Memória

Luiz Carlos Azedo: O trilema das reformas

“O problema nesse cenário está na resistência das corporações e dos segmentos empresariais que não suportam a concorrência”

O economista Claudio Porto, fundador da Macroplan, batizou de trilema os cenários possíveis para o Brasil a médio prazo. Como aperitivo, faz uma comparação entre o que aconteceu no Brasil e na China nos últimos 40 anos, com base num resumo de Jorge Caldeira, no livro História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil). Quando foi lançado o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), na década de 1970, o regime militar apostou no mercado interno e na construção de uma economia autossuficiente em todas as áreas, uma visão autárquica e baluartista de país. Deu errado. A China apostou na globalização, no comércio exterior e na complementariedade. Resultado, em 1979, no final do governo Geisel, em dólares de 2010, o Brasil tinha um PIB de 926 bilhões e a China, de 327 bilhões; em 2017, o PIB do Brasil chegou a 2, 3 trilhões e o da China saltou para 10,1 trilhões.

As causas desse nosso desempenho estão diagnosticadas: economia fechada, com baixa produtividade e muita insegurança; desigualdades muito altas, com 12 milhões de desempregados e 30 milhões abaixo da linha de pobreza; e sistema educacional de baixa qualidade, com o Brasil em 66º lugar entre 73 países no PISA (Programme for Internacional Stuident Assessment), atrás de todos os países da América Latina, com exceção do Peru e da República Dominicana. A grande preocupação de Porto é uma recidiva do padrão de desenvolvimento da década de 1970, cujo resultado seria a retomada do crescimento com agravamento das desigualdades.

Para quem acompanha a política em Brasília, esse cenário não deve ser subestimado, porque pode resultar da convergência de variáveis que estão fortemente presentes no governo Bolsonaro e no atual Congresso. As variáveis positivas são o avanço das reformas liberais no plano fiscal e previdenciário, com ampliação das concessões e parcerias público-privadas. São fatores negativos: manutenção do “capitalismo de laços” e restrições aos privilégios das corporações de caráter parcial ou meramente simbólico, com restrições às políticas sociais e intervencionismo econômico. Trocando em miúdos, nesse rumo, a economia pode crescer sem inflação e baixa produtividade, a taxas entre 2,2% e 1,6% ao ano, com queda na renda média das famílias na base da pirâmide.

Há mais dois cenários possíveis. O melhor é a globalização inclusiva, cujo maior obstáculo aparente hoje é a nova política externa. Além de ajuste fiscal estruturante, desregulamentação, privatizações e parcerias público-privadas, o Brasil precisa de um ambiente de segurança pública e jurídica, mais foco na educação básica, proteção social aos vulneráveis e uma política trabalhista que possibilite investimentos e gere mais empregos. Assim, poderia crescer em 4% e 3,4% ao ano. O problema nesse cenário está na resistência das corporações e dos segmentos empresariais que não suportam a concorrência.

O pior cenário é o pacto perverso do populismo com o corporativismo, que tenta conciliar as demandas da população com as das corporações. Nesse cenário, as reformas serão mitigadas no Congresso, com soluções de curto prazo para a crise fiscal, inclusive na reforma da Previdência. Esse é um horizonte de crescimento próximo do zero, depois de mais um voo de galinha.

Boechat, 66 anos

Conheci Ricardo Boechat em Niterói, no começo dos anos 1970, quando fui trabalhar no jornal O Fluminense e estudar ciências sociais na Universidade Federal Fluminense. Ele era repórter da coluna do Ibrahin Sued, no jornal O Globo. Éramos jovens militantes do antigo PCB e compartilhamos, em 1975, a angústia de ver nossos “assistentes” presos e a gratidão de saber que nenhum deles — nem José Otto de Oliveira nem Aírton Albuquerque Queiroz, respectivamente, de quem recebíamos o jornal clandestino Voz Operária — havia nos denunciado. Graças a isso, pudemos prosseguir nossas vidas profissionais.

Nos cruzávamos, às vezes, na barca Rio-Niterói, até o dia em que Boechat resolveu comprar uma moto e atravessar a ponte por meios próprios. Por causa da minha vida cigana, nosso último encontro foi na redação do jornal O Globo. Ele era colunista e eu, que trabalhava na sucursal de São Paulo, de passagem pelo Rio de Janeiro, fui à redação visitar Ali Kamel, que me resgatou para a grande imprensa, e lá o reencontrei, como a outros velhos amigos comuns, entre os quais meu xará Luís Carlos Cascon, então chefe de reportagem, também de Niterói. Depois, tivemos apenas algumas conversas por telefone. Boechat era tudo isso que os amigos estão falando. Destaco, porém, três qualidades do seu caráter: a coragem, a integridade e o amor ao próximo. Mando aqui meus pêsames para Veruska, sua mulher, colega jornalista que conheci em Vitória, e para os demais parentes e amigos. Força aí!

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Luiz Carlos Azedo: Febre e pneumonia

“Bolsonaro não seguiu o protocolo médico ao pé da letra, porque não se desligou do cargo para tratar somente da saúde. Insistiu em reassumir a Presidência dois dias depois da operação”

A recuperação do presidente Jair Bolsonaro está mais complicada do que se imaginava. Segundo a equipe médica do Hospital Alberto Einstein, uma tomografia de tórax e abdome mostrou “boa evolução do quadro intestinal e imagem compatível com pneumonia”. O boletim médico também registrou febre na noite de quarta-feira. Bolsonaro passou por uma cirurgia para retirar uma bolsa de colostomia e refazer a ligação entre o intestino delgado e parte do intestino grosso, em 28 de janeiro, sequelas da facada que levou em Juiz de Fora na campanha eleitoral.

Voltamos assim ao tema da necessidade de separação entre o paciente e o presidente, que já abordamos aqui na coluna. A verdade é que Bolsonaro não seguiu o protocolo médico ao pé da letra, porque não se desligou do cargo para tratar somente da saúde. Insistiu em reassumir a Presidência dois dias depois da operação, quando deveria deixar a função a cargo do vice-presidente, Hamilton Mourão, por mais que isso incomode aos seus partidários ciumentos. No fundo, é uma grande bobagem, porque a situação em que se encontra, lutando para restabelecer a saúde, reforça o “mito”; isto é, ao mesmo tempo, deifica e humaniza sua imagem.

Segundo o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, foram feitos exames viral e bacteriano, e descartaram o viral. “Trata-se de uma causa bacteriana”, disse, ou seja, há uma infecção a ser combatida. Por isso, os médicos trataram de reforçar a dose de antibióticos. Bolsonaro não sente dor, continua com uma sonda nasogástrica e um dreno no abdome. Recebe alimentação parental e líquidos por via oral; faz exercícios respiratórios e caminha pelos corredores. É um paciente que está em recuperação, que precisa de cuidados especiais, mas não corre risco de vida.

