Memória
Luiz Carlos Azedo: O que está em jogo
A maioria das pesquisas aponta a vitória de Biden, mas há cenários em que é possível a reeleição de Trump, mesmo que a maioria dos eleitores tenha votado no democrata
O mundo acompanha com grande expetativa as eleições norte-americanas, com as pesquisas de opinião apontando o favoritismo do democrata Joe Biden. Entretanto, o presidente republicano Donald Trump não se deu por vencido e trabalha abertamente para melar o resultado das eleições. Faz uma aposta no tapetão da Suprema Corte, cuja maioria é bastante conservadora, prometendo judicializar o pleito. Deseja questionar os votos por correspondência e não pretende aguardar o resultado final da apuração das urnas, declarando-se vencedor, caso nas primeiras 24 horas de contagem dos votos esteja em vantagem em relação a Biden.
Ontem, mais de 90 milhões de cidadãos norte-americanos já haviam votado e são exatamente os votos dos últimos dias, que vão se somar aos de hoje, que retardarão o resultado da contagem. A maioria das pesquisas aponta a vitória de Biden, mas há cenários em que é possível a reeleição de Trump, mesmo que a maioria dos eleitores tenha votado no democrata. Porque eleição do presidente dos Estados Unidos se dá num colégio eleitoral, cujos delegados são eleitos em bloco nos estados, não importa a proporcionalidade de votação dos candidatos. Simplesmente, quem ganha a votação no estado indica todos os seus delegados.
Por isso, a última semana de campanha foi um jogo de xadrez eleitoral, no qual os candidatos se movimentaram mirando eleitores indecisos, para obter resultados que possam alterar a correlação de forças no colégio eleitoral. Por exemplo, na Flórida, que tem 29 delegados, nas últimas cinco eleições os republicanos venceram três vezes e os democratas, duas. Trump tenta reverter a derrota prevista para Biden por este estado, onde a diferença era apenas de três pontos. Além de assegurar a vitória onde é líder — Iowa (+1 ponto nas pesquisas), Texas ( 2), Ohio ( 2), Alaska ( 6), por exemplo —, precisaria vencer em outros estados voláteis, como a Geórgia (0) e a Carolina do Norte (-3). E resgatar o Cinturão da Ferrugem — Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Minnesota —, onde garantiu a vitória contra Hillary Clinton, em 2016. É muito difícil.
Mudança de rumo
Estamos num salto parado no ar. Trump confrontou a agenda mundial, que apostava no cosmopolitismo, no multilateralismo e no desenvolvimento sustentável, com um impacto somente comparável ao de Ronald Reagan, eleito em 1980, cuja aliança com a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher pôs de joelhos o líder comunista Mikhail Gorbatchov. E foi coroada pelo fim da União Soviética e a restauração capitalista no Leste Europeu. É uma situação muito diferente da atual, na qual a guerra fria, pautada pela corrida armamentista, foi substituída por uma guerra comercial com a China, cujo capitalismo de Estado ameaça a hegemonia econômica dos EUA. Ao contrário de Gorbatchov, que sonhava com a democratização do socialismo, o líder comunista Xi Jinping não promete nenhuma abertura política no regime chinês.
Trump deu um cavalo de pau na política mundial: os EUA saíram do Acordo do Clima de Paris, repudiaram o acordo com o Irã, voltaram atrás no relacionamento com Cuba, atropelaram as regras da Organização Mundial de Comércio. Fomentaram uma onda conservadora e nacionalista em todo o mundo, aliando-se aos líderes mais populistas e reacionários do planeta. A derrota de Trump para Biden pode alterar esse curso, com reflexos benéficos para a cooperação internacional, os direitos humanos, as mudanças de gênero e a renovação da cultura, inclusive aqui no Brasil.
Sim, porque a política do presidente Jair Bolsonaro está atrelada à estratégia de Trump, não somente nos fóruns internacionais, mas também internamente, ainda que isso não faça nenhum sentido do ponto de vista da nossa inserção na economia global, pois nosso principal parceiro comercial é a China. Se Biden vencer, a guerra comercial com a China vai continuar, mas focada na questão da democracia, dos direitos humanos e das relações trabalhistas, nos fóruns internacionais. Terá reflexos também no Brasil, sobretudo em relação ao respeito às instituições democráticas, aos direitos civis e ao meio ambiente. Por isso, a permanência do chanceler Ernesto Araujo e do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no governo será ainda mais questionada.\
Luiz Carlos Azedo: A pandemia e o luto
No Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado
Uma das singularidades da pandemia do novo coronavírus no Brasil — que chega aos 160 mil mortos e 5,5 milhões de infectados — é a sua naturalização pelo presidente Jair Bolsonaro, que sempre combateu as medidas de isolamento social adotadas por prefeitos e governadores e tratou-a como uma “gripezinha”. A aposta do presidente da República era de que ambos arcariam com as consequências negativas do impacto econômico da crise sanitária e ele, desafiando o vírus mortífero, se beneficiaria do auxilio emergencial aprovado pelo Congresso — cinco parcelas de R$ 600, de abril a agosto, e quatro de R$ 300, de setembro até dezembro e que o governo distribuiu à mais de 60 milhões de pessoa. O governo gastou até setembro R$ 411 bilhões com a pandemia, dos quais R$ 213 bilhões com o auxílio.
Acontece que essas despesas foram feitas como quem faz uma grande compra de consumo imediato com cartão de crédito, ou seja, a conta um dia vai chegar. E está chegando com a dívida pública já equivalente a 90% do PIB e uma taxa de desemprego de 14,4 %, que deve aumentar, porque a procura por emprego, com a redução do auxílio emergencial, também aumentará. Os reflexos políticos do agravamento da crise social são imediatos. Da mesma forma como a popularidade de Bolsonaro subiu com o auxílio emergencial, agora ameaça declinar nos grandes centros, com impacto eleitoral nos candidatos que o presidente da República apoia em São Paulo, onde Celso Russomano (Republicanos) está derretendo, e no Rio de Janeiro, cujo prefeito, Marcelo Crivela (Republicanos), candidato à reeleição, é amplamente rejeitado pelos eleitores. Bolsonaro já começa a se distanciar de ambos.
Nosso presidente da República é um personagem complexo da política brasileira — embora adote soluções simples e erradas para problemas complicados —, foge aos paradigmas do politicamente correto e desenvolve vínculos com parcelas da população que somente a antropologia explica. Mas não tem como fugir de uma realidade social impactada pelos efeitos psicológicos da pandemia na vida das pessoas, em particular o luto dos amigos e familiares das vítimas de COVID-19, que não tem nenhum paralelo com o de outras causas mortis, inclusive porque o rito de passagem de seus funerais foi profundamente afetado pela ausência de velórios e os caixões fechados.
Negação e resiliência
Após naturalizar a pandemia, em algum momento, Bolsonaro haverá de pedir desculpas por esse comportamento, quiça na campanha leitoral de 2022, mas até agora não manifestou um sincero pesar pela escalada da pandemia. Seus lamentos foram sempre preâmbulos de alguma firmação que estabelecia como prioridade manter as atividades econômicas a qualquer preço. Acontece que essa prioridade é apenas retórica, na verdade, há um cada um por si, porque o governo abandonou as reformas, não tem prioridades, se digladia internamente e está prisioneiro das corporações e grupos econômicos que o apoiam. São inúmeros exemplos, os mais recente são os cancelamentos do projeto da BR do Mar — nova Lei da navegação de cabotagem —, por exigência dos caminhoneiros, e o decreto para privatização de 4 mil postos de atendimento básico do SUS, uma proposta inopinada e marota, que transforma a rede pública num grande negócio privado de tecnologia para empresas do setor de saúde.
Entretanto, Bolsonaro está subestimando o luto das pessoas que perderam seus entes queridos. Não são apenas os impactos econômico, social e cultural, em termos de perdas de força de trabalho, conhecimento e liderança social, que devem ser considerados; existe um lado afetivo e psicológico na crise sanitária, que se manifesta de forma duradoura, por etapas, difícil de ser mensurada. Amanhã, no Dia de Finados, todos os mortos serão lembrados, mas as vítimas da pandemia são como corpos insepultos ou enterrados em cova rasa, cujo luto é diferenciado.
O luto ocorre porque a perda física do ente querido não elimina o afeto. É uma ausência de difícil aceitação no tempo em que ocorre, porque o amor sobrevive. Isso gera uma negação, que se manifesta de forma silenciosa, muitas vezes, como fuga da realidade; num segundo momento, vem a revolta, muitas vezes inconsciente e inexplicável. Leva tempo para que as pessoas superem a depressão subsequentemente e aceitem a perda, para que a vida plena se restabeleça. Mas não existe esquecimento. Aceitar não é deixar de sentir. O luto se torna essencial, um marco na vida pessoal. A resiliência diante da morte também gera simpatia ou engajamento em movimentos que sejam antítese do sua causa. É o caso dos familiares de vítimas de balas perdidas ou violência policial. Na pandemia, a naturalização das mortes pode ser apenas a primeira fase de um luto coletivo. Muito mais amplo e profundo.
Luiz Carlos Azedo: O jabutizeiro do SUS
Quando a pandemia do novo coronavírus passar, a medicina nunca mais será a mesma. As consultas por teleconferência, introduzidas em massa durante a pandemia, vieram para ficar
A Prefeitura de Vitória (ES) tem uma das melhores redes de atendimento básico à saúde do país, resultado de sucessivas administrações, mas, sobretudo, do avanço tecnológico promovido pelo atual prefeito, Luciano Rezende (Cidadania), que encerra o seu segundo mandato. Com as inovações, foi possível ampliar o atendimento em 30%, sem contratação de médicos ou construção de novos postos de saúde. Qualquer cidadão atendido na rede, inclusive nos dois pronto atendimentos (PAs) da cidade, recebe um torpedo no celular para dar uma nota de 0 a 10 de avaliação do atendimento. A nota média, em setembro, mesmo na pandemia da covid-19, foi 9,11. O ovo de Colombo surgiu depois de uma viagem de avião, quando o prefeito recebeu uma mensagem pedindo uma nota de avaliação do serviço da companhia aérea.
A revolução tecnológica começou pelo Pronto Atendimento de São Pedro, antiga região de palafitas, erradicadas nas administrações de Vitor Buaiz (PT) e Paulo Hartung (MDB). Na administração do tucano Luiz Paulo Velozzo Lucas, da qual Rezende foi secretário de Saúde e de Educação, esses serviços foram ampliados. Mas, foi preciso muita inovação tecnológica para que a gestão da saúde fosse focada 100% na ponta do atendimento ao público. Quando os torpedos começaram a ser disparados, houve muitos questionamentos, porque tudo influencia a avaliação, e não apenas o atendimento médico propriamente dito. O PA de São Pedro, por exemplo, foi o mais mal avaliado. Esse resultado levou a que os diretores dos dois melhores postos de saúde da cidade fossem transferidos para lá, onde a população mais pobre da cidade é atendida na emergência, 24 horas, todos os dias, inclusive domingos e feriados. A média da avaliação dos usuários, em setembro passado, foi de 8,66. Mesmo com a pandemia, a menor nota de avaliação do PA de São Pedro foi 7,29, em março.
A chave para o alto desempenho foi a sinergia entre as secretarias de Saúde e da Fazenda, que colocou o time da subsecretaria de Tecnologia de Informação para desenvolver soluções que melhorassem a gestão da Saúde, obrigada a fazer mais com menos, devido à queda de 25% da arrecadação da cidade, com o fim do Fundap (fundo de desenvolvimento extinto em 2002, que beneficiava o complexo exportador capixaba). Ao contrário de outros municípios, que estão na latitude dos poços da Bacia de Campos, Vitória se beneficia pouco dos royalties de petróleo destinados aos capixabas.
Medicina a distância
Para melhorar o atendimento à população, o acesso à informação, a organização e o controle das unidades de saúde, a Secretaria Municipal de Saúde (Semus) registra a fila de atendimento, a classificação de risco, os procedimentos da sala de medicação, com prescrição e checagem de forma eletrônica. Os sistemas informatizados permitem agilizar procedimentos administrativos, gerenciais, de atendimento e acesso à informação de pacientes. Além disso, o sistema gera o prontuário eletrônico com os dados do atendimento prestado ao paciente. Para que o atendimento seja mais rápido, basta o usuário apresentar um documento com foto e ele será encaminhado para a classificação de risco. Depois, aguarda o atendimento médico ou odontológico de acordo com a gravidade do caso. As consultas são automaticamente remarcadas em caso de não confirmação. O time de engenheiros e programadores da prefeitura, funcionários de carreira, acabou com as filas de atendimento e reduziu a 5% as faltas às consultas médicas, que representavam 30% do total.
Além da rede de postos de saúde e centros de referência, a prefeitura mantém atendimentos psicossocial para adultos e infantojuvenil, de prevenção e tratamento de toxicômanos, atenção a idosos, gestantes e pediatria. São oferecidos serviços de cardiologia, dermatologia, endocrinologia, gastroenterologia, neurologia, obstetrícia (alto risco), oftalmologia, ortopedia, otorrinolaringologia, proctologia, psiquiatria, reumatologia, urologia, homeopatia, acupuntura e pequenas cirurgias, além de tratamento odontológico (radiologia, endodontia, periodontia e prótese dentária), e de diagnóstico de câncer de boca. Tudo gratuito. Além de equipes de médicos de família, agentes comunitários de saúde e orientadores de exercícios físicos.
E quando é que os jabutis subiram na árvore? Quando a pandemia do novo coronavírus passar, a medicina nunca mais será a mesma. As consultas por teleconferência, por exemplo, que foram introduzidas em massa na rede pública de Vitória durante a crise sanitária, vieram para ficar, assim como outras inovações tecnológicas introduzidas por lá. Acontece que grandes empresas de tecnologia já estão operando na área médica, aqui no Brasil, como a Afya, que oferece ensino especializado e treinamento a distância em larga escala (Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Pará, Tocantins e Distrito Federal). Há grande interesse na gestão dos serviços do SUS. As soluções que a Prefeitura de Vitória oferece de graça às demais prefeituras do país, via Frente Nacional de Prefeitos, na ótica dos grupos de medicina privada, são um grande business inexplorado. Por isso, as unidades básicas de saúde inacabadas do governo federal são quatro mil jabutis. Falta descobrir quem armou o “jabutizeiro” do SUS, que é muito maior. Com certeza, não foi enchente, foi mão de gente.
Luiz Carlos Azedo: Ideia de jerico
Faltou um memento mori, por exemplo, na hora em que Bolsonaro assinou o decreto autorizando estudos para privatização das unidades básicas de atendimento do SUS
Tem razão o general da reserva Rêgo Barros, ex-porta-voz da Presidência: falta alguém ao lado do presidente Jair Bolsonaro para dizer-lhe no ouvido: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal! A sentença latina intitula o artigo publicado, na terça-feira, pelo Correio Braziliense, com a assinatura do militar. É a mais dura crítica feita ao ex-capitão por um dos generais que apoiaram sua eleição e agora se arrependem. “Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião. É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.”
Rêgo Barros não cita Bolsonaro, mas é a ele que se refere quando alerta que os demais Poderes da República “precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do ‘imperador imortal’. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César”. Rêgo Barros foi defenestrado do cargo depois de uma longa queda de braço com o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, que dá as cartas na Comunicação Social do Palácio do Planalto.
Seu artigo reflete o pensamento de uma parcela dos altos oficiais das Forças Armadas, principalmente depois da humilhação a que foi submetido o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, desautorizado por Bolsonaro e, depois, constrangido a dar uma declaração, ao lado do chefe, dizendo que Bolsonaro manda e ele obedece. Na semana passada, no Dia do Aviador, durante a solenidade de entrega dos novos caças F-39E Gripen da Aeronáutica, era visível o constrangimento dos generais presentes, inclusive do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, para quem o cerimonial da Presidência reservou a cadeira mais distante do presidente da República, entre todas as autoridades presentes.
Entretanto, nada disso muda o fato de que Bolsonaro manda e os militares, de fato, obedecem, por dever constitucional. São poucos os militares que se manifestam contra Bolsonaro, a maioria apoia o governo incondicionalmente. Além de abrigar muitos oficiais no governo — estima-se que sejam em torno de sete mil, inclusive, alguns generais da ativa —, Bolsonaro poupou os militares na reforma da Previdência, mantendo o salário integral dos oficiais ao se aposentar, sem idade mínima obrigatória, e a contribuição máxima de 10,5% ao INSS, contra o teto de 11,68% na iniciativa privada.
Atendimento em massa
A propósito, faltou um memento mori, por exemplo, na hora em que Bolsonaro assinou o decreto autorizando a realização de estudos para privatização das unidades básicas do Sistema Único de Saúde (SUS), a cargo dos municípios, para espanto dos sanitaristas, dos prefeitos e da população que utiliza os serviços públicos, a maioria por não ter plano de saúde. A reação foi tão negativa nas redes sociais que Bolsonaro teve de cancelar o decreto, que incluía o sistema de atendimento básico — considerado um dos melhores do mundo — no programa de privatizações e parcerias público-privadas do Ministério da Economia. Como filho feio que não tem pai, ninguém assume a ideia de jerico. O governo divulgou a versão de que a proposta era do Ministério da Saúde. E que seria uma solução para conclusão de 4 mil UBS inacabadas, que já consumiram R$ 1,7 bilhão de recursos do SUS, obras de responsabilidade do governo federal.
Bolsonaro não levou em conta que o SUS atende 190 milhões de brasileiros, contra 46 milhões dos planos de saúde. Antes de sua criação, eram apenas 30 milhões. Produz 7,8 bilhões de medicamentos, sendo 163 milhões de antiretrovirais. Realiza 2 milhões de partos por ano, tem mais de 30 mil equipes de saúde da família e 248 mil agentes comunitários de saúde em 5.393 municípios. Graças a essa estrutura, com todas as suas deficiências, a tragédia da pandemia do novo coronavírus, que já matou 157,8 mil brasileiros, não é maior. Dos 5,4 milhões de infectados — Bolsonaro disputa com o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para ver quem lidera o país com maior número de casos —, 4,9 milhões recuperaram-se e 375,2 mil estão em recuperação. A esmagadora maioria utiliza os serviços do SUS.
Luiz Carlos Azedo: O golpismo disfarçado
Nossa Constituição é fruto de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, derrotados com a eleição de Tancredo Neves
O Chile decidiu em plebiscito convocar uma Constituinte formada por homens e mulheres, meio a meio, e sem a participação dos atuais mandatários, somente cidadãos. Foi o desfecho de um processo de insatisfação popular com o “Estado mínimo” chileno, uma herança do ditador Augusto Pinochet, consagrada na Constituição de 1980. Muita coisa mudou desde então, com sucessivas reformas constitucionais, mas o estigma de uma Carta pinochetista, ou seja, de inspiração fascista, havia permanecido, assim como o caráter privatista de uma legislação que não contemplava os direitos sociais. A convocação da Constituinte chilena, portanto, era uma questão de tempo e representará o fim de um ciclo político de 40 anos de transição do autoritarismo para a democracia plena.
É uma situação completamente diferente da nossa. Temos uma Constituição social-liberal, cujo preâmbulo diz que o nosso Estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. Nossa Constituição é fruto, simultaneamente, de um amplo processo de mobilização da sociedade e de um pacto de transição à democracia como os militares, que haviam sido derrotados com a eleição de Tancredo Neves, no colégio eleitoral, em 1985, mas se retiraram do poder em ordem.
Entretanto, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), ontem, no embalo das notícias sobre o Chile, propôs um plebiscito para elaborar uma nova Constituição para o nosso país. Não é uma tese nova. A ex-presidente Dilma Rousseff, após as manifestações de junho de 2013, por exemplo, namorou essa ideia, que foi prontamente rechaçada pelos políticos e pelos juristas. Agora, a proposta vem do outro lado do espectro político, com propósitos igualmente suspeitos, porque sabemos que o presidente Jair Bolsonaro gostaria de uma Constituição que lhe desse mais poderes em relação ao Judiciário e ao próprio Legislativo.
Muitos criticam a Constituição de 1988 porque é social-liberal. O pomo da discórdia é o seu artigo 3º, segundo o qual “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (I) construir uma sociedade livre, justa e solidária; (II) garantir o desenvolvimento nacional; (III) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (IV) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A existência desses dispositivos, principalmente quanto à economia e aos direitos sociais — ou seja, exatamente aquilo que os chilenos, ao aprovar a convocação da sua Constituinte, pleiteiam —, sempre incomodou os setores mais conservadores da nossa sociedade.
Mais poderes
No nosso caso, muitos podem achar que papel aceita tudo e que as coisas não funcionam por causa da Constituição de 1988. Não é verdade. Como diz o ex-deputado Miro Teixeira, um dos constituintes, nosso problema é cumpri-la. O que vem acontecendo ao longo dos anos é que o Supremo Tribunal Federal (STF), cuja missão é zelar pelo respeito à Constituição, vem sistematicamente tomando decisões que obrigam ao cumprimento de diversos dispositivos desse artigo, sobretudo em relação às liberdades e à igