Memória
Luiz Carlos Azedo: Humanos como nós
“Os povos isolados têm o direito de decidir se preferem viver em isolamento ou não. Para exercer esse direito, porém, precisam de tempo e espaço”
Considerado o pai da antropologia estruturalista, o franco-belga Claude Lévi-Strauss (1908 — 2009), entre 1935 e 1939, dedicou-se a estudar os índios do Brasil Central, base para a publicação de sua tese As estruturas elementares do parentesco, em 1949. Ele rompeu com a ideia de que os índios são apenas índios, porque não concordava com a divisão entre civilizados e selvagens. Lévi-Strauss foi professor da recém-criada Universidade de São Paulo, com sua esposa Dinah Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Jean Maugüé e Pierre Monbeig, e realizou pesquisas de campo em Goiás, Mato Grosso e Paraná, que também resultaram no livro Tristes Trópicos (1955). Procurou decifrar as relações entre o ser humano, a natureza e a cultura.
Para o antropólogo, o ser humano se diferencia dos outros animais devido ao uso de símbolos para se comunicar, não importa as particularidades de cada grupo humano. Seu objetivo não era estudar uma sociedade específica, mas identificar o que há nela de universal; por exemplo, sistemas de parentesco e restrições matrimoniais. Graças aos índios, por exemplo, sua compreensão do incesto ultrapassou as explicações biológicas ou morais. A proibição de manter relações sexuais com certas mulheres (como a mãe ou a irmã) e a permissão para tê-las com outras teceram as alianças fundadoras da vida social. O sistema de parentesco é o meio pelo qual se cumpre a transição entre a natureza e a cultura. Explica, por exemplo, como se formou a economia do sertão no Brasil colonial, a partir da miscigenação e do escambo entre os tupis e os portugueses.
Na monumental Mitológicas, de 1960, com mais de 2 mil páginas, Lévi-Straus analisou 813 mitos originários de povos do continente americano, desde os bororos, os jês e os tupi-cavaíbas do Brasil até os hopi, os pueblo, os mohawk e os kwakiutl da América do Norte. No primeiro volume, intitulado O Cru e o Cozido, comparou a análise conjunta dos mitos americanos à audição de uma sinfonia. Os músicos, porém, estão separados no tempo e no espaço, e cada um executa seu fragmento sem saber a partitura completa. Só é capaz de ouvir a música inteira quem estiver a distância. O concerto, segundo Lévi-Strauss, iniciou-se há milênios e hoje poucos músicos remanescentes continuam a tocar na orquestra.
Isolamento
No Maranhão, Karapiru, um indígena Awá, é um dos remanescentes da orquestra. Sobreviveu a um ataque de homens armados e, durante dez anos, morou sozinho, se escondendo na floresta. Agora vive com outros Awá, que são caçadores-coletores e nômades em constante movimento. Em Rondônia, outro índio solitário talvez seja o único sobrevivente de uma tribo massacrada por grileiros que ocuparam a região de Tanuro. Vive em fuga e é conhecido como “homem do buraco”, porque escava grandes covas para se esconder e guardar seus alimentos. Desde 1987, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem um departamento dedicado aos povos indígenas isolados, cuja política é fazer contato somente nos casos em que sua sobrevivência está em risco iminente. Em vez disso, a Funai busca demarcar e proteger suas terras de invasores.
Os povos isolados têm o direito de decidir se preferem viver em isolamento ou não. Para exercer esse direito, porém, precisam de tempo e espaço. É o caso dos Piripkura, ou o “povo borboleta”, como são chamados pelos “Gaviões”, com quem interagem. Eles falam Tupi-Kawahib, o mesmo tronco linguístico de vários outros povos do Brasil. Os Piripkura eram cerca de 20 pessoas quando a Funai fez o primeiro contato no final da década de 1980. Depois, voltaram para a floresta, e mantêm relações esporádicas com os sertanistas. Somente sobreviverão se suas terras forem protegidas. Há centenas de grupos isolados na Amazônia.
Agora, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, pretende nomear o antropólogo Ricardo Lopes Dias para a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e Recém Contatados. Formado pela Faculdade Teológica Sul Americana, atuou por mais de dez anos para a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização que tem por objetivo evangelizar os indígenas. Lopes Dias terá a missão de tornar o índio cada vez mais “um ser humano igual a nós”, para usar a expressão do presidente Jair Bolsonaro.
Voltemos à antropologia, que explica muitas coisas. Papa do estudo das religiões, o escocês Victor Turner (1920 — 1983) também bebeu das águas das sociedades primitivas. Tendo por base os Lunda-Ndembus, na região Noroeste da antiga Rodésia do Norte, atual Zâmbia, entre 1950 e 1954, viveu na aldeia e estudou o papel dos ritos, dos símbolos e das metáforas nos dramas sociais. Nesse período, de tempos em tempos, eclodiram conflitos, nos quais Turner identificou um padrão universal:
Primeiro, uma crise irrompia no cotidiano, expondo as tensões existentes; depois, os envolvidos acionavam suas redes de parentela, relações de vizinhança e amizade, e a crise se ampliava; a seguir, surgia a turma do deixa disso, que buscava a conciliação e soluções em rituais coletivos; finalmente, havia um rearranjo e as posições e relações eram redefinidas, ou não se chegava a um acordo e a cisão se tornava inevitável, seguindo a clivagem de parentesco e suas alianças, o que daria origem a uma nova aldeia. Qualquer semelhança com o que também acontece nas religiões e na política não é mera coincidência.
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Luiz Carlos Azedo: O poder das intrigas
“Quanto mais poderosos seus protagonistas, mais perigosas são as disputas palacianas, agora operadas com fake news, por meio das redes sociais.”
Um dos episódios mais espantosos da política brasileira foi a renúncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, uma data simbólica: o Dia do Soldado. Às voltas com um Congresso dominado pela oposição, após ter sido denunciado, na televisão, pelo seu maior eleitor, o governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda, o presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo, precipitando o Brasil numa crise sem precedentes, que não foi contida pelo seu sucessor, João Goulart, e acabou desaguando no golpe militar de 1964.
A sua renúncia tem duas interpretações relevantes: uma é a dele próprio, seis meses antes de morrer, em 1991, em depoimento ao neto homônimo, autor da biografia Jânio Quadros: Memorial à História do Brasil. Depois de 50 anos de silêncio, disse que a renúncia não deveria ter existido: “A minha renúncia era para ter sido uma articulação. Nunca imaginei que ela seria de fato executada. Renunciei à minha candidatura à Presidência em 1960 e ela não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. Meu ato de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo, uma tentativa de recuperar a governabilidade. Também foi o maior fracasso político da história republicana. O maior erro que já cometi…”
Jânio arquitetou um plano que julgava infalível, em meio a intrigas palacianas protagonizadas por assessores muito próximos, que se digladiavam. Primeiro, mandou o vice-presidente João Goulart em missão à China, para afastá-lo das articulações políticas. Presidente e vice podiam ser eleitos por partidos diferentes, até adversários (Goulart elegeu-se com 36% dos votos, graças a uma manobra dos sindicalistas paulistas, que montaram a chapa pirata “Jan-Jan”). Jânio escreveu a carta-renúncia no dia 19 e entregou ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, no dia 22. Estava confiante de que não haveria ninguém para assumir o cargo e, por isso, voltaria ao poder mais forte, nos braços do povo, com apoio dos governadores e dos militares.
Janio avaliava que Jango não tomaria posse: “Achei que era impossível ele assumir, que todos iam implorar que eu ficasse” — disse ao neto. “Charles De Gaulle renunciou na França e o povo foi às ruas exigir a sua volta. A mesma coisa ocorreu com Fidel Castro, em Cuba. Achei que voltaria para Brasília na glória. Pedi um voto de confiança à minha permanência no poder. Fui reprovado, e o país pagou um preço muito caro. Deu tudo errado.”
A outra é do jornalista Carlos Castelo Branco, no livro A renúncia de Jânio: um depoimento, no qual o maior jornalista político que Brasília já conheceu relata os bastidores da renúncia, separando os delírios de Jânio das intrigas de bastidores no palácio, que acompanhou de corpo presente como secretário de Imprensa da Presidência e relata com precisão.
Nelas, pontificaram o ministro da Justiça, Pedroso Horta, e José Aparecido, cada qual puxando o governo para um lado. Castelo relata um episódio pequeno, em todos os sentidos, mas de grande significado. Horta havia articulado um encontro de Lacerda com Jânio, em Brasília, que foi um desastre. Aparecido fez uma intriga com Jânio e submeteu Lacerda a uma situação humilhante, ao frustrar sua expectativa de pernoitar no Alvorada: simplesmente mandou o mordomo aguardar Lacerda com sua mala de viagem e conduzi-lo à porta do palácio.
O golpe
Ao relatar uma conversa de Jânio com o então ministro do Trabalho, Castro Neves, no aeroporto de Cumbica, presenciada também por José Aparecido, Carlos Castelo Branco revela o ponto de encontro entre as intrigas palacianas e os delírios do presidente: “Nada farei por voltar, mas considero minha volta inevitável. Dentro de três meses, se tanto, estará na rua, espontaneamente, o clamor pela reimplantação do nosso governo. O Brasil, no momento, precisa de três coisas: autoridade, capacidade de trabalho e coragem e rapidez nas decisões. Atrás de mim não fica ninguém, mas ninguém, que reúna esses três requisitos”.
Jânio renunciou na certeza de que voltaria. “Uma vez que, sob a Constituição, não poderia reassumir a Presidência, a não ser através de novas eleições, o que esperava? Obviamente, um golpe, que lhe oferecesse de volta o poder e que lhe permitiria impor condições, como o fechamento do Congresso, de cuja inutilidade e vícios fazia aberta apologia nos dias que antecederam à renúncia”, concluiu outro craque do jornalismo, Luiz Gutemberg, ao prefaciar o livro de seu amigo e colega Castelinho.
Moral da história: quanto mais poderosos seus protagonistas, mais perigosas são as intrigas palacianas, agora operadas com fake news, por meio das redes sociais. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, por exemplo, foi ejetado da cadeira de secretário-geral da Presidência dessa forma. Segundo a Polícia Federal, são falsas as mensagens que circularam no WhatsApp e que contribuíram para a sua demissão em junho. O suposto diálogo entre o ministro e um interlocutor, com críticas ao presidente Jair Bolsonaro, a um filho do presidente e a uma pessoa identificada como “Fábio”, provavelmente foi de autoria de um perfil falso e disseminado nas redes por um robô. O militar havia entrado em rota de colisão com um dos filhos de Bolsonaro, o vereador Carlos Bolsonaro, e seu guru, Olavo de Carvalho.
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Luiz Carlos Azedo: A namoradinha
“Regina Duarte na Secretaria de Cultura pode representar o fim da ofensiva obscurantista e reacionária contra a classe artística, e não o contrário. Em miúdos, pode ser pior sem ela”
O presidente Jair Bolsonaro está em vias de transformar um limão em limonada, com a nomeação da atriz Regina Duarte para o cargo de secretária de Cultura, no lugar do neonazista enrustido Roberto Alvim. Ontem, o Palácio do Planalto confirmou que a protagonista da série Malu Mulher e das novelas Minha Doce Namorada, na qual era a jovem Patrícia, e Roque Santeiro, em que interpretou a Viúva Porcina, entre outros papéis de destaque, virá a Brasília amanhã para conhecer a Secretaria Especial da Cultura. Foi convidada por Bolsonaro para assumir o órgão. Os dois tiveram uma reunião no Rio de Janeiro, onde foi convidada. Depois da conversa, ela escreveu que está “noivando” com o governo.
Bolsonaro resumiu os entendimentos no Twitter: “Tivemos uma excelente conversa sobre o futuro da cultura no Brasil. Iniciamos um ‘noivado’ que possivelmente trará frutos ao país”, escreveu o presidente. Conservadora assumida, antipetista de primeira hora, Regina Duarte participou das campanhas das Diretas, Já!, de Tancredo Neves (1985) e José Serra (2002). Reconhecidamente, é uma grande atriz e tem o respeito da maioria de seus colegas, mas nunca teve unanimidade. Agora, sofrerá uma campanha de feroz oposição, porque assume o cargo em circunstâncias muito desfavoráveis, uma vez que seu antecessor desnudou um projeto reacionário de cultura, cuja inspiração estava na máquina de propaganda nazista. A questão é: fará uma inflexão nos rumos da pasta ou seguirá a mesma orientação?
No governo Bolsonaro, a fronteira entre o conservadorismo e o reacionarismo é muito sinuosa, porém, já foi atravessada nas áreas da educação, cultura, direitos humanos e meio ambiente. Agora, o que foi barrado pela forte reação da opinião pública, do mundo artístico-cultural, da imprensa e até mesmo de setores militares no governo foi a narrativa fascista, que orienta a deriva contra a democracia de setores do governo. A crise provocada por Ricardo Alvim, ao reproduzir em vídeo trechos de um discurso de Joseph Goebbels, o ministro da Cultura e Propaganda de Adolf Hitler, levou-o à demissão, a contragosto do presidente. Pouco antes do “sincericídio”, numa live, Bolsonaro havia elogiado o seu então secretário de Cultura, que estava ao seu lado.
O episódio serviu para corroborar a narrativa dos setores da oposição que caracterizam o governo como fascista ou protofascista, ou seja, que denunciam a fascistização do país. Essa é uma discussão muito relevante por todas as suas implicações. Em todas as crises do governo, até agora, o que se viu foi um recuo de Bolsonaro diante das reações da sociedade civil e dos demais poderes da República. No caso de Ricardo Alvim, esse recuo se deu em menos de 48 horas, após os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), terem solicitado a demissão de Alvim, além das críticas do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, e da opinião pública nas redes sociais, principalmente no Twitter, o principal instrumento de comunicação direta de Bolsonaro com a sociedade. Ou seja, nesses momentos, a democracia se fez mais forte do que o presidente da República.
Bonapartismo
A narrativa reacionária e chauvinista não basta para caracterizar um governo como fascista, a rigor, uma ditadura aberta, que recorre ao terror de Estado para esmagar a oposição. A expressão protofascista carrega ideia errônea de inevitabilidade da fascistização do regime político, porque proto significa primeiro ou o que antecede. Essa discussão não é nova. Historicamente, ocorreu na Alemanha da República de Weimar, às vésperas da ascensão de Hitler ao poder, quando os espartaquistas (comunistas) liderados por Rosa Luxemburgo e Karl Liebeneck chamavam a social-democracia alemã de social-fascista, abrindo caminho para a ascensão do Partido Nazista.
Aqui no Brasil, situação semelhante ocorreu em pleno Estado Novo, de clara inspiração fascista, mas o Brasil acabou entrando na II Guerra Mundial ao lado dos Aliados, porque, em seu interior, os americanófilos liderados por Osvaldo Aranha, Amaral Peixoto e Gustavo Capanema demoveram o ditador Getúlio Vargas e isolaram os simpatizantes do Eixo, encabeçados por Francisco Campos, Góis Monteiro e Filinto Müller. Agora, Ricardo Alvim ofendeu a memória da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que lutou nos campos da Itália contra o nazifascismo, daí a reação dos militares que integram o governo, que também pediram sua cabeça.