Também não corre o menor risco político, apesar das teorias conspiratórias em relação a Mourão. A oposição não tem interesse que o vice substitua Bolsonaro, simplesmente porque prefere um político na Presidência; um general, não. Os demais generais que já mandam no governo não pretendem trocar um ex-capitão com 30 anos de experiência parlamentar e grande popularidade, eleito por voto direto, por um colega eleito de carona. O que existe nos bastidores do governo é uma disputa entre a turma do bom senso, que prefere um ambiente de negociação com o Congresso e diálogo com a sociedade, e a tropa de choque de Bolsonaro, que ascendeu ao governo e ainda não desceu do palanque eleitoral.

Apoio condicionado
Enquanto o presidente permanece hospitalizado, o governo vai bem, obrigado, na relação com o Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), está alinhado com as reformas e mantém diálogo fácil com o ministro da Economia, Paulo Guedes. Na Presidência do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) é um aliado de primeira hora. A propósito, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, surpreendeu a oposição com o movimento de reaproximação com a ala derrotada do MDB no Senado, ao pedir que Alcolumbre sondasse o senador Fernando Bezerra (MDB-PE) para saber se o político pernambucano aceitaria ser o líder do governo na Casa. Aceitou de pronto.

O reequilíbrio nas relações do Palácio do Planalto com o MDB no Senado segue a velha receita da política de conciliação; o partido já se reposiciona para negociar seu apoio com o Palácio do Planalto. Essa aproximação deve se consolidar com a indicação de um deputado do MDB para a liderança do governo no Congresso. O mais cotado é o deputado Alceu Moreira (RS), gaúcho e líder ruralista.

O ponto fora da curva é o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), que sofre com o fogo amigo. Pisou na bola ao convocar uma reunião de parlamentares do “apoio consistente” e do “apoio condicionado”, ou seja, da oposição. Os grandes partidos da base do governo não foram à reunião. Estreante na Câmara, lida com um problema que não é novo. A negociação da reforma da Previdência está sendo feita diretamente entre o ministro Paulo Guedes e o presidente da Casa, Rodrigo Maia, mais ou menos como aconteceu com o Plano Real, quando o então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, passou a negociar diretamente com o presidente da Câmara, Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA).

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Luiz Carlos Azedo: Lula sabia, diz Gabriela

A nova condenação reabre a discussão sobre os rumos da legenda, que o ex-presidente comanda da prisão, por intermédio da deputada Gleisi Hoffman (PT-PR)

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cumpre pena em Curitiba por ter sido condenado em segunda instância no caso do triplex de Guarujá, foi condenado ontem a mais 12 anos e 11 meses de prisão pela juíza Gabriela Hardt, da 13ª. Vara Federal de Curitiba (que substituiu o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, no cargo), no caso do sítio de Atibaia, também em São Paulo. Segundo a magistrada, Lula era próximo do ex-presidente da OAS José Aldemário Pinheiro Filho e “tinha ciência do ‘caixa geral’ de propinas mantido entre a empresa e o Partido dos Trabalhadores”.

A juíza, que na primeira audiência com Lula foi desafiada por ele e o advertiu de que seu comportamento poderia se tornar um problema, concluiu que o ex-presidente se beneficiou do esquema de propina da Petrobras: “É fato que a família do ex-presidente Lula era frequentadora assídua no imóvel, bem como que usufruiu dele como se dona fosse. Inclusive, em 2014, Fernando Bittar alegou que sua família já não o frequentava com assiduidade, sendo este usado mais pela família de Lula”, afirma na sentença.

A juíza determinou o confisco do sítio de Atibaia e rechaçou os argumentos da defesa de que não existiriam provas contra Lula: “Foram ouvidas mais de uma centena de testemunhas, anexados dezenas de depoimentos produzidos em feitos correlatos como prova emprestada, deferida realização de prova pericial, anexados diversos documentos, sendo nítido que a produção probatória é farta”. Segundo a denúncia do Ministério Público Federal, a Odebrecht e a OAS custearam R$ 850 mil em reformas na propriedade. Já o pecuarista José Carlos Bumlai fez o repasse de propina ao ex-presidente no valor de R$ 150 mil.

O processo não tratou da propriedade do imóvel, mas das reformas que foram feitas nele. Como os valores do terreno e das benfeitorias se equivalem, a juíza determinou a venda do sítio e devolução da diferença entre o valor das benfeitorias e o valor pago pelo imóvel aos proprietários, Fernando Bittar e sua esposa, após o trânsito em julgado do processo. A reforma do sítio de Atibaia foi feita a pedido de Lula, que acompanhou o arquiteto responsável, Paulo Gordilho, na visita ao sítio e aprovou o projeto.

Foram realizadas diversas benfeitorias no sítio, mas consta da denúncia somente o valor pago à empresa Kitchens: R$ 170 mil. A obra foi realizada de forma a não ser identificado quem executou o trabalho e quem foi o beneficiário; os pagamentos feitos pela OAS à Kitchens foram em espécie, para não deixar rastros. “Não houve ressarcimento à OAS dos valores desembolsados pela empresa em benefício de Lula e de sua família”, destaca a sentença. Também foram condenados, a penas menores, Léo Pinheiro, José Carlos Bumlai, Emílio Odebrecht, Alexandrino Alencar, Carlos Paschoal, Emyr Dinis, Roberto Teixeira, Fernando Bittar e Paulo Gordilho. Odebrecht teve a pena suspensa por causa do seu acordo de delação premiada.

Inelegibilidade

A juíza Gabriela Hardt decretou a interdição de Lula para o exercício de cargo ou função pública pelo período equivalente ao dobro da pena estabelecida, ou seja, 24 anos, o que significa seu afastamento definitivo de qualquer projeto eleitoral próprio. A nova condenação fragiliza as articulações para que Lula saia da cadeia, quando nada para cumprir pena domiciliar, com tornozeleira eletrônica. Se for referendada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, com sede em Porto Alegre, dificilmente voltará a ter qualquer protagonismo político.

Embora o ex-presidente da República seja ainda a maior liderança do PT, que inclusive realiza uma campanha de solidariedade internacional e tem como principal palavra de ordem o “Lula livre”, a nova condenação reabre a discussão partidária sobre os rumos da legenda, que hoje gravita em torno do prisioneiro, que comanda o partido detrás das grades, por intermédio da deputada Gleisi Hoffman (PT-PR), atual presidente da agremiação. Entretanto, dirigentes petistas já defendem a necessidade de o partido encontrar um outro eixo de atuação, para evitar seu isolamento. O ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, que foi candidato a presidente da República e teve grande votação no segundo turno, é a liderança de maior expressão eleitoral, mas o quadro político histórico mais importante do PT no Congresso é o senador Jaques Wagner, ex-governador da Bahia.

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Luiz Carlos Azedo: A força da conciliação

“Sejam quais forem os presidentes da Câmara e do Senado, vão ter de operar a velha aliança entre liberais e conservadores. O presidente Jair Bolsonaro quer mudar as regras do jogo, ma non troppo”

A linha de força da disputa pelo comando da Câmara e do Senado é a velha política de conciliação, uma herança do Segundo Império, que se impôs na política nacional historicamente, como uma forma de resistência das forças políticas que controlam o Estado brasileiro. Mesmo depois da proclamação da República, na qual o positivismo se disseminou como ideologia dominante, a conciliação pautou a hegemonia no parlamento brasileiro. Não será diferente agora, depois do tsunami eleitoral que levou o presidente Jair Bolsonaro ao poder: o novo governo terá de conviver com a política tradicional. O nepotismo, o fisiologismo e o patrimonialismo estão sendo mitigados pela Operação Lava-Jato.

