Memória

Luiz Carlos Azedo: O mundo de Bolsonaro

“Os efeitos das tarifas impostas por Trump às importações chinesas, assim como das restrições de acesso a tecnologias americanas, já desaceleram o comércio mundial, o que não é bom para o Brasil”

Na montagem de sua equipe, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, já deu pistas de como a banda vai tocar no seu governo em relação a alguns temas da agenda nacional. Por exemplo, ninguém pode dizer que se enganou em relação ao futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, cuja pasta combaterá o crime organizado e a corrupção. A mesma coisa pode-se dizer quanto ao superministro da Fazenda, Paulo Guedes, que o mercado conhece muito bem. Idem para a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), indicada pelo agronegócio de exportação. O futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, também não engana ninguém: seu estilo e modo de operar no Congresso são conhecidos.

O que permanece uma incógnita é a relação do futuro governo com a política mundial. Os sinais de Bolsonaro eram no sentido de um alinhamento automático com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Deu várias declarações nessa direção, seja em relação aos acordos multilaterais, como o Mercosul e o de Paris, seja em questões mais específicas, como as relações comerciais com a China e a intenção de mudar a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. Ocorre que essas declarações tiveram repercussão muito negativa, e as eleições norte-americanas de 6 de novembro mostraram que o vento mudou em relação a Trump. Com os democratas conquistando a maioria na Câmara, nada será como antes.

Nos bastidores da transição, com o roque do Ministério da Defesa para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), as quatro estrelas do general Augusto Heleno passaram a brilhar mais do que todas as outras, inclusive as do vice-presidente, general Hamilton Mourão, que é mais “moderno”. Essa mudança tem impacto no posicionamento estratégico de governo sobre vários temas, um deles é a política externa. Desde a Guerra das Malvinas, quando os EUA deram apoio logístico aos ingleses e, inclusive, inviabilizaram a utilização de seus mísseis pelos argentinos, a velha Doutrina Monroe caducou.

Vigorava desde 2 de dezembro de 1823, quando o presidente James Monroe, no Congresso norte-americano, disse que o continente não deveria aceitar nenhuma intromissão europeia: “América para os americanos”, proclamou. De uma só vez, os EUA rechaçaram a criação de novas colônias no continente, a interferência de nações europeias em questões internas e a neutralidade norte-americana em conflitos envolvendo países europeus. Esses princípios funcionaram contra a Espanha e a antiga União Soviética, mas não contra o principal aliado dos EUA no Atlântico, a Inglaterra. A guerra das Malvinas aprofundou o chamado “pragmatismo responsável” dos chanceleres Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro. Durante os governos Geisel e Figueiredo, respectivamente, o Brasil abandonou o alinhamento automático aos Estados Unidos.

Guerra comercial
Nessa época, o redirecionamento da política externa para as relações Norte-Sul mirava principalmente a África e os países árabes; o eixo do comércio mundial não havia se deslocado do Atlântico para o Pacífico, como acontece agora. Mas, com essa mudança, a China acabou se transformando no principal parceiro comercial do Brasil, desbancando os Estados Unidos. Ocorre que nossa infraestrutura de comércio exterior e logística está voltada para o Atlântico, não temos escala de investimentos para redirecioná-la ao Pacífico com a eficiência e a rapidez necessárias. Quem paga o preço é a nossa indústria.

É nesse contexto que o jovem chefe do Departamento de Estados Unidos, Canadá e OEA do Itamaraty, o ministro de primeira classe Ernesto Henrique Fraga Araújo, encantou Bolsonaro com um artigo “presbítero” publicado na revista do Itamaraty, intitulado “Trump e o Ocidente”. No texto, afirma que o presidente norte-americano está salvando a civilização cristã ocidental do islamismo radical e do “marxismo cultural globalista”, ao defender a identidade nacional, os valores familiares e a fé cristã. Música para os ouvidos de Bolsonaro.

Entretanto, o cargo de ministro das Relações Exteriores exige muito mais do que uma visão religiosa de mundo. Outros nomes já foram sugeridos a Bolsonaro, entre os quais o atual embaixador no Canadá, Paulo Bretas, e os ex-embaixadores em Washington Roberto Abdenur, Sergio Amaral e Rubens Barbosa. A escolha de um deles definirá os rumos da política externa de Bolsonaro, num momento em que o Brasil, como outros emergentes, pode virar marisco na guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. Os efeitos das tarifas impostas por Trump às importações chinesas, assim como das restrições de acesso a tecnologias americanas, já desaceleram o comércio mundial, o que não é bom para o Brasil, a não ser que os Estados Unidos voltem a reduzir a sua taxa de juros, o que enfraqueceria o dólar e beneficiaria os emergentes. Mas aí já é adivinhação.

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Luiz Carlos Azedo: Acordar com passarinhos

“Bolsonaro ainda está enrolando o paraquedas. Muito das declarações desencontradas do novo presidente da República e de seus ministros revela dificuldades operacionais futuras”

Nos dois dias que passou em Brasília, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, mudou a rotina do prédio da quadra de deputados onde tem apartamento funcional, com a grande movimentação de pessoas a partir das cinco horas da madrugada, já em pleno horário de verão. Participou das comemorações dos 30 anos da Constituição, reuniu-se com os presidentes do Supremo Tribunal Federal e com os ministros do Superior Tribunal de Justiça, trocou figurinhas com o presidente Michel Temer e incorporou à transição dois futuros ministros, o juiz federal Sérgio Moro, que comandará um superministério da Justiça, e a deputada Tereza Cristina (DEM-MS), que assumirá o Ministério da Agricultura sem o pepino do meio ambiente.

Bolsonaro ainda está enrolando o paraquedas. Muito das declarações desencontradas do novo presidente da República e de seus ministros revela dificuldades operacionais futuras. Deve ser até angustiante, principalmente para os generais que compõem seu estado-maior, constatar a desorganização da tropa. Militares têm regras rígidas de “apronto operacional” e “aprestamento pessoal”. No manual, uma tropa “só pode ser considerada adestrada quando dispuser de homens prontos para serem empregados no mais curto espaço de tempo a partir do momento em que for acionada”. Por enquanto, Bolsonaro está muito longe disso. O mais provável é que isso nunca aconteça, pois o governo não é uma unidade militar, é uma organização civil, ainda que com forte presença de militares.

Todo governante assume o mandato cheio de energia e disposição de pôr a tropa na rua; quer dizer, o bloco na rua. Lembro-me do começo do governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro, eleito em 1982, num tsunami, como o que aconteceu agora no Brasil. No primeiro dia de mandato, o governador madrugou no Palácio Guanabara, para desespero dos repórteres que cobriam a administração estadual. Na primeira coletiva, disse que chegaria com os passarinhos. O repórter Ernesto Rodrigues, desde aquele dia, passou a anotar o horário de chegada de Brizola. Ao fim dos 100 primeiros dias de administração, quando geralmente acaba a lua de mel com a imprensa, o jornalista emplacou a manchete do Globo: “Brizola já não chega com os passarinhos”. Houve dias em que o governador nem sequer apareceu no seu gabinete, despachou do próprio apartamento, em Copacabana.

