CIE contra os alvos subversivos internos durante a administração do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici. Ele ressaltou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista e que os métodos extralegais devem continuar sendo usados contra subversivos perigosos. A esse respeito, o general Milton disse que cerca de 104 pessoas nessa categoria foram sumariamente executadas pelo CIE durante o ano passado, ou pouco antes. Figueiredo apoiou essa política e insistiu em sua continuidade.
4. O presidente, que comentou a seriedade e os aspectos potencialmente prejudiciais dessa política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a qualquer decisão sobre sua continuidade. Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna e que o esforço geral do CIE será coordenado pelo General Figueiredo.
6. Uma cópia deste memorando será disponibilizada ao secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. [1½ linha não desclassificada]. Nenhuma distribuição adicional está sendo feita.”
Esse documento mostra que havia uma lista de condenados à morte, que foram executados com prévio conhecimento e autorização de Figueiredo e Geisel, ao mesmo tempo em que ambos operavam uma política de distensão cujo objetivo era a transferência do poder para um civil ligado ao regime e a retirada em ordem dos militares do poder para os quartéis. O primeiro objetivo foi frustrado pela eleição de Tancredo Neves, em 1985, mas o segundo foi alcançado plenamente, com a anistia recíproca.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-passado-que-assusta/
Luiz Carlos Azedo: Revirando o lixo da História
A condição humana é dada não pela atividade laboral, um meio de sobrevivência, mas pelo agir e pensar politicamente, em regime de plena liberdade
Exumei das redes sociais um velho texto (lá se vão três anos) publicado nessas “Entrelinhas” para analisar o colapso do governo Dilma. O título da coluna era “A lata do lixo da História”, o nome de uma peça dos anos 1970 do sociólogo Roberto Schwartz, então professor de teoria literária da Universidade de São Paulo (USP), na qual fazia uma sátira ao regime militar. A expressão “vai para a lata do lixo da História” era muito usada por setores de esquerda na época, servia para menosprezar o papel dos liberais na luta pela democracia; hoje, serve aos liberais que consideram toda a esquerda ultrapassada e não apenas os setores ligados ao PT. É um erro. O Brasil precisa de uma esquerda moderna que dialogue com os liberais para reconstruir o centro democrático.
Essa lembrança veio a propósito do discurso do presidente da China, Xi Jinping, ao comemorar o bicentenário do nascimento de Karl Marx, no Grande Palácio do Povo: “O marxismo, como um amanhecer espetacular, ilumina o caminho da humanidade na sua exploração das leis históricas e na busca da sua própria libertação”. Em resumo, disse que os comunistas chineses precisam voltar às origens. Entretanto, Karl Marx é um dos sujeitos mais mal interpretados de todos os tempos, por esta razão: seus escritos partem do princípio de que a ação política não pode estar descolada do pensamento intelectual.
Após sua morte, em 14 de março de 1883, a teoria de Marx foi simplificada e instrumentalizada para a luta política, inclusive por seu amigo Frederico Engels e seu genro, Paul Lafargue. Social-democratas, socialistas e comunistas usaram sua crítica como estratégia política, mas Marx nunca teve uma fórmula para construir um mundo diferente do capitalismo. Mesmo assim, os conceitos de “valor” e “fetichismo”, suas grandes contribuições à compreensão do capitalismo, perderam espaço e influência para o conceito de “luta de classes”.
Grande exemplo é um livro de Josef Stalin intitulado Problemas econômicos do socialismo na URSS, de 1953, com o qual o líder comunista puxou as orelhas dos economistas da Academia de Ciências: “Por isso, estão absolutamente errados os camaradas que declaram que, uma vez que a sociedade socialista não liquida as formas mercantis de produção, então todas as categorias econômicas próprias do capitalismo deveriam alegadamente ser restabelecidas no nosso país: a força de trabalho como mercadoria, a mais-valia, o capital, o lucro do capital, a taxa média de lucro etc.”
Stálin varreu para debaixo do tapete problemas que mais tarde levaram ao colapso a antiga União Soviética: “Além disso, penso que precisamos igualmente abandonar alguns outros conceitos, retirados de O Capital, no qual Marx procedeu à análise do capitalismo, e que são artificialmente apensos às nossas relações socialistas. Refiro-me, entre outros, a conceitos como trabalho necessário e sobretrabalho, produto necessário e sobreproduto, tempo necessário e suplementar. A conta chegou para Gorbatchov na década de 1990: quando o líder comunista quis retomar a discussão, na Perestroika, o socialismo real já era. Talvez Xi Jinping esteja diante do mesmo debate no seu país, onde os operários são superexplorados e florescem uma nova burguesia e uma robusta classe média.
Parêntesis: na teoria de Marx, valor é aquilo que permite comparar duas mercadorias. A quantidade de trabalho que foi incorporada à mercadoria é que determina o seu valor. Já o fetiche é uma consequência disso: uma cortina que nos impede de ver a mercadoria em si. No caso de um celular, por exemplo, não conseguimos perceber todo o processo produtivo que está por trás da sua fabricação — na China, por exemplo —, mas somente o produto final, como se o aparelho, em si, tivesse vida própria na loja.
Grande jogo
A gênese dos partidos operários é velha tese marxista da centralidade do trabalho na luta política, que parte da ideia de que a contradição entre o trabalho e o capital é o motor da história e o eixo de atuação política do partido, ou seja, a luta de classes. Vem daí o glamour perdido do PT e o fascínio de intelectuais e artistas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A filósofa alemã Hanna Arendt, uma democrata radical, via nessa concepção que absolutiza o trabalho uma das raízes do totalitarismo. Para ela, a condição humana é dada não pela atividade laboral, um meio de sobrevivência, mas pelo “agir e pensar politicamente”, em regime de plena liberdade, o que tanto o fascismo como o stalinismo não permitiram. Essa crítica “racionalista” hoje faz ainda mais sentido, porque o trabalho humano está sendo substituído pelo “não trabalho” dos robôs e sistemas de inteligência artificial.
A China hoje é o nosso principal parceiro comercial, seguida dos Estados Unidos. Ambos disputam o controle do comércio mundial, cujo eixo se deslocou do Atlântico para o Pacífico. O “grande jogo” da política mundial e a globalização, porém, para muitos setores da esquerda, continuaram sendo vistos na óptica dos velhos paradigmas, ou seja, o inimigo principal é o imperialismo norte-americano; o capitalismo de Estado, após a tomada do poder, é a antessala do socialismo. Não importa que os Estados Unidos sejam uma democracia e a China, uma ditadura. Nunca é demais lembrar que o colapso do governo Dilma se deveu às ideias políticas e econômicas fora de lugar, que apostavam numa aliança com a China, a Rússia, a África do Sul e a Índia como aliados principais, contra os Estados Unidos e a Comunidade Europeia, seguidas por práticas patrimonialistas estimuladas por Lula, que enlamearam toda a esquerda e jogaram as lideranças do PT na cadeia. Todas essas ideias velhas não morreram, estão vivíssimas nestas eleições de 2018. E não na lata do lixo da história.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-revirando-o-lixo-da-historia/