Um velho político conservador do Império, Honório Hermeto Carneiro Leão (1801-1856), o Marquês de Paraná, foi o pai da criança. A maioria dos políticos ouviu falar dele nos bancos escolares, mas é um sobrenome que até ontem frequentava o nosso parlamento, como outros representantes do velho patronato brasileiro. Renan Calheiros (MDB-AL) e Rodrigo Maia (DEM-RJ), no Senado e na Câmara, favoritos na disputa pela Presidência das duas casas, respectivamente, são legítimos representantes dessa tradição política enraizada no Nordeste brasileiro e no Rio de Janeiro. Seus principais desafiantes, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Fabinho Ramalho (MDB-MG), deslocam o eixo de poder para a Região Norte e para Minas Gerais. Os demais candidatos não têm a menor chance na disputa; os dois estão sendo estimulados pelo Palácio do Planalto, no primeiro caso, ostensivamente; no segundo, com mão de gato.

Carneiro Leão era um político do Regresso Conservador, que não conseguiu conter a Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul) nem evitar a eclosão da Sabinada (Bahia), da Balaiada (Maranhão) e da Cabanagem (Pará). A consequência foi a antecipação da maioridade de D. Pedro II, um golpe contra a Constituição articulado pelos liberais: “Queremos D. Pedro II / Embora não tenha idade / A nação dispensa a lei / Viva a Maioridade!” Por isso mesmo, não houve imediato retorno à normalidade. Em 1841, o chamado Gabinete da Maioridade foi substituído pelo Gabinete Palaciano, de tendência regressista, que reformou o Código de Processo Criminal e restaurou o Conselho de Estado, símbolo do despotismo monárquico. Em 1º de maio de 1842, a Câmara Legislativa, de maioria liberal, foi dissolvida.

Isso provocou revoltas nas províncias de Minas Gerais e São Paulo contra o Gabinete Palaciano. Houve choques militares em São Paulo; em Minas Gerais, os liberais, denominados de luzias, advogavam que a luta era em prol da “Constituição do Império”e defendiam a descentralização. A última revolta provincial, entretanto, eclodiu em 7 de novembro de 1848, em Pernambuco: a Revolução Praieira, duramente reprimida. A consolidação do Segundo Reinado se deu somente a partir de 1848, graças aos ministros da Justiça, Eusébio de Queiróz; de Estrangeiros, Visconde do Uruguai; e da Fazenda, o Visconde de Itaboraí, que mandaram e desmandaram até 1862, o que possibilitou a aprovação da Lei Eusébio de Queiróz, da Lei de Terras, do Código Comercial e a centralização político-administrativa da Guarda Nacional.

Luzias e saquaremas
O Marquês do Paraná, em 1853, para evitar conflitos políticos que remontassem aos anos de 1830 e 1840, resolveu acalmar as ruas e buscar uma aproximação com os liberais. Para convencer membros do Partido Liberal a aderir ao Gabinete da Conciliação, promoveu uma ampla reforma eleitoral, aprovada em 1854, com o voto distrital, que favoreceu a eleição de representantes de minorias políticas; e as incompatibilidades, que impediam a eleição de funcionários públicos nos distritos onde exercessem suas funções. Nas eleições de 1856, houve uma renovação de 67% dos políticos, o chamado Renascer Liberal. A política de conciliação é muito criticada desde aquela época. O deputado Holanda Cavalcanti, liberal pernambucano, dizia que “não há nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”.

A chamada “modernização conservadora” se ancorou nessa prática parlamentar; quando os políticos não deram conta do recado, houve rupturas institucionais: 1889, 1930 e 1964. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, para justificar sua aliança com o que chamava de “atraso”, mandava seus ministros lerem Um estadista no Império, de Joaquim Nabuco, o mais ardoso defensor da “ponte de ouro” entre liberais e conservadores, para que entendessem sua conturbada relação com o falecido senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), o grande líder conservador do Senado. De certa forma, com sinal trocado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva repetiu a estratégia, em aliança com o ex-presidente José Sarney (PMDB-AP). Dilma Rousseff quis mudar as regras do jogo e foi apeada do poder, como o ex-presidente Collor de Mello. Sejam quais forem os presidentes da Câmara e do Senado, vão ter de operar a velha aliança entre liberais e conservadores. O presidente Jair Bolsonaro quer mudar as regras do jogo, ma non troppo; tem um vice costeando o alambrado.

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Luiz Carlos Azedo: Dualidade de poderes

“Grandes manifestações populares, apesar de toda repressão policial e a violência das milícias chavistas, demonstram que a sociedade venezuelana já não aceita o governo de Maduro”

O presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, Juan Guaidó, que é o líder da oposição, se declarou ontem presidente interino do país, diante de gigantesca manifestação popular em Caracas: “Na condição de presidente da Assembleia Nacional, ante Deus, a Venezuela, em respeito a meus colegas deputados, juro assumir formalmente as competências do Executivo nacional como presidente interino da Venezuela. Para conseguir o fim da usurpação, um governo de transição e ter eleições livres.”

Guaidó foi imediatamente reconhecido presidente por Estados Unidos, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Guatemala, além do Brasil. O Itamaraty emitiu uma nota oficial na qual “reconhece o Senhor Juan Guaidó como presidente encarregado da Venezuela”, além de anunciar que “apoiará política e economicamente o processo de transição para que a democracia e a paz social voltem”. O presidente Nicolás Maduro, considerado um ditador pelo Grupo de Lima e pelos Estados Unidos, porém, não pretende deixar o cargo: “Aqui não se rende ninguém, aqui não foge ninguém. Aqui vamos à carga. Aqui vamos ao combate. E aqui vamos à vitória da paz, da vida, da democracia”. Maduro acusa o presidente Donald Trump de liderar um complô contra o regime chavista e rompeu relações com os Estados Unidos, dando um prazo de 72 horas para os diplomatas norte-americanos deixarem a Venezuela.

A tragédia social venezuelana, com a emigração em massa, já vem de alguns anos. A fome fez os venezuelanos perderem, em média, 11 quilos no ano passado. Já são 12 trimestres seguidos de recessão. Entre 2013 e 2017, o PIB venezuelano teve queda de 37%. O Fundo Monetário Internacional prevê que caia mais 15% neste ano. Com a hiperinflação, essa é uma linha de força da crise contra a qual Maduro nada pode fazer. O colapso do modelo de capitalismo de Estado venezuelano, mesmo com tanto petróleo, não pode ser superado sem um consenso social e político em torno de reformas de caráter liberal na economia. A linha adotada por Maduro, na direção de aprofundar a socialização do país, não tem respaldo político na sociedade nem pode se sustentar apenas no apoio da Rússia, da China e de Cuba.