Palácios de governo são “jaulas de cristal”. O governante é cercado pelos áulicos e se isola da sociedade, mas muito do que acontece nos bastidores do seu gabinete acaba chegando à opinião pública. Árbitro de disputas constantes no interior de sua equipe, isso acaba agravando a solidão do poder, pois tudo o que um governante fala e decide acaba pondo mais lenha na fogueira das rivalidades, intrigas e idiossincrasias dos integrantes de sua equipe. Antes mesmo de tomar posse, a disputa se instala: primeiro entre a tropa de assalto, aqueles que chegaram primeiro e carregaram nas costas a campanha eleitoral, e a tropa de ocupação, os que foram chamados a compor a equipe por serem supostamente mais capazes de exercer as funções técnicas de governo.

Pelo Twitter

Divergências na equipe são a parte mais complicada. Muito da crise que levou à renúncia o presidente Jânio Quadros, segundo relato do jornalista Carlos Castelo Branco, que foi assessor de imprensa dele, foi consequência das disputas e intrigas entre José Aparecido e Raul Riff, dois colaboradores íntimos do presidente da República. Na equipe de Bolsonaro, o chefe da transição, Onyx Lorenzoni, e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, superpoderosos, são dois fios desencapados. Não foi à toa que o general Augusto Heleno, homem acostumado a comandar gente da casca grossa, foi deslocado do Ministério da Defesa para o Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Apesar de militar, já é o algodão entre os cristais.

O maior embate no interior do novo governo, provavelmente, será com a alta burocracia federal, que votou em massa em Bolsonaro, mas espera recompensas. Políticos se movem pela ética das convicções, quem zela pela legitimidade dos meios, ou seja, a ética da responsabilidade, é a burocracia. Ao defender a reforma fiscal, o enxugamento do governo e a reforma da Previdência, Bolsonaro desperta o mais profundo corporativismo entre os servidores públicos. Além disso, o exercício do poder exige paciência e muita reflexão; o voluntarismo pode ser desastroso. Não é possível governar só pelo Twitter. O tipo de comunicação que adotou na campanha, por exemplo, nem sempre funciona na gestão pública, em que os binômios “comunicar-executar” e “executar-comunicar” se alternam de acordo com as circunstâncias.

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Luiz Carlos Azedo: O livrinho fez 30 anos

“Bolsonaro falou o que todos queriam ouvir, depois de vários discursos dos chefes dos poderes nos quais se reiterou a centralidade do respeito à Constituição para a vida política do país”

O ponto alto das comemorações dos 30 anos da Constituição de 1988, ontem, na sessão solene do Congresso Nacional, foi a declaração do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de que a Carta Constitucional é o único norte da democracia brasileira. Usou o que aprendeu na academia militar para fazer uma analogia: “Na topografia, existem três nortes, o da quadrícula, o verdadeiro e o magnético. Na democracia, só um norte, é o da nossa Constituição”, disse num discurso rápido, ao lado das principais autoridades da República.

Bolsonaro falou o que todos queriam ouvir, depois de vários discursos dos chefes dos poderes nos quais se reiterou a centralidade do respeito à Constituição para a vida política do país. Não faltaram recados para o presidente eleito: “Devemos sempre, sempre respeitá-la (a Constituição) e, principalmente, cumpri-la”, ressaltou o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (MDB-CE). “Não é trivial que propostas que acenaram para a substituição da Constituição em vigor tenham sido repudiadas pela opinião pública durante o último processo eleitoral”, disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

“Nossa Constituição reconhece a pluralidade étnica, linguística, diferença de opinião, a equidade no tratamento e o respeito às minorias, garante liberdade de imprensa para que a informação e a transparência saneiem o conluio e revelem os males contra indivíduos de bem comum”, lembrou a procuradora-geral da República, Raquel Dodge. “Não podemos negar que temos passado por episódios turbulentos nos últimos anos, investigações envolvendo a própria classe política e empresarial, um impeachment de uma presidente da República, a cassação de presidente da Câmara, a prisão de um ex-presidente da República. Olho com otimismo, pois todos os impasses foram resolvidos pela via constitucional, com respeito à Constituição e às leis brasileiras”, arrematou o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli.

Último a falar, o presidente Michel Temer, que foi constituinte, destacou a grande participação da sociedade na elaboração da Constituição e o fato de que, na democracia, a soberania é uma titularidade do povo, não de seus representados. Sugeriu que Bolsonaro se reúna com os presidentes dos demais poderes regularmente, “para direcionar o país no caminho que a Constituinte de 88 anos indicou”. Testemunha privilegiada desses 30 anos, o ex-presidente José Sarney, que convocou a Constituinte, e foi um crítico do texto constitucional, participou da cerimônia, não discursou. Essa nunca foi a Constituição dos seus sonhos, mas é o seu maior legado político à história do Brasil. Com ela, Sarney garantiu a transição democrática e protagonizou o restabelecimento do Estado democrático de direito, como enfatizou Temer, um professor de direito constitucional.

Reformas

A elaboração de uma nova Constituição foi um dos temas debatidos no primeiro turno das eleições. O candidato do PT, Fernando Haddad, havia proposto a convocação de uma Constituinte exclusiva em seu programa de governo; o vice de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, chegou a defender que uma comissão de notáveis elaborasse um novo texto constitucional, que depois seria submetido a um plebiscito. Ambas as propostas foram esquecidas no segundo turno, tamanhas discórdia e polêmica que causaram.

O canto de sereia do revisionismo constitucional partia da ideia de que o ciclo político que a pautou se esgotou. As principais críticas, de vários matizes, são: extensa e prolixa, abarca questões que deveriam ser objeto de legislação ordinária; excesso de direitos outorgados e escassez de deveres; rigidez orçamentária e ordenamento tributário engessado; ampliação de prerrogativas corporativas e manutenção de privilégios, em especial, pelo funcionalismo público; alargamento da autoridade do Judiciário, particularmente do Supremo Tribunal Federal e do Ministério Público Federal.

Entretanto, foi a graças à atual Constituição que todas as crises políticas se resolveram por vias institucionais, pacificamente, sem intervenção dos militares, como até então ocorrera na história republicana. Ao defendê-la, o país pode vir a superar o clima de radicalização que caracterizou a disputa eleitoral. A Carta de 1988 pode não ser enxuta como a norte-americana, de 1789, nem tão antiga, como a Carta Magna inglesa, de 1521, mas ainda é o que nos une.

 

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Luiz Carlos Azedo: Os mascates

“O Brasil ainda recebe refugiados de braços abertos. É o caso das famílias palestinas do Rio Grande do Sul, que buscaram a integração plena e uma nova cidadania no Brasil”

Há um mês, cerca de mil pessoas — homens, mulheres crianças e até idosos —, fugindo da fome e da violência, deixaram a cidade de São Pedro Sula, em Honduras, em busca do sonho americano. A notícia se espalhou pelas redes sociais, e milhares de pessoas de outros países da América Central se juntaram a elas na Guatemala, em direção ao México. Às vésperas das eleições legislativas de 6 de novembro, a marcha virou uma dor de cabeça para o presidente dos Estados Unidos, porque já reúne quase 10 mil pessoas e chegou ao México, sendo acompanhada pela mídia do mundo inteiro.

Trump já anunciou a intenção de impedir a entrada dos imigrantes e mandou mais 15 mil homens da Guarda Nacional para a fronteira. Acusa o Partido Democrata de estimular a marcha. O risco é os mexicanos aderirem em massa ao movimento, autodenominado “Pueblo Sin Fronteiras” (Povo Sem Fronteiras). Cerca de 10% da população da Guatemala, El Salvador e Honduras já deixaram seus países para fugir da criminalidade e do recrutamento forçado por gangues, em busca de poucas oportunidades de trabalho. Trump ameaça cortar a ajuda norte-americana aos países de América Central. Segundo a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional, a Guatemala recebe mais de US$ 248 milhões por ano; Honduras, US$ 175 milhões; e El Salvador, US$ 115 milhões.

