Memória

Luiz Carlos Azedo: O mito do “homem cordial”

“Moro construiu sua imagem pública sobre os pilares do mito do herói de Homero: a grandiosidade e a singularidade. Aspirava à imortalidade, comportava-se como um semideus da Justiça”

O “homem cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, não é bem aquilo que o senso comum deduz à primeira vez que se depara com o conceito-chave de sua obra seminal, Raízes do Brasil. A expressão “cordial” não indica apenas bons modos e gentileza, vem de “cordis”, em latim, ou seja, relativo a coração. Para Buarque, o brasileiro não suporta o peso da própria individualidade, precisa “viver nos outros”. A apropriação afetiva do outro seria um artifício psicológico e comportamental predominante na sociedade brasileira, parte integrante do nosso processo civilizatório.

A cordialidade “pode iludir na aparência”, explica Buarque. A polidez do “homem cordial” é organização da defesa ante a sociedade. “Detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar inatas suas sensibilidades e suas emoções.” O brasileiro dispensa as formalidades, pretende estreitar as distâncias, não suporta a indiferença, prefere ser amado ou odiado.

Em grande parte, a “fulanização” da política brasileira vem desse viés antropológico, embora nossas instituições políticas sejam surpreendentemente robustas, como destacou recentemente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ao comentar a relação do presidente Jair Bolsonaro com o Legislativo: os partidos são fracos, mas o Congresso é forte. De certa maneira, as redes sociais potencializaram essas características do “homem cordial”. Num primeiro momento, nas relações interpessoais; depois, no processo político, principalmente nas disputas eleitorais.

Bolsonaro e sua antítese, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi condenado e está preso, exacerbam essas características da política brasileira. Ambos flertam com o populismo, buscam aproximação afetiva com aliados e eleitores, protagonizam a exacerbação das paixões políticas. Ambos se enquadram no “tipo ideal” da obra de Sérgio Buarque, se analisarmos com esse olhar o papel de cada um na vida nacional.

E o ministro da Justiça, Sérgio Moro, que ontem estava sendo sabatinado na Câmara, por sua atuação heterodoxa, digamos assim, na Operação Lava-Jato? Pelas próprias características de seu trabalho como juiz federal, seu comportamento formal e circunspecto não se enquadra nesse tipo ideal do “homem cordial”. Ou melhor, não se enquadrava, até serem reveladas as conversas que mantinha com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato.

O semideus

Moro construiu sua imagem pública sobre os pilares do mito do herói da Ilíada de Homero: a grandiosidade e a singularidade. Aspirava à imortalidade, comportava-se como um semideus da Justiça. Mas tinha uma existência verdadeira, que pressupõe também a volta para casa, a vida normal — até que a situação exigisse outro gesto glorioso e individual, de grande bravura. O herói semideus faz coisas sobre-humanas, mas não é imortal.

A filósofa Hannah Arendt, em A Condição Humana, discorrendo sobre o mito do herói, destaca que a sua coragem antecede as grandes batalhas, tem a ver com disposição de agir e falar, se inserir no mundo e começar uma história própria. O herói não é necessariamente o homem de grandes feitos, equivalente a um semideus; pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso e da ação. O herói é sempre aquele que se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer.

Moro se tornou uma personalidade nacional graças à Lava-Jato, na qual só se pronunciava nos autos. Mas era aplaudido e cumprimentado nas ruas. Representava os órgãos de controle do Estado e a ética da responsabilidade, que zelam pela legitimidade dos meios empregados na ação política. Cumpriu um papel estratégico na luta em defesa da ética na política, vetor decisivo para o resultado das eleições passadas. Contra Moro, Lula não tinha a menor chance; seria preso, como foi, pelo juiz durão.

Depois das eleições, convidado por Bolsonaro para ser ministro da Justiça, Moro manteve-se na crista da onda, mas deixou de ser o juiz “imparcial”. Esse atributo agora foi posto em xeque. As revelações do site The Intercept Brasil sobre supostas trocas de mensagens entre Moro e procuradores da Lava-Jato em Curitiba sugerem a intervenção indevida do então juiz federal na condução da operação, inclusive com a indicação de possíveis testemunhas. O cristal de seu pedestal de herói foi trincado por conversas banais nas redes sociais. O mito do herói ainda sobrevive, mas já não é a mesma coisa: Moro virou um político, sujeito a todos os ritos da luta política e do jogo democrático. A vida real está revelando a face oculta de mais um “homem cordial”.

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Nas entrelinhas: Rainha da Inglaterra

“Embora Bolsonaro culpe o Congresso pela não aprovação de suas propostas, o troca-troca de ministros é a demonstração de que o governo não estava funcionando como gostaria”

No fim de semana, numa de suas entrevistas, o presidente Jair Bolsonaro disse que estavam querendo transformá-lo numa rainha da Inglaterra, numa alusão às articulações dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para fortalecer o Congresso na relação com o Executivo. Sua queixa estava diretamente relacionada ao novo marco legal das agências reguladoras, que tramitou diretamente nas comissões e supostamente retiraria da Presidência a prerrogativa de indicar os dirigentes das agências. Ontem, Bolsonaro disse que vetará o projeto. É do jogo.

Há um pouco de tempestade em copo d’água nas declarações de Bolsonaro sobre a aprovação do projeto, que não passou por nenhum dos plenários das duas casas legislativas, o que revela absoluta desarticulação política do Palácio do Planalto. O governo levou uma caneta da própria base, pois deixou o projeto tramitar despercebido por todas as comissões da Câmara e do Senado. Bastava requerer votação em plenário para melar a articulação silenciosa dos parlamentares interessados em levar para o parlamento o controle das agências reguladoras.

Entretanto, a declaração de Bolsonaro sintetiza a tensão entre o governo e o Congresso, que busca se fortalecer diante dos ataques que os aliados do presidente da República fazem contra os políticos. É aí que está o busílis da questão. Bolsonaro se elegeu como candidato antissistema, na onda de rejeição à política e aos políticos. Tentou emparedar o Congresso com uma retórica “nova política” versus “velha política”. Depois, mobilizou seus partidários para protestar e pressionar o Congresso na reforma da Previdência.

Agora, saiu em defesa da Operação Lava-Jato e do ministro Sérgio Moro, surfando no divisor de águas ético que decidiu as eleições passadas a seu favor, em razão do vazamento de conversas entre o ex-juiz de Curitiba e os procuradores da força-tarefa que investigam o escândalo da Petrobras. Acontece que o Congresso não meteu a carapuça e se esquivou do confronto, também resolveu jogar para a arquibancada. Bolsonaro não pode se queixar: nunca um governo contou com tanto apoio para mexer na Previdência como agora.

Exagero

Na verdade, críticas ao suposto excesso de poder do Congresso por parte de presidentes da República existem desde a Constituinte, quando José Sarney questionava o detalhismo da Constituição e o engessamento do Executivo. O viés parlamentarista do texto constitucional sempre foi apontado como um fator de tensão nas relações entre os poderes, a ponto de muitos dizerem que vivíamos uma espécie de semiparlamentarismo.

Na prática, porém, o que aconteceu em todos os governos foi o contrário: a subordinação do Congresso ao Executivo, com a cooptação da maioria dos parlamentares pelo chamado “presidencialismo de coalizão” e o deslocamento da capacidade de mediação com a sociedade do parlamento para o Palácio do Planalto, que controla a chamada “grande política”. Deputados e senadores ficaram com a “pequena política”, vale dizer, com o fisiologismo e o patrimonialismo. É muito difícil um caso de corrupção de parlamentares sem protagonismo no Executivo.