O governo Bolsonaro tem características bonapartistas, ou seja, preserva autonomia relativa e se coloca acima das classes sociais, embora sua política econômica esteja alinhada ao mercado financeiro. Ao confundir alhos com bugalhos, a oposição unifica o governo e acaba, ela sim, se isolando. De certa forma, a presença de Regina Duarte na Secretaria de Cultura pode representar o fim da ofensiva obscurantista e reacionária contra a classe artística, e não o contrário. Trocando em miúdos, pode ser pior sem ela.
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Luiz Carlos Azedo: Entre dois polos
“A China continuará sendo o nosso principal parceiro comercial, mas não temos o mesmo poder de barganha dos EUA para defender nosso parque produtivo no novo cenário global”
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o vice-primeiro-ministro chinês, Liu He, assinaram, ontem, a primeira fase do acordo comercial entre os dois países, depois de uma guerra comercial que durou um ano e meio e abalou a economia mundial. O ponto central do acordo é uma promessa da China de comprar mais US$ 200 bilhões em produtos dos EUA ao longo de dois anos, para reduzir o deficit comercial bilateral com os norte-americanos, que chegou a US$ 420 bilhões em 2018. A China se compromete a comprar produtos manufaturados, agrícolas, energia e serviços dos EUA.
“Hoje (ontem), demos um passo crucial, que nunca tínhamos dado antes com a China”, disse Trump durante a cerimônia na Casa Branca. O pacto entre os dois países pode ter o papel de desanuviar não somente o ambiente econômico, mas também o ambiente político mundial, que vive uma escalada de tensões, a principal, agora, entre os Estados Unidos e o Irã, tendo por epicentro o controle do Iraque. A guerra comercial resultou no aumento das tarifas alfandegárias por ambos os lados, no valor de centenas de bilhões de dólares em mercadorias, o que afetou mercados financeiros, cadeias de fornecimento e o crescimento global.
Em números, a situação é a seguinte: os Estados Unidos vão manter tarifas de 25% sobre uma vasta gama de US$ 250 bilhões em bens e componentes industriais chineses usados pela manufatura norte-americana, até a segunda fase do acordo, mas a China deve comprar US$ 12,5 bilhões em produtos agrícolas dos EUA no primeiro ano e US$ 19,5 bilhões, no segundo ano; US$ 18,5 bilhões em produtos de energia no primeiro ano e US$ 33,9 bilhões, no segundo ano; US$ 32,9 bilhões em manufaturados dos EUA no primeiro ano e US$ 44,8 bilhões, no segundo ano; e US$ 12,8 bilhões em serviços dos EUA no primeiro ano e US$ 25,1 bilhões, no segundo ano.
O que vai acontecer depois, ninguém sabe ainda, mas as repercussões e projeções do que já foi acertado certamente serão discutidas na reunião de Davos, à qual o presidente norte-americano Donald Trump anunciou que pretende comparecer. De certa forma, o acordo roubará a cena do Fórum Econômico Mundial, que completa 50 anos e cuja pauta está focada na questão ambiental. Muitos chefes de Estado estarão presentes, além de grandes executivos e personalidades. Qual será a repercussão do acordo entre os Estados Unidos e a China para o Brasil? De certa forma, o acordo favorece os norte-americanos em relação ao nosso agronegócio, seja pela demanda cativa, seja pela vantagem estratégica em termos logísticos.
Rota do Pacífico
No seu livro Sobre a China, o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger já apontava o deslocamento do eixo do comércio mundial do Atlântico para o Pacífico e advertia sobre os riscos da disputa comercial entre os Estados Unidos e a China. Dizia que, no século passado, houve duas guerras mundiais por causa da disputa entre a Inglaterra, uma potência marítima, e a Alemanha, uma potência continental, pelo controle do comércio no Atlântico. A grande questão, agora, é como essa disputa entre a maior potência marítima do planeta, os Estados Unidos, e a maior potência continental, a China, vai se resolver.
A grande contribuição do livro de Kissinger quanto a isso é seu esforço no sentido de construir pontes diplomáticas do Ocidente com a China, a partir de sua própria experiência, pois foi o grande artífice da reaproximação entre os dois países em plena guerra fria. A conduta chinesa nos âmbitos dos direitos humanos e de seu “imperialismo” regional sempre foi alvo de ataques por parte dos países ocidentais, a partir da aproximação entre os dois países houve uma mudança de eixo de percepção do Ocidente sobre os chineses, que deram uma guinada econômica em direção ao capitalismo excepcionalmente bem-sucedida, a ponto de a percepção da opinião pública mundial mudar completamente em relação aos chineses. No lugar da imagem dos guardas vermelhos da Revolução Cultural de Mao Tse Tung, surgiram os grandes grupos de turistas ávidos pelo consumo da cultura ocidental, com suas roupas, bolsas e tênis de marcas, além de smartphones de última geração.
Entretanto, ninguém se iluda, o regime político continua sendo uma ditadura do Partido Comunista, o status autônomo de Hong Kong não será restabelecido e a China tornou-se uma potência econômica com crescente projeção militar sobre o Pacífico, o Índico e a costa africana do Atlântico Sul. No caso do Brasil, continuará sendo o nosso principal parceiro comercial, mas não temos o mesmo poder de barganha dos Estados Unidos para defender nosso parque produtivo nesse novo cenário criado pelo acordo.
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Luiz Carlos Azedo: A força do diálogo
”Se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não existiria liberdade de escolha. Entretanto, ainda não aconteceu. Por isso, é possível influenciá-lo“
Com direção primorosa de Fernando Meirelles, roteiro de Anthony McCarten e fotografia de Cesar Charlone, Dois Papas é um filmaço da Netflix, com interpretações impecáveis de Jonathan Pryce, no papel do cardeal Jorge Bergólio, que viria a ser eleito o papa Francisco, e Anthony Hopkins, aos 80 anos, encarnando o Papa Bento XVI, que surpreendeu o mundo com uma renúncia até então inimaginável. Os dois travam um duelo verbal no qual os fatos históricos e a ficção se desenrolam como uma espiral de hélice dupla, que simultaneamente descreve as personalidades de ambos e traduz velhas polêmicas sobre o livre-arbítrio e o poder da fé. É um filme que mostra a força e a importância do diálogo.
É a partir dele que sugiro uma reflexão sobre 2020. As comemorações de passagem de ano têm origem 3 mil anos antes de Cristo, na Babilônia. Duravam 11 dias, seis a mais do que as de Salvador neste ano. Incluíam procissões, ritos de fertilidade e sacrifícios. O ano-novo romano, que deu origem à comemoração mais universal (também existem o ano-novo chinês, o islâmico e o judaico), foi criado por Julio Cesar, 43 anos antes de Cristo, por meio de decreto que dedicou o primeiro dia do ano a Jano, o deus de duas cabeças das origens. É uma festa pagã, cujas superstições têm as mais diversas procedências, das oferendas à Iemanjá, de origem iorubá, ao costume tcheco de comer lentilhas. Como rito de passagem, porém, as comemorações de ano-novo nunca foram celebradas pela Bíblia, que condena a adoração falsa e os excessos das festas de fim de ano.
É uma das muitas contradições da doutrina católica com a própria fé dos cristãos, o fio condutor do diálogo entre Bergólio, um ex-jesuíta, e Joseph Aloisius Ratzinger, que ascendeu ao papado como grande teólogo conservador de João Paulo II. Não é à toa que o espaço vazio deixado pela Igreja, após as comemorações do Natal, acabou ocupado no Brasil pela alegria e pela energia espiritual do candomblé e da umbanda, que dominam o sincretismo do ano-novo. Para os cristãos, independentemente dos ritos, ano-novo é sinônimo de esperança e mudança, tem tudo a ver com o livre-arbítrio e o poder da fé.