Esse fenômeno parecia distante do Brasil, mas também já é vivido por nós em razão da crise venezuelana. A diferença é que o governo brasileiro, depois dos incidentes entre brasileiros e venezuelanos em Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, com apoio das Forças Armadas, montou uma infraestrutura adequada para receber milhares de refugiados, que são redistribuídos para os diversos estados do país. O êxodo de 2,4 milhões de venezuelanos, em apenas dois anos, já é o maior da história da América do Sul e atinge praticamente todos os países do subcontinente. A diferença é que o presidente Michel Temer, ele próprio descendente de imigrantes libaneses, seguindo a tradição de nossa política externa, tem uma posição oposta à xenofobia de Trump.

Jerusalém

O Brasil ainda recebe refugiados de braços abertos. É o caso das famílias palestinas do Rio Grande do Sul, que buscaram a integração plena e uma nova cidadania no Brasil. O documentário “A Palestina Brasileira”, de Omar de Barros Filho, mostra como essas famílias vivem uma “nakba” (palavra árabe que significa catástrofe) que já dura 70 anos. A vida de um casal residente na região metropolitana de Porto Alegre resume a tragédia: a família abandonou a Palestina com a criação do Estado de Israel, em 1948; mudou-se para Bagdá, onde reconstruiu a vida. Com a invasão do Iraque pelas tropas dos EUA, refugiou-se no campo de Al Rweished, em pleno deserto, na fronteira da Jordânia. Após alguns anos, o casal foi trazido pela ONU para o Rio Grande do Sul, mas a família se desgarrou: o filho vive na Indonésia, a filha está em Bagdá.

A produção do filme foi uma aventura. Uma das locações foi o campo Al Fawwar, próximo a Hebron, onde palestinos ainda são refugiados dentro da própria Palestina. Nunca recuperaram seus bens, propriedades ou terras tomadas por Israel. A equipe de filmagem, hospedada em Ramallah, teve seu alojamento invadido. Portas foram arrombadas, bagagens, reviradas; o hotel foi depredado. A equipe foi detida por um longo tempo em um checkpoint israelense no histórico mercado de Jerusalém. O guia palestino brasileiro foi expulso do local. O diretor foi conduzido ao centro de controle policial do Muro das Lamentações e proibido de realizar entrevistas e de utilizar equipamento de som e luz. Quando tentaram entrar na mesquita de Al Aqsa, foram bloqueados por policiais de Israel. No aeroporto Ben Gurion, em Tel Aviv, uma das câmeras foi confiscada e nunca devolvida.

O marco inaugural da nossa diplomacia com o mundo árabe é a visita de D. Pedro II ao Líbano, em 1880. Proibidos de entrar nos Estados Unidos, cristãos sírios e libaneses perseguidos pelos turco otomanos optaram pelo Brasil, que estava em franca urbanização. Exímios comerciantes, tornaram-se “mascates” e tiveram um papel fundamental na ligação comercial do litoral com o sertão. Numa época em que a moeda era escassa e rigidamente controlada pelo governo, conquistaram a confiança dos brasileiros no fio do bigode: vendendo fiado.

Entretanto, as boas relações com o mundo árabe podem se deteriorar por causa de uma decisão anunciada pelo presidente eleito Jair Bolsonaro: transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, a pedido do presidente Trump e do primeiro-ministro de Israel, Benjamin “Bibi” Netanyahu. Temos excelentes relações com Israel, mas romper com a moderada Autoridade Palestina é trazer para o Brasil, principalmente para a Tríplice Fronteira, onde já atuam militantes clandestinos do Hamas e agentes israelenses do Mossad, uma briga que nunca foi nossa.

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Luiz Carlos Azedo: Vamos às urnas!

“Os eleitores querem segurança, saúde, educação, emprego e moradia. Não se resolve esses problemas com uma retórica vazia”

Antes de mais nada, o eleitor brasileiro está cada vez mais consciente da importância de seu voto e do poder que isso lhe atribui para mudar a realidade política do país. Foi um longo aprendizado, que passou de geração em geração. Em 1974, por exemplo, o tsunami acabou com a maioria absoluta que o governo militar tinha no Senado. Em 1978, impôs a necessidade de abertura política, que resultou na anistia. Em 1982, se não foi suficiente para restabelecer as eleições diretas para presidente da República, em 1985, viabilizou a eleição de Tancredo Neves. O caminho para a conquista da democracia foi o voto popular, sem embargo dos protestos, greves e articulações políticas. Não foi a luta armada, uma trágica tolice política, por mais glamorizada que seja por alguns.

Há uma astúcia popular no voto sufragado que precisa ser levada em conta. Desde 1989, o povo vem fazendo escolhas nas eleições que fazem algum sentido. Foi assim, com Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Quando viu o desejo manifesto nas urnas frustrado, foi às ruas apoiar o impeachment do presidente da República. Foi o que aconteceu com Collor de Mello e Dilma Rousseff. Golpe? Golpe coisa nenhuma. Ambos foram apeados do poder com base na Constituição de 1988, que estabelece as regras do jogo, e por erros graves na condução do país.

Ninguém leva o eleitor para votar puxando-o pelo nariz. O povo tem seus motivos para fazer escolhas. Nessas eleições, consideradas atípicas, há um claro sentido de ruptura, por causa do desgaste do sistema político, da violência no cotidiano, da corrupção desnudada dada pela Operação Lava-Jato, do desemprego em massa e da falta de perspectivas. Isso está mais do que evidente. Apesar de ter feito uma contrarreforma política para blindá-la, a elite política caiu do galho. Uma geração está sendo aposentada pelas urnas, outra foi expurgada pela Lei da Ficha Limpa.

Isso não significa que a renovação política está concretizada, mas essa foi a sinalização do eleitor. Uma das dificuldades para entender o sentido dessa disruptiva no processo político é narrativa dos candidatos, que tem um caráter regressivo. A discussão eleitoral parece uma “vendeta”, que remonta à crise política de 1964. Lá se vão 54 anos! A maioria dos eleitores nem havia nascido. A radicalização direita versus esquerda protagonizada por Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) é um grande “dejà vu”, não passa disso.

Por que isso acontece? Talvez porque as forças conservadoras que apoiaram o regime militar durante 20 anos, nos últimos 30 anos ficaram sem representação política à altura de um novo projeto de poder. Seu último grande representante foi o senador Jarbas Passarinho (PDS-PA), que foi ministro da Justiça de Collor de Mello e presidiu a CPI do Orçamento, perdendo a seguir a reeleição ao Senado, em 1994. Talvez porque as forças que governaram o país durante os governos Lula e Dilma, após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, fizeram de tudo para se perpetuar no poder e não querem ficar muito tempo fora dele, o que será provável se perderem.

Contingências

A nossa realidade parece um copo d’água pela metade. O Brasil tem a maior democracia de massas do mundo, com eleições livres, diretas e secretas, à prova de fraude e apuradas no mesmo dia. Mas ambos os candidatos já constroem teorias conspiratórias para não aceitar seu resultado. Entretanto, o que surgir das urnas é o veredicto popular, “duela a quien le duela”.

As forças moderadas e centristas do país, que sempre se movimentaram pendularmente, viraram marisco nas eleições, mas não foram riscadas do mapa. Continuam influentes nas estruturas de poder, nas instituições republicanas, na grande mídia e na chamada sociedade civil. Podem até influenciar o resultado da eleição e surpreender! A disputa eleitoral parece uma guerra de movimentos; devido à radicalização, uma guerra de posições se iniciará após as eleições. Entretanto, a dicotomia fascismo ou comunismo que deu o tom nesta reta final não faz o menor sentido. Se fosse verdadeira, nos levaria a uma guerra civil.

Os vitoriosos também logo descobrirão que tropas de assalto não são eficientes para ocupação.É preciso ir devagar com o andor. Na verdade, as contingências são outras. A primeira é o equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A segunda, a relação entre os entes federados: União, estados e municípios. A terceira, a relação entre Estado e sociedade, que passa também pela economia. Quem vencer as eleições assumirá um governo que gasta mais do que arrecada, não tem capacidade de investimento e presta péssimos serviços à população. Os eleitores querem segurança, saúde, educação, emprego e moradia. Não se resolve esses problemas sem reforma fiscal e com uma retórica vazia. Trocando em miúdos, como em toda democracia, quem ganhar deve levar. Mas terá que trabalhar muito para não frustrar seus eleitores. Não fará o que quer, quando e como quiser; será escravo das suas próprias circunstâncias.

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Luiz Carlos Azedo: O mito positivista

“Bolsonaro está sendo obrigado a desdizer não somente seus auxiliares, como Paulo Guedes, futuro ministro da Fazenda, e o vice, general Mourão, mas principalmente a si próprio”

No cavalo de pau dado pela campanha do PT, em razão da inviabilidade do projeto de “democracia popular”, que foi derrotado no primeiro turno, o candidato à Presidência Fernando Haddad deveria procurar nos seus alfarrábios um velho livro de Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, publicado em 1852. Talvez o professor de ciência política da Universidade de São Paulo, que virou clone do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, encontre uma explicação para o que aconteceu em 7 de outubro. O “cretinismo parlamentar” desgraçou boa parte da elite política da Câmara e, principalmente, do Senado; o “transformismo” de seu partido fez do antipetismo uma força eleitoral avassaladora a favor de Jair Bolsonaro (PSL), protagonista de uma possível “restauração conservadora”, tal qual “o lunático Luís Napoleão, com meia dúzia de oficiais desconhecidos e cheios de dívidas”, nas palavras de Friedrich Engels, em carta ao seu amigo Marx.

Ao estudar a história da França entre a Revolução de fevereiro de 1848, que pôs fim à monarquia constitucional de Luís Felipe, e a Comuna de Paris, de 1871, Marx conceituou o “bonapartismo”, que até hoje gera controvérsias entre acadêmicos de esquerda, porque seria um meio-termo entre a “democracia burguesa” e o “fascismo”. Durante a ditadura militar, aqui no Brasil, provocou muita polêmica entre intelectuais e militantes de oposição, que se dividiam entre os que caracterizavam o regime como fascista, por causa do terrorismo político de Estado, e os que rejeitavam essa caracterização, porque não havia um partido de massas como na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler. A essência do bonapartismo é a autonomia do Estado em relação às classes sociais e a existência de um líder político carismático e populista.

O chefe de Estado concentra um poder desproporcional em relação ao Legislativo e ao Judiciário, promove a centralização política em relação aos demais níveis de poder. Para governar, apoia-se na burocracia e nas Forças Armadas; suprime liberdades e reprime com violência a oposição e os movimentos sociais. Luís Bonaparte eliminou o Parlamento e tentou restabelecer o Império, mas tudo não passou de uma farsa. Por isso, o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 foi chamado de 18 Brumário por Marx, numa alusão ao golpe de Estado de Napoleão Bonaparte de 9 de novembro de 1799 (18 brumário no calendário da Revolução Francesa), que resultou no fim da Primeira República, proclamada em 1792, e no Consulado, que logo se transformaria no Império de Napoleão. Luís Bonaparte derrubou a república burguesa e instaurou o Segundo Império (1851-1870), no qual se proclamou Napoleão 3º, com a ambição de restaurar a obra de Napoleão 1º, seu suposto tio.

O projeto “bonapartista” subjacente no discurso de Bolsonaro, como a “democracia popular” de Haddad, pode ter sido derrotado no primeiro turno. Propostas de elaboração de uma Constituição por notáveis, a ser submetida a um referendo popular, e de alteração da composição do Supremo Tribunal Federal (STF), que ferem frontalmente a atual Constituição, já foram descartadas. Para vencer, Bolsonaro está sendo obrigado a desdizer não somente seus auxiliares, como Paulo Guedes, futuro ministro da Fazenda e do Planejamento, e o vice, general Hamilton Mourão, mas principalmente a si próprio. Sobram declarações e episódios que podem lhe tirar a vitória, se não forem renegados. O tema da violência, que catapultou sua candidatura, virou uma faca de dois gumes, porque a narrativa do duro combate ao crime organizado também alimenta a radicalização política e ideológica de seus partidários contra os adversários.

Positivismo
O Brasil já teve três presidentes militares eleitos: Floriano Peixoto (1991-1894); Hermes da Fonseca (1910-1914); e Eurico Gaspar Dutra (1945-1950). Foram duros com a oposição, especialmente Floriano, o “Marechal de Ferro”, que governou a maior parte do tempo com o país em Estado de Sítio. Ao concluir o mandato, todos entregaram o poder a presidentes civis. Durante o regime militar, o militar que permaneceu mais tempo no poder foi João Figueiredo, que governou por seis anos, perdeu a própria sucessão e devolveu o poder aos civis, com a eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral. Getúlio Vargas, que foi ditador por 15 anos, presidente eleito, encerrou a carreira com um tiro no próprio peito. Não é fácil ser ditador no Brasil.

Na política brasileira, nunca o poder central teve tão pouca influência nas eleições. Os destinos do país estão sendo decididos pela sociedade, num pleito democrático, com ampla liberdade. A alternância de poder e o direito ao dissenso estão assegurados. O projeto político de Bolsonaro tangencia o velho positivismo da Escola Militar da Praia Vermelha e o castilhismo gaúcho, que são incompatíveis com nossa democracia. A atual Constituição, nosso mais valioso ativo democrático, só pode ser modificada pelo Congresso, que representa todos os eleitores, não apenas uma maioria eventual, caso do presidente eleito. Por isso, qualquer que seja o resultado das urnas, é melhor aceitar o resultado, com espírito autocrítico, para não repetir os erros no futuro. E respeitar a vontade popular.

 

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Luiz Carlos Azedo: A Constituição e as eleições

“O próprio Supremo vive dilemas profundos em razão da Operação Lava Jato, que protagoniza o combate à corrupção. Há um inédito expurgo de políticos da vida pública, entre os quais, Lula”

O Supremo Tribunal Federal (STF) comemorou ontem os 30 anos da Constituição de 1988, razão de ser da existência da Corte, cuja missão é zelar pelo cumprimento dos seus dispositivos. Não é uma tarefa das mais fáceis, ainda mais num momento como o que estamos vivendo, no qual os candidatos que lideram a disputa pela Presidência da República, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), não escondem o desejo de substituí-la por outro texto constitucional.

Não foi à toa, portanto, que o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, proclamou: “Nunca mais, nunca mais a escravatura, nunca mais a ditadura, nunca mais o fascismo e o nazismo, nunca mais o comunismo, nunca mais o racismo, nunca mais a discriminação”. Segundo ele, os cidadãos precisam assegurar “que as conquistas até aqui obtidas sempre vigorem, não admitindo involuções, especialmente quanto à democracia estabelecida, à cidadania conquistada e à pluralidade até aqui construída”.

A Constituição de 1988 garantiu ao Judiciário autonomia e independência, assim como deu ao Ministério Público um poder nunca antes alcançado. Graças à aprovação pelo Congresso da Lei da Ficha Limpa, uma grande mudança nos costumes políticos está em curso, sob fortes tensões. O próprio Supremo vive dilemas profundos em razão da Operação Lava Jato, que protagoniza o combate à corrupção. Há um inédito expurgo de políticos corruptos em todas as esferas da vida pública, com destaque para a inelegibilidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado a 12 anos e um mês de prisão por corrupção passiva e ocultação de patrimônio.

Muitos dos que não foram impedidos de disputar as eleições pela Lei da Ficha Limpa, porque não foram julgados, culpados ou inocentes, serão punidos com a não eleição. Mas a prisão de Lula é um fator de divisão e tensão política no próprio Supremo, em razão do grande prestígio popular e internacional de que ainda desfruta e do debate sobre a aplicação do princípio constitucional do transitado em julgado. Jurisprudência da Corte determina a execução imediata da pena de condenados em segunda instância, o caso do petista, mas o assunto não está pacificado entre os ministros. Toffoli é um dos críticos dos “excessos” da Operação Lava-Jato, protagonizados pelos procuradores da força-tarefa de Curitiba, que ontem pediram ao juiz federal Sérgio Moro nova condenação de Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Os procuradores acusam o ex-presidente da República de obter vantagem indevida paga pela Odebrecht por meio da compra de um terreno para instalação da sede do Instituto Lula e do aluguel de um apartamento em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista. A três dias das eleições, o pedido é visto como interferência no processo eleitoral, prejudicando a candidatura do candidato do PT, o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, assim como a divulgação de um dos depoimentos da delação premiada do ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci pelo juiz Moro, na segunda-feira passada. Os dois episódios se somam a outras decisões tomadas recentemente, que interferiram nas eleições do Paraná, Mato Grosso e Goiás, Ceará, Piauí, contra políticos ligados ao PSDB, ao PMDB e ao PP.

Direitos
O jurista italiano Norberto Bobbio influenciou fortemente a elaboração da Constituição de 1988. Suas ideias foram marcadas pelo ambiente europeu após a Segunda Guerra Mundial, em que as democracias do Ocidente procuraram se precaver contra o fascismo, originário da Itália, e purgar o trauma do Holocausto protagonizado pelo regime nazista de Hitler, na Alemanha. Adotada pela Organização das Nações Unidas, a doutrina dos direitos humanos legitima o Estado de bem-estar social, uma resposta às terríveis condições sociais que resultaram da guerra.

Os dispositivos introduzidos na nossa Carta Magna com objetivo de garantir o direito à vida e à liberdade, no contexto de transição à democracia, porém, provocaram uma disjuntiva entre direitos humanos e ordem pública, provocando mudanças no Código de Processo Penal que nunca obtiveram consenso social e político suficientemente para que fossem plenamente respeitadas. Numa sociedade com indicadores de violência ascendentes, essa pauta acabou se tornando um divisor de águas. A sociedade brasileira precisa reencontrar o ponto de equilíbrio entre a segurança pública e as garantias e direitos individuais.

Um dos temas em debate na campanha eleitoral é a separação do direito penal do cidadão aplicado ao criminoso comum segundo os ditames constitucionais do que seria uma espécie de “direito penal do inimigo”, que puniria os indivíduos considerados mais perigosos para a sociedade, o que significaria suprimir direitos e garantias individuais. Tal interpretação não cabe nos ditames da atual Constituição, mas está na pauta do candidato que lidera as pesquisas, Jair Bolsonaro (PSL).

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Luiz Carlos Azedo: O dinheiro da revolução

“Palocci diz que o ex-presidente Lula usou a Petrobras e o pré-sal com o objetivo de “garantir ilicitudes” e a conseguir dinheiro para campanhas do PT. O juiz Moro quebrou o sigilo da delação”

O ex-ministro da Casa Civil José Dirceu goza de plena liberdade, mesmo condenado a 39 anos de prisão, graças a um habeas corpus que lhe foi concedido pelo ministro Dias Toffoli, atual presidente do Supremo Tribunal Federal. Livre e falante, é o melhor intérprete da alma do PT, partido do qual é fundador e dirigente histórico. No auge do escândalo do mensalão, foi defenestrado da Casa Civil, abandonado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, posto na “geladeira” e condenado pelo STF no processo do mensalão; em liberdade provisória, foi novamente preso e condenado na Operação Lava-Jato, pelo juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, mas o processo não transitou em julgado e Dirceu teve a prisão relaxada.

Por ironia da história, agora quem está em cana e perdeu os direitos políticos é o ex-presidente Lula, para quem o caso Dirceu deixou de ser um estorvo para se tornar o “mapa da mina”, pois gerou uma “jurisprudência” que enche de esperança os seus próprios advogados. O ex-ministro e ex-deputado federal petista (foi cassado pela própria Câmara na CPI dos Correios) não é homem de aceitar derrotas e está de volta à luta. Viaja com a família pelo Brasil afora, de motorhome, para emular os militantes petistas com lançamentos do livro que escreveu na prisão. Em duas entrevistas recentes, para veículos de grande prestígio na esquerda brasileira, a edição brasileira do jornal espanhol El Pais e a revista Piauí, Dirceu resumiu o que Lula pretende com a eleição do petista Fernando Haddad: tomar a poder e acabar com a Operação Lava-Jato, tirando o poder de investigação do Ministério Público Federal e acabando com a execução imediata da pena após condenação em segunda instância.

Com base nas declarações de Dirceu e do próprio candidato quando se refere a Lula, podemos deduzir que a proposta de convocação de uma “Constituinte exclusiva”, apresentada por Fernando Haddad em seu programa de governo, é apenas um instrumento para isso. O candidato do PT seria uma espécie de Kerenski, o líder do governo provisório da Revolução de Fevereiro, que antecedeu a tomada de poder pelos bolcheviques na Rússia, em 7 de novembro de 1917. No domingo à noite, durante o debate da TV Record, Haddad foi questionado por Ciro Gomes (PDT) sobre a inconstitucionalidade dessa proposta e se enrolou todo para responder. Sabe que a atual Constituição, que pretende substituir por outra, não dá ao presidente da República poderes para convocar uma Constituinte. Somente o próprio Congresso poderia fazê-lo.

Haddad faz campanha como bom moço, fala o que os militantes petitas querem ouvir. Varre para debaixo do tapete a recessão de 2016 e o escândalo da Petrobras. Nos comícios, imita com perfeição a voz de Lula: “Haddad, diz lá pro povo que nós vamos ganhar essa eleição e voltar a governar o país”. A plateia delira. A bem-sucedida operação para transferir os votos de Lula, que manteve sua candidatura até ela ser impugnada pelo pleno do tribunal Superior Eleitoral, já é um “case” de estratégia política e marketing eleitoral. O PT voltou ao seu leito eleitoral. Entretanto, sempre há um porém, ou melhor, uma delação premiada. Desta vez, partiu da Polícia Federal, que negociou com o ex-ministro da Fazenda de Lula e da Casa Civil de Dilma Rousseff Antônio Palocci um acordo de colaboração. O juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, quebrou o sigilo de um dos depoimentos. Nele, Palocci entrega o esquema de caixa dois do PT, digamos, o dinheiro da revolução, na ótica de Dirceu e dos petistas para os quais os fins justificariam os meios.