E a rainha da Inglaterra? É apenas uma expressão popular, sem nenhum paralelo com a democracia inglesa, a mais antiga do mundo, que resultou de um longo processo revolucionário e da luta dos trabalhadores e dos mais pobres contra a brutal exploração do trabalho ocorrida na Revolução Industrial. Graças a isso, a sociedade britânica é tolerante, respeita os direitos humanos e as liberdades dos indivíduos, servindo de exemplo para o mundo.

Entretanto, é um regime muito singular, com instituições que remontam ao período medieval e uma cultura jurídica anglo-saxã, muito marcada pela tradição dos tribunais populares, completamente diferente da nossa, que se baseia no direito romano e na letra da lei. Enquanto nosso presidente da República e nossos senadores são eleitos, uma família real chefia o Estado, e mais de 800 lordes vitalícios formam uma câmara alta, com muitos poderes.

Ou seja, parte do poder político é exercido por pessoas que têm direito a ele apenas por terem nascido na família certa (herdeiros de senhores feudais, de antigos corsários e de funcionários do império colonial britânico), serem membros do clero ou nomeados pelos próprios partidos à Câmara dos Lordes. Em contrapartida, a Câmara dos Comuns, formada por parlamentares eleitos, controla o Executivo, com poder de derrubar o primeiro-ministro. Agora mesmo estamos acompanhando a confusão criada pela aprovação do Brexit, em plebiscito, isto é, a saída da Inglaterra da União Europeia e as dificuldades encontradas para negociar o efetivo deslocamento do bloco europeu.

Embora a retórica de Bolsonaro jogue nos ombros do Congresso a culpa pela não aprovação de suas propostas, o troca-troca de ministros na Secretaria de Governo e na Secretaria-Geral da Presidência, com a redistribuição de funções entre as pastas que formam o Estado-Maior da Presidência, é a demonstração de que o problema é bem outro. O governo não estava funcionando como Bolsonaro gostaria.

Não se pode atribuir ao general Santos Cruz, defenestrado por Bolsonaro, a responsabilidade pela desarticulação do governo, mas havia uma dissintonia entre ambos. A sua substituição por Luiz Amaro Ramos, um general da ativa, que deixará o Comando do Sudeste, ainda não foi efetivada, dirá se o problema era só de alinhamento. Outra mudança importante, efetivada ontem, foi a substituição do general Floriano Peixoto, que assumirá os Correios, pelo major da PM do Distrito Federal Jorge Oliveira na Secretaria-Geral da Presidência, que assumirá a tarefa de coordenação política. Vamos ver se agora vai.

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Luiz Carlos Azedo: Meus liberais preferidos

“O presidente da República não está empenhado em construir um amplo apoio no Congresso. É homem de confronto, gosta da radicalização de extrema direita e do embate político na sociedade”

Três homens públicos conduziram o processo de luta contra o regime militar no antigo MDB, eram velhos caciques do antigo PSD: Ulisses Guimarães (SP), um democrata radical; Tancredo Neves (MG), um liberal moderado; e Amaral Peixoto (RJ), um conservador. Havia outros, mas nada acontecia sem que os três entrassem em acordo. Para quem não sabe, desses três, quem apoiou o golpe militar e depois se arrependeu foi Ulysses. Não foi o único, o ex-presidente Juscelino Kubitschek (PSD) também apoiou a derrubada do presidente João Goulart, para surpresa de muitos, pois era o favorito disparado às eleições convocadas para 1965.

Governadores poderosos conspiraram de forma decisiva a favor do golpe: Carlos Lacerda (UDN), da antiga Guanabara; Magalhães Pinto (UDN), de Minas; e Ademar de Barros (PSP), de São Paulo. Acreditavam que a destituição de João Goulart facilitaria a chegada deles à Presidência da República. Acontece que os militares liderados pelo marechal Castelo Branco, que assumira a Presidência, pretendiam ficar longo tempo no poder.

Homens de articulação política, Ulysses, Tancredo e Amaral, sem pretensões presidenciais à época — afinal, a barra estava muito pesada —, sobreviveram às cassações por subversão ou corrupção, mantiveram seus direitos políticos e respectivos mandatos. Resolveram apoiar a formação do MDB, o único partido de oposição permitido pelo regime, que quase se dissolveu em 1970, após acachapante derrota eleitoral para a Arena, o partido do governo.

Após assumir o comando do MDB no lugar de Pedroso Horta, num lance quixotesco, Ulysses se lançou anticandidato a presidente da República na sucessão do general Garrastazu Médici, o mais linha-dura dos presidentes militares, em 1973, confrontando a candidatura de cartas marcadas do general Ernesto Geisel. Pavimentou, assim, com apoio de Tancredo, Amaral e outros líderes de oposição, a surpreendente vitória do MDB nas eleições de 1974. Se observarmos a trajetória de cada um dos três caciques até a redemocratização, porém, veremos que caminharam juntos, mas com estratégias diferentes.

Ulysses apostou no cenário de ruptura com o regime, a partir da mobilização da sociedade, com uma narrativa de democrata radical. Quase chegou lá com a campanha das Diretas Já. Tancredo confiou na sua capacidade de articulação política, buscou criar um partido, o PP, para viabilizar uma transição democrática negociada com os militares, mas teve que voltar atrás com o Pacote de Abril de 1977, um retrocesso na abertura de Geisel. Amaral, que considerara o golpe de 1964 “a morte da política”, apostou na transição por dentro do regime e assumiu o comando do PDS, no qual a antiga Arena havia se metamorfoseado, para viabilizar um político civil na sucessão de Figueiredo. A escolha de Paulo Maluf como candidato do governo frustrou seus planos. Mas havia Tancredo…

Conciliação
O mais importante, nessa retrospectiva, creio, é que os três políticos sempre acabavam se acertando. Eram craques da política de conciliação. No dia seguinte à votação das Diretas Já, que não foi aprovada, os três se reuniram para selar a aliança que garantiria maioria para Tancredo no colégio eleitoral. Um racha no partido do governo deu origem ao Partido da Frente Liberal (PFL) e garantiu o cargo de vice-presidente na chapa de Tancredo para o então governista José Sarney, um antigo integrante da UDN Bossa Nova.

Sim, houve ampla mobilização popular, uma onda sem precedentes de greves e mobilizações estudantis; novas lideranças despontavam, como o então líder operário Luiz Inácio Lula da Silva, além de políticos como Franco Montoro, Mário Covas, Leonel Brizola, Fernando Henrique Cardoso. Mas a direção política do processo era deles e resultou na eleição de Tancredo Neves. Político moderado, prometia fazer um governo com essas características, quiçá, parlamentarista.

A morte de Tancredo privou o país de um governo liberal no momento mais favorável. O presidente Sarney, que assumiu a Presidência por um trágico acaso, a. Morte de Tancredo, foi contingenciado pela liderança incontestável de Ulysses ‘Guimarães na Constituinte e de Lula, nos movimentos sociais. Tentou implementar políticas desenvolvimentistas que flertavam com o populismo. Faltava-lhe condições de governabilidade para impor um programa liberal. Seu legado é uma Constituição cidadã comprometida com os direitos humanos, mas cujo caráter estatizante e nacional-desenvolvimentista vem sendo objeto de sucessivas emendas constitucionais. Entretanto, Sarney é um exemplo de paciência e ponderação na política, que o faz ouvido até hoje, já nonagenário.