Livre-arbítrio
A polêmica cristã sobre o livre-arbítrio surgiu no norte da África, no início do século V, entre Santo Agostinho e o monge celta Pelágio, por causa do batismo de uma criança. Os cristãos acreditavam que o batismo lavava as manchas do pecado original. Perlágio dizia que as crianças não precisavam ser batizadas, porque não tinham livre-arbítrio e, portanto, não pecavam. E se mais tarde escolhessem o caminho de Deus, nem precisariam ser batizadas. Agostinho de Hipona, que estudou filosofia grega em Cartago e somente foi batizado aos 33 anos, depois de retornar ao cristianismo que havia abandonado quando jovem, sustentou a tese de que era impossível escolher o caminho de Deus por vontade própria. Para isso, segundo ele, era preciso a ajuda de Deus, daí a importância do batismo.
No filme, a conversa entre os dois papas gravita em torno do livre-arbítrio e da vontade de Deus, porque Bergólio queria se aposentar e precisava da autorização do papa. Mas não sabia que Ratzinger tinha o mesmo desejo e via nele seu sucessor, embora divergissem em quase tudo. De forma subliminar, a conversa entre ambos gira em torno da doutrina da predestinação, desenvolvida por Agostinho: é impossível a escolha do caminho de Deus por vontade própria, para isso é preciso uma graça divina. Fora uma saída salomônica para a preservação do dogma do batismo, a graça redentora do pecado original, a partir da qual o livre-arbítrio é possível. Curioso é que a tese da predestinação foi adotada de forma radical pelos protestantes, principalmente os calvinistas, a partir do princípio de que Deus não falha, tudo está decidido por Ele. Não era essa, porém, a visão de Agostinho: a escolha de Deus não substitui a escolha humana, mas a possibilita.
Essa polêmica é o fio condutor da conversa entre os dois papas sobre a relação da Igreja com o mundo atual, entre ironias, piadas e dúvidas existenciais sobre a fé em Deus. O resultado do diálogo entre o conservador Ratzinger e o reformista Bergólio é a opção de ambos pela mudança. O primeiro era impopular, sendo até chamado de ex-nazista por sua passagem pela Juventude Hitlerista na Alemanha; o segundo, carrega a culpa de ter conciliado com a ditadura da Argentina, quando fora o chefe dos jesuítas, o que acarretou a prisão de alguns religiosos aos quais havia proibido de ministrar o sacramento, por fazerem oposição ao regime, o que serviu de justificativa para que fossem presos.
Embora Deus seja onisciente, para os teólogos, se Deus soubesse o que acontecerá, o futuro seria uma verdade absoluta e não existiria liberdade de escolha. Nesse caso, a própria bondade de Deus estaria comprometida e não teria sentido a vinda de Jesus para a Terra, tão celebrada pelo cristianismo nas noites de Natal. Entretanto, como o futuro ainda não aconteceu, ele não existe. Por isso, para o cristianismo, é possível influenciá-lo com rezas e ações no presente. O futuro é aberto às mudanças. Em tempos de terraplanistas e fundamentalistas, esse é o recado do filme para católicos e não-católicos. Feliz ano-novo.
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Luiz Carlos Azedo: A coerência de Bolsonaro
“O bolsonarismo tem certos antecedentes históricos, mas é um fenômeno único, que não seria possível sem a quebra de paradigmas da política, a crise ética e a emergência das redes sociais”
Ninguém tem o direito de dizer que se enganou com o presidente Jair Bolsonaro. A característica mais marcante de seu primeiro ano de mandato é a coerência com o discurso de campanha. Esse entendimento vale para seus apoiadores e para a oposição. Pela primeira vez, temos um governo assumidamente de direita, que tirou do armário uma parcela do eleitorado que andava enrustida e desorganizada, mas que agora se articula nacionalmente, em torno do clã Bolsonaro, e está constituindo um novo partido, a Aliança pelo Brasil, que já conta com 100 mil filiados.
Uma direita orgânica, de caráter nacional, sem vergonha de mostrar a própria cara, é um fenômeno raro no Brasil. Temos a Ação Integralista Brasileira, de Plínio Salgado, na década de 1930, liquidada por Getúlio Vargas, no Estado Novo, após uma tentativa frustrada de tomada do poder, em 1938. A antiga UDN era mais heterogênea, surgiu como uma frente democrática, em São Paulo, inclusive com a participação dos comunistas, antes de se transformar no partido conservador e golpista que marcou a Segunda República. A vertente da UDN mais próxima do bolsonarismo foi o lacerdismo, no Rio de Janeiro, um movimento da classe média carioca liderado pelo então governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda. Na transição à democracia, o que mais poderia se aproximar do bolsonarismo é o malufismo, um fenômeno paulista, em decorrência da penetração popular do ex-governador Paulo Maluf, que nunca teve um caráter orgânico nem nacional.
Podemos concluir que o bolsonarismo tem certos antecedentes históricos, mas é um fenômeno único, que não seria possível sem a quebra de paradigmas da política, a crise ética e a emergência das redes sociais. Sem isso, não seria possível a Jair Bolsonaro ter feito com êxito um movimento contrário ao de seus antecessores, que buscaram apoio político entre as forças do centro, como Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, pela via dos governos de coalizão. Bolsonaro desprezou as alianças partidárias, prestigiou apenas os setores do Congresso que o apoiaram nas eleições, como evangélicos, ruralistas e a “bancada da bala”. Desprezou até mesmo o partido pelo qual se elegeu, o PSL, que contava com a segunda maior bancada na Câmara, com 41 deputados, muitos dos quais policiais e militares.
A criação da Aliança pelo Brasil é uma jogada que não deve ser subestimada, pois visa à criação de um partido de massas, de caráter nacional, com uma doutrina reacionária e ligações internacionais. De certa forma, essa foi a decisão mais audaciosa que Bolsonaro tomou no plano estritamente político, nesse primeiro ano de mandato. É uma aposta estratégica para a sua própria reeleição. Sua base social é formada pelos segmentos que o apoiam incondicionalmente, como militares, policiais, caminhoneiros, garimpeiros, evangélicos pentecostais, ruralistas e milicianos. Não formam a maioria do eleitorado, mas têm grande capacidade de mobilização e identidade programática com a nova legenda.
Lava-Jato
É para esses segmentos que a ala ideológica do governo trabalha, mas é um erro supor que somente esses setores estão sendo atendidos pelo governo. O meio empresarial aposta no sucesso de Bolsonaro, por causa da política ultraliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes; e também setores de classe média, insatisfeita com a violência urbana e a crise ética na política. São setores que não têm a mesma afinidade ideológica com Bolsonaro, mas foram decisivos para sua eleição por causa do seu antipetismo. É com essas forças que Bolsonaro conta para neutralizar a oposição no Congresso e na opinião pública. Graças a isso, vem mantendo a avaliação de seu governo na faixa dos 30% de bom e ótimo, 32% de regular e 36% de ruim e péssimo. Se o governo não descarrilar, isso significa presença garantida no segundo turno das eleições.
Quanto a isso, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, passou a ser uma peça-chave no jogo político, pois encarna a bandeira da ética no governo, mas goza de mais prestígio popular do que Bolsonaro e com ele vem tendo uma relação cada vez mais conflituosa. A questão que mais tensiona a relação entre ambos é o caso Fabrício Queiroz, uma investigação que envolve o senador Flávio Bolsonaro (RJ), filho do presidente da República, de quem era assessor parlamentar. No momento, o maior estresse entre ambos ocorre porque Bolsonaro não vetou a criação pelo Congresso do chamado “juiz de garantia”, que Moro critica, porque, no seu entendimento, favoreceria a impunidade para os crimes de colarinho branco. Defendida por advogados e a maioria dos políticos, a medida é polêmica e enfrenta forte oposição de procuradores e juízes de primeira instância, com o agravante de que teria havido um acordo com o governo no Senado para que a proposta fosse vetada, em troca da aprovação ainda neste ano do pacote anticrime negociado na Câmara.