Aposta

Na delação, Palocci diz que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicou Paulo Roberto Costa para a Petrobras com o objetivo de “garantir ilicitudes” na estatal e usou a empresa para conseguir dinheiro para campanhas do PT com o pré-sal. Disse que as campanhas de Dilma em 2010 e 2014 custaram R$ 1,4 bilhão, muito mais do que o declarado à Justiça Eleitoral. Falou que o MDB exigiu e Lula entregou ao aliado a diretoria de Relações Internacionais da Petrobras. E revelou que, pelo menos 900 das mil medidas provisórias editadas nos governos Lula e Dilma, envolveram propina para serem editadas (na verdade, foram 621 medidas provisórias editadas nos dois governos).

Lula e Dilma negam tudo isso, mas o acordo firmado em abril com a Polícia Federal foi homologado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). O ex-ministro se comprometeu em pagar R$ 37,5 milhões como indenização pelos danos penais, cíveis, fiscais e administrativos dos atos que praticou. Preso desde 2016, com uma condenação a 12 anos e dois meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, Palocci tentou fechar um acordo com o Ministério Público Federal (MPF) e não conseguiu. O primeiro a saber do acordo com a Polícia Federal foi José Dirceu, confidente do ex-ministro quando estavam juntos na Papuda, em Brasília. Ao contrário de Palocci, o líder petista tomou outro caminho: aposta na vitória do PT nas eleições.

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Luiz Carlos Azedo: Dez dias decisivos

“Para quem acreditou na narrativa do golpe, nada como a teimosia dos fatos para demonstrar que vivemos numa democracia robusta”

O norte-americano John Reed (1887-1920) é um grande mito do jornalismo político. Filho de um milionário de Portland, formou-se em Havard e se tornou repórter. Após aderir às ideias socialistas, resolveu escrever reportagens sobre os movimentos sociais da sua época, o que lhe valeu algumas prisões e o levou ao México, em 1914, para fazer a cobertura da revolução liderada por Pancho Vila, de quem se tornou próximo. Depois, virou correspondente nos campos de batalhas da Primeira Guerra Mundial, nos Países Baixos, na Alemanha, na França, na Romênia, na Bulgária, na Turquia e na Grécia, até chegar à Rússia, o que lhe possibilitou escrever a sua obra mais famosa: Dez dias que abalaram o mundo.

O pequeno livro, narrado no calor dos acontecimentos em forma de crônicas, é a obra seminal da reportagem moderna, considerado pela Universidade de Nova York como um dos 10 melhores trabalhos jornalísticos do século XX. Reed acompanhou de perto a atuação dos principais líderes da Revolução de Outubro, entre os quais Lênin e Trotsky, no curto período de tempo da insurreição que levou os bolcheviques ao poder. Reed chegou a Petrogrado (São Petersburgo) em agosto de 1917 e permaneceu na Rússia até morrer, em 17 de outubro de 1920, em Moscou. Sua narrativa da Revolução Russa lhe valeu um enterro com honras junto às muralhas do Kremlin, onde seu túmulo é visitado, diariamente, por milhares de turistas.

“Jack” Reed, como era chamado, até hoje inspira jovens repórteres. Seus livros renderam dois clássicos do cinema: Outubro (1927) e Viva México! (1931), de Sergei Eisenstein. Em 1981, Warren Beatty dirigiu Reds, no qual conta a vida do jornalista romântico e revolucionário, cujo papel interpretou no filme. Dez dias que abalaram o mundo encheu de esperanças e frustrou gerações ao longo de um século; sua releitura mostra a essência de tudo o que viria a acontecer depois da tomada do poder, inclusive os “vícios de origem” que levaram o modelo socialista ao colapso.

Vivemos num mundo muito diferente daquele que Reed nos relatou em seus livros. Sem dúvida, muito mais conectado do que aquele no qual os acontecimentos eram descritos por meio de cartas e telegramas, fotos e filmes em preto e branco. O que vai acontecer nos próximos dias ninguém sabe. O que se anuncia é um formidável choque de concepções e interesses, num processo eleitoral radicalizado, de desfecho imprevisível quanto ao vencedor. Não é algo que emergiu no processo eleitoral, muito pelo contrário, vem se anunciando desde 2013, quando ficou patente o descolamento entre a sociedade e sua representação política. Até agora, os mecanismos constitucionais existentes foram capazes de absorver essas tensões, inclusive as do impeachment da presidente Dilma Rousseff e as da Operação Lava-Jato.

Transição

O que acontece no Brasil desperta amplo interesse na imprensa internacional. Não é fácil entender muito bem a trama da política brasileira, com seus pontos fortes e fracos. Na abertura da Assembleia Geral da ONU, na terça-feira, chefes de Estado de todo o mundo ouviram o presidente Michel Temer anunciar que passará o poder ao futuro presidente eleito com o país em ordem e a economia funcionando. Para quem acreditou na narrativa do golpe, nada como a teimosia dos fatos para demonstrar que vivemos numa democracia robusta.

Desperta certa inveja entre as nações a realização de eleições livres cujas urnas são apuradas no mesmo dia, sem fraudes, com o povo escolhendo seus representantes pelo voto direto e secreto. Como entender a polarização política protagonizada por um político preso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja candidatura foi impugnada, e Jair Bolsonaro (PSL), um ex-capitão do Exército, que está hospitalizado em razão de uma facada recebida em plena campanha eleitoral, sem que tais fatos não tenham causado uma guerra civil ou um golpe militar? Tudo indica, pelas pesquisas divulgadas ontem, que teremos segundo turno. É um bom sinal, pois isso significa que haverá necessidade de moderação e entendimentos políticos no futuro próximo, ainda que nestes 10 dias que faltam para o primeiro o turno a radicalização persista.

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Luiz Carlos Azedo: A violência das paixões

“A crise da democracia representativa e dos partidos políticos tradicionais não se restringe ao fracasso de suas elites políticas. É também uma crise dos valores liberais nas sociedades democráticas”

Com base na trilogia de Alexei Tolstoi, escritor do chamado “realismo socialista”, a série O Caminho dos Tormentos, da Netflix, narra a saga de duas irmãs aristocratas, um oficial do Exército russo e um engenheiro que se torna oficial do Exército Vermelho. Com locações e figurinos irretocáveis, a produção russa de 2017 mostra os horrores da guerra civil na Rússia (1917 a 1924), em meio ao ódio de classe, às paixões ideológicas e toda sorte de oportunismo e sectarismo políticos. Da derrocada da autocracia russa à consolidação dos bolcheviques no poder, houve um banho de sangue trágico, que esfacelou famílias e destruiu amizades.

Talvez essa história fosse diferente se uma carnificina ainda maior não tivesse ocorrido: a 1ª Guerra Mundial (1914-1918), na qual a Rússia se engajou ao lado da Sérvia, da França e da Inglaterra, a chamada Tríplice Entente, contra a Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro, que formavam a Tríplice Aliança. Houve uma estupidez política sem tamanho de toda a elite europeia, encerrada no que a historiadora Barbara Tuchman, em seu livro, chamou de “Torre do Orgulho”. O mundo vivia a euforia da chamada Belle Époque (Bela Época), um período de grande progresso econômico e tecnológico; ao mesmo tempo, a exaustão do colonialismo e fortes tensões políticas e sociais.