Depois do fracasso do governo Collor de Melo, que renunciou ao mandato em razão da campanha do impeachment, mas deixou como herança a abertura da economia, a agenda da oposição ao regime militar foi sendo gradativamente implementada pelos governos seguintes. Com grande sucesso nos casos de Fernando Henrique Cardoso (combate à inflação e privatizações) e Lula (ampliação do acesso à universidade e distribuição de renda), ou fracasso retumbante, caso de Dilma Rousseff. Michael Temer tirou o país da recessão, mas foi atropelado pela Lava-Jato quando estava em vias de aprovar a reforma da Previdência.

Teoricamente, a eleição de Bolsonaro possibilitaria a formação de um governo conservador que realizasse as tarefas inconclusas dessa velha agenda liberal da transição à democracia, havia expectativas do mercado e de setores da sociedade quanto a isso. Ledo engano. O presidente da República não está empenhado em construir um amplo apoio no Congresso. É homem de confronto, gosta da radicalização de extrema direita e do embate político na sociedade. Essa é a sua personalidade. O pior, porém, é o caráter reacionário da narrativa política que escolheu, que busca barrar mudanças do nosso tempo, na base do pare a História, nós vamos descer.

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Luiz Carlos Azedo: A roupa íntima da Lava-Jato

”Políticos se mobilizam para convocar Moro a depor na Câmara e no Senado, falam até na instalação de uma CPI da Lava-Jato, além da aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade”

Uma das teorias da linguagem na internet, desenvolvida ainda nos tempos da linha discada, com seus ruídos característicos, foi batizada com o nome de “roupa íntima”. Trata-se da contaminação da linguagem adotada pelos usuários da internet pela informalidade do contexto em que utilizavam o computador, nas primeiras horas da manhã ou tarde da noite, geralmente utilizando a roupa com que acordavam ou iriam dormir. Os especialistas advertiam que essa informalidade era um risco para as comunicações de natureza comercial, administrativa ou diplomática.

Essa teoria foi comprovada no escândalo do WikiLeaks, a organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, administrada pelo jornalista e ciberativista australiano Julian Assange, que divulgou em 2013 milhares de documentos secretos do governo dos Estados Unidos, que monitorou conversas telefônicas e mensagens de e-mail em dezenas de países, com comentários assombrosos e revelações escabrosas de diplomatas e funcionários sobre a atuação do Departamento de Estado no mundo. Entre os documentos divulgados mais recentemente, um vídeo de 2007 mostra o ataque de um helicóptero Apache dos marines que matou pelo menos 12 pessoas, dentre as quais dois jornalistas da agência de notícias Reuters, em Bagdá, no contexto da ocupação do Iraque.

Coincidentemente, o autor do “furo”, o jornalista Glenn Greenwald, então colunista do jornal inglês The Guardian, que publicou os documentos também no The Washington, é o responsável pelo site Investigativo The Intercept, que divulgou neste domingo conversas comprometedoras, no aplicativo russo Telegram, do ministro da Justiça, Sérgio Moro, então juiz da 13ª. Vara Federal de Curitiba, e procuradores federais da força-tarefa da Operação Lava-Jato, entre eles Deltan Dallagnol, sobre assuntos da investigação. Casado com o deputado federal David Miranda (PSOL-RJ), Greenwald mora no Rio de Janeiro desde 2005.

Suas revelações mobilizaram os advogados de Lula e o PT, que denunciam a suposta contaminação do julgamento de Lula por motivações políticas da Lava-Jato. No Congresso, políticos de diversos partidos se mobilizam para convocar Moro a depor na Câmara e no Senado, falam até na instalação de uma CPI para investigar a Lava-Jato, além da aprovação da nova Lei de Abuso de Autoridade. Greenwald diz que o volume de material obtido por ele neste caso supera o da reportagem que lhe valeu o prêmio Pulitzer, graças à parceria com o ex-agente da CIA e da NSA Edward Snowden, que está preso até hoje

Moro minimizou o fato e atacou os autores do vazamento: “Não vi nada de mais ali nas mensagens. O que há ali é uma invasão criminosa de celulares de procuradores, não é? Pra mim, isso é um fato bastante grave — ter havido essa invasão e divulgação. E, quanto ao conteúdo, no que diz respeito à minha pessoa, não vi nada de mais”, disse o ministro, após participar de evento com secretários de segurança pública em Manaus.

Diálogos
Na semana passada, Moro teve seu celular “hackeado”, mas o Intercept alega que obteve os diálogos antes dessa invasão. Segundo o site, as informações foram obtidas de uma fonte anônima. Em um dos diálogos, Moro pergunta a Dallagnol: “Não é muito tempo sem operação?”. O chefe da força-tarefa concorda: “É, sim”. Em outra conversa, Dallagnol pede a Moro para decidir rapidamente sobre um pedido de prisão: “Seria possível apreciar hoje?”. E Moro responde: “Não creio que conseguiria ver hoje. Mas pensem bem se é uma boa ideia”. Nove minutos depois, Moro adverte a Dallagnol: “Teriam que ser fatos graves”.

De acordo com o Intercept, procuradores traçaram estratégias para cassar a autorização judicial para o ex-presidente Lula ser entrevistado pelo jornal Folha de São Paulo, por temerem que influenciasse a eleição. O procurador Januário Paludo teria proposto: “Plano A: tentar recurso no próprio STF. Possibilidade zero. Plano B: abrir para todos fazerem a entrevista no mesmo dia. Vai ser uma zona, mas diminui a chance da entrevista ser direcionada”. Outro procurador, Athayde Ribeiro Costa, sugeriu que a Polícia Federal manobrasse para que a entrevista fosse feita depois das eleições. Quando a autorização para a entrevista foi cassada por uma liminar obtida pelo Partido Novo, Paludo escreveu: “Devemos agradecer à nossa PGR: Partido Novo!!”.

Não somente os advogados de Lula pretendem virar a mesa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pediu o afastamento de Moro e Dallagnol dos respectivos cargos e as defesas de outros réus se preparam para pedir a nulidade dos processos, alegando que Moro e os procuradores, conforme jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (SDTF), não podem invocar as prerrogativas da magistratura como instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas. Seria prevaricação.

 

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Luiz Carlos Azedo: A ética na política

“No Brasil, onde não existe regulamentação do lobby, todos os políticos defendem o “bem comum”, ninguém assume a política como negócio, com exceção, talvez, da bancada ruralista”

“A política como vocação”, clássico da ciência política, é o texto de uma conferência realizada por Max Weber em 1918, e publicado em 1919 na Alemanha. O sábio economista e jurista alemão trata a política como “o conjunto de esforços feitos visando à participação do poder ou a influenciar a decisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado”. Segundo ele, quem se mete com a política quer poder, seja para fins ideais, por interesses econômico-financeiros ou em busca de prestígio. Para que o poder exista, porém, é preciso que a sociedade aceite a dominação do Estado.

Há três formas de dominação no Estado moderno: a tradicional, que se fundamenta e se legitima no passado, pela tradição; o domínio exercido pelo carisma e se fundamenta em dons pessoais e intransferíveis do líder; e a exercida pela legalidade, com base em regras racionalmente criadas e fundamentado na competência. Nas democracias do Ocidente, essas formas de dominação aparecem simultaneamente, mas o carisma é o fator decisivo para a chegada ao poder. O líder carismático, porém, necessita de meios materiais e conhecimento administrativo para exercer seu domínio.

É nesse contexto que surge o “político profissional”, que Weber classifica entre os que “vivem para a política” e aqueles que “vivem da política”. Todo cidadão pode e deve participar da vida política, mas nem todos têm tempo disponível e recursos para isso. Por isso, “todo homem sério, que vive para uma causa, vive também dela”, mas isso não impede a diferenciação entre os que têm a política como “bem comum” e os que a veem como negócio.

Paralelamente à existência dos políticos, existe uma burocracia formada por funcionários e técnicos encarregados de operar a máquina do Estado. Por essa razão, além dos objetivos programáticos, se estabelece entre os políticos uma disputa pela ocupação de cargos e a distribuição de recursos do governo. Nessa dinâmica, surge ainda uma camada de dirigentes partidários formada a partir de critérios plutocráticos e que vão ocupar posições no governo ou na máquina partidária. Para Weber, essas são as bases potenciais de “uma tendência que leva à criação de uma casta de filisteus corruptos”.

No Brasil, onde não existe regulamentação do lobby, como nos Estados Unidos e alguns países da Europa, todos os políticos defendem o “bem comum”, ninguém assume a política como negócio, com exceção, talvez, da bancada ruralista, embora o patrimonialismo, o cartorialismo e o fisiologismo sejam marcas registradas da nossa cultura ibérica. Mesmo assim, no Estado brasileiro, foi possível constituir uma burocracia formada por “trabalhadores especializados, altamente qualificados e que se preparam, durante muito tempo, para o desempenho de sua tarefa profissional, sendo animados por um sentimento muito desenvolvido de honra corporativa, em que se realça o sentimento da integridade”.

Lava-Jato
A Operação lava-Jato é um tremendo choque entre os políticos profissionais e essa burocracia, que desnudou o lado escuro da nossa política como negócios. Disso resultou a crise ética dos grandes partidos e o tsunami eleitoral de 2018. Em parte, a eleição do presidente Jair Bolsonaro é resultado desse fenômeno. Entretanto, não existe democracia sem partidos nem políticos, o país não pode ser paralisado pela crise ética. Além disso, a política é a economia concentrada, ou seja, não existe sem o mundo dos negócios. Há que se reinventar a nossa política, sem jogar a criança fora com a água da bacia, mas está difícil porque predomina a antipolítica como sentimento popular.

É aí que entra a discussão sobre a ética das convicções e a ética da responsabilidade proposta por Weber, ao examinar a relação entre o protestantismo e o capitalismo. A ética utilizada para culpar o passado pelos próprios fracassos é vulgar e limitada, como a do homem que justifica o abandono da esposa porque ela não era digna do seu amor. A relação entre política e religião é apartada: “O cristão cumpre seu dever segundo os mandamentos bíblicos e, “quanto aos resultados, confia em Deus”. Diferentemente, na ética de responsabilidade, “sempre devemos responder pelas consequências previsíveis de nossos atos”. A “política se faz usando a cabeça”, não pode estar desconectada da correlação de forças e das probabilidades.

Weber escreveu, às vésperas da derrocada da República de Weimar, que levou a Alemanha à hiperinflação e Hitler, ao poder. Isso não impediu que o baixo astral com a derrota na I Guerra Mundial e o colapso econômico fomentasse o surgimento de autores “teoconservadores”, que influenciaram o nazifascismo e agora estão sendo relidos nos Estados Unidos e na Europa, por católicos conservadores, protestantes evangélicos e judeus ortodoxos. Com base em valores religiosos anti-iluministas, querem mudar o curso da história com os olhos virados para trás, em busca do “Éden” perdido pela democracia liberal, com a globalização e o multilateralismo.

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Luiz Carlos Azedo: Senado paralisa Itamaraty

“ONU, Paraguai, Grécia, Guiana, Hungria, Marrocos, França, Romênia, Bulgária, Jordânia, Portugal, Bahamas, Egito, UNESCO e Catar aguardam novos embaixadores, além de Itália, Santa Sé e Malta e CPLP”

A relação do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, com o Congresso, na linha de atuação do guru Olavo de Carvalho, está criando a maior dor de cabeça para o Itamaraty. Quinze novos embaixadores designados pelo ministro foram parar na geladeira da Comissão de Relações Exteriores do Senado, apesar da conversa entre o chanceler brasileiro e o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que somente liberou a apreciação das indicações de três embaixadores até agora, todos por interferência de outras autoridades.

O presidente da Comissão, senador Nelsinho Trad (PSD-MS), é aliado de primeira hora de Alcolumbre. Hoje, em reunião extraordinária da Comissão, segundo a pauta que estabeleceu, serão examinados os nomes dos embaixadores designados para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, com sede em Lisboa, Pedro Fernandes Pretas, um pedido do ministro-chefe do Gabinete de segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno; para Santa Sé e Malta, Henrique da Silveira Sardinha Pinto, solicitação do senador Antônio Anastasia (PSDB-MG); e da Itália, Hélio Vitor Ramos Filho, cujo padrinho é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A primeira indicação será relatada pela senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), a segunda pelo próprio Anastasia e a terceira, pelo senador Jarbas Vasconcelos(PMDB-PE). Todos são de oposição.

Nos bastidores do Itamaraty, a interpretação é de que as dificuldades estão num contexto mais amplo do que as relações dos diplomatas indicados para os postos no exterior com o Congresso, porque a maioria deles exerceu funções técnicas e não têm rusgas políticas com os senadores. Também não existe nenhuma “pendência” do presidente do Senado com o Itamaraty. Há cerca de um mês, o chanceler Ernesto Araújo esteve com Alcolumbre para solicitar a aprovação de suas indicações, sem sucesso até agora. Araújo já se queixou com o presidente Jair Bolsonaro sobre a demora nas nomeações, mas não houve nenhuma iniciativa do Palácio do Planalto no sentido de agilizar a apreciação dos nomes.

A substituição de embaixadores em postos estratégicos é normal na troca de governos, o que não é normal é essa demora. Também não é trivial a ruptura promovida por Araújo, que resolveu “caronear” — para usar uma expressão militar — a elite diplomática do país e promover diplomatas mais jovens para os postos mais relevantes. O ex-ministro Aloysio Nunes Ferreira foi elegante ao deixar o cargo que ocupou durante o governo Temer, evitando trocas nos postos primordiais, como as embaixadas de Estados Unidos, França e Portugal, com o objetivo de facilitar a vida de seu sucessor e a dos próprios diplomatas. A demora nas nomeações, porém, tornou-se um empecilho para a política externa, porque os embaixadores que serão substituídos já fizeram suas mudanças e cumprem um expediente meramente formal, aguardando o substituto estoicamente.

Beija-mão
É o caso do embaixador Sérgio Amaral, em Washington, que aguarda seu substituto até hoje. Demitido antes mesmo de Jair Bolsonaro tomar posse, suporta com galhardia o constrangimento de ter que representar o país sabendo que já não tem nenhuma sintonia com o novo chanceler e o atual governo. As embaixadas também ficam em compasso de espera, porque as iniciativas estratégicas dependem da chegada dos novos embaixadores. No jargão diplomático, perdem o “drive”, ou seja, o impulso de trabalho e a energia para novas iniciativas.

No caso dos Estados Unidos, Bolsonaro ainda nem escolheu o substituto. A expectativa era de que o nome do novo embaixador fosse anunciado para o presidente Jair Bolsonaro no seu encontro com Donald Trump, mas isso não ocorreu. Os nomes que chegaram a ser cotados foram o do cientista político Murillo de Aragão, da Consultoria Arko Advice, que era apadrinhado pelo vice-presidente Hamilton Mourão, e o do ministro de segunda classe Néstor Forster, preferido do chanceler Ernesto Araújo.

Estão no limbo, aguardando aprovação do Senado, os novos embaixadores na Organização das Nações Unidas (ONU), Ronaldo Costa Filho; no Paraguai, Flávio Damião; na Grécia, Roberto Abdalla; na Guiana, Maria Clara Clarísio; na Hungria, José Luiz Machado Costa; no Marrocos, Júlio Bitelli; na França, Luiz Fernando Serra; na Romênia, Maria Laura Rocha; na Bulgária, Maria Edileuza Fontenele Reis; na Jordânia, Riu Pacheco Amaral; em Portugal, Carlos Alberto Simas Magalhães; nas Bahamas, Cláudio Lins; no Egito, Antônio Patriota; na UNESCO, Santiago Mourão; e no Catar, Luiz Alberto Figueiredo.

Tradicionalmente, no Senado, há uma espécie de romaria do beija-mão dos indicados para cargos que dependem de aprovação no Senado, como as agências reguladoras e tribunais superiores. Os designados visitam os integrantes das comissões encarregados de apreciar a indicação, os líderes de bancada e os integrantes da Mesa do Congresso. No caso dos embaixadores, porém, nunca houve isso, bastavam as visitas formais ao presidente da Comissão de Exteriores para marcar as sabatinas. Foram raras as vezes em que indicações foram embarreiradas no Senado, quase sempre em retaliação ao Executivo, por algum motivo. O código para derrubar uma indicação em plenário era coçar a gravata, para ninguém ser constrangido por discursos e encaminhamentos de votação.

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Luiz Carlos Azedo: A marcha à ré

“O pano de fundo da tensão no Congresso é a convocação de uma manifestação de apoio a Bolsonaro para o próximo domingo, uma marcha a Brasília, na qual os principais líderes do PSL querem fazer uma demonstração de força”

De repente, o país começa a perder o otimismo e teme retroceder em várias áreas, sobretudo na economia, justo no momento em que um amplo consenso em torno da necessidade de reformas econômicas e institucionais estava sendo construído no Congresso. Colaboram para isso, em primeiro lugar, a gravidade dos problemas enfrentados, que demandam um esforço continuado para superação da crise fiscal; de outro, o comportamento errático do governo, pródigo na promoção de polêmicas inúteis e avarento quando se trata de foco nas soluções, em particular a reforma da Previdência.

Ontem, o presidente Jair Bolsonaro voltou a culpar os políticos pela situação, em solenidade no Rio de Janeiro, na qual declarou que o Brasil “é um país maravilhoso que tem tudo para dar certo, mas o grande problema é a nossa classe política”. A declaração é ambígua porque, depois de generalizar os ataques ao Legislativo (“é o Parlamento em grande parte, é a Câmara Municipal, a Assembleia Legislativa”), Bolsonaro também se incluiu entre os políticos, ao lado do governador fluminense, Wilson Witzel, e do prefeito carioca, Marcelo Crivella, que estavam ao seu lado: “É nós!”.

Mais tarde, já em Brasília, ao lançar a campanha publicitária da reforma da Previdência, Bolsonaro procurou consertar as declarações, que tiveram péssima repercussão: “Nós valorizamos, sim, o parlamento brasileiro, que vai dar a palavra final nesta questão da Previdência tão rejeitada ao longo dos últimos anos. Agradeço ao Rodrigo Maia (presidente da Câmara), ao Davi Alcolumbre (presidente do Senado), que em conversas são unânimes em dizer da necessidade da reforma da Previdência. E, aos parlamentares, queria dizer que só não recebo mais por falta de agenda, mas gostaria de continuar a conversar com o maior número de vocês para que possíveis equívocos, possíveis melhoras, nós possamos junto ao parlamento buscá-las”, disse.

Não foi por acaso, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), em evento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), havia anunciado um pacto com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para aprovar a reforma da Previdência e outras reformas demandadas pela sociedade, independentemente das polêmicas criadas pelo governo e a oposição na mídia e nas redes sociais. Maia também descartou a possibilidade de um projeto alternativo de reforma da Previdência, o que foi corroborado pelo relator da reforma, o deputado Samuel Moreira (PSDB-RJ). Na verdade, o debate sobre as mudanças na Previdência está apenas começando na Câmara, e faz parte do processo legislativo a apresentação de um substitutivo pelo relator, que geralmente incorpora mudanças propostas pelos deputados ao projeto original do governo. Sendo assim, não será integralmente a proposta que o governo mandou para a Câmara, mas também não será um projeto novo.

Manifestação
O pano de fundo da tensão no Congresso é a convocação de uma manifestação de apoio a Bolsonaro para o próximo domingo, uma marcha a Brasília, na qual os principais líderes do PSL querem fazer uma demonstração de força em resposta aos protestos da semana passada, de professores, estudantes e funcionários das universidades e demais estabelecimentos de ensino federais atingidos pelos cortes de verbas da Educação, que o governo chama de contingenciamento. Como a medida foi anunciada como uma retaliação à “balbúrdia” nas universidades pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, houve forte reação da comunidade acadêmica.

A marcha dos partidários de Bolsonaro a Brasília está sendo atacada pela oposição, que a compara à “Marcha sobre Roma” dos camisas negras de Benito Mussolini, em 28 de outubro de 1922, data que marca o início do domínio fascista sobre a Itália. Foi uma manifestação organizada pelo Partido Nacional Fascista, que mobilizou 300 mil militantes armados, para pressionar o parlamento e tomar o poder. A pressão deu resultado: no dia 30 de outubro, o rei Vittorio Emanuele III instruiu ao próprio Mussolini a formação de um novo governo, que implantou o fascismo.

Bolsonaro não precisa de marcha alguma para exercer o poder, foi eleito pelo voto direto. Somente não conta com uma base de apoio robusta no Congresso porque decidiu que não faria um governo de coalizão com os partidos de centro-direita nem adotaria o chamado “toma lá, dá cá”nas negociações com o Congresso. A falta de sintonia com a própria base na Câmara é tanta que o governo corre risco de não conseguir aprovar sua reforma administrativa, o que depende de um acordo com o chamado Centrão. No caso, a recriação do Ministério das Cidades, cujo comando seria entregue a um político.

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Luiz Carlos Azedo: O delírio atômico

“O Brasil sonhou com a bomba atômica durante o regime militar. As consequências foram mais negativas. A ambição era adquirir o ciclo nuclear por meio de cooperação internacional”

O ex-deputado federal Benito Gama é uma raposa política baiana daquelas que já viram de tudo no Congresso, desde quando presidiu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou o ex-presidente Collor de Mello e resultou na sua renúncia à Presidência da República para evitar o próprio impeachment. Governista, defende o presidente Jair Bolsonaro com bom humor e fina ironia. Um de seus argumentos favoritos, quando alguém cita declarações polêmicas do presidente e seus ministros, é comparar o começo do atual governo com o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Foi muito pior, a confusão era tanta que tinha até ministro defendendo a fabricação de uma bomba atômica!”

É uma alusão ao então ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, que defendeu a retomada do projeto nuclear com objetivos militares, que teve péssima repercussão internacional. Esse argumento já não pode ser utilizado por Benito, porque o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e filho do presidente da República, defendeu que o Brasil tenha armas nucleares, para ser levado “mais a sério”. Eminência parda da política externa brasileira, Eduardo Bolsonaro acompanhou o pai no encontro com o presidente norte-americano, Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington.

Eduardo soltou o disparate durante palestra para alunos do curso superior de defesa da Escola Superior de Guerra, em reunião da comissão que preside na Câmara. Ele defendeu o rompimento do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, assinado pelo Brasil em 1998: “A gente sabe que se o Brasil quiser atropelar essa convenção, tem uma série de sanções. É um tema muito complicado, mas eu acredito que um dia possa voltar ao debate aqui”. A Constituição brasileira, no seu artigo 21, determina que toda atividade nuclear em território brasileiro seja realizada apenas para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional.

Eleito por São Paulo com 1,8 milhão de votos, Eduardo Bolsonaro é o parlamentar com mais influência na política externa brasileira, foi um dos padrinhos na nomeação do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo. A visão do filho não é desconectada das ideias do presidente Bolsonaro, que se declara um “armamentista”. A expressão não se refere apenas à liberação da posse de armas, expressa uma concepção de projeção de poder, que ainda pode dar muitas dores de cabeça para o Brasil na sua política externa.

Na visão de Eduardo, bombas nucleares garantem a paz, como se não fosse possível, no caso brasileiro, defendê-la como se fez até agora, desmilitarizando o Atlântico Sul e evitando a nuclearização da América Latina. É simples e direto o seu raciocínio: “Tem um colega do Paquistão aqui, não tem? Como é que é a relação do Paquistão com a Índia se só um dos lados tivesse uma bomba nuclear? Será que seria da mesma maneira que é hoje? Óbvio que não. Quando um desenvolveu a bomba nuclear, o outro desenvolveu no dia seguinte. E ali está selada ao menos minimamente uma espécie de paz. Eu sou entusiasta dessa visão”, explicou aos alunos da ESG.

Programa nuclear
O Brasil sonhou com a bomba atômica durante o regime militar. As consequências foram mais negativas do que positivas para o país. O presidente Costa e Silva chegou a defender a condução de pesquisa, mineração e construção de artefatos nucleares numa reunião do Conselho de Segurança Nacional: “Não vamos chamar de bomba, vamos chamar de artefatos que possam explodir”, disse. A ambição do governo era adquirir todas as fases do ciclo nuclear por meio de cooperação internacional.

Chefiada por Paulo Nogueira Batista, um diplomata de carreira, a recém-criada Nuclebras, na década de 1970, foi encarregada de implementar o programa nuclear. Após a Índia testar uma bomba nuclear em 1974, no entanto, os EUA suspenderam a cooperação nuclear com o Brasil, que passou a privilegiar as negociações com a França e com a Alemanha Ocidental para transferência de tecnologia. A partir daí, passou a sofrer fortes pressões de EUA, Reino Unido, Canadá, França e da antiga União Soviética, que somente cessaram quando o Brasil e a Alemanha Ocidental assinaram um acordo com a Agência Internacional de Energia Atômica que assegura a natureza pacífica do programa nuclear brasileiro.

Coube ao então presidente Collor de Mello pôr uma pá de cal no projeto, ao lacrar os poços localizados na base aérea da Serra do Cachimbo, no Pará, em setembro de 1990. As atividades nucleares foram reduzidas ao programa de desenvolvimento de um submarino nuclear e à construção de duas usinas nucleares adicionais em Angra dos Reis (RJ). O Livro Branco de Defesa Nacional, divulgado em 2012 e publicado pelo Ministério da Defesa, reafirma que a América Latina é uma Zona Livre de Armas Nucleares e que o Brasil defende o desarmamento nuclear. Também afirma que o submarino de propulsão nuclear contribuiria para a proteção de rotas comerciais, a manutenção da livre navegação, a proteção de recursos naturais e a promoção do desenvolvimento tecnológico no país.

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Luiz Carlos Azedo: Saudades do Meirelles

“Em quatro meses de blá-blá-bá, muita falta de foco e crises fabricadas pelo próprio presidente Bolsonaro, seus filhos e aliados ideológicos, o governo ainda patina na economia”.

Se dissermos que já tem gente sentindo saudades do ex-presidente Michel Temer, que foi preso pela segunda vez pela Operação Lava-Jato na sexta passada e foi solto, novamente, ontem, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), estaríamos fazendo uma provocação; mas, com certeza, o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, já começa a dar saudades. Meirelles pegou a economia em profunda recessão, com inflação acima do teto, a maior bagunça nas estatais e os gastos públicos numa espiral ascendente; durante o período do mandato de Temer, conseguiu domar a economia e dar uma arrumada na casa, baixou a inflação e os juros; entregou o país em certo nível de atividade econômica e expectativa de crescimento para este ano acima de 2,5%.

Em quatro meses de blá-blá-bá, muita falta de foco no que é realmente importante e crises fabricadas pelo próprio presidente Bolsonaro, seus filhos e aliados ideológicos, o governo ainda patina na economia, embora tenha avançado alguma coisa na área de infraestrutura. Uma herança do governo Temer, em especial do ex-ministro Moreira Franco, responsável pelo programa de parcerias público-privadas e concessões, que o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, que havia participado de sua equipe, agora está tocando de forma acelerada e com reconhecida competência.

A ata da reunião da semana passada do Conselho de Política Monetária (Copom), só divulgada ontem, foi um banho de água fria no otimismo do mercado. O Banco Central (BC) decidiu, pela nona vez seguida, manter a taxa básica de juros da economia, a Selic, em 6,5% ao ano. Segundo o Copom, existe “probabilidade relevante” de que o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro tenha registrado um “ligeiro” recuo no primeiro trimestre de 2019. Pesou na avaliação a situação da economia mundial, que sofre os efeitos da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, as duas maiores potências econômicas do mundo atual. “Os riscos associados a uma desaceleração da economia global permanecem e que incertezas sobre políticas econômicas e de natureza geopolítica podem contribuir para um crescimento global ainda menor”, afirma o Copom.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, assustou ainda mais os agentes econômicos com as declarações que deu na Comissão Mista do Orçamento da União, à qual compareceu ontem, na Câmara. Disse que a previsão de crescimento do PIB neste ano caiu para 1,5%. Para Guedes, a economia brasileira está “no fundo do poço”. O Orçamento de 2019 aprovado pelo Congresso, durante o governo Temer, previa um crescimento de 2,5% do PIB. Como isso não vai ocorrer, o país entrou no que Guedes chama de “abismo fiscal”, que vai exigir cortes na Esplanada dos Ministérios e, talvez, uma revisão do limite do deficit fiscal.

Quanto pior, pior
Guedes dramatiza a situação também para pressionar o Congresso a aprovar a reforma da Previdência, vista como tábua de salvação do governo, mas não se pode dizer que isso é uma chantagem. A situação é realmente grave, e o governo não conseguiu, até agora, empolgar os agentes econômicos como se esperava logo após as eleições. O problema não é apenas a situação fiscal. De parte dos analistas do mercado financeiro, a convicção é de que a reforma da Previdência será aprovada pelo Congresso, ainda que mitigada, o que abrirá caminho para outras medidas favoráveis de natureza econômica e tributária. Essa aposta, porém, tem sua credibilidade arranhada pela sucessão de crises criadas pelo próprio governo.

A crise mais séria, para o mercado, é a disputa entre os militares e os filhos do presidente da República, que são porta-vozes do chamado “grupo olavista”. Há que se destacar que as propostas ultraliberais de Guedes para a economia não têm nenhuma contradição com a retórica do chamado “grupo olavista”, que defende soluções ultraconservadoras nas políticas públicas e nos costumes, além de apostar na radicalização política, verbalizada pelo guru político do presidente Bolsonaro, Olavo de Carvalho.

Acontece que o “modus operandi” do clã Bolsonaro é muito truculento, desconectado da realidade dos problemas sociais e econômicos e focado na ocupação de mais espaços no governo por aliados políticos do grupo. Além disso, o presidente Bolsonaro comporta-se de forma errática, sem prioridade clara em relação à agenda do governo, que é sobressaltada por medidas de impacto que miram muito mais a sua base eleitoral mais radical do que o conjunto da sociedade. De certa forma, os indicadores econômicos estão mostrando ao presidente Bolsonaro que a rapadura é doce, mas é dura, como se diz no jargão popular. O próprio ministro Paulo Guedes, com razão, joga a culpa da situação no passado, porém, precisa cair na real: o problema agora é do atual governo, que deixou a economia piorar.

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Luiz Carlos Azedo: A política noir

“As discussões têm tudo a ver com as polêmicas das décadas passadas, quando o assunto é violência, comportamento, direitos humanos e ideologias”

A política brasileira está parecendo um filme noir, gênero que fez muito sucesso nas décadas de 1940 e 1950, mas que somente foi reconhecido como tal após os anos 1970, consagrando detetives durões e anti-heróis dos antigos filmes policiais. Coube ao crítico francês Nino Frank a classificação do gênero, inspirada no expressionismo alemão e nas pinturas do barroco Caravaggio, cuja técnica claro/escuro era considerada “noir”(preto, em francês).

A atmosfera do filme noir era caracterizada pela iluminação em três pontos: uma fonte de luz para estabelecer as sombras, outra para o contraste com o negro e a terceira, cinzenta. O forte grafismo expressionista era garantido por escadas, persianas, portas e janelas entreabertas e grades de prisão. O Falcão Maltês (1941), Pacto de Sangue (1944), À Beira do Abismo (1946), Fúria Sanguinária (1949), Crepúsculo dos Deuses (1950), A Morte num Beijo (1955) e A Marca da Maldade (1958) são clássicos do cinema noir.

Esses filmes retratavam os conflitos da vida urbana, a violência policial, o crime organizado e a degeneração política, um tipo de crítica política e social que acabou duramente reprimida no período do macarthismo. Seus protagonistas tinham personalidade dúbia, eram cínicos e cruéis. As cenas eram marcadas por um ambiente opressor, perigoso e corrupto, nos quais até os homens de bem eram arrastados pela correnteza do mal. O herói noir é mal resolvido, bêbado, mulherengo, rejeitado pelos filhos, mas não entrega os pontos nem faz acordo com bandido. Era o fracassado capaz de coisas incomuns.

Acusado de “comunista”, o gênero foi banido de Hollywood, mas deu origem aos melhores romances policiais norte-americanos, originalmente publicados em capítulos, nos tabloides sensacionalistas, por escritores que foram roteiristas e precisavam encontrar um meio de sobreviver com seu talento, depois de marginalizados do cinema. Hoje, é um gênero literário reconhecido e copiado mundialmente, com seus grandes autores, como Dashiell Hammett e Raymond Chandler, traduzidos em dezenas de línguas.

Quem acompanha os debates no Congresso, transmitidos pelas tevês Câmara e Senado, verá muitos personagens dignos de um filme noir se digladiando em plenário. As discussões têm tudo a ver com as polêmicas das décadas passadas, quando o assunto é violência, comportamento, direitos humanos e ideologias. É uma espécie de viagem de marcha à ré.

Dá até para organizar um concurso para identificar, na cena política, um personagem como Gilda, a mulher fatal encarnada por Rita Hayworth no filme do mesmo nome. Não precisa ser, necessariamente, uma mulher. Pode ser uma figura como o craque do Botafogo Heleno de Freitas, passional dentro e fora dos campos. Nada mais noir do que o decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro sobre a liberação do porte de arma, que foi o assunto do dia no plenário da Câmara e no mercado de ações, por causa da supervalorização, na Bovespa, das ações da Taurus, cujo lobby é representado pela chamada Bancada da Bala.

Cortina de fumaça

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, responsável pelo decreto, reconheceu em audiência que a decisão não foi tomada em razão da política de segurança pública, mas para atender uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro, que se autodefine como “armamentista”. O decreto libera o transporte de armas a político em exercício de mandato, advogado, oficial de justiça, caminhoneiro, colecionador ou caçador com certificado, dono de loja de arma ou escola de tiro, residente de área rural, agente de trânsito, conselheiro tutelar, jornalista de cobertura policial, instrutor de tiro ou armeiro, colecionador ou caçador, agente público da área de segurança pública — mesmo que inativo —, entre outros.

O porte de armas era privativo das Forças Armadas, guardas municipais, polícias civil, militar e federal, guarda prisional, Agência Brasileira de Inteligência, Gabinete de Segurança institucional da Presidência, auditor-fiscal e analista tributário, grupos de servidores do Poder Judiciário. A decisão está sendo questionada por grupos de defesa dos direitos humanos e pela oposição, que a consideram inconstitucional. Todos os estudos indicam que pode aumentar os indicadores de violência, inclusive feminicídios.

No plenário da Câmara, esse debate ofuscou completamente a audiência do ministro da Economia, Paulo Guedes, na Comissão Especial que examina a reforma da Previdência. Na prática, a medida do governo, como outras polêmicas criadas pelo presidente Bolsonaro, funciona como uma cortina de fumaça em relação ao seu real engajamento na aprovação da reforma da Previdência pelo Congresso.

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Luiz carlos Azedo: Os militares e Maduro

”A experiência dos nossos generais e a doutrina de defesa das Forças Armadas brasileiras impediram que Bolsonaro desse um passo maior do que as pernas”

A chave para uma saída negociada para a crise venezuelana é uma retirada em ordem dos militares do poder, restabelecendo as regras do jogo democrático e mantendo a unidade e disciplina das Forças Armadas da Venezuela. A melhor e mais bem-sucedida experiência de uma operação dessa natureza foi a longa transição brasileira, na qual os militares voltaram para os quartéis e somente recuperaram o poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, depois de passarem 34 anos fora da política.

Os generais que cercam o presidente da República, principalmente os três mais poderosos — o vice-presidente Hamilton Mourão; o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno; e o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo —, viveram esse processo na caserna. A “distensão lenta, gradual e segura” do presidente Ernesto Geisel, iniciada nas eleições de 1974 (logo seguida de prisões em massa de oposicionistas, após a derrota eleitoral de novembro daquele ano), somente foi encerrada com eleição de Tancredo Neves, em 1985, no colégio eleitoral, no fim do governo de João Figueiredo.

Politicamente, foi uma operação bem-sucedida; militarmente, coincidiu com a maior profissionalização e aperfeiçoamento da formação dos militares e o reforço da disciplina e do respeito à hierarquia. A mesma geração de militares que se beneficiou dessa mudança qualitativa no comportamento das Forças Armadas, viu frustrada as ambições de ascensão social e política por meio da carreira militar, em razão do desprestígio causado pelas violações dos direitos humanos e do fracasso do modelo de capitalismo de estado implantado pelo regime militar.

Nada disso se compara, porém, à experiência dos militares de outros países quando foram apeados do poder: muitos foram presos, julgados e condenados por causa da tortura, como na Argentina. Mesmo os militares chilenos, muito bem-sucedidos na economia com seu modelo neoliberal, foram atropelados pela vitória do “No” no plebiscito convocado pelo general Augusto Pinochet. A “anistia recíproca” negociada com o Congresso, com Figueiredo no poder, em 1979, foi o nó que amarrou a transição. Depois da redemocratização, mesmo nos governos do PT, o pacto que garantiu o sucesso da transição foi mantido.

Vejamos os últimos acontecimentos na Venezuela. Mesmo enfraquecido na sociedade, Nicolas Maduro permanece no poder, graças ao apoio dos militares venezuelanos. Ontem, o líder da oposição Juan Guaidó, em Caracas, voltou a pedir o apoio dos militares, 24 horas depois do fracassado “levante” militar que havia anunciado. Maduro tem o apoio da cúpula das Forças Armadas de seu país, de Cuba, da Rússia e da China. Os acontecimentos de ontem, quando a Guarda Nacional Venezuelana reprimiu violentamente os manifestantes, mostram que a situação é crítica, mas o governo não perdeu o sabre que contém os protestos.

Ambiguidade

Uma retirada das Forças Armadas da Venezuela do poder será mais complexa do que se imagina, ao menos por três razões: o falecido presidente Hugo Chavez, que era militar, doutrinou e promoveu a maioria dos generais; as empresas estatais venezuelanas são controladas por militares corruptos; e o ministro da Defesa, Vladimir Padriño, além dos negócios, controla o tráfico de drogas no país. A cúpula militar venezuelana não aceitará nenhum acordo que implique punição pelos crimes que cometeu. A lógica do confronto entre Maduro e Guaidó não permite esse tipo de acordo, seria preciso que outros atores entrassem em cena, no governo e na oposição, para uma solução negociada. Esses atores existem, mas ainda não se apresentaram publicamente.

A posição do Brasil nesse processo é ambígua. O presidente Jair Bolsonaro, influenciado pelo ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araujo, quase embarcou na lógica intervencionista do governo Trump, que já fez três tentativas de forçar a renúncia de Maduro: quando Guaidó se declarou presidente interino, por ocasião da fracassada operação de ajuda humanitária e na tentativa de levante de terça-feira passada. Nas três ocasiões, o chanceler brasileiro estava mal-informado sobre a real correlação de forças na Venezuela, em razão de informações recebidas de John Bolton, assessor de Segurança Nacional, e Mike Pompeo, secretário de Estado, com quem, inclusive, esteve novamente, na segunda passada.

Apesar das deficiências dos serviços de inteligência do Brasil, a experiência dos nossos generais e a doutrina de defesa das Forças Armadas brasileiras impediram que Bolsonaro desse um passo maior do que as pernas, como fez Guaidó, novamente, na terça-feira. A variável nova na crise venezuelana é a interferência de militares e serviços de inteligência russos, por ordem de Vladimir Putin, que tem outro tipo de experiência de transição política. Na Rússia, os militares e burocratas poderosos se apropriaram das empresas estatais que comandavam, nas “privatizações selvagens” do governo Boris Yeltsin, dando origem à atual e bilionária plutocracia russa. Os Estados Unidos acusam os russos de impedirem a renúncia de Maduro.

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Luiz Carlos Azedo: Quem lidera?

“Passados 100 dias de mandato, a liderança de Bolsonaro na equipe que formou começa a dar sinais de esgarçamento; não há sintonia entre o racional-legal, o carisma e a tradição”

Ao estudar os tipos de liderança existentes na sociedade, o filósofo e sociólogo alemão Max Weber buscou o arquétipo das lideranças carismáticas no guerreiro bárbaro: o mais valoroso, audaz e astucioso seria escolhido para chefe, porque as mais dolorosas experiências ensinaram que, sem chefe para a batalha, a horda levaria a pior, seria derrotada e dizimada pelo inimigo implacável. Entretanto, Weber amplia essa tipificação da dominação carismática para os profetas e os demagogos e a contextualiza no processo civilizatório, no qual o exercício do poder exige legitimidade e legalidade.

Grosso modo, as lideranças carismáticas estão associadas a revoluções: Robespierre, Marat e Danton na Revolução Francesa; Oliver Cromwell na Revolução Puritana; e Martinho Lutero na Reforma Protestante. Ou a regimes autoritários: Benito Mussolini, na Itália; e Adolf Hitler, na Alemanha. Mas isso é relativo, porque já exerciam esse tipo de liderança antes de chegarem ao poder. No Brasil, os exemplos clássicos de lideranças carismáticas são encontrados nos sertões do Nordeste, com Lampião, Antônio Conselheiro e Padre Cícero; na política, em Getúlio Vargas, Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Essas lideranças ganharam fama devido às façanhas que realizaram e aos meios de comunicação, a chamada grande imprensa, o rádio e a televisão. O presidente Jair Bolsonaro é uma novidade: seu carisma está associado à emergência das redes sociais. O problema da liderança carismática quando chega ao poder pelo voto, porém, são os de sempre: a legitimidade e a legalidade. É aí que as coisas começam a se complicar. Num governo democrático, não basta o carisma popular do líder, é preciso que ele exerça a liderança pela competência na tomada de decisões e pela capacidade de coordenação de sua própria equipe.

O Estado democrático moderno é uma forma de dominação legal-racional muito sofisticada, cuja legitimidade se estabelece constitucionalmente. Conta com uma burocracia estruturada, com competências, limites e funções exclusivas e bem definidas, que opera de acordo com as atribuições do cargo e não a partir da fulanização das relações de poder, que é uma espécie de “humanograma” estabelecido a partir de critérios extralegais, ou seja, de acordo com os caprichos do líder.

Esgarçamento
Boa parte dos problemas do governo Bolsonaro decorre dessa contradição entre o exercício de uma dominação carismática, de um lado, e necessidade de respeitar as regras do jogo para que as coisas deem certo. No momento, na máquina administrativa, a opção de Bolsonaro é virar a mesa para domar a burocracia. Para isso, recorre aos militares, mais afeitos à hierarquia legal-racional, mas viciados no “quem manda aqui sou eu”, e aos partidários ideológicos, cuja maioria é neófita nos jogos de poder e está mais perdida do que cachorro que caiu do caminhão de mudanças.

Outra dificuldade enfrentada por Bolsonaro está na sua relação com as lideranças tradicionais, ou seja, a maioria dos políticos e, perdão para o “tipo ideal”, a magistratura. O velho patriarcado brasileiro, que se reproduz secularmente, ainda é uma força decisiva no Congresso e está encastelado no Judiciário, haja vista os sobrenomes que desfilam pelo Congresso ou lideram as bancas de advocacia.

Nem mesmo o partido de Bolsonaro foge à regra, muito bem representado na bancada do PSL pelo príncipe Luiz Philippe de Orleans e Bragança, deputado federal eleito por São Paulo, trineto da princesa Isabel e tetraneto do imperador Dom Pedro II. Preterido pelo general Hamilton Mourão (PRTB) para o posto de vice, faz parte do grupo de amigos de Carlos e Eduardo Bolsonaro, filhos do presidente da República.

Mourão, a propósito desse conflito, volta à ribalta das disputas palacianas ao dar um chega pra lá no ideólogo do clã Bolsonaro, Olavo de Carvalho, que verbaliza o que os filhos do presidente pensam sobre os militares que tentam tutelar seu pai. No domingo, um vídeo no site do presidente da República exibia fortes críticas do guru aos militares; ontem, Mourão respondeu ao ataque, mandando Olavo cuidar de astrologia, para não falar outras coisas.

No fim da tarde, o porta-voz Otávio do Rêgo Barros divulgou nota do presidente Jair Bolsonaro, na qual afirma que as declarações “não contribuem para a unicidade de esforços e consequente atingimento de objetivos propostos em nosso projeto de governo”; ao mesmo tempo, destaca que Olavo “teve um papel considerável na exposição das ideias conservadoras que se contrapuseram à mensagem anacrônica cultuada pela esquerda e que tanto mal fez ao país”. Passados 100 dias de mandato, a liderança de Bolsonaro na equipe que formou começa a dar sinais de esgarçamento; não há sintonia entre o racional-legal, o carisma e a tradição.

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