O assunto esquentou no final do ano porque dois partidos, Podemos e Cidadania, questionam a constitucionalidade da nova lei no Supremo Tribunal Federal (STF), que também está sendo muito pressionado pela opinião pública. A mesma pesquisa Datafolha divulgada ontem mostra que 39% dos consultados avaliam a atuação do Supremo como ruim ou péssima, enquanto somente 19% dos brasileiros a consideram ótima ou boa. Para 38%, o trabalho da Corte é regular; outros 4% disseram não saber avaliar.Também há insatisfação com o Congresso, que tem 14% de bom/ótimo, 38% de regular e 45% de ruim/péssimo.
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Luiz Carlos Azedo: O tombo
“A nota do Palácio do Planalto é lacônica demais, diante dos comentários do próprio presidente Bolsonaro sobre a queda que sofreu no banheiro do Palácio do Planalto”
Durante cinco anos, o presidente Jair Bolsonaro fez parte da principal unidade de elite do Exército Brasileiro, a Brigada de Infantaria Paraquedista, no Rio de Janeiro, na qual aprendeu a saltar nas mais diversas condições adversas. Quem tem medo de altura ou falta de preparo físico nem se candidata à PQD, um corpo de voluntários. A passagem pela tropa marcou profundamente o comportamento do presidente da República — “quero a insegurança e a inquietação, quero a luta e a tormenta”, diz a canção dos paraquedistas —, mas nem por isso Bolsonaro ficou livre do mais comum e letal acidente doméstico: cair no banheiro.
A queda que sofreu às vésperas do Natal, na banheira do Palácio da Alvorada, engrossou as estatísticas de acidentes domésticos com registro hospitalar. Bolsonaro chegou a ser internado no Hospital das Forças Armadas, onde fez exames e passou a noite em observação (“Eu perdi a memória parcial, hoje de manhã, eu comecei a recuperar muita coisa e agora estou bem. Eu não sabia, por exemplo, o que tinha feito no dia de ontem. Caí de costas, escorreguei para frente e caí de costas”, disse o presidente, em entrevista na TV Band, depois de receber alta). O exame de tomografia computadorizada do crânio, porém, não detectou alterações, afirmam os médicos.
Segundo estudos, as quedas são a terceira principal causa de mortes por causas externas — a primeira são os acidentes de trânsito (23%); a segunda, os homicídios (18,9%). Em 2010, eram 2.520 mortes (10%). Em 2016, esses números saltaram para 3.361 óbitos, taxa de 15% dos casos. A maioria envolve idosos com mais de 65 anos. Das 3.361 mortes, mais da metade (1.809) foram relacionadas a pessoas com mais de 75 anos. No Brasil, 30% dos idosos caem ao menos uma vez ao ano. A falta de prevenção está entre os principais fatores que fazem com que as quedas sejam tão frequentes. Os idosos representam 25% dos casos de internação devido a quedas; desses 25%, 63% foram a óbito.
O acidente com Bolsonaro mexeu comigo na véspera do Natal. No sábado de carnaval passado, perdi um grande amigo, o arquiteto Bruno Fernandes, mais jovem do que eu, em decorrência das sequelas de um traumatismo craniano provocado por um acidente doméstico: escorregou na escada que leva à piscina de sua casa, na Ladeira do Sacopã, e bateu a cabeça num dos degraus, entrando em coma. Operado, passou por longa internação e, já em casa, quando se recuperava, teve uma morte súbita.
Outro grande amigo, o advogado e ex-deputado Marcelo Cerqueira, há alguns anos, ficou tetraplégico em decorrência de um acidente ainda mais banal: levantou à noite para ir ao banheiro, no escuro, e bateu com a cabeça na porta do quarto entreaberta antes de alcançar o interruptor da luz. Ao cair, fraturou a coluna cervical. Havia estado com ele no ano-novo, no apartamento na Avenida Atlântica, onde ainda recepciona os amigos para ver os fogos de artifício de Copacabana; uma hora após a virada, ele havia saído para nadar “100 braçadas mar adentro”, o que fazia todas as manhãs.
Segurança
Quedas ocorrem em decorrência de doenças, hábitos, condição física, dieta e fatores extrínsecos, como condição de vias públicas, decoração dos ambientes e pisos domésticos. Muitas vezes, a queda é causada por AVC, hipotensão, anemia, polipatologias, alteração na visão e/ou no equilíbrio, uso excessivo ou equivocado de medicamentos e, principalmente, perda de força muscular (especialmente nas pernas) e falta de elasticidade e resistência. Às vezes, coincidem com os riscos do local: pisos escorregadios, calçamento irregular, escadas, tapetes, excesso de móveis nos ambientes ou uma banheira das antigas, como a do Palácio da Alvorada. Até mesmo um sapato velho ou tênis molhado podem provocar uma queda.
Bolsonaro já é um sobrevivente da facada que levou durante a campanha e das cirurgias às quais foi submetido em decorrência das sequelas do atentado. Um colega repórter fotográfico registra quase religiosamente todas as solenidades oficiais do Palácio do Planalto. É um especialista nos detalhes que fazem a diferença entre uma foto de capa de revista e uma imagem trivial. Coleciona fotos de autoridades em situações, digamos, desconfortáveis. Em algumas, Bolsonaro aparenta cansaço, mal-estar ou mesmo dor.
Ao contrário do presidente Tancredo Neves, que morreu sem tomar posse, e outros políticos que escondiam as doenças, Bolsonaro não foge dos seus médicos. A nota oficial do Palácio do Planalto, porém, é lacônica demais, diante dos comentários feitos pelo próprio presidente da República sobre a queda que sofreu. A causa do tombo pode ter sido mesmo um simples escorregão, mas Bolsonaro não é mais um capitão paraquedista. Precisa de um banheiro mais seguro. A Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa, do Ministério da Saúde, lista medidas de prevenção: claridade, tapete antiderrapante, barras de apoio, campainha e nunca trancar a porta.
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Luiz Carlos Azedo: Que partido é esse?
“O xis da questão do novo partido que será criado hoje pelo presidente Jair Bolsonaro é o seu ideário programático, ou seja, seu real compromisso com a ordem democrática”
Com 30 deputados, liderados por Eduardo Bolsonaro (SP), e um senador, Flávio Bolsonaro (RJ), o presidente Jair Bolsonaro deve fundar hoje, em convenção nacional, a Aliança pelo Brasil, seu novo partido, consolidando o rompimento com o PSL, de Luciano Bivar (PE). A criação da nova legenda está na contramão da legislação partidária vigente, que força a redução do número de partidos, por meio da cláusula de barreira, e do fim das coligações nas eleições proporcionais. O desafio da criação do novo partido não é a arregimentar quase 500 mil filiados em todo país, mas a transferência dos parlamentares do PSL para a nova legenda, anunciada ontem pelo líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (GO), sem perda de mandato, e também a obtenção de recursos do fundo partidário.