Os artifícios usados por Maduro para se perpetuar no poder, fraudando eleições, aparentemente se esgotaram. Um sinal de sua fraqueza é o fato de que até agora não conseguiu fechar a Assembleia Nacional, que desafia seu poder. As grandes manifestações populares, apesar de toda repressão policial e a violência das milícias chavistas, demonstram que a sociedade já não aceita o governo de Maduro. Pela sua própria natureza, tal situação não pode ser estável. A sociedade necessita de uma nova concentração de poder, que pode se dar por duas vias: a renúncia de Maduro e um pacto com os militares para transitar à democracia, ou o fechamento da Assembleia Nacional e a implantação de uma ditadura aberta, com prisões em massa. Os militares bolivarianos apoiam Maduro porque controlam a maioria dos ministérios e das empresas estatais.

Mudança de postura

O modelo clássico de dualidade de poderes é a Revolução Inglesa (1625-1688) do século XVII, na qual o poder real, apoiado pelos aristocratas e bispos, se opunha à burguesia e aos fidalgos das províncias reunidos no Parlamento presbiteriano londrino. A longa luta entre esses dois polos de poder resultou numa guerra civil, numa ditadura e numa revolução democrática. Enquanto Londres e Oxford rivalizavam como centro de poder, surgiu uma terceira força, o Exército de Cromwell, que estabeleceu uma ditadura pretoriana. Com sua morte, nova dualidade de poderes se estabeleceu. Carlos II (1660 – 1685) foi proclamado rei da Inglaterra com poderes limitados. O parlamento se dividiu em dois grupos: os Whigs, que eram contra o rei e ligados à burguesia, e os Tories, defensores feudais e ligados à antiga aristocracia.

Com a morte de Carlos II, seu irmão Jaime II assumiu o governo, mas quis restaurar o absolutismo e o catolicismo, e acabou com o habeas corpus, proteção à prisão sem motivo legal. O parlamento não tolerou esse comportamento e convocou Maria Stuart, filha de Jaime II e esposa de Guilherme de Orange, para ser a rainha. Essa foi a Revolução Gloriosa. Guilherme se tornou rei e assinou a Declaração dos Direitos, que concedia amplos poderes ao Parlamento e vigora até hoje. Ao longo da história, esse tipo de dualidade de poderes se repetiu em vários países, em momentos diferentes, como na Revolução Francesa (1789-1799) e na Revolução Russa (1917-1921).

Ninguém sabe ainda o que vai acontecer com a Venezuela, mas a sua situação política se alterou radicalmente com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Maduro perdeu seu principal aliado no subcontinente, o Brasil, bem antes disso, com o impeachment de Dilma Rousseff. O governo de Michel Temer já havia tomado distância regulamentar de Maduro, mas não havia assumido uma postura de alinhamento automático com os Estados Unidos nem o apoio escancarado à oposição venezuelana, embora as pressões norte-americanas para uma postura mais agressiva já existissem, a ponto de o Departamento de Estado pedir ao governo brasileiro que mandasse tropas para a Guiana, temendo uma invasão do Exército venezuelano no país vizinho, em razão de uma disputa de fronteiras.

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Luiz Carlos Azedo: A confiança no Brasil

“Bolsonaro procura reposicionar o governo brasileiro no exterior. Não é uma tarefa fácil”

O presidente Jair Bolsonaro, ontem, em Davos, numa entrevista quebra-queixo para jornalistas brasileiros, disse que sua passagem pelo Fórum Econômico Mundial tem objetivo de restabelecer a confiança dos agentes econômicos no Brasil. “Queremos mostrar, via nossos ministros, que o Brasil está tomando medidas para que o mundo restabeleça a confiança em nós, que os negócios voltem a florescer entre o Brasil e o mundo, sem o viés ideológico, que nós podemos ser um país seguro para investimentos. E, em especial, a questão do agronegócio, que é muito importante para nós, é a nossa commodity mais cara. Queremos ampliar esse tipo de comércio.”

O discurso de Bolsonaro foi discutido por sua equipe de governo, representada em Davos pelos ministros Sérgio Moro (Justiça e Segurança Pública), Ernesto Araújo (Relações Exteriores), Paulo Guedes (Economia), Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral da Presidência) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, também integra a comitiva para Davos, enquanto o irmão senador, Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), continua ardendo na fogueira do caso Queiroz aqui no Brasil. O Fórum Econômico Mundial começa hoje e vai até sexta-feira, com previsão de uma redução de crescimento mundial, segundo anunciou a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde.

Os indicadores de crescimento de 2018 apontam para uma retração da economia mundial, que pode resultar numa grande recessão se suas causas não forem revertidas. Disputas comerciais entre as maiores economias do mundo, dívidas e eventos climáticos extremos (olha o aquecimento global aí, gente!) são alguns dos principais riscos previstos. A China teve seu pior índice de crescimento em 28 anos: no ano passado, a expansão do PIB chinês foi de apenas 6,6%; em 2019, será de 6,3%. A expansão induzida pelos incentivos fiscais nos Estados Unidos está se esgotando: a taxa de crescimento do PIB será de 2,5% em 2019 e apenas 2%, em 2020. Na Europa, a projeção é de uma expansão de 2% em 2019. Para 2019 e 2020, o crescimento global previsto pela ONU é de 3%, abaixo da taxa de 3,1% em 2018.

Trauma

É nesse cenário de “preocupações sobre a sustentabilidade do crescimento econômico global diante dos crescentes desafios financeiros, sociais e ambientais”, segundo o secretário-geral da ONU, Antonio Guterrez, que Bolsonaro procura reposicionar o governo brasileiro no exterior. Não é uma tarefa fácil, uma vez que a imagem do Brasil nunca esteve tão desgastada. Desde a crise do governo Dilma, com a narrativa do golpe, o PT faz uma campanha no exterior no sentido de desacreditar a democracia brasileira, com relativo êxito junto à imprensa internacional e a formadores de opinião. Mesmo com uma vitória por ampla margem também no exterior, a eleição de Bolsonaro corroborou a tese, que é falsa. O Brasil vive num regime democrático, ainda que o novo governo seja conservador e com forte presença dos militares.

O trauma do impeachment foi neutralizado pela estabilização da economia, com o governo Michel Temer, mas o fantasma da corrupção política permaneceu. Para os agentes econômicos, o novo governo sinalizou mudanças no sentido do combate à corrupção e da segurança jurídica, simbolizadas pela presença do ex-juiz da Operação Lava-Jato Sérgio Moro no Ministério da Justiça, e de uma guinada ultraliberal na economia, protagonizada pelo ministro Paulo Guedes. O problema é que não se muda uma imagem do dia para a noite, apenas com discursos. O que os investidores querem saber é se o governo vai enxugar a máquina pública, e o Congresso, aprovar a reforma da Previdência.

Nesse sentido, o vice-presidente Hamilton Mourão, o primeiro general a ocupar a Presidência desde a saída do presidente João Batista Figueiredo, em 1985, deu uma ajuda a Bolsonaro em Davos, ao anunciar que os militares terão de cortar na carne com a reforma da Previdência, aumentando o tempo de contribuição de 30 para 35 anos. Até novembro de 2018, o deficit no sistema de aposentadorias e pensões dos militares chegou a R$ 40 bilhões, um aumento de quase 13% em relação ao mesmo período de 2017. O presidente em exercício também falou sobre o caso Queiroz, comentando o envolvimento do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ). Mourão pôs panos quentes no assunto: “Acho que, para o governo, não chega nele, apesar do sobrenome e do senador. Agora, o senador é que está exposto na mídia realmente, e o Flávio é uma pessoa muito boa, eu gosto muito dele”.

 

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Luiz Carlos Azedo: A montanha mágica

“A luta dentro do governo se parece com a disputa entre o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, personagens de Thomas Mann”

Interessante a analogia feita por um dileto amigo, Arlindo Fernandes, entre a viagem do presidente Jair Bolsonaro a Davos, acompanhado do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do chanceler Ernesto Araujo, e o famoso romance do escritor alemão Thomas Mann que empresta o título à coluna, cuja história se passa exatamente naquela cidade dos Alpes, na Suíça. Segundo ele, a luta instalada dentro do governo, assunto sobre o qual conversávamos, se parece muito com a disputa entre dois personagens do romance, o humanista e enciclopedista Lodovico Settembrini e o jesuíta totalitário Leo Naphta, que protagonizam um choque entre ideias liberais e conservadoras junto ao jovem engenheiro naval alemão Hans Castorp.

Mann começou a escrever A montanha mágica em 1912, quando sua mulher Katharina Mann (Katia) foi internada num sanatório de Davos, para se curar de uma tuberculose. Três anos depois, indeciso sobre os rumos do romance, interrompeu a obra. Havia apoiado a Primeira Guerra Mundial, porque seria “a guerra para terminar todas as guerras”, e estava em conflito com o próprio irmão Heinrich, também escritor, em relação ao papel da Alemanha e à própria guerra. Thomas defendia uma Alemanha unificada, poderosa e zelosa de sua cultura; o irmão desprezava o provincianismo autoritário e acrítico dos alemães à época. Após a guerra, Thomas Mann termina de escrever seu romance, já com uma visão mais crítica sobre tudo o que havia ocorrido; mais tarde, se posicionaria contra a II Guerra Mundial e a própria Alemanha. O romance também reflete esse embate de ideias com o irmão.

O Sanatório Internacional de Berghof é um estabelecimento fictício, vizinho à antiga e luxuosa casa de Repouso Schatzalp, que inspirou o escritor alemão e, por isso, costuma receber levas de leitores-turistas fascinados com o livro. Virou hotel em 1954, como o Waldhotel, o antigo Waldsanatorium, onde Katia Mann, mulher de Thomas Mann, se internou em 1912. A visita que o romancista fez à esposa por três meses o inspirou a escrever. Personagem principal do romance, Hans Castorp é um jovem alemão com os seus 20 anos, prestes a ter uma carreira naval em Hamburgo, sua cidade natal, que viaja para visitar seu primo tuberculoso Joachim Ziemssen, num sanatório em Davos.

Durante sua longa permanência, conhece personagens que representam um microcosmo do pensamento do pré-guerra na Europa. Além de Setembrini e Naphta, a hedonista Mynher Peerperkorn e Madame Chauchat, por quem se apaixona. Após sete anos, antes de ir para a guerra para morrer como um soldado anônimo, Castorp descobre a arte, a cultura, a política, a fragilidade humana e o amor; o tempo, a música, o nacionalismo, as questões sociais e as mudanças. Todas as ideias do século XX estão presentes no romance, que é considerado uma “obra de formação”.

Onde está a analogia? O italiano Lodovico Settembrini representa o humanismo e o iluminismo, atribui o progresso humano à ciência, defende a democracia liberal e acredita no livre-arbítrio. Leo Naphta, cristão novo, interrompeu os estudos teológicos na Companhia de Jesus por causa da tuberculose, mas vê a fé como o sentido da vida e das ações. Defende os atos sangrentos cometidos pela Igreja ao longo da história, vê na ciência e nas explicações racionais os horrores das rebeliões liberais, como a Revolução Francesa.

Disputa política

De certa forma, essas duas tendências estão representadas no governo Bolsonaro, por alguns de seus integrantes: a primeira, pelos ministros Paulo Guedes (Economia), Sérgio Moro (Justiça), Osmar Terra (Cidadania), Teresa Cristina (Agricultura), principalmente; a segunda, por Ernesto Araujo (Relações Exteriores), Ricardo Velez-Rodriguez (Educação) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), sobretudo. O predomínio de uma ou outra no governo dependerá muito do papel dos militares e da cabeça de Bolsonaro, no exercício da Presidência da República.

A viagem a Davos pode fazer bem a Bolsonaro, pois lá serão debatidas ideias novas para uma situação de crise da ordem de liberal, num mundo que passa por grandes transformações tecnológicas e um enorme desajuste econômico e social entre as nações mais avançadas, as emergentes e as que foram deixadas para trás. O grande sanatório geral descrito por Thomas Mann em seu romance parece estar de volta à política mundial, com sinais trocados.

A partir de quarta-feira, 2.340 pessoas de 89 países, que compõem a elite econômica e política mundial, estarão confinadas num centro de conferências, cercadas de neve e seguranças por todos os lados, durante cinco dias, até o dia 29. A guinada ultraliberal do Brasil na economia desperta interesse, o antiglobalismo da nova política externa, um grande espanto. As estrelas do encontro serão a Índia, cujo avanço econômico retira da miséria milhões de cidadãos por ano; e a China, que assumiu a linha de frente da globalização. O presidente norte-americano Donald Trump, com a crista baixa por causa da crise com o Congresso norte-americano, não vai a Davos nem mandará representantes; a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, balançando no cargo por causa do Brexit, também cancelou a participação.

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Luiz Carlos Azedo: O caso Queiroz

“O STF não é um terreno confortável de disputa para os enrolados. Foi-se a época em que o foro privilegiado era uma garantia de impunidade”

Ródion Ramanovich Raskolnikov é um ex-estudante que vive na miséria, em minúsculo apartamento em São Petersburgo. Acredita que está destinado a grandes ações, mas a miséria o impede de atingir todo o seu potencial. Por essa razão, conclui que nada seria moralmente errado se o objetivo fosse nobre. Isso o leva a matar uma velha que empresta a juros altíssimos e maltrata a sua irmã mais nova. Após assassinar a mulher, Raskolnikov entra em crise existencial, tem delírios febris.

Porfiry Petrovich, um dos responsáveis pela investigação do assassinato, confronta Raskolnikov diversas vezes, nunca revelando se ele é ou não suspeito do crime. A tensão abala ainda mais o comportamento do eex-studante, o que leva Porfiry a acusá-lo informalmente. Mesmo sem provas concretas contra ele, atormentado pelos remorsos, Raskolnikov acaba confessando. O protagonista de Crime e Castigo, o grande romance do escritor e jornalista russo Fiódor Dostoiévski, publicado em 1866 (ou seja, não tem nada a ver com “marxismo cultural”), é um arquétipo perseguido por todos os grandes autores de romances policiais. O livro é um grande ensaio filosófico, psicológico e social. Dostoiévski explora o lado psicológico e existencial de seus personagens de forma excepcional, no contexto de uma Rússia autocrática, moralista e culturalmente atrasada.

Anulação de provas
O caso do ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz é dostoievskiano. Amigo da família Bolsonaro, era homem de confiança do senador eleito Flávio Bolsonaro (PSC), ex-deputado estadual fluminense. Ninguém sabe exatamente o que ele fez, além das declarações estapafúrdias para explicar sua movimentação financeira e a dancinha no hospital em que se internou para tratar de um câncer no intestino na virada do ano. Seu jogo de gato e rato com o Ministério Público seria apenas mais uma chicana de bons advogados para protelar o trabalho da Justiça. E inspiração para piadas, máscaras e fantasias que divertem os foliões no carnaval carioca.

Ontem, porém, o caso Queiroz ganhou uma dimensão surpreendente. O ministro do STF Luiz Fux determinou a suspensão das investigações sobre Fabrício, atendendo pedido de Flávio Bolsonaro, que não é investigado. A decisão não significa a suspensão permanente da investigação ou a definição sobre em qual instância o processo deverá tramitar. Apenas interrompe a investigação, até que o ministro Marco Aurélio Mello analise o caso e decida se será aplicada a regra do foro privilegiado.

Em maio do ano passado, o STF decidiu restringir as regras do foro privilegiado. Após a decisão, passam a ser julgados pelo Supremo apenas deputados federais e senadores suspeitos de atos praticados durante o mandato e por crimes que tenham relação com o cargo. Ou seja, com base na jurisprudência vigente, a investigação contra o ex-assessor não obrigaria que o processo tramitasse no STF.

Queiroz é investigado pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro depois que o Coaf identificou movimentações financeiras consideradas atípicas em suas contas. No pedido, Flávio Bolsonaro também quer anular essas investigações, com o argumento de que as informações colhidas pelo Coaf estariam protegidas pelo sigilo bancário e fiscal e só poderiam ser obtidas pelo Ministério Público com base em decisão judicial. Sua ação aparentemente tem o objetivo de blindar Queiroz, mas pode ser um tiro pela culatra.

Qualquer político com cancha em Brasília sabe que o STF não é um terreno confortável de disputa para os enrolados. Foi-se a época em que o foro privilegiado era uma garantia de impunidade, não é um passeio pela longa Avenida Nevsky. Ao contrário, as últimas legislaturas foram generosas em situações nas quais o Congresso teve suas atribuições invadidas e seus caciques se viram de joelhos perante o Supremo. O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB-RJ), por exemplo, foi afastado do cargo e está preso até hoje. Também não é um bom cartão de visitas para quem está chegando ao Senado, principalmente em meio a disputas pelo poder, porque significa uma vaga na bancada dos políticos reféns dos próprios colegas por questões de natureza ética.

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Luiz Carlos Azedo: O lugar errado

“Battisti escolheu o país errado para se refugiar: a Bolívia, cujo presidente, Evo Morales, que compareceu à posse de Jair Bolsonaro, despachou-o direto para a Itália, sem apelação”

Depois de 26 anos foragido, o ex-terrorista e escritor Cesare Battisti foi preso na Bolívia e levado diretamente de Santa Cruz de la Sierra para Roma. Deverá cumprir pena de prisão perpétua, condenado pela Justiça italiana como responsável por quatro assassinatos naquele país, entre 1977 e 1979. Battisti integrava a organização Proletários Armados Pelo Comunismo, um dos grupos terroristas da extrema-esquerda italiana à época. O primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte, agradeceu a Jair Bolsonaro pela cooperação da Polícia Federal para a captura de Battisti, mas fez um acordo com o presidente boliviano Evo Morales para evitar que o italiano não viesse antes para o Brasil.

 

Foto: AFP

 

Battisti tem um filho com uma brasileira, com quem se casou, o que poderia dar margem a novas disputas judiciais. A captura somente foi possível porque houve troca de dados de inteligência entre as polícias brasileira, italiana, e boliviana. Condenado desde 1993, Battisti nunca se entregou à Justiça italiana. A Corte de Apelações de Milão condenou Battisti à prisão perpétua por quatro “homicídios agravados”, praticados entre 1978 e 1979, contra um guarda carcerário, um agente de polícia, um militante neofascista e um joalheiro de Milão (o filho do joalheiro ficou paraplégico, depois de também ser atingido).

Em 2001, Battisti refugiou-se na França, conseguindo até se naturalizar, mas a decisão foi anulada, a pedido das autoridades italianas. Quando a França decidiu extraditá-lo, em 2005, fugiu para o Brasil, onde foi preso em 2007. Sua aposta de que teria cobertura no governo Lula fazia sentido. Em 2009, o então ministro da Justiça Tarso Genro concedeu-lhe o absurdo status de refugiado político, baseado no “fundado temor de perseguição por opinião política”.

Afrontada, a Justiça italiana recorreu ao Supremo, mas o status de refugiado político não permitiu o seguimento de qualquer pedido, o que dividiu a Corte brasileira. Mesmo assim, os ministros decidiram pela extradição, pelo placar de 5 votos a 4, mas facultaram a decisão ao presidente Lula, que confirmou as expectativas de Battisti e negou a extradição.

Em 2013, porém, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou Battisti por falsificação de documento, o que reabriu a possibilidade de extradição. Após o impeachment de Dilma Rousseff, em 2017, Battisti tentou fugir para a Bolívia, foi preso pela PF, mas teve a prisão relaxada. Em dezembro de 2018, ministro Luiz Fux mandou prendê-lo e abriu caminho para a extradição. No dia seguinte, o presidente Michel Temer autorizou a extradição, mas Battisti já estava na clandestinidade. A Polícia federal realizou 30 operações para prendê-lo, sem sucesso.

Desta vez, porém, Battisti escolheu o país errado para se refugiar: a Bolívia, cujo presidente, Evo Morales, que compareceu à posse de Jair Bolsonaro, mandou prendê-lo e despachou-o direto para a Itália, sem apelação. Por ironia, desde a morte de Ernesto Che Guevara, em 8 de outubro de 1967, a Bolívia não é um bom lugar para se esconder. Se houvesse atravessado a fronteira com a Venezuela, Battisti teria mais sorte. Agora, será escritor na cadeia.

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Luiz Carlos Azedo: O governo da ordem

“Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade”

Para não chover no molhado, direi que o momento mais simbólico da posse de Jair Bolsonaro foi aquele em que passou em revista a Guarda Presidencial, como comandante supremo das Forças Armadas, depois de jurar a Constituição. Foi o único instante em que não sorriu; com o cenho franzido, ao contrário, chorou. Como velho repórter, se tivesse oportunidade, perguntaria o que passou pela sua cabeça naquele primeiro e breve momento de “solidão do poder”. Bolsonaro sabe que jamais chegaria à Presidência a não ser pelo voto.

Como os generais de quatro estrelas Hamilton Mourão, seu vice-presidente, e Augusto Heleno, o novo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, faz parte de uma geração que optou pela carreira militar quando o Exército ainda era a via de acesso ao Palácio do Planalto, mas teve essa ambição política frustrada pela redemocratização do país, em 1985. Sua indisciplina acabou abortando a carreira militar. A opção pela política, porém, demonstrou-se a alternativa acertada. Ninguém exerce seis mandatos na Câmara impunemente. Por caminhos tortuosos, o capitão reformado enxergou na escuridão e agora é o presidente da República, depois de 30 anos de vida política.

Não foi à toa, portanto, que fez um discurso mais conciliador e apelou aos antigos colegas durante a sessão de posse no Congresso. Deixou muito claro que conta com o apoio do parlamento para aprovar as reformas e viabilizar o seu governo. No decorrer deste mês, esse discurso terá que ganhar forma nas articulações para as Mesas da Câmara e do Senado. O grande divisor de águas de seu governo será a aprovação da reforma da Previdência, sem ela estará condenado a uma espécie de feijão com arroz neoliberal, restringindo a eficácia das medidas econômicas que estão sendo elaboradas pelo seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Que ninguém se surpreenda se fizer uma composição de última hora em favor da reeleição de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, que tem afinidades programáticas e regionais com Guedes.

Além do apoio maciço de militares e cristãos, como gosta de ressaltar o professor da UnB Elimar Pinheiro, sociólogo e cientista político, a vitória de Bolsonaro tem um ingrediente antropológico, que as análises políticas de seus adversários e muitos analistas demoraram a captar: o apoio das famílias como instituição. Numa sociedade em que a desagregação da família unicelular patriarcal se transformou numa tragédia social por causa do desemprego, do crime organizado e dos péssimos serviços de saúde e educação, esse fenômeno emergiu na campanha eleitoral como uma espécie de força popular subterrânea, mobilizada por católicos e evangélicos. O discurso contra a corrupção e a violência trouxe o apoio da classe média.

O muro caiu
“Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”, conclamou Bolsonaro no discurso após a transmissão do cargo. Essa mobilização lhe dará meios de acuar um Congresso fragilizado pela Operação Lava-Jato: “A corrupção, os privilégios e as vantagens precisam acabar. Os favores politizados, partidarizados devem ficar no passado, para que o Governo e a economia sirvam de verdade a toda Nação”. Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade.

“Me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, bradou, para delírio de seus partidários. “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade”. O Brasil nunca foi socialista, o nosso gigantismo estatal é uma herança do nacional- desenvolvimentismo de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e, sobretudo, dos governos militares. Isso é o que menos importa. Bolsonaro jogou no colo da oposição, principalmente do PT, cujo envolvimento com a corrupção desmoralizou toda a esquerda, o esgotamento histórico do modelo socialista e a crise da socialdemocracia, como se o Muro de Berlim estivesse caindo novamente. Funciona, a esquerda brasileira ainda acha que o muro só havia caído na cabeça dos militantes do antigo PCB.

“Temos o grande desafio de enfrentar os efeitos da crise econômica, do desemprego recorde, da ideologização de nossas crianças, do desvirtuamento dos direitos humanos, e da desconstrução da família. Vamos propor e implementar as reformas necessárias. Vamos ampliar infraestruturas, desburocratizar, simplificar, tirar a desconfiança e o peso do Governo sobre quem trabalha e quem produz”, promete.

Bolsonaro anuncia um governo da ordem: “Também é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares. Nossa preocupação será com a segurança das pessoas de bem e a garantia do direito de propriedade e da legítima defesa, e o nosso compromisso é valorizar e dar respaldo ao trabalho de todas as forças de segurança”.

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Luiz Carlos Azedo: A língua do índio

“O Brasil tem cerca de 600 terras indígenas, que abrigam 227 povos, com um total de aproximadamente 480 mil pessoas. Essas terras representam 13% do território nacional”

Um grito de guerra virou bordão no Centro Cultural da CCBB, onde funciona a equipe de transição do presidente eleito, Jair Bolsonaro: “Selva!” É um cumprimento militar adotado em todas as unidades vinculadas ao Comando Militar da Amazônia (CMA), espalhadas em 62 localidades e envolvendo seis estados e partes do Maranhão e do Tocantins. A saudação simboliza a integração entre oficiais e a tropa formada por caboclos, mamelucos e índios.

Um vídeo produzido pelo próprio Exército brasileiro, nos confins da Amazônia, ilustra a mística: mostra meia dúzia de soldados-índios de diversas etnias se apresentando em sua língua nativa, mas fazendo a saudação em português que virou bom dia e boa noite também no Palácio do Planalto, entre funcionários do governo que fazem parte da mobília do poder e aguardam os novos chefes. A origem da saudação é a Oração do Guerreiro da Serva, de autoria do tenente-coronel Humberto Leal, que vive em Petrópolis, a Cidade Imperial. “Dai-nos hoje da floresta:/A sobriedade para persistir;/A paciência para emboscar;/A perseverança para sobreviver;/A astúcia para dissimular;/A fé para resistir e vencer. /E dai-nos também, Senhor, /A esperança e a certeza do retorno”, diz o principal trecho da oração, que resume o treinamento dos batalhões especiais de selva.

Em São Gabriel da Cachoeira (AM) ou no 5º Pelotão de Fronteira de Maturacá, aos pés do Pico da Neblina, na divisa com a Venezuela e a Colômbia, os soldados índios das etnias tucano, inhangatú, aruac e yanomami são maioria na tropa. Entretanto, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, quando Comandante Militar da Amazônia, notabilizou-se pela crítica à política indigenista tradicional e anteviu a possibilidade de conflitos na região, por causa da Venezuela e da Guiana, entre outros pontos da fronteira. Esse é o xis da polêmica sobre a demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol, uma das maiores terras indígenas do país, com 1.743.089 hectares e 1.000 quilômetros de perímetro. O nióbio é só um pretexto. Mais da metade da área é constituída por vegetação de cerrado, lá chamado de “lavrado”, e uma região montanhosa cujo topo é monte Roraima, marco da tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. É impossível, porém, guarnecer a região sem o apoio dos índios.

Recentemente, o Departamento de Estado norte-americano pressionou o governo brasileiro para que mandasse tropas para Guiana, temendo uma invasão venezuelana do país vizinho, o que foi rechaçado pelo governo Temer. Nesse aspecto, o futuro ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional tem razão: a política do governo Bolsonaro vai aumentar a tensão na fronteira com os venezuelanos. A dúvida é se mandaremos nossos soldados-índios para Guiana.

Inganhatú

O Brasil tem atualmente cerca de 600 terras indígenas, que abrigam 227 povos, com um total de aproximadamente 480 mil pessoas. Essas terras representam 13% do território nacional, ou 109,6 milhões de hectares. A maior parte — 108 milhões de hectares — está na chamada Amazônia Legal, que abrange os estados de Tocantins, Mato Grosso, Maranhão, Roraima, Rondônia, Pará, Amapá, Acre e Amazonas. Quase 27% do território amazônico hoje é ocupado por terras indígenas, sendo que 46,37% de Roraima correspondem a essas áreas. Isso se tornou o grande pomo da discórdia por causa do choque com arrozeiros, pecuaristas, madeireiros e garimpeiros que atuam ilegalmente nas reservas.

