Memória
Luiz Carlos Azedo: Mais mulheres e negros no pleito
A maior distribuição de recursos do fundo eleitoral para as mulheres e os negros deve aumentar a participação feminina nos espaços de poder e combater o “racismo estrutural”
Não existe tradição política mais forte no Brasil do que as eleições de vereadores. Elas antecederam tudo o que existe institucionalizado em nosso país, a partir da formação da primeira Câmara Municipal, em 1532, na Vi-
la de São Vicente. Vêm de uma tradição medieval portuguesa, que foi fundamental para a consolidação de seu império colo- nial, da conquista de Ceuta (1415) à devolução de Macau à China (1999), ao lado das beneficências e santas casas. No caso de São Vicente, foi a alternativa encontrada por Martim Afonso para sedimentar a presença portuguesa, depois do fracasso de suas expedições à bacia do Prata por terra, na qual desapareceram 70 homens, e por mar. Ele próprio naufragou num baixio, frustrando o objetivo de subir o Rio Paraná e penetrar no continente, como o rei Dom João III ordenara.
Depois que Martim Afonso voltou a Portugal,a vila de São Vicente ficou completamente abandonada por duas décadas. Era um povoado formado por náufragos, degradados e marinheiros, o isolamento fez com que seus moradores adotassem os costumes indígenas e a língua franca tupi-guarani, sem a qual seria impossível o escambo serra acima, em conexão com os caciques Tibiriça, Caiubi e Piquerobi, todos tupi, e os náufragos João Ramalho e Antônio Rodrigues, que comandavam um exército de 20 mil homens pelo sertão adentro, a partir da localidade de Piratininga, às margens do rio Anhembi (Tietê). Tibiriça e os genros transfeririam-se para o campo de São Bento, onde se instalou o Colégio São Paulo, catequizados pelo jesuíta Manoel da Nóbrega, para fundar a maior cidade do país, São Paulo.
Conta-nos Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), que um único ritual das Ordenações do Reino foi preservado na vila de São Vicente: “As autoridades eleitas governaram, distribuíram títulos mal escritos pelos raríssimos alfabetizados, prenderam, multaram e julgaram. Passados os três anos dos mandatos regulares, os vereadores convocaram eleições, os eleitos tomaram posse, aqueles que deixaram o governo voltaram para a condição de simples governados, os novos governantes passaram a exercer a autoridade.” Quase todos analfabetos, genros de índios, renderam-se à autoridade dos governos dos costumes, eleita e provisória, competente na busca do consenso, com a vida doméstica organizada em torno da linhagem feminina. Eis “o milagre da multiplicação das eleições e do governo cuja autoridade derivava da escolha dos governados.”
É dessa tradição que as atuais eleições municipais herdariam o voto uninominal, que a competência de Assis Brasil canalizou para os partidos com a adoção do sistema proporcional. A propósito, há três grandes novidades nas eleições municipais deste ano: a primeira é o fim das coligações proporcionais, que obrigou os partidos a concorrerem com a chapa completa, o que aumentou muito o número de candidatos a prefeito e, principalmente, a vereador; a segunda, a destinação dos 30% dos fundos eleitorais para candidatas mulheres, o que as tornou mais competitivas e estimulou o lançamento de candidaturas majoritárias femininas; a terceira, a recente deci- são do ministro Ricardo Lewandowski, que determinou a distribuição proporcional dos recursos do fundo eleitoral entre candidatos negros e brancos, de ambos os sexos (mérito do movimento negro, da deputada Benedita da Silva, do PT-RJ, e do PSol, que recorreram à justiça).
Fusões e incorporações
A melhor distribuição de recursos do fundo eleitoral para incluir as mulheres e os negros, que já cobram maior fiscalização para evitar o/as laranjas (candidatos inscritos regularmente, mas que não fazem campanha e repassam os recursos do fundo, ilegalmente, para os caciques partidários), deve contribuir para aumentar a participação feminina nos espaços de poder e combater o “racismo estrutural”. O benefício deveria ser estendido ou pleiteado pelos candidatos indígenas, que em muitos municípios são sub-representados e sofrem grande discriminação.
Nas eleições passadas, o tsunami eleitoral que levou Jair Bolsonaro à Presidência elegeu grande número de candidatos militares, policiais e evangélicos, que reproduziram na campanha eleitoral sua narrativa contra a esquerda e disseminaram ideias conservadoras e reacionárias que pautam o atuam governo, em relação à cultura, aos costumes, à educação, ao meio ambiente e à segurança pública. Entretanto, o que pesou mesmo na eleição foi a linha divisória traçada pela Operação Lava-Jato entre a ética na política e a corrupção, o patrimonialismo e o fisiologismo, que foram associados à esquerda de um modo geral.
Muito provavelmente, essa linha divisória da ética se manterá nas eleições municipais deste ano, acrescida do desempenho dos prefeitos durante a pandemia, mas será menos ideológica e mais “fulanizada”. As pesquisas estão mostrando que a oferta de emprego está mais presente nas aspirações dos eleitores do que, por exemplo, a segurança e a educação, que compõem com a saúde, tradicionalmente, a tríade de prioridades da maioria da população. É muito provável que os candidatos majoritários, na maioria dos municípios, procurem estabelecer vínculos políticos com governadores e o presidente Bolsonaro, principalmente nas cidades onde houver segundo turno.
A tendência de fragmentação partidária nas eleições municipais, em decorrência do grande número de candidatos majoritários e proporcionais, porém, é apenas aparente, temporária. Após as eleições, haverá um processo de fusões e incorporações entre os partidos cujos resultados eleitorais revelarem pouca representatividade para ultrapassar a cláusula de barreira em 2022. Segundo estimativas do ex- deputado Saulo Queiroz, uma velha raposa política, estudioso do assunto, com as regras atuais, o espectro partidário deverá se reduzir a sete ou oito partidos. Até mesmo o PSDB, o MDB, o PSD, o PP, o DEM e o PR que, somados, elegeram 3.417 prefeitos nas eleições passadas, se nada fizerem, correm risco de desaparecer.
Luiz Carlos Azedo: Supremo cidadão
Fux criticou os grupos políticos que “não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões” e permitem a transferência de conflitos para o Poder Judiciário
O ministro Luiz Fux assumiu, ontem, a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) com um discurso emocionado, que traduziu sua trajetória de magistrado de carreira que chegou ao topo do Judiciário. Claramente, reposicionou a Corte: manterá distância regulamentar da política propriamente dita e não hesitará na defesa da ordem democrática e dos direitos dos cidadãos. Fux substituiu o ministro Dias Toffoli, cuja atuação à frente do STF foi marcada por intenso protagonismo político; vista em perspectiva, sob seu comando, a Corte atravessou um dos períodos mais turbulentos e tensos de sua história. Entretanto, Toffoli deixou ao seu sucessor um ambiente de mais respeito entre os Poderes, que andaram à beira de uma ruptura institucional, principalmente em razão dos ataques do presidente Jair Bolsonaro ao Supremo. A ministra Rosa Weber é a nova vice-presidente do STF. Coube ao novo decano da Corte, Márcio Aurélio Mello, fazer a saudação dos pares ao novo presidente do Supremo. Aproveitou para alfinetar o presidente Bolsonaro: “Vossa excelência foi eleito com 57 milhões de votos. Mas é presidente de todos os brasileiros”.
No discurso de posse, Fux chorou duas vezes. Não faltaram referências emotivas aos parentes, aos amigos artistas e aos mestres de jiu-jitsu, arte marcial da qual é faixa-preta. Arrancou aplausos dos pares, demais autoridades e convidados ao falar do pedido de seu pai, o advogado Mendel Fux, já falecido, para que não deixasse o Brasil em razão de uma excelente proposta de emprego no exterior e, assim, retribuísse a acolhida recebida pela sua família de refugiados do nazismo. Criado na Andaraí e ex-aluno do Colégio Pedro II, Fux é filho de judeus romenos. Foi enfático ao dizer que “a interpretação da Constituição deve refletir e justapor, sem paixões, os valores que formam a cultura política e a identidade do povo brasileiro. Judicatura requer a consciência de que a autoridade de nós, juízes, repousa na crença de cada cidadão brasileiro de que as decisões judiciais decorrem de um exercício imparcial e despolitizado de alteridade.”
Cinco eixos
Fux definiu os principais eixos de autuação do Supremo sob seu comando: proteção dos direitos humanos e do meio ambiente; garantia da segurança jurídica conducente à otimização do ambiente de negócios no Brasil; combate à corrupção, ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, com a consequente recuperação de ativos; incentivo ao acesso à justiça digital; e fortalecimento da vocação constitucional do Supremo Tribunal Federal. Destacou, porém, duas questões: primeiro, o combate à corrupção; segundo, o distanciamento do chamado “ativismo político” ou neoconstitucionalismo.
“Como no mito da caverna de Platão, a sociedade brasileira não aceita mais o retrocesso à escuridão e, nessa perspectiva, não admitiremos qualquer recuo no enfrentamento da criminalidade organizada, da lavagem de dinheiro e da corrupção. Aqueles que apostam na desonestidade como meio de vida não encontrarão em mim qualquer condescendência, tolerância ou mesmo uma criativa exegese do Direito”, declarou o novo presidente do STF. A assunção de Fux fortalece o ministro relator da Lava-Jato, Edson Fachin; em contrapartida, a provável ida do ministro Dias Toffoli para a 2ª Turma do Supremo, na qual tramitam os processos da Lava-Jato, mantém uma maioria “garantista”, formada ainda pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Fachin conta com o apoio da ministra Carmen Lúcia, mas não incondicional.
Por outro lado, Fux criticou os grupos políticos que “não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões” e permitem a “transferência voluntária e prematura de conflitos” para o Poder Judiciário. “A cláusula pétrea de que nenhuma lesão ou ameaça deva escapar à apreciação judicial, erigiu uma zona de conforto para os agentes políticos”, disse. “Essa prática tem exposto o Poder Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, a um protagonismo deletério, corroendo a credibilidade dos tribunais. Essa disfuncionalidade desconhece que o Supremo Tribunal Federal não detém o monopólio das respostas – nem é o legítimo oráculo – para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação”, completou.
Luiz Carlos Azedo: A carestia de volta
“Quanto tudo parecia dominado na política, o presidente Jair Bolsonaro sentiu o bafo quente do dragão da inflação, com a alta generalizada dos preços dos alimentos”
Poderia intitular a coluna com a frase famosa de James Carville, o marqueteiro do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton. Em 1991, após vencer a Guerra do Golfo e resgatar a autoestima dos americanos depois da dolorosa derrotar no Vietnã, o presidente George Bush era o favorito absoluto nas eleições de 1992, ao enfrentar o desconhecido governador de Arkansas, Bill Clinton. Carville apostou que Bush não era invencível com o país em recessão e cunhou a frase que virou case de marketing eleitoral: “É a economia, estúpido!” Deu Clinton!
Quanto tudo parecia dominado na política, o presidente Jair Bolsonaro sentiu o bafo quente do dragão da inflação, com a alta generalizada dos preços dos alimentos, atribuída aos efeitos da pandemia na economia e ao câmbio, com o dólar cotado a R$ 5,31. Sua reação foi a de quase todos os governantes que subestimam a importância do equilíbrio fiscal e acreditam que podem controlar a alta dos preços com a mão pesada do Estado. Mandou o ministro da Justiça, André Mendonça, tomar medidas contra os supermercados. Deveria ouvir mais as ponderações da equipe econômica quanto aos gastos do governo, em vez de fritar em fogo alto o ministro da Economia, Paulo Guedes, que está virando um zumbi na Esplanada dos Ministérios e, agora, quer aumentar os salários dos ministros em plena crise fiscal. R$ 39 mil, fora as mordomias, considera muito baixo.
Ontem, Guedes disse que não vai mais negociar as reformas administrativa e tributária com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), porque o eixo da negociação agora é político, se referindo ao general Luiz Ramos, ministro da Secretaria de Governo, e aos líderes do Centrão, que compõem o dispositivo parlamentar de Bolsonaro. A frase tem até certa dose de ironia, diante da notícia de que a Secretaria Nacional do Consumidor, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, notificou representantes de supermercados e produtores de alimentos para pedir explicações sobre o aumento no preço dos alimentos da cesta básica.
“O aumento de valores foi notado, especialmente, em relação ao arroz que, apesar dos positivos volumes produtivos da última safra, sofreu diminuição da oferta no contexto global, o que ocasionou elevação no preço”, diz a nota da secretária do Consumidor, Juliana Domingues. Já vimos esse filme em outros momentos da vida nacional, como no Plano Cruzado, durante o governo José Sarney. A manipulação da economia com os objetivos eleitorais sempre cobra um preço muito alto. O problema é que emitiu sinais de que a conta pode vir antes das eleições de 2022.
Para a população, porém, chegou a galope. A inflação oficial divulgada, ontem, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) foi de 0,24%, mas revela uma alta de 2,44% em 12 meses, segundo o Índice de Preços para o Consumidor Amplo (IPCA). A inflação dos alimentos, porém, foi de 8,83%. O feijão preto, que subiu 28,9%; o arroz, 19,2%; e o óleo de soja, 18,6% no período, lideram a volta da carestia. A alface subiu 18,1%; o tomate, 12,3%; o feijão carioca, 12,1%; a batata inglesa, 9,7%; os ovos, 7,1%; o frango, 6,9%; a carne de porco, 4,2%. Outros produtos subiram até mais: manga, 61,63%; cebola, 50,40%; abobrinha, 46,87%; tainha, 39,99%; limão, 36,56%; morango, 31,99%; leite longa vida, 22,9%, atingindo em cheio o bolso da classe média.
Reação
O governo tenta reagir. Ontem, zerou a cobrança de impostos para importação de arroz. O presidente da Associação Brasileira de Supermercados, João Sanzovo Neto, foi chamado para uma conversa pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. Na saída, disse que os supermercados não são os vilões da inflação da cesta básica, e que a margem de lucro das empresas é baixa por causa da grande competitividade do setor. “Nós temos todos os relatórios. Inclusive, as associações dos produtores têm informado o que oscilou de cada produto”. A previsão é de que os preços somente caiam em 2021, por causa da entressafra.
Bolsonaro acredita que pressão sobre os atacadistas e varejistas pode segurar os preços. “Tenho apelado para eles. Ninguém vai usar a caneta Bic para tabelar nada, não existe tabelamento, mas pedindo para eles que o lucro desses produtos essenciais nos supermercados seja próximo de zero. Acredito que a nova safra começa a ser colhida em dezembro, janeiro, de arroz em especial. A tendência é normalizar o preço”, avalia o presidente. Os especialistas veem de outra maneira: o dólar alto, a recuperação da economia chinesa, o auxílio emergencial e a entressafra são fatores objetivos que influenciam diretamente os preços. Mas há outros aspectos que exercem influência indireta, como as indefinições em relação às reformas tributária e administrativa, a dívida pública de 100% do PIB e o deficit fiscal de R$ 1 trilhão previsto para esse ano.
Luiz Carlos Azedo: Censura à Lava-Jato
A Lava-Jato continua sendo um vetor do processo político, com grande influência eleitoral. Porém, os integrantes da operação perderam o monopólio do combate à corrupção
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu, ontem, por 9 votos a 1, punir o procurador da República Deltan Dallagnol, um dos protagonistas da Operação Lava-Jato, censurado por mensagens em rede social nas quais ele se posicionou contra a eleição do senador Renan Calheiros (MDB-AL) para a presidência do Senado, em 2019. A vitória de Davi Alcolumbre (DEM-AP), o atual presidente do Senado, foi resultado da insatisfação dos demais partidos com a longa permanência do MDB no comando da Casa, mas a atitude ajudou a narrativa política do grupo que queria o apoio da opinião pública à mudança no comando da Casa.
A censura é a segunda punição prevista no regulamento que rege a atuação dos procuradores –– a primeira é a advertência. Como consequência, atrasa a progressão na carreira e serve de agravante em outros processos no conselho. Os procuradores também podem ser punidos com suspensão, demissão ou cassação da aposentadoria. Havia intenção de alguns integrantes do Conselho no sentido de suspender Dallagnol, mas sua saída da força-tarefa de Curitiba abrandou as pressões e consta que o novo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, que tomará posse amanhã, atuou nos bastidores em favor do procurador.
Calheiros alegou interferência do procurador-símbolo da Lava-Jato na disputa do Senado. O mesmo tipo de crítica que se faz ao ex-ministro da Justiça Sergio Moro em relação às eleições de 2018, para favorecer a candidatura de Jair Bolsonaro. A acusação ganhou veracidade quando o ex-juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, que condenou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex do Guarujá, aceitou o convite para ser ministro do atual governo, talvez o maior erro político que tenha cometido.
A propósito, a condenação de Dallagnol reforça os argumentos da defesa de Lula, que pleiteia a anulação de condenação por Moro, alegando um vício de origem: a parcialidade política do juiz, apesar de a condenação ter sido confirmada pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Por uma rede social, o procurador mostrou que não arriou a bandeira da Lava-Jato: “O Conselho Nacional do MP me censurou, hoje, por ter defendido a causa anticorrupção nas redes sociais, de modo proativo, aguerrido e apartidário. Discordo da decisão, que ainda há de ser revertida”, disse.
Tiroteio
É uma guerra de narrativas, que deve se intensificar nos próximos meses, com repercussão eleitoral. Ao mesmo tempo que vem sofrendo sucessivos reveses nos bastidores do Judiciário, integrantes da Lava-Jato contra-atacam em grande estilo. Na semana passada, procuradores da força-tarefa de São Paulo se demitiram coletivamente, mas antes alvejaram o senador José Serra (PSDB-SP) e o suposto operador de seu caixa dois de campanha, Paulo Vieira de Souza. Antes haviam detonado o ex-governador tucano Geraldo Alckmin, também denunciado.
Ontem, a bola da vez foi o ex-prefeito carioca Eduardo Paes, que lidera as pesquisas de opinião na disputa pela Prefeitura do Rio, alvo de uma operação de busca e apreensão em sua residência, em São Conrado. O mandado foi expedido pelo juiz Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 204ª Zona Eleitoral, que acolheu denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro contra Paes e mais quatro investigados, acusados de corrupção, falsidade ideológica e lavagem de dinheiro. O ex-prefeito se defende atirando: “às vésperas das eleições para a Prefeitura do Rio, Eduardo Paes está indignado que tenha sido alvo de uma ação de busca e apreensão numa tentativa clara de interferência do processo eleitoral — da mesma forma que ocorreu em 2018 nas eleições para o governo do estado”, disse. Paes é o principal adversário do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), aliado do presidente Jair Bolsonaro.
A Lava-Jato continua sendo um vetor do processo político, com grande influência eleitoral. Porém, os integrantes da operação perderam o monopólio do combate à corrupção, que cada vez mais será direcionado pelo novo procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, e a Polícia Federal. O risco de politização dessas ações para favorecer interesses do Palácio do Planalto é real, pois a lógica de quem pretende controlar essas instituições para se defender também serve para atacar os adversários. Nesse aspecto, Fux, o novo protagonista entre os Poderes da República, será o grande artífice do reposicionamento do STF, que passa por alterações na composição de suas turmas.
Com a aposentadoria do ministro Celso de Melo, a 2ª Turma do STF, que julgará o pedido de anulação do processo de Lula, formada também pelos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármem Lúcia e Édson Fachin, o relator da Lava-Jato, terá sua maioria garantista mantida pela chegada do ministro Dias Toffoli, que deixará a presidência da Corte amanhã. Com a saída de Fux, que assumirá o comando do Supremo, a 1ª. Turma, composta ainda pelos ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Luís Barroso e Alexandre de Moraes, terá seu perfil jurídico definido pelo novo ministro a ser indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, que promete escolher alguém “terrivelmente evangélico”.
Luiz Carlos Azedo: Verde, amarelo, branco, azul anil
“Crise sanitária, recessão econômica, crise fiscal, desemprego em massa e sinais da volta da inflação nos preços da cesta básica. Entretanto, Bolsonaro está cada vez mais populista”
Tivemos um inédito Dia da Independência sem desfiles militares, por causa da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro desfilou em carro aberto, cercado de crianças, no velho Rolls-Royce presidencial, comprado pelo presidente Getúlio Vargas em 1952, em si uma atração à parte. A Esquadrilha da Fumaça, como sempre, riscou o céu de Brasília. Estamos a dois anos do Bicentenário da Independência. Quem tiver mais certezas do que dúvidas sobre o futuro estará errado. São tempos de mudanças vertiginosas em meio a grandes adversidades.
Olhando para metade do caminho percorrido, a década de 1920, houve um turbilhão de coisas que deixaram de pernas para o ar a chamada República Velha. O mundo saía da maior carnificina até então ocorrida na História, a I Guerra Mundial. Pode-se dizer que tudo o que ocorreu depois, no século passado, de alguma forma, foi marcado pelo conflito. Há 110 anos, havia uma grande inquietação cultural e artística, além da radicalização ideológica na qual se confrontaram o comunismo e o fascismo, como alternativas à social-democracia e ao liberalismo, respectivamente. A II Guerra Mundial foi quase uma consequência inevitável, cujo grande ensaio no teatro europeu foi a Guerra Civil espanhola.
No Brasil, havia uma profunda crise de identidade; as instituições republicanas, que constituíam um sistema federativo e a nossa democracia representativa, eram contestadas. Dizia-se que eram estruturas artificiais, não se coadunavam com a realidade social e cultural do país. A Semana de Arte Moderna questionaria os padrões culturais tradicionais, impostos por uma elite formada por ex-senhores de escravos e seus descendentes, propunha a busca de uma identidade nacional moderna, “digerindo” as novas correntes filosóficas e artísticas europeias para produzir uma cultura nacional autêntica. O tenentismo eclodiria com o heroísmo dos 18 do Forte Copacabana, questionando o coronelismo, as fraudes eleitorais, o sistema político. Na mesma época, surgia o Partido Comunista, formado por intelectuais e operários de origem anarquista, cristãos-novos do marxismo. Eram prenúncios de uma crise que iria desaguar na Revolução de 1930 e no Estado Novo.
Muitas incertezas
Olhando para o futuro, o que nos aguarda nos próximos dois anos? É difícil a resposta, já mergulhamos num turbilhão das incertezas. Qualquer análise precisa partir da constatação de que estamos vivendo uma crise múltipla, cuja origem difere de todas as anteriores, em razão da pandemia da covid-19: contabilizamos até ontem 126 mil óbitos e 4,137 milhões de casos desde o início da pandemia, com uma taxa de 60,5 mortos por 100 mil habitantes. Estado mais rico e mais populoso, com o melhor sistema de saúde, São Paulo registra 855.722 casos e 31.353 mortes, o que explica a profundidade da recessão econômica, com a queda na produção industrial de 17,7% no segundo trimestre, em relação a igual período de 2019. O único setor com resultado positivo foi o agronegócio, que cresceu 1,2% no trimestre passado, por causa da recuperação chinesa e do aumento do consumo de alimentos, cujos preços dispararam.
Ninguém sabe quanto tempo a pandemia permanecerá, pois há sinais de uma segunda onda na Itália e na Espanha, mas há esperança de que quatro das vacinas em desenvolvimento no mundo estejam liberadas para aplicação em massa até o final do ano: a americana, a inglesa, a russa e uma das chinesas. O Brasil corre atrás delas, mas é improvável que possamos imunizar a população em menos de um ano. Enquanto a vacina não vem, é melhor ter juízo e manter o isolamento social; porém, não é o que acontece no Brasil. O mau exemplo vem de cima. O presidente da República naturaliza a pandemia e mantém uma ocupação militar no Ministério da Saúde que entrará para os anais da nossa história sanitária, repetindo o triste papel que tiveram na epidemia de meningite, durante o regime militar.
Crise sanitária, recessão econômica, crise fiscal, desemprego em massa e sinais da volta da inflação nos preços da cesta básica. Entretanto, Bolsonaro está cada vez mais populista, para desespero da equipe econômica, que agora lida com uma anistia fiscal no valor de R$ 1 bilhão para as igrejas evangélicas, que o presidente da República quer sancionar. Ou seja, todos os contribuintes terão de pagar o calote dos pastores na Receita Federal. Na política, Bolsonaro só pensa na eleição; nos bastidores, trabalha para liquidar com a Operação Lava-Jato, moeda de troca para livrar os filhos das investigações sobre o caso Fabrício Queiroz. Com o ministro Luiz Fux na presidência do Supremo (tomará posse na quinta-feira), será muito difícil.
Pasmem! A anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silvia, que ontem fez um pronunciamento nas redes sociais com pompa de estadista e cara de candidato, para emular com o de Bolsonaro em cadeia de radio e tevê, passou a ser vista com bons olhos pelos estrategistas do Palácio do Planalto. Já consideram os petistas fregueses de carteirinha e sonham com uma polarização com o petista Lula para reeleger Bolsonaro, sem risco de ter de enfrentar uma candidatura de centro no segundo turno. Até o Bicentenário da Independência, teremos dois anos emocionantes. Oremos!
Luiz Carlos Azedo: Os donos do poder
“É impressionante como a política de parentela, cujas origens são o mandonismo e o patrimonialismo, se reproduz como modelo, dando origem a novos clãs políticos”
Tomo emprestado o título da coluna da obra já sexagenária de Raymundo Faoro (1925-2013), jurista, cientista político e sociólogo, considerado um dos grandes intérpretes do Brasil, autor de Os Donos do Poder: Formação do patronato político brasileiro (1958), uma leitura weberiana da nossa realidade. Seu olhar amplo e profundo sobre a nossa formação como nação desnuda as origens e a essência do mandonismo e do patrimonialismo, raízes do autoritarismo brasileiro, associando-o às elites que dominaram o país desde o período colonial, “organizando o poder político de forma análoga ao poder doméstico”. Isso resultou num Estado mais forte do que a sociedade, “em que o poder centrípeto do rei, no período colonial, e do imperador, ao longo do século XIX, ou do Executivo, no período republicano, criou forte aparelho burocrático alicerçado no sentimento de fidelidade pessoal”.
Remeto-me a Faoro em razão do projeto de reforma administrativa encaminhado pelo presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, que não vai atingir os atuais servidores, somente os que ingressarem no serviço público após a aprovação da reforma. Mas, não essencialmente por essa razão, mas, sim, pelo fato de que o chamado “poder instalado” não será atingido pela reforma nem agora nem depois: com o fim do regime único, parlamentares, magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores), promotores e procuradores e militares, a elite do serviço público, terão regras diferentes dos servidores comuns. O velho barnabé, cujas agruras e revolta Oduvaldo Vianna Filho resumiu na figura do Manguari Pistolão, o anti-herói de Rasga Coração, é que pagará a conta da reforma, quando muito mais poderia ser feito se a austeridade e a transparência valessem realmente para todos.
Ao analisar a relação entre as oligarquias regionais e o poder central, que se reproduziu nos diversos períodos republicanos, Faoro destaca que “o estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático, da nobreza da toga e do título. A pressão da ideologia liberal e democrática não quebrou, nem diluiu, nem desfez o patronato político sobre a nação”. A proposta de reforma parece confirmar o diagnóstico. Alguns acusam Faoro de não reconhecer o papel modernizador de nossa elite burocrática, principalmente nos períodos pombalino, no Segundo Império e no primeiro governo Vargas, períodos que a obra analisa, e que viria a se repedir durante o regime militar. Não foi mero acaso a grande repercussão que teve a reedição da obra nos anos 1970, seu diagnóstico se confirmou no regime militar e ainda nos parece atual.
Famílias poderosas
Na prática, a exclusão do “poder instalado” representa meia aprovação da reforma administrativa pelo Congresso, porque os lobbies mais poderosos contra o fim dos privilégios são corporativos e atuam diretamente junto aos parlamentares. Na verdade, trata-se de uma velha aliança, que se manteve ao longo da história. Com toda a renovação que houve nas eleições de 2018, por exemplo, o número de parlamentares com vínculos familiares com velhas oligarquias do país chega a 172, sendo 138 ligados a clãs políticos com representação em várias esferas de Poder, inclusive no Executivo, no Judiciário e no Ministério Público. Se formos considerar, ainda, outros grupos, como a bancada ruralista, os militares e os pastores evangélicos, o poder de intervenção desses segmentos na votação da reforma administrativa para manter seus privilégios será bastante significativo.
Em alguns estados, os clãs políticos dominam a representação parlamentar completamente, como a Paraíba, com 12 deputados, dez dos quais ligados a famílias políticas tradicionais. No Senado, seus três representantes são ligados a velhas oligarquias regionais. Se formos considerar a composição dos partidos, veremos que o eixo das alianças do presidente Bolsonaro com o Centrão, na Câmara, passa, principalmente, pela chamada “bancada dos parentes”: PP e PSD têm 18 parlamentares com essa característica, cada; MDB, 17; PR, 16; PTB, nove; PRB, oito; SD, seis; PSL, quatro. Sobra para quase todos os partidos, entre os quais se destacam PSDB, 13; DEM e PT, 12; PSB, 11; PDT, nove; PRB, oito; PCdoB, quatro; PROS, três. No Senado, a “bancada dos parentes”caiu de 39 para 24 senadores.
Há clãs políticos que protagonizam a política de seus estados, alguns com grande tradição e projeção nacional. No Maranhão, a família do ex-presidente Sarney; no Ceará, os Ferreira Gomes; no Rio Grande do Norte, os Alves e os Maias; em Goiás, os Caiado e os Bulhões; no Paraná, os Richa; em Alagoas, os Calheiros; na Bahia, os Magalhães; no Pará, os Barbalho; em Pernambuco, os Arraes e Bezerra/Coelho; na Paraíba, os Maranhão, Vital do Rego, Cunha Lima e Ribeiro; no Acre, os Vianna; em Tocantins, os Abreu.
É impressionante como a política de parentela, cujas origens são o mandonismo e o patrimonialismo, se reproduz como modelo de poder familiar, dando origem a novos clãs políticos. O mais novo e poderoso deles é o clã Bolsonaro, que se constituiu antes da chegada ao poder central, numa faixa obscura e sinuosa de relações políticas com setores ligados à segurança pública no Rio de Janeiro, mas que aprendeu a atuar e se reproduzir na convivência com o baixo clero do Congresso, no qual a “bancada dos parentes” atua como peixe dentro d’água. O presidente Jair Bolsonaro trouxe para o centro do poder decisão os filhos Flávio (Republicanos-RJ), senador; Carlos Bolsonaro (Republicanos), vereador carioca; e Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), deputado federal. Quem quiser que se iluda, esse novo clã político manda na agenda do país.
Luiz Carlos Azedo: A elite a salvo da reforma
“Para a sociedade, burocracia é palavrão, o que supostamente facilitaria a aprovação da reforma administrativa. Acontece que os lobbies corporativos são muito poderosos”
O Brasil já passou por grandes reformas administrativas. Historicamente, a mais importante foi a de 1938, no Estado Novo, quando foi criado o Departamento de Administração do Serviço Público (Dasp), pelo presidente Getulio Vargas. A lógica da reforma administrativa era superar a incompatibilidade entre a “racionalidade” exigida pela boa administração pública e a “irracionalidade” da política. A reforma pretendia estabelecer maior integração entre os diversos setores da administração pública e promover a seleção e aperfeiçoamento do pessoal administrativo por meio da adoção do sistema de mérito, “o único capaz de diminuir as injunções dos interesses privados e político-partidários na ocupação dos empregos públicos”.
Coube a Luís Simões Lopes implantar e comandar o Dasp, que ganhou grande poder durante a ditadura de Vargas, mas foi esvaziado com a democratização pós-1945. Um de seus legados foi o Estatuto dos Funcionários Civis da União, que estabeleceu direitos e deveres da burocracia que, de certa forma, vigoram até hoje. Outras reformas foram feitas, durante o regime militar e nos governos de Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, mas nenhuma delas conseguiu “revolucionar” a nossa burocracia, cujo vértice goza de muitos privilégios e mordomias.
Ontem, o governo Bolsonaro anunciou sua proposta de reforma administrativa, que não vai atingir direitos adquiridos dos atuais servidores públicos, a maioria garantidos pela Constituição de 1988. As mudanças valerão para os servidores da União (Executivo, Legislativo e Judiciário), estados e municípios contratados após a reforma. Parlamentares, magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores), promotores e procuradores e militares, a elite do serviço público, não serão atingidos pela reforma. Segundo a proposta do governo, esses servidores têm regras diferentes dos comuns. Trocando em miúdos, não se mexe com o “poder instalado”, que tem espírito de casta.
A reforma pretende acabar com o “regime único” estabelecido pela Constituição de 1988 para todos os servidores. Haverá regras diferenciadas para os barnabés — os servidores dos escalões inferiores. Serão divididos em cinco categorias: carreiras típicas de Estado (diplomatas, auditores fiscais, policiais federais, gestores), com ingresso por concurso público e estabilidade após três anos de serviços; servidores contratados por tempo indeterminado, por concurso, mas que não terão estabilidade e poderão ser demitidos em caso de cortes de gastos; servidores temporários, contratados por seleção simplificada e sem estabilidade; e cargos de liderança e assessoramento, com vínculo temporário, por seleção simplificada e sem estabilidade. Os concursados das carreiras de Estado, que ainda não completaram três anos para ter estabilidade, serão considerados “em período de experiência” e poderão ser dispensados.
Burocracia
A reforma pretende acabar com certas regalias do funcionalismo público: extinguir a licença-prêmio (três meses de férias a cada cinco anos, vigente ainda em 20 estados), adicional por tempo de serviço, já extinto em nível federal; aposentadoria compulsória em caso de punição, aumentos retroativos, férias superiores a 30 dias no ano, adicional por substituição, redução de jornada sem perda salarial, progressão por tempo de serviço e incorporação ao salário de vantagens referentes ao exercício de funções e cargos comissionados. A proposta do governo é enxugar a máquina federal, com extinção ou reestruturação de autarquias e fundações, órgãos e cargos, além de redefinir atribuições e regras de funcionamento.
Do ponto de vista fiscal, a reforma não mexe com o maior problema da administração pública: a previdência diferenciada, com salário integral na aposentadoria. Já se instalou na administração federal um duro choque de concepções sobre o papel da hierarquia e da disciplina na eficiência administrativa. Numa ordem democrática, um comando autoritário, com controle hierárquico e subordinação, tende a ser menos eficaz do que a delegação de responsabilidade e a liberdade para tomada de decisões no âmbito das atribuições funcionais, sobretudo nas carreiras de Estado. O método mais eficiente para organizar um exército não será o mais efetivo para estruturar um laboratório de pesquisa.
Para a sociedade, burocracia é palavrão, o que supostamente facilitaria a aprovação da reforma administrativa. Acontece que opinião pública exerce pressões difusas sobre o Congresso, enquanto os lobbies corporativos são concentrados e mais eficientes junto aos parlamentares, muitos dos quais são servidores de carreira. Além disso, a “incapacidade treinada”, ou seja, a dificuldade de adaptação às mudanças; a “psicose ocupacional”, que são preferências e antipatias desenvolvidas por cada servidor; e o “excesso de conformidade”, no qual o servidor “metódico, prudente e disciplinado” perde a perspectiva de prestar serviço ao cidadão — são problemas de natureza cultural, que não se resolvem com a reforma.
Luiz Carlos Azedo: Witzel, o brevíssimo
“O governador teve uma carreira meteórica, acreditou que o caso Queiroz inviabilizaria a reeleição de Bolsonaro e levaria à cassação o senador Flávio Bolsonaro”
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve, ontem, o afastamento de Wilson Witzel do cargo de governador do Rio de Janeiro por ampla maioria, por suspeitas de envolvimento direto em corrupção. O relator do processo, ministro Benedito Gonçalves, que havia decidido pelo afastamento monocraticamente, convenceu a maioria dos pares de que havia tomado a decisão acertada, com o argumento de que existem provas suficientes para justificar o afastamento e que a medida era “menos gravosa” do que a prisão preventiva do governador fluminense, solicitada pelo Ministério Público Federal (MPF).
Dificilmente Witzel voltará a ocupar o cargo, porque seu impeachment na Assembléia Legislativa (Alerj) é uma questão de tempo. O vice-governador Cláudio Castro, de 41 anos, que já exerce o cargo, também é investigado. Filiado ao PSC, é o segundo vice-governador mais novo da história do Rio, atrás, apenas, de Roberto Silveira, eleito com 32 anos de idade, nos anos 1950.
Cantor gospel, começou na política em 2004 como chefe de gabinete do então vereador Márcio Pacheco (PSC), denunciado pelo Ministério Público do Rio por integrar um suposto esquema de rachadinhas na Alerj. Castro tem o apoio de Jair Bolsonaro e de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), investigado no caso Fabrício Queiroz, amigo de seu pai e seu ex-assessor parlamentar. O senador está enrolado no caso das rachadinhas da Assembléia Legislativa. Witzel elegeu-se no rastro eleitoral de Bolsonaro, em 2018, mas rompeu com o presidente e nunca escondeu o desejo de morar no Palácio da Alvorada. Agora, é mais um governador fluminense que pode parar na cadeia.
Não se pode dizer que houve uma mudança de rumo no Rio, porque o sistema de poder que controla a política fluminense continua o mesmo, balizado pelo Palácio do Planalto e pela Prefeitura carioca. Com a consolidação de Cláudio Castro no cargo, um santista sem nenhuma tradição política no estado, o poder da Alerj, que sempre foi muito grande, aumenta ainda mais. Entretanto, o deputado André Ceciliano (PT), que comanda o processo de impeachment de Witzel, também é investigado. Se a cassação de Witzel for aprovada neste ano, pela legislação, teriam que se realizar novas eleições. Nesse caso, sim, haveria um realinhamento de forças políticas no estado. A outra hipótese é uma alteração na correlação de forças em razão das eleições municipais. Marcelo Crivella (Republicanos) concorre à reeleição, mas enfrenta forte oposição: está ameaçado pelo ex-prefeito Eduardo Paes, derrotado por Witzel nas eleições passadas, mas que agora lidera as pesquisas eleitorais na disputa pela Prefeitura do Rio.
Meteoro
O caso Witzel é jogo jogado. O governador teve uma carreira meteórica, acreditou que o caso Queiroz inviabilizaria a reeleição de Bolsonaro e levaria à cassação de mandato de Flávio. Eleito na onda eleitoral provocada pela crise ética, com um discurso de duro combate à criminalidade (a tese do “tiro na cabecinha”), durante a pandemia da covid-19 entrou em confronto aberto com o governo federal. Não contava, porém, com o monitoramento da execução financeira de verbas federais pelos órgãos de controle do Estado, que, hoje, operam com inteligência artificial para cruzamento de dados. Assim, foram detectadas operações fraudulentas na Secretaria Estadual de Saúde. Em delação premiada, o ex-secretário Edmar Santos denunciou Witzel.
Edmar foi preso em julho, durante operação do MP-RJ que investigava fraudes na compra de respiradores. No mesmo dia, os promotores encontraram R$ 8,5 milhões em dinheiro vivo. O ex-secretário fez acordo e denunciou Witzel, o que fez o processo passar à esfera federal, por decisão do STJ. A partir daí, os acontecimentos precipitaram-se. Segundo o governador afastado, teria havido interferência de Bolsonaro, com objetivo de tirá-lo do cargo para influenciar a nomeação do novo procurador-geral do Estado, que deverá ocorrer em novembro. Marcelo Lopes, atual ocupante do cargo, seria aliado de Witzel e é responsável pela investigação do caso Queiroz. O governador nega, veementemente, as acusações e diz que a denúncia do ex-secretário é mentirosa.
Segundo a PGR, Witzel está envolvido no esquema de propina para a contratação emergencial e para liberação de pagamentos às organizações sociais (OSs) que prestam serviços ao governo, especialmente nas áreas de saúde e educação. Há a suspeita de que o governador tenha recebido, por intermédio do escritório de advocacia da mulher, Helena, R$ 554,2 mil em propina. Uma transferência de R$ 74 mil dela para a conta pessoal do governador reforçou as suspeitas. O esquema criminoso foi investigado a partir da apuração de irregularidades na contratação dos hospitais de campanha, respiradores e medicamentos para o enfrentamento da pandemia, logo no seu começo. O afastamento de Witzel também pôs os governadores de oposição com as barbas de molho, porque há muitas investigações sobre suspeitas de irregularidades na compra de respiradores, equipamentos de proteção individual e montagem de hospitais de campanha em outros estados. Ou seja, uma paúra do chamado efeito Orloff: “eu sou você amanhã”.
Luiz Carlos Azedo: Imunização de rebanho
“O Ministério da Saúde não combate a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo assim decidira, o que é uma interpretação falsa”
Parece piada pronta: o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, nomeou para comandar o Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, responsável por todo o programa nacional de vacinas do governo federal, o médico veterinário Maurício Monteiro Cruz, formado no Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste, em Goiás, com mestrado em prevenção e controle de doenças em animais pela Faculdade de Agronomia e Veterinária da Universidade de Brasília. Cruz estava lotado na Diretoria de Vigilância Ambiental em Saúde do Governo do Distrito Federal e é especializado no controle da leishmaniose.
Como não lembrar da magistral interpretação de Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, por Jair Rodrigues, um clássico da nossa música popular: “Mas o mundo foi rodando/ Nas patas do meu cavalo/ E nos sonhos que fui sonhando/ As visões se clareando/ As visões se clareando/ Até que um dia acordei/ Então não pude seguir/ Valente lugar-tenente/ De dono de gado e gente/ Porque gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente”. Sem nenhum preconceito, não se pode acusar o general Pazuello de incoerente. Afinal, o ministro interino está operando uma estratégia de “imunização de rebanho” para gerenciar a pandemia da covid-19 no Brasil. Veterinários são especialistas nisso e profissionais de grande importância para a saúde pública. Alguns são grandes sanitaristas.
O Ministério da Saúde não está combatendo a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo Tribunal Federal (STF) assim decidira, o que é uma interpretação falsa, pois a decisão da Corte foi apenas de que caberia aos governadores e prefeitos gerenciar a política de isolamento social. Tecnicamente, a imunização de rebanho não é uma estratégia, é o efeito de proteção que surge em uma população quando uma percentagem alta de pessoas contraiu ou se vacinou contra uma doença. Mesmo quem não foi vacinado nem foi infectado, acaba protegido da doença porque um grande número de pessoas já foi imunizada, constituindo uma barreira humana contra a propagação do vírus.
Estima-se que o índice de 95% de vacinação seja o ideal para que isso ocorra, preservando as pessoas que não podem tomar a vacina, como acontece com o sarampo. Com isso, o vírus acaba desaparecendo. Veterinários, por exemplo, têm grande experiência em vacinação contra a febre aftosa, que ataca os rebanhos. O selo de imunização contra essa doença é fundamental para a exportação de carne bovina. No caso da covid-19, como não se tem vacina ainda, especialistas discutem qual seria a percentagem de contaminados para quem não teve a doença deixe de correr risco de se infectar. Não há respostas ainda, mas alguns pesquisadores estimam o número entre 60% e 80% da população total.
Vacinação
O departamento comandado por Cruz é responsável pela organização do calendário de vacinas do país, as campanhas nacionais e a distribuição dos medicamentos aos estados, assim como por acompanhar a cobertura vacinal. Sua tarefa é, sobretudo, de planejamento e logística, porém, depende da chegada da vacina contra a covid-19. Apesar de o Programa Nacional de Imunizações ser considerado uma referência mundial, desde 2016 a cobertura vacinal no país não tem atingido as metas, nem mesmo nas vacinas infantis obrigatórias. Nenhuma das 10 vacinas obrigatórias para menores de 2 anos atingiu as metas de cobertura em 2019. Entre elas, a poliomielite, que teve cobertura de apenas 82,1% das crianças. Considerada, oficialmente, erradicada no Brasil desde 1994, a doença ainda exige vacinação porque o vírus circula pelo mundo.
Mesmo com as subnotificações, com 120,9 mil mortes — das quais 30 mil em São Paulo — e 3,8 milhões de casos confirmados, o Brasil ainda está muito longe de alcançar a imunização de rebanho. A média móvel de casos dá sinais de que está começando a cair, mas ainda está num patamar muito elevado, que registra uma média móvel, nas últimas duas semanas, de 875 mortes e 36 mil casos por dia. O grande destaque no combate ao novo coronavírus foi a resiliência dos heróis anônimos na linha de frente do enfrentamento à pandemia, muitos dos quais contraíram a doença e morreram, sobretudo profissionais da saúde. O desempenho do Sistema Único de Saúde, com todos os problemas, está sendo fundamental para evitar uma mortalidade muito maior. A ideia de que a pandemia está acabando é muito perigosa; os fatores decisivos para controlá-la ainda são a política de isolamento social e a autoproteção individual.
Luiz Carlos Azedo: A derradeira estação
“A corrupção endêmica no Rio de Janeiro tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem”
Escrevo a coluna com o som na caixa. Chico Buarque canta Estação Derradeira, na qual glamuriza com afeto e poesia as mazelas do Rio de Janeiro: “Rio de ladeiras/ Civilização encruzilhada/ Cada ribanceira é uma nação”. A imagem de São Sebastião, o santo padroeiro da cidade, é invocada para sintetizar o sofrimento e a esperança, como nas paliçadas ao pé do Morro Cara de Cão, na Urca, na qual Estácio de Sá e os paulistas, com apoio do cacique Araribóia, em 1º de março de 1565, fundaram a cidade para expulsar os calvinistas franceses e seus aliados tamoios. Sobe o som: “São Sebastião crivado/ Nublai minha visão/ Na noite da grande/ Fogueira desvairada/ Quero ver a Mangueira/ Derradeira estação.”
A música não me saía da cabeça desde a notícia do afastamento do governador Wilson Witzel e a prisão de seus aliados por corrupção, entre eles o Pastor Everaldo, presidente do PSC. Não foi repetir o que já se sabe: mais um governo atolado no mangue da corrupção. Entretanto, para quem quiser saber como tudo isso começou, recomendo o romance de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias, que retrata a vida do Rio de Janeiro no início do século XIX, com a chegada de D. João VI e sua Corte. A história foi publicada anonimamente, em folhetim, ou seja, em capítulos semanais, no Correio Mercantil, entre junho de 1852 e julho de 1853. O nome do autor foi revelado apenas na terceira edição em livro, póstuma, em 1863.
Personagens populares são os grandes protagonistas do romance, movidos por duas forças de tensão, a ordem e a desordem, características profundas da sociedade colonial da época, que se mantêm até hoje. O major Vidigal e sua comadre, dona Maria, pertencem ao lado da ordem, porém, nada têm de retidão, apenas estão em uma situação social mais estável. A desordem é representada pelo malandro Teotônio, o sacristão da Sé e Vidinha. Entretanto, todos transitam de um pólo para o outro, em momentos de acomodação.
Mas voltemos à crise do Rio de Janeiro, que muitos atribuem à transferência da capital para Brasília e/ou à fusão da antiga Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro. Essa é uma visão nostálgica, embora tenha a ver com a crise estrutural do estado. De fato, a transferência da capital esvaziou política e economicamente a antiga Guanabara. Entretanto, a fusão dos dois estados foi feita exatamente para compensar essas perdas, pois o projeto do presidente Ernesto Geisel, no regime militar, era fazer do Rio de Janeiro a capital do setor produtivo estatal, que rivalizaria com São Paulo, pois concentrava as sedes da maioria das empresas estatais. O colapso do modelo de capitalismo de Estado dos militares, porém, pôs o Rio a perder. Era um erro de conceito, abatido pela crise do petróleo e pela falta de capacidade de financiamento do Estado brasileiro.
Ética da malandragem
Para complicar, a Constituinte da Fusão, em 1975, que acompanhei como repórter do antigo Diário de Notícias, encarregou-se de inchar a máquina do novo estado, que já nasceu envelhecida, efetivando os comissionados e celetistas dos antigos governos dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, e mais os que foram incorporados à intervenção pelo brigadeiro Faria Lima. Sem muita racionalidade na distribuição de responsabilidades entre a administração estadual e a nova prefeitura da capital, o resultado foram mais gastos públicos e ineficiências, além de um passivo previdenciário exponencial e impagável. Essa situação agravou-se após a Constituição de 1988, com a efetivação de mais comissionados na aprovação da nova Constituição estadual.
A última grande frustração do estado foi o governo de Sérgio Cabral, que, inicialmente, parecia a redenção do Rio de Janeiro, por causa da exploração de petróleo e das Olimpíadas, mas se atolou no mar de lama da corrupção. A euforia do pré-sal logo se esvaziou, com a mudança do regime de concessões para partilha, que desorganizou o “cluster” de empresas do setor, devido à suspensão dos leilões de poços de petróleo por sete anos, e o escândalo de corrupção da Petrobras, que colapsou ainda mais a economia fluminense, em meio à recessão do governo Dilma Rousseff.
A corrupção endêmica nos governos do Rio de Janeiro, porém, tem uma dimensão cultural que precisa ser levada em conta, por causa da glamurização da ética da malandragem e da tolerância da elite fluminense com a secular e sistemática captura das políticas públicas por grandes interesses privados, que levam à formação de máfias de empresários e políticos, que drenam os recursos do estado para a constituição de patrimônio, além do compadrio, do fisiologismo e do clientelismo. O consequente apagão administrativo favorece, também, a ocupação de territórios cada vez maiores pelo tráfico de drogas e pelas milícias, protegidos pela banda podre do sistema de segurança pública.
Luiz Carlos Azedo: O espelho côncavo
“No Brasil republicano, sempre houve grande influência do americanismo, em contraposição ao nosso iberismo. Essa contradição está no DNA das nossas jabuticabas institucionais”
As eleições nos Estados Unidos estão sendo vistas como uma encruzilhada do destino do mundo, na qual o “sonho americano” está em risco e, com ele, a democracia em várias partes do planeta. O presidente Donald Trump, que disputa a reeleição, defende teses regressivas em relação à democracia norte-americana e um nacionalismo que contrasta com o globalismo que sempre pautou a atuação da Casa Branca na cena mundial; não por acaso, o ex-presidente Barack Obama, num pronunciamento inédito para quem já comandou o país, em apoio a Joe Biden na convenção democrata, acusou Trump de ser uma ameaça à democracia e aos direitos humanos.
O sonho americano é a grande invenção política da Independência dos Estados Unidos. Seu ethos sintetiza o comportamento social e cultural dos norte-americanos ao longo de sua história. Liberdade, segurança, oportunidades iguais e justas para o sucesso pessoal, bem-estar para as famílias e perspectivas de futuro ainda melhor para as crianças, graças ao trabalho duro, numa sociedade capaz de superar qualquer obstáculo e na qual qualquer um pode chegar ao topo. Essa é a ideia-força do The American Dream. A crise de 2008 e as mudanças em curso no mundo, com a emergência da China como grande concorrente dos Estados Unidos, porém, frustraram os norte-americanos.
Sem dúvida, o sonho americano foi ressignificado pela eleição de Barack Obama, mas foi amesquinhado com a chegada de Trump ao poder, que pôs a imagem dos Estados Unidos de cabeça para baixo, como num espelho côncavo. Em antropologia, o ethos é constituído pelos traços e modos de comportamento que formam o caráter e a identidade de um povo, ou seja, uma identidade social. Do ethos deriva a ética, isto é, as normas e regras de conduta que devem ser observadas pelos membros de uma sociedade.
Trump subverte o ethos do sonho americano, com uma narrativa na qual exalta o pior e não o melhor da sociedade e da história dos Estados Unidos. O problema é que não está sozinho no mundo, sua narrativa negacionista e reacionária, que reforça as autocracias, estimula retrocessos na ordem política de muitos países democráticos, inclusive, o Brasil.
Americanismo
Do ponto de vista objetivo, a força do americanismo estava diretamente associada ao fordismo. Forma mais avançada de organização da produção, o fordismo teve impacto mundial e serviu até de inspiração para o modelo soviético, cujo Estado reproduzia a estrutura organizacional da grande indústria mecanizada, assim como o funcionamento do partido comunista. O fordismo nasceu na fábrica e se expandiu para toda a sociedade americana; se projetou mundo afora depois da II Guerra Mundial. Foi a base material do americanismo, um conjunto de ideias de caráter ideológico, político, cultural e comportamental. As ideias puritanas tiveram um papel fundamental na organização do trabalho e da vida doméstica das famílias norte-americanas e estão na gênese da formação e consolidação das instituições da democracia americana, mas foram suplantadas pelo americanismo, que exacerbou a liberdade individual.
No Brasil republicano, sempre houve grande influência do americanismo, em contraposição ao nosso iberismo, o que gera muitas polêmicas nos meios acadêmicos. Essa contradição está no DNA das nossas jabuticabas institucionais. Historicamente, a influência do americanismo foi determinante para o nosso processo de modernização conservadora. A influência de Trump, porém, como no espelho côncavo, é a negação do sonho americano e uma espécie de americanismo do mal para a democracia brasileira, pois reforça o viés autoritário do governo Bolsonaro. Se o que é bom para os Estados Unidos for bom para o Brasil, perdão pelo trocadilho, melhor torcer para o democrata Joe Biden.
Luiz Carlos Azedo: Mudança de franquia
“Guedes deu uma de bom cabrito, mas não se tem precedentes de um ministro à frente da Economia do país aceitar um pito público desses sem pedir demissão”
Perdão pela ironia, mas faz sentido: o presidente Jair Bolsonaro não quer mais saber de Posto Ipiranga, seu coração bate pela BR Distribuidora. Agora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, terá de fazer uma escolha de Sofia: ou joga ao mar suas velhas teses e, com ela, o que resta da equipe de economistas liberais, ou pega o boné e volta para seus negócios. O que Bolsonaro fez, ontem, ao criticar publicamente a proposta do projeto Renda Brasil apresentada pela equipe econômica, é muito desmoralizante. Durante visita a Ipatinga, em Minas, o presidente da República desautorizou o ministro: “Ontem (terça, 25), discutimos a possível proposta do Renda Brasil, e falei: ‘Está suspenso’. A proposta, como apareceu para mim, não será enviada ao Parlamento. Não posso tirar de pobre para dar a paupérrimo”.
Guedes deu uma de bom cabrito, mas não se tem precedentes de um ministro à frente da Economia do país aceitar um pito público desses sem pedir demissão. É uma situação inimaginável, por exemplo, com o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, que exigiu a saída de todos os ministros desenvolvimentistas que o desafiaram. Nem o senador José Serra, que foi ministro da Saúde, dava pitaco na economia. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso só tratava de divergências com Malan em privado. O mesmo pode ser dito em relação ao ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles, no governo Temer. Grande artífice do “teto de gastos”, que foi fundamental para reverter a recessão do governo Dilma Rousseff, ninguém apitava publicamente na economia além dele, nem no auge da crise provocada pelo caso JBS, na qual o presidente Michel Temer, por duas vezes, teve que evitar um impeachment.
Guedes, porém, tirou por menos: “É assim mesmo. Ele é o presidente e é quem decide”, disse. Apesar da forte reação do mercado — em baixa no mundo inteiro, o dólar está disparando no Brasil; o índice Bovespa desabou ontem —, o ministro da Economia disse que a equipe deve apresentar “o cardápio” de programas que podem ser unificados ao atual Bolsa Família, criando o Renda Brasil. “Está tudo equacionado. Não tem truque nem fura-teto. Tudo será feito com total transparência”, disse à jornalista Cristiana Lobo, da GloboNews. Há controvérsias. Bolsonaro terá nova rodada com ministros e assessores para decidir o valor do novo programa de transferência de rendas para os mais pobres. Sua proposta era acabar com os descontos de despesas com saúde e educação no Imposto de Renda, uma mecanismo para transferir renda da classe média para os mais pobres. Bolsonaro discorda por motivos óbvios: está deslocando o eixo da sua base eleitoral para os mais pobres, mas não quer perder apoio da classe média mais do que já perdeu. Este é o xis da questão: Bolsonaro antecipou em dois anos e meio a sua campanha de reeleição. Toda a política econômica está sendo subordinada ao seu projeto eleitoral.
Pulo do gato
O problema mais urgente a ser resolvido pela equipe econômica é a prorrogação do abono emergencial de R$ 600, cujo valor o presidente da República quer que seja o mesmo do Renda Brasil, o programa que vai substituir o Bolsa Família. O auxílio emergencial de R$ 600 é pago a 64 milhões de pessoas; o Bolsa Família, que não passa de R$ 205, quando beneficia cinco pessoas, atende a 14 milhões de famílias. Não existe a menor possibilidade de manter essa escala nem esse valor, sem quebrar a economia, mesmo incorporando os recursos de 27 programas sociais do governo, entre os quais, o abono salarial e o seguro-defeso. Guedes propôs um programa no valor de R$ 250, mas Bolsonaro quer mais. Também não aceita o fim do seguro-desemprego, que entraria no bolo.
O ministro da Economia ainda acredita num pulo do gato, nos dois sentidos: a criação de um imposto sobre todas as operações digitais, que teria uma base praticamente universal, porém, pode levar ao entesouramento de moeda e ampliação de operações em dinheiro vivo, além de promover um grande efeito cascata. Isso ampliaria muito a carga tributária, ou seja, tudo ao contrário do que pregam os economistas liberais. Há setores simpáticos à tese no mercado financeiro, mais preocupado com a administração da dívida pública e com o deficit fiscal, bem como no Congresso, onde a base parlamentar do governo pressiona para que haja aumento de gastos com obras.
Entretanto, o maior adversário da proposta do novo imposto no Congresso é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Entre os economistas, a crítica à proposta baseia-se nas teses do economista Arthur Laffer, para quem a diminuição dos impostos cobrados das empresas pode aumentar a arrecadação do Estado. Segundo a “Curva de Laffer”, a partir de um certo ponto, por mais que a alíquota do imposto seja aumentada, o tributo deverá gerar menos receita fiscal. Nossa carga tributária é cada vez maior, por causa da progressiva criação e aumento de alíquotas de impostos. Segundo a Receita federal, a carga tributária bruta em 2019 atingiu 33, 17% do PIB, ou seja, um terço da renda nacional vai para os governos da União, estados e municípios; sem a contrapartida de investimentos e serviços de qualidade, a máquina administrativa consome quase tudo. Ninguém aguenta mais.