Bolsonaro não terá dificuldade para estruturar o partido nos estados e municípios, porque conta com apoio de grupos organizados nas redes sociais com grande poder de mobilização: evangélicos, caminhoneiros, garimpeiros, milicianos, agentes de segurança, militares reformados, etc. Tem a seu favor uma base eleitoral ainda muito robusta, apesar da relativa perda de popularidade, por causa do natural desgaste nos primeiros 10 meses de governo. Ou seja, conta com militantes e lastro eleitoral para viabilizar seu projeto. Ideologicamente, o perfil do partido também está resolvido: será uma organização política de direita, com viés reacionário, que mistura religião com política, ideias conservadoras e nacionalistas, de combate aberto à esquerda e aos movimentos identitários.
Sem dúvida, trata-se de uma nova direita. A narrativa política do novo partido, porém, lembra a radicalização política que antecedeu a II Guerra Mundial aqui no Brasil. Naquela época, na Europa, a carnificina havida na I Guerra Mundial (1914-1918) e a Grande Depressão de 1929 serviram de caldo de cultura para o surgimento de partidos de massas de direita, principalmente o fascista, na Itália, e o nazista, na Alemanha, que se opuseram aos social-democratas, socialistas e comunistas. No Brasil, essa polarização foi representada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), encabeçada pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes, e pela Ação Integralista Brasileira (AIB), de Plínio Salgado. Essa radicalização resultou na chamada Intentona Comunista, de 1935, após a dissolução da ANL por Getúlio Vargas, e no Levante Integralista de 1938, após a instauração do Estado Novo, contra o qual os integralistas se insurgiram, atacando o Palácio Guanabara, por causa da dissolução da AIB. Em ambos os casos, houve mortos, feridos e milhares de ativistas presos.
Compromissos
O xis da questão do novo partido, encabeçado pelo presidente, é o seu ideário programático. Qual será o seu real compromisso com a ordem democrática e suas instituições, com os direitos e garantias individuais, a alternância de poder e o direito ao dissenso, principalmente das minorias? Diante de reiteradas declarações de Jair Bolsonaro e seus aliados mais próximos em defesa do regime militar, esse questionamento faz todo sentido. Outra questão importante diz respeito à forma de atuação do novo partido, notoriamente contrário aos movimentos sociais e organizações da sociedade civil que defendem os direitos humanos, o meio ambiente e as opções de gênero. Quais serão seus métodos de luta política? Serão o debate, o diálogo e a persuasão?
Do ponto de vista eleitoral, o grande desafio do novo partido será se viabilizar, nas eleições municipais do próximo ano, para as quais os seus concorrentes, inclusive o PSL, já armam suas candidaturas, com recursos dos fundos partidário e eleitoral. Mesmo contando com o enorme poder da máquina federal, cuja atração política dispensa comentários, e com o prestígio eleitoral do presidente da República, o novo partido precisará financiar sua campanha eleitoral, o que depende de interpretação da legislação vigente, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os parlamentares que migrarem para a nova legenda carregarão consigo os recursos dos fundos partidário e eleitoral? De certa forma, o futuro da nova legenda dependerá dessa resposta. Além disso, ainda que a aba do chapéu de Bolsonaro seja larga como a dos caubóis, eleições municipais costumam ser “fulanizadas” e pautadas pelos interesses locais.
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Luiz Carlos Azedo: Supremo no pelourinho
“No confronto inédito entre o Supremo e o Ministério Público, Toffoli era o homem mau e Aras, o mocinho. Todo apoio à Lava-Jato é uma ideia-força na sociedade, com viés jacobino”
O choque entre o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, incendiou a conjuntura política, às vésperas do julgamento da polêmica liminar a favor do senador Fávio Bolsonaro (RJ), que sustou também cerca de 935 investigações policiais com base em dados do Coaf, obtidos sem autorização jundicial, entre as quais a do famoso caso Queiroz, que investiga ligações do filho do presidente Jair Bolsonaro com as milícias do Rio de Janeiro. Toffoli foi para o pelourinho das redes sociais, sendo duramente questionado por uma decisão que muitos consideram um “abuso de poder” e que será examinada amanhã pelo plenário do Supremo. Na noite de ontem , Toffoli recuou e suspendeu a decisão que lhe dava acesso a informações financeiras de 600 mil pessoas.
Em 25 de outubro, ele pediu a Receita Federal cópia de todos os Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) elaborados nos últimos três anos pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF), antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). No entanto, no dia 15 deste mês ele recebeu uma chave de acesso para consultar 19 mil RIFs. O magistrado entendeu que os dados repassados são suficientes e não exigem análise do montante global de relatórios. Antes de anunciar a nova decisão, Toffoli se reuniu no STF com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o ministro-chefe da Advocacia-Geral da União, André Mendonça.
Ao confrontar Dias Toffoli, num movimento que consolida sua liderança interna no Ministério Público Federal (MPF), Aras ofusca a força-tarefa da Lava-Jato, mas gera mais tensão política no país. Escolhido por um “dedazo” do presidente Jair Bolsonaro, o procurador-geral não fazia parte da lista tríplice indicada pela corporação, após eleiçao interna. Sua nomeação foi muito contestada internamente, porém, teve amplo respaldo político no Congresso. Agora, o novo procurador-geral atua como quem quer demonstrar que não está à sombra de ninguém. De certa forma, ao se insurgir contra Toffoli, defende a revogação da decisão que blindou o filho do presidente da República. É um jogo pesado, que mobiliza a opinião pública, formadores de opinião e movimentos cívicos contra o presidente do Supremo, mas expõe também o flanco do clã Bolsonaro.
A decisão de Toffoli contrária ao pedido de Aras para que reconsiderasse a liminar, na sexta-feira passada, lançou luz sobre um assunto delicado para a força-tarefa da Lava-Jato, embora o ônus da questão esteja no colo do Supremo. O presidente da Corte pediu informaçoes sobre todos os agentes cadastrados na Receita Federal para obter os relatórios de operações atípicas, suas instituiçoes de origem e as pessoas investigadas; também solicitou ao Ministério Público Federal que informasse, voluntariamente, quais os procuradores autorizados a requerer informações, os requerimentos feitos e as pessoas sob investigação sem autorização judicial. Ou seja, Toffoli quer cruzar esses dados e abrir uma caixa-preta dentro de outra-caixa preta. Virou um Deus nos acuda.
Guilhotina
Esse foi um confronto inédito entre o Supremo e o Ministério Público, no qual Toffoli aparecia como homem mau e Aras, como o mocinho. Todo apoio à Lava-Jato é uma ideia-força na sociedade, com viés jacobino, ou seja, que deseja as cabeças dos ministros do Supremo Tribunal Federal que querem enquadrar a força-tarefa de Curitiba, principalmente o presidente da Corte e os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os três perderam a guerra de versões com o ministro da Justiça, Sérgio Moro, e os procuradores da República. Inclusive quanto à investigaçao em curso no Supremo sobre a suposta quebra de sigilo de ministros da Corte pela força-tarefa da Lava-Jato. Comandada pelo ministro Alexandre de Moraes, que está no olho do furacão, essa investigação é tão polêmica quanto a decisão de Toffoli, pois o Ministério Público Federal alega que essa competência é dos procuradores da República e dos delegados da Polícia Federal, e não dos ministros do Supremo.
Ontem, o Ministério Público Federal informou que 935 apurações estão paradas desde julho, quando Toffoli emitiu sua liminar, à espera de decisão do Supremo sobre o compartilhamento de dados entre órgãos de inteligência. O plenário deve decidir se o compartilhamento pode ser global (dados genéricos) ou detalhado (dados completos). São investigações sobre crimes contra a ordem tributária (446), lavagem de dinheiro (193), crimes contra o sistema financeiro (97) e sonegação de contribuição previdenciária (54). Há duas discussões sobre o assunto, ambas doutrinárias, ou seja, o direito constitucional de cada cidadão ter sua privacidade fiscal respeitada; e as competências de cada órgão no âmbito das investigações criminais.
Em tese, uma queda de braços entre o Supremo e o Ministério Público sobre as respectivas competências é uma não conformidade, pois o papel de poder moderador é do Supremo, a quem cabe dirimir dívidas sobre matéria constitucional. Quando o Ministério Público cresce dessa forma contra a Corte, esse poder moderador entra em xeque, o que não é nada bom para a democracia. Outra dimensão é o que está ocorrendo no Congresso, quando se discute o impeachment de ministros do Supremo e a CPI da Lava-Toga. Em teoria, a cúpula do Congresso está alinhada com o Supremo, mas política é como uma nuvem.
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Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o novo sebastianismo
“À crise de representação dos partidos soma-se a crise ética que desgastou os poderes da República e, por muito pouco, não implodiu os grandes partidos”
Quando do bloqueio continental de Napoleão à Inglaterra, justificativa para a invasão de Portugal pelas tropas do general Junot, os sebastianistas exultaram, por causa das profecias de Gonçalo Annes Bandarra, sapateiro e poeta de Trancoso, estudioso do Antigo Testamento, cujas trovas alimentaram o imaginário lusitano com o mito da volta do rei-menino, Dom Sebastião (Lisboa, 20 de janeiro de 1554 — Alcácer-Quibir, 4 de agosto de 1578), que desaparecera ao liderar uma cruzada no Marrocos.
Apesar das censuras e proibições da Inquisição, as trovas do Bandarra continuaram circulando por séculos, sob todos os pretextos, até mesmo a invasão napoleônica. Nascido na Córsega, Napoleão seria descendente do rei Sebastião e fora saudado pelos sebastianistas como o futuro chefe do Quinto Império, que faria sair do porto de Lisboa uma frota em direção à Ásia, para conquistá-la e convertê-la ao catolicismo. Novas impressões das trovas foram feitas em 1810, 1815, 1822, 1823, 1852, influenciando o pensamento sebastianista e messiânico de D. João de Castro, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, entre outros.
Portanto, não foi à toa que o sebastianismo ressurgiu no Brasil não somente nas manifestações folclóricas, como reizados e folias de rei, mas também em episódios como o de Canudos, no sertão da Bahia, que marcou profundamente a história política e militar da República Velha. Com alma lusitana, nosso populismo tem essa característica sebastianista, ou seja, gravita muito mais em torno da ideia de um salvador da pátria, um líder carismático, do que do nacionalismo econômico, do clientelismo e da conciliação de classes.
O período que vai da redemocratização, em 1945, ao golpe que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, para alguns, foi marcado por governos populistas, mas isso é ignorar as grandes diferenças entre os governos Dutra, Vargas, Juscelino, Jânio e Goulart. Essa tese ignora as singularidades do pensamento político brasileiro e promove rupturas com o passado cujos resultados práticos foram dois impeachments: o de Collor de Mello e o de Dilma Rousseff. A fronteira entre a manipulação das massas e o real atendimento das demandas sociais é mais sinuosa do que o esquematismo teórico imagina. Havia um sistema partidário robusto até 1964, que era o verdadeiro alicerce da democracia brasileira, mas a tentativa disruptiva de supostamente superar a “política de conciliação” à esquerda resultou numa ruptura à direita.
Desde a Constituinte de 1988, a composição de um sistema robusto de representação esbarra na fragmentação exagerada dos partidos, que não pode ser atribuída apenas às lideranças políticas. Talvez a maior responsabilidade seja do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia proibido a adoção de cláusulas de barreira para representação no Congresso, em julgamento ocorrido em 2006, quando a regra passaria a vigorar. Resultado: no final de 2015, o Brasil contava com 35 partidos, oito deles fundados a partir de 2011, três novos partidos somente em 2015.
Eleições
Em 2017, novas propostas de reforma política foram apresentadas: o fim das coligações em eleições proporcionais (deputados e vereadores), uma cláusula de barreira e a criação de um fundo eleitoral. No ano passado, a cláusula de barreira atingiu 14 dos 35 partidos então existentes: PCdoB (elegeu nove deputados), PHS (elegeu seis), Patriota (elegeu cinco), PRP (elegeu quatro), PMN (elegeu três), PTC (elegeu dois), DC, PPL e Rede (elegeram um, cada), PMB, PSTU, PRTB, PCB e PCO. Presume-se que em 2022 haverá drástica redução do número de partidos, o que forçará um reagrupamento partidário após as eleições municipais.
À crise de representação dos partidos, provocada, entre outras coisas, pela emergência das redes sociais, soma-se a crise ética que desgastou os poderes da República e, por muito pouco, não implodiu os grandes partidos. Entretanto, esse cenário catapultou Jair Bolsonaro à Presidência da República, por um pequeno partido, o PSL, que elegeu 51 deputados e cinco senadores. Esse resultado da eleição, porém, não resolveu a crise de representação dos partidos, cujo epicentro hoje é a saída do presidente Bolsonaro do PSL, depois de uma disputa pelo controle da legenda e dos recursos do seu fundo partidário com o deputado Luciano Bivar (PE), que comanda o partido com mão de ferro.
Bolsonaro tem todas as condições de construir seu próprio partido. Além do carisma, tem uma narrativa política conservadora, um programa econômico ultraliberal, o governo nas mãos, uma militância política agressiva e articulada em rede e, sobretudo, uma base eleitoral sebastianista, que acredita em milagres e num salvador da pátria. Entretanto, tem pela frente eleições municipais que funcionam como centrífuga do espectro partidário. Por isso, para construir um partido nacional que atenda os seus objetivos, precisa lançar candidatos a prefeito e organizar chapas proporcionais em milhares de municípios, inclusive porque o sebastianismo não é monopólio de ninguém, há outros candidatos a salvador da pátria.
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Luiz Carlos Azedo: O otimismo do mercado e o mal-estar da sociedade
“Apostar no ‘quantos pior, melhor’ na economia nem sempre é uma boa estratégia. Quando as coisas começam a dar certo, leva a oposição ao descrédito, como no Plano Real”
A conclusão da reforma da Previdência, aprovada ontem pelo Senado, desde o começo da semana exerce no mercado um efeito catalisador, confirmando o otimismo de seus principais analistas em relação ao impacto fiscal positivo da economia de mais de 800 bilhões de reais para o Tesouro, em 10 anos, com os ajustes feitos nas aposentadorias dos servidores federais e dos trabalhadores do setor privado. O impacto social são outros quinhentos, que só o tempo revelará, mas não é essa a principal causa do mal-estar na sociedade, se o fosse, provavelmente, a votação de ontem ocorreria em meio a grandes manifestações de protestos, com vidraças quebradas e muito gás lacrimogêneo nas principais cidades do país. Vamos por partes.
Para a maioria dos economistas, a reforma da Previdência, o teto de gastos e a reforma trabalhista, as duas últimas uma herança do governo Michel Temer, estabeleceram fundamentos para que o gasto público fosse controlado, a inflação se mantivesse abaixo da meta e, consequentemente, a taxa de juros em declínio. Mas a recuperação da economia continua lenta. Os mais otimistas, como o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, em artigo publicado na segunda-feira, no Valor Econômico, intitulado La Nave Va, porém, já falam em outra dinâmica da economia, uma “recuperação cíclica”. Segundo ele, a reforma da Previdência evitou uma catástrofe fiscal.
Mendonça de Barros questiona o pessimismo dos que valorizam o peso negativo da estrutura de despesas criadas pela Constituição de 1988 e por leis ordinárias subsequentes, principalmente na educação e na saúde, por exemplo, e pelas respectivas transferências compulsórias para estados e municípios. Também relativiza os problemas do desemprego, da informalidade e da capacidade ociosa da indústria. Segundo ele, são problemas reais e limitadores da força da recuperação cíclica, porém, são compensados pela nova legislação trabalhista, pela autonomia da política monetária e por uma gestão orçamentária competente. O desempenho do agronegócio e a lenta, mas consistente, recuperação do mercado de trabalho seriam indicadores de um novo ciclo de expansão da economia.