O revanchismo latente na França e na Alemanha por causa da região da Alsácia-Lorena, que os franceses haviam perdido para os alemães na Guerra Franco-Prussiana, precisou apenas de um estopim para degenerar em gigantesca carnificina: o assassinato de Francisco Ferdinando, príncipe do império austro-húngaro, enquanto fazia uma visita a Sarajevo, região da Bósnia-Herzegovina, por um jovem terrorista sérvio. Insatisfeito com as atitudes tomadas pelo governo contra o criminoso, o Império Austro-Húngaro declarou guerra à Sérvia em 28 de julho de 1914. Ao fim do conflito, o saldo de mortos chegou a 10 milhões. A Alemanha acabou derrotada e perdeu não somente a Alsácia-Lorena, como todas as suas colônias, no Tratado de Versalhes, e ainda teve que pagar pesadas indenizações de guerra.

Em 1914, a Alemanha era governada pelo poderoso Partido Social-Democrata Alemão, que aprovou os créditos de guerra, o que provocou um tremendo racha na chamada II Internacional, que reunia a esquerda europeia. O Partido Trabalhista britânico e o Partido Socialista francês, ambos marxistas, seguiram o mesmo caminho e aderiram à guerra. O Partido Socialista Operário Russo (bolchevique), sob a liderança do revolucionário russo Vladimir Lênin, um dos personagens secundários da série russa, porém, seguiu outro caminho: defender a paz, fazer uma insurreição com apoio dos soldados insatisfeitos e tomar o poder. Tudo o que ocorreu depois na política foi consequência da 1ª Guerra Mundial, a começar pela radicalização política que levou ao poder Mussolini, na Itália, e Hitler, na Alemanha, os dois grandes derrotados no conflito.

Ambos foram derrotados na Segunda Guerra Mundial, mas a divisão entre comunistas e social-democratas se manteve na Europa por causa da “guerra fria”. Com a dissolução da União Soviética e o colapso do chamado “socialismo real” no Leste Europeu, essa divisão perdeu completamente o significado histórico. O mesmo processo de globalização e revolução tecnológica que levou à derrota o comunismo europeu, levou de roldão o Estado de bem-estar social na Europa ocidental. A grande obra social-democrata do pós-guerra entrou em colapso. O Ocidente passou a viver a hegemonia do pensamento liberal.

A melhor saída
Vivemos um período de paz maior do que os anos da Belle Époque (1871-1914), apesar dos conflitos localizados e do terrorismo religioso na Eurásia e na África. A globalização e a revolução tecnológica, porém, com o esgotamento do Estado de bem-estar social, engendraram um agravamento das desigualdades e desequilíbrios regionais, principalmente na relação Norte-Sul. Essa é a raiz da crise humanitária e da emergência de movimentos racistas, xenófobos e fascistas na Europa. E também do fortalecimento de tendências autoritárias em regimes democráticos como respostas a essas contradições, como acontece na Venezuela, no Egito, na Turquia, nas Filipinas, em Israel, na Rússia e até nos Estados Unidos, que reage à expansão da China comunista, um misto de capitalismo de Estado e ditadura.

A crise da democracia representativa e dos partidos políticos tradicionais no Ocidente não se restringe ao fracasso de suas elites políticas. É também uma crise dos valores liberais — igualdade, fraternidade e liberdade — nas sociedades democráticas, contraditória com a exacerbação da liberdade individual. O processo de radicalização política em curso nas eleições brasileiras não está fora desse contexto, muito pelo contrário. Suas raízes ideológicas e políticas, historicamente, estão datadas, vêm lá da 1ª Guerra Mundial: a busca de soluções para os problemas econômicos e sociais do desenvolvimento por uma via “prussiana” ou “jacobina” é uma tentação, como se a tomada do poder fosse a solução para tudo. O mundo mudou, está cada vez mais veloz e integrado. As velhas fórmulas não dão conta da realidade de uma sociedade “líquida”. Mesmo assim, a democracia ainda é a melhor saída para as crises.

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Luiz Carlos Azedo: O estelionato eleitoral

“Quem vencer as eleições estará contingenciado pela dura realidade fiscal. Se não levá-la em conta, jogará o país numa nova recessão”

Enquanto avança a disputa entre os candidatos a presidente da República, o fosso entre as expectativas criadas junto aos eleitores e as possibilidades efetivas de atendê-las se aprofunda. Surgem soluções mágicas para o desemprego, o endividamento das famílias, a violência e a ineficiência dos serviços públicos na educação e na saúde, mas muito pouco se fala sobre os cinco anos de deficit fiscal e o ajuste a ser feito, necessariamente, por quem ganhar a eleição, inclusive a reforma da Previdência que aumente a idade mínima e unifique as aposentadorias de servidores públicos e demais trabalhadores. Ou seja, vem aí mais um estelionato eleitoral.

O reflexo imediato das incertezas quanto à crise de financiamento do Estado brasileiro é a alta do dólar, que alcançou o maior valor da história do real: ontem, fechou negociado a R$ 4,19. A corrida pela moeda norte-americana é influenciada pelo cenário internacional desfavorável aos países emergentes. A guerra comercial e a alta dos juros protagonizada pelos Estados Unidos fazem a festa para os especuladores. E as promessas mirabolantes dos candidatos para seduzir os eleitores não ajudam a acalmar o mercado. Quem vencer as eleições estará contingenciado pela dura realidade fiscal. Se não levá-la em conta, jogará o país numa espiral de inflação alta e nova recessão. A maior prova disso é a lenta recuperação da atividade econômica no governo Temer, que está associada diretamente ao deficit fiscal. O atual governo conseguiu controlar a inflação e sair da recessão, mas não obteve taxas de crescimento capazes de resolver o problema do desemprego. O deficit fiscal de R$ 159 bilhões previsto para este ano barra o crescimento.

Vejamos, por exemplo, as promessas de campanha do candidato do PT, Fernando Haddad, que anuncia um cenário de bonança. O petista promete retomar o fio da história a partir do governo Lula, que registrou crescimento de 7,5% em 2010. Isso somente foi possível porque a economia estava anabolizada pela superoferta de crédito, pelas isenções fiscais e pelos subsídios das tarifas de energia e combustível. A tentativa de manter essa rota foi chamada de “nova matriz econômica” e levou o país ao colapso no governo Dilma Rousseff. Além disso, as condições favoráveis àquele regime de pleno emprego deixaram de existir: a forte expansão da economia mundial foi interrompida com a crise do mercado financeiro de 2008, o superavit fiscal herdado do governo de Fernando Henrique Cardoso foi canibalizado, e o bônus demográfico, que aumentou a renda média das famílias com a redução do número de dependentes, foi abduzido pela crise da seguridade social.

Haddad anunciou, ontem, a proposta de zerar as dívidas dos consumidores, macaqueando a proposta do candidato do PDT, Ciro Gomes, que prometeu limpar o nome de todos os endividados no SPC. Promete a retomada da “nova matriz econômica” do programa do PT. Ao mesmo tempo, sinaliza para o mercado que pretende convidar para o Ministério da Fazenda o economista Marcos Lisboa, um dos críticos da política de Dilma Rousseff, que fez parte da equipe do ministro Antonio Palocci no começo do governo Lula. Haddad faz campanha como se fosse sósia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, nos bastidores, manda recado para o mercado financeiro de que pretende adotar a tática do violino: segurar o governo com a esquerda para tocar a política econômica com a direita.