Esse choque agora tende a se acentuar, porque o responsável nomeado para responder pelo licenciamento ambiental e as políticas de reforma agrária é o atual presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Nabhan Garcia. Ele vai assumir funções que hoje cabem à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e à Fundação Palmares, que serão esvaziadas. Sai de baixo. É bom lembrar que as tribos indígenas de hoje são as que resistiram à escravidão e ao extermínio.

» Vídeo de soldados índios: https://www.youtube.com/watch?v=XiimXLxJL-w

E a língua do índio? A música Tu Tu Tu Tu Tu Tupi, de Hélio Ziskind, virou roteiro de um vídeo que faz muito sucesso nas redes sociais. Diz a letra: “Todo mundo tem/um pouco de índio/dentro de si/dentro de si/Todo mundo fala/língua de índio/Tupi Guarani/Tupi Guarani/E o velho cacique já dizia/tem coisas que a gente sabe/e não sabe que sabia/e ô e ô/O índio andou pelo Brasil/deu nome pra tudo que ele viu”. Deu mesmo: jabuticaba, caju, maracujá, pipoca, mandioca, abacaxi, tamanduá, urubu, jaburu, jararaca, jiboia, tatu, arara, tucano, araponga, piranha, perereca, sagui, jabuti, jacaré, Maranhão, Maceió, Macapá, Marajó, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Jundiaí, Morumbi, Curitiba, Parati, Tatuapé (caminho do tatu).

Não é o caso do presidente eleito, Jair Bolsonaro, descendente de italianos e alemães, mas a maioria dos brasileiros tem sangue indígena. Vem daí a simpatia por eles. Mas índio Um dos mitos fundadores do Exército Brasileiro é o índio potiguar Antônio Felipe Camarão (poty, na língua tupi). Em Glicério (SP), onde nasceu o presidente eleito, até meados do século 19 falava-se inhangatú, a língua geral paulista disseminada pelos bandeirantes pelo país afora. Cerca de 73,31% dos 29,9 mil habitantes de São Gabriel da Cachoeira, na Cabeça do Cachorro, onde as Forças Armadas mantêm várias unidades, falam o tucano, o baníua e, principalmente, o nheengatu ( a língua geral da Amazônia, também de origem tupi), que mantém o caráter de língua de comunicação entre índios e não-índios, ou entre índios de diferentes etnias , como os barés, os arapaços, os baniuas, os werekena.

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Luiz Carlos Azedo: O bom e o ruim

“O Brasil vive sob o signo do maniqueísmo. Entretanto, os grandes problemas não decorrem das ideologias, mas da realidade objetiva do país”

Maniqueu, filósofo cristão do século 3, também conhecido como Manes ou Mani, dividia o mundo simplesmente entre Bom, ou Deus, e Mau, ou o Diabo. Ganhou influência no mundo greco-romano a partir das antigas Babilônia e Pérsia, sincretizando ideias do hinduísmo, do budismo, do judaísmo e do cristianismo, depois de viajar pela Índia, China e Tibete. Foi perseguido pelos sacerdotes do zoroastrismo, os Magos, durante o reinado de Vararanes 1º (274–277). Preso e condenado como herege, foi esfolado vivo: sua carne foi atirada ao fogo e a pele, crucificada em praça pública, na cidade de Bendosabora, no atual Iraque.

Para Maniqueu, a luz e as trevas originaram o mundo material, essencialmente mau. Por isso, os “pais da Justiça” vieram à Terra redimir os homens, mas a mensagem deles foi corrompida. Maniqueu pretendeu completar a missão deles, como o salvador prometido por Cristo, que detinha os segredos para a purificação da luz, destinados apenas àqueles que tinham uma vida ascética. No dualismo maniqueísta, a matéria é intrinsecamente má, e o espírito, intrinsecamente bom. Com o tempo, maniqueísta passou a ser um adjetivo para toda doutrina fundada nos dois princípios opostos do bem e do mal.

Seu mais famoso discípulo foi Agostinho de Hipona, Santo Agostinho, que fundou as bases da filosofia adotada pela Igreja Católica, depois de romper com o maniqueísmo. Até então, os filósofos cristãos defendiam que o fundamento e a essência da vida deveriam ser a fé. A partir dela, os homens tomariam decisões importantes em suas vidas e realizariam os julgamentos morais. A razão regia decisões menores e rotineiras da vida cotidiana. Profundo conhecedor de diversas religiões, porém, Agostinho buscou na Razão a justificativa para a fé. Foi além da própria fé para levar os descrentes a considerá-la. Por exemplo, defendeu o livre-arbítrio como uma graça divina. De fato, liberdade não combina com maniqueísmo.

Mais médicos
Desde a campanha eleitoral, o Brasil vive sob o signo do maniqueísmo; talvez tenha sido determinante do resultado das eleições, tanto para bolsonaristas como para petistas. Esse maniqueísmo vem desde o “nós contra eles” da reeleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2006, e contamina toda o debate político. Entretanto, os grandes problemas nacionais, ao contrário do que muitos imaginam, não decorrem das ideologias, mas da realidade objetiva do país.

Exemplo de maniqueísmo é a discussão sobre o programa Mais Médicos, que está contaminada pela disputa eleitoral. O problema atinge 2.885 prefeituras, das quais em 1.575 municípios com menos de 20 mil habitantes. São 8.500 equipes de Saúde da Família que ficarão desfalcadas em 40 dias, em razão da decisão do governo cubano de repatriar esses profissionais, antes da posse do presidente eleito Jair Bolsonaro.

Bolsonaro sempre foi um crítico do programa. Diz que os médicos trabalham em regime de escravidão e que a maior parte do que deveriam receber vai para o governo cubano. Também questiona a qualificação dos médicos. A sua posição tem a ver com a narrativa da campanha eleitoral, ou seja, é uma promessa de campanha endossada pela maioria dos eleitores. A decisão cubana, obviamente, tem a ver com a nova política externa a ser implementada por Bolsonaro, cuja teologia é maniqueísta, se levarmos em conta os novos paradigmas do futuro ministro de Relações Exteriores, Ernesto Fraga Araújo. Essa é a parte ruim do caso Mais Médicos.

A parte boa, digamos assim, é que Bolsonaro mudou sua agenda dos 100 primeiros dias de governo, que naturalmente seria focada nas questões da segurança pública e da corrupção, além da Previdência e do corte de gastos. Com o fim da parceria com Cuba, a agenda da saúde pública caiu antecipadamente no colo de novo presidente da República, que precisa de um novo programa para enfrentar o problema. Uma das alternativas seria militarizar a contratação de médicos para atuar em locais remotos, pequenos municípios e periferia das grandes cidades, oferecendo serviço temporário nas Forças Armadas para médicos residentes e recém-formados , como acontece com os atletas olímpicos.

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