A “malaise”
O mal-estar da sociedade está diretamente associado às desigualdades, à violência e às injustiças. O sucesso de filmes como Coringa e Bacurau, para citar um blockbuster hollywoodiano e uma produção nacional que também glamoriza a violência, são indicadores de que algo de errado se passa. As notícias que chegam do México, do Equador, da Espanha, do Líbano e, principalmente, do Chile, para citar os que estão em mais evidência, corroboram a tese de que o problema não é isolado, embora se manifeste de forma diferenciada em cada país.
Do ponto de vista econômico, por exemplo, os indicadores brasileiros são piores do que os chilenos. Salário mínimo: R$ 1.700 (Chile) / R$ 998 (Brasil); Renda média anual: US$ 25,2 mil (Chile) / US$ 15,7 mil (Brasil); Desemprego: 7,3% (Chile) / 12,2% (Brasil); Inflação: 2,4% (Chile) / 2,9% (Brasil); Expectativa de alta do PIB neste ano: 2,9% (Chile) / menos de 1% (Brasil). De certa forma, convém ponderar, o que está havendo no Chile ocorreu no Brasil em 2013, com o mesmo estopim: o aumento do preço das passagens. A diferença é que havia um governo de esquerda, que não recorreu às forças armadas, enquanto no Chile, o presidente Sebástian Piñera, de direita, não hesitou em recorrer ao Exército para reprimir os protestos, o que já provocou a morte de 15 pessoas.
Além disso, o Brasil vem de eleições muito recentes, o que dá ao presidente Jair Bolsonaro e sua equipe econômica mais tempo para reverter a situação que herdou na economia, mesmo que seu prestígio popular tenha caído. Tanto que a aprovação da reforma da Previdência mostra reduzida capacidade de mobilização por parte dos sindicatos de trabalhadores, ainda que enfraquecidos com o fim do imposto sindical e pela desmotivação causada pelo fantasma do desemprego.
O crédito de que dispõe Bolsonaro falta ao Congresso, que corre atrás do prejuízo blindando a política econômica do governo. No fundo, a “malaise” na sociedade tem muito mais a ver com a ética na política do que com a situação econômica. E é ainda mais fomentada pela radicalização política e por certas agressões ao bom senso por parte do governo. Entretanto, apostar no “quantos pior, melhor” na economia nem sempre é uma boa estratégia. Quando as coisas começam a dar certo, leva a oposição ao descrédito. Foi o que aconteceu durante o “milagre econômico”, no regime militar, e com o Plano Real, no governo Itamar Franco, com o qual o Fernando Henrique Cardoso se elegeu presidente da República por duas vezes.
Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra
“O PSL é belicoso e midiático, na primeira crise interna, o que se vê são gravações feitas sem autorização, ameaças de denúncias e muito bate-boca entre seus deputados nas redes sociais”
Usada à farta no Brasil para caracterizar uma atitude fadada ao fracasso, não existe uma explicação para a existência da expressão “Foi assim que Napoleão perdeu a guerra”, sobre a qual não há referências em alemão, francês, russo ou inglês. Alguns atribuem a expressão aos portugueses, uma espécie de vingança sarcástica devido à invasão de Portugal pelo exército francês e a consequente fuga de D. João VI e sua corte para o Brasil, em 1808.
As especulações vão da desastrosa retirada de Napoleão da Rússia, em 1812, depois da ocupação de Moscou, pois a cidade fora evacuada e, depois, incendiada (o exército russo evitou o confronto aberto e perseguiu as tropas francesas em pleno inverno, até Paris) a uma suposta crise de hemorroidas que o impedira de montar durante a Batalha de Waterloo, em 1815, quando foi definitivamente derrotado pelos ingleses.
O chiste lusitano é sob medida para a crise do PSL, cujo último lance foi a renúncia do líder da bancada na Câmara, deputado Delegado Waldir (GO), e sua substituição pelo deputado Eduardo Bolsonaro (SP), filho do presidente da República. Jair Bolsonaro se encontra no Japão, primeira etapa de sua viagem à Ásia, mas de lá monitora a operação que levou seu filho à liderança do PSL.
Apesar de ter a maior bancada governista da Câmara, com 53 deputados, o PSL nunca foi o partido hegemônico na Casa, embora seja muito estridente na tribuna e nos apartes, além de agitar as redes sociais. Agora, com essa divisão, corre o risco de ser tornar irrelevante, a não ser que haja um acordo interno que apazígue a disputa. Falta à bancada do PSL cultura parlamentar para o entendimento e a composição, num ambiente com ritos de convivência consolidados.
O modus operandi do partido é belicoso e midiático. Na primeira crise interna, o que se vê são a divulgação de gravações feitas sem autorização, ameaças de denúncias sobre os podres partidários e muito bate-boca pelas redes sociais, às vezes em linguagem completamente estranha à vida parlamentar, como a guerra de emojis entre a ex-líder do governo no Congresso Joice Hasselmann (PSL-SP) e o vereador carioca Carlos Bolsonaro (PSL), filho do presidente da República, que nem da bancada é.
Decantação
A reviravolta de ontem, quando Eduardo Bolsonaro conseguiu finalmente o número de indicações para se tornar o líder, não encerra a crise, apenas restabelece a lei da gravidade, pois seria um aborto da natureza o presidente da República ser derrotado na sua própria bancada, como aconteceu na sexta-feira. Entretanto, é um jogo de perde-perde: se 29 deputados apoiam o novo líder e 24 são contra ele, em certas circunstâncias, isso reduz o peso da bancada a cinco deputados, principalmente em questões interpares. Vamos supor, por exemplo, que a eleição para a presidência da Câmara fosse hoje.
A confusão na bancada do PSL faz parte de um processo de decantação, após o tsunami eleitoral que renovou a Câmara. Começa a separar os parlamentares eleitos para brilhar e que se destacam entre as principais lideranças daqueles que vão permanecer no baixo clero. Alguns serão deputados de um só mandato.
A aposta do clã Bolsonaro é que os adversários internos não sobreviverão sem o apoio do presidente da República, porque chegaram ao Congresso na aba do seu chapéu. Além disso, ficarão a pão e água, conforme a narrativa usada para pressionar os rebeldes a apoiarem o novo líder. Tem lógica, mas muita água ainda vai rolar sob a ponte.
O primeiro ato de Eduardo Bolsonaro foi destituir os 12 vice-líderes da legenda, cargos importantes no funcionamento da Câmara, porque seus ocupantes substituem o líder nas comissões e no plenário, além de terem direito à partilha dos cargos da liderança. O líder é poderoso quanto ao funcionamento da Casa, pois indica os integrantes das comissões e relatores, comanda as negociações e intermedeia a ocupação de espaços e liberação de recursos nos ministérios.
Para o presidente Bolsonaro, controlar a liderança é uma forma de confrontar o poder da cúpula do partido, principalmente do presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), com quem entrou em rota de colisão por causa dos recursos dos fundos partidário e eleitoral, que somam mais de R$ 200 milhões. O papel de líder, principalmente nos grandes partidos, exige capacidade de diálogo e negociação. Esse não é o forte de Eduardo Bolsonaro, cujo perfil é mais agressivo. Pode ser que a estratégia de Bolsonaro pai seja mesmo essa, porque a agenda econômica do governo vai bem sem o PSL. O grande negociador das reformas é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O papel do filho seria fazer um contraponto e demarcar território.
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