Teto de gastos
Presidente do Insper, Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia, Marcos Lisboa foi professor da Universidade de Stanford e diretor-executivo e vice-presidente do Itaú-Unibanco de 2006 a 2013. Fez duras críticas ao governo Dilma em 2015: “A causa imediata da grave crise é o desequilíbrio fiscal e a tendência de aumento da dívida pública, que significa risco para a sustentabilidade das contas públicas nos próximos anos. As razões desse desequilíbrio não se resumem apenas às escolhas de política econômica dos últimos anos, ainda que essas escolhas o tenham agravado. O gasto público no Brasil apresenta uma tendência de crescimento maior do que o da renda nacional, decorrente de diversas regras legais e da transição demográfica. A população idosa cresce 4% ao ano, enquanto a população em idade ativa cresce apenas 1% ao ano, implicando a necessidade de aumento contínuo da carga tributária para preservar os benefícios previdenciários previstos”.

Para Marcos Lisboa, reverter a trajetória de crescimento do gasto passa pela reforma da Previdência, com adoção de observadas nos países desenvolvidos e a eliminação dos regimes especiais. O economista defende regras de vinculação dos gastos públicos ao aumento da renda nacional e ao aumento da produtividade, o que requer uma extensa agenda de reforma das políticas públicas adotadas no governo Lula e a manutenção da lei do teto de gastos. É difícil acreditar que venha a ser ministro da Fazenda de um eventual governo petista, a não ser que Haddad faça mesmo uma ruptura com as políticas que vem defendendo na campanha eleitoral.

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Luiz Carlos Azedo: A história à deriva

“Em pleno processo eleitoral, a identificação das causas reais do incêndio do Museu de nada servirá para evitar o embate político que já se estabeleceu entre governo e oposição”

O Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, cujo acervo foi quase completamente destruído por um incêndio na noite de domingo, era o retrato da relação do Brasil com a sua cultura. Entrou na pauta das eleições da pior forma possível: como nova tragédia nacional, que comoveu o mundo da cultura e, principalmente, o povo do Rio de Janeiro. Por causa das linhas de trens e de metrô, era muito visitado por estudantes de todas as idades e pelas famílias de cariocas dos subúrbios da Central do Brasil e da Leopoldina, para os quais era uma janela para o mundo da História Natural e das civilizações antigas.

A existência do museu se deve, em primeiro lugar, à transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821, com a vinda de Dom João VI e sua família para o Brasil, acompanhado de mais de 10 mil pessoas, entre serviçais, religiosos, militares e a nobreza, fugindo do exército de Napoleão Bonaparte, o imperador francês. O antropólogo e jornalista australiano Patrick Wilcken, no livro Império à deriva, descreve essa mudança de forma magistral, no contexto da política europeia da época. O choque cultural que ela provocou, porém, é narrado com riqueza de detalhes por Laurentino Gomes, no livro 1808.

Laurentino Gomes é autor de uma trilogia que inclui 1822 — Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado, sobre a Independência; e 1889 – Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República do Brasil, que narra o colapso do regime imperial escravocrata. É dele, “depois de uma noite mal- dormida”, o comentário mais crítico sobre o incêndio na Quinta da Boa Vista:

“Abandonado, desleixado, com um acervo rico, porém esquizofrênico, pouco acolhedor para quem se animassem a visitá-lo, o Museu Nacional era um símbolo do que nos tornamos nos últimos anos: uma caricatura do que gostaríamos de ser e nunca fomos”, criticou. O prédio da Quinta da Boa Vista foi palco de grandes momentos da história do Brasil Imperial. Segundo Laurentino, tinha vocação para Museu Histórico, mas virou Museu de Ciências Naturais. “O acervo era confuso e pouco didático, entregue aos malcuidados de funcionários e curadores burocráticos, sem inspiração e entusiasmo”, critica.

Para o historiador, era um símbolo do toma lá dá cá na política brasileira: o prédio original foi um presente de um grande traficante de escravos a D. João no dia da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808. Elias Antônio Lopes era “um dos homens que mais se enriqueceria e ganharia títulos e honrarias nos 13 anos da Corte portuguesa no Brasil.” De fato, a coleção do museu começou como um projeto que se inspirava nas casas reais europeias. D. Pedro II era neto do rei português João VI e de Francisco II, último monarca do Sacro Império Romano-Germânico, sobrinho de Napoleão Bonaparte e primo dos imperadores Francisco José I da Áustria e Maximiliano do México.

Acervo
Uma parte do acervo se deve ao interesse de D. Pedro II pelas ciências e seu esforço de reconhecimento pela nobreza europeia. Na década de 1870, o imperador brasileiro fez duas grandes viagens à Europa, Oriente Médio, África e Estados Unidos, o que acabou influenciando as características do acervo que Laurentino chama de “esquizofrênico”. Há que se considerar que o colonialismo estava no auge e o saque ao patrimônio histórico das antigas civilizações orientais e mediterrâneas pelas potências da Europa estava em pleno curso. A outra parte é fruto da pesquisa arqueológica e antropológica dos pesquisadores abnegados do próprio museu, que completavam a coleção.

O museu comemorou em junho seu bicentenário. Recebia 150 mil visitantes por ano e era um importante centro de pesquisa e estudo, porque estava integrado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desde 1946. Sua biblioteca possuía 537 mil livros, incluindo 1.560 obras raras, como um exemplar de História natural (Plínio, o Velho), de 1410. Um dos acervos mais atingidos é o do departamento de paleontologia, com mais de 26 mil fósseis, incluindo o esqueleto de um dinossauro descoberto em Minas Gerais e inúmeras espécies extintas, como preguiças gigantes e tigres-dentes-de-sabre. Sua coleção de antropologia biológica incluía o mais antigo fóssil humano descoberto no Brasil, conhecido como “Luzia”, que sobreviveu a 12 mil anos, mas não ao descaso oficial com a cultura.

No dia 6 de junho, a direção do Museu Nacional e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) assinaram um contrato que prevê investimento de R$ 21,7 milhões para o plano de revitalização do prédio histórico, seu acervo e espaços de exposição. Mas já era tarde, pois o mais trivial — a manutenção da rede elétrica e armazenamento adequado de produtos químicos — não foi feito. As investigações sobre o incêndio provavelmente apontarão uma multiplicidade de fatores de risco, do cupim nas madeiras à falta de equipe de combate a incêndio.

Em pleno processo eleitoral, a identificação das causas reais do incêndio de nada servirá para evitar o embate político que já se estabeleceu entre governo e oposição. A direção da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é controlada por uma aliança de partidos de esquerda — PSOL, PCdoB e PCB —, enquanto os ministérios da Cultura e da Educação estão sob comando de aliados do presidente Michel Temer. Embora o PT tenha exercido o poder de 2002 a 2016, estudantes e dirigentes universitários culpam Temer pelo sucateamento do museu. Entretanto, a manutenção do museu deveria ter sido uma prioridade no orçamento da universidade, poderia remanejar verbas e fazer contratos emergenciais para isso, em vez de criar novas despesas. Depois do incêndio, isso nem se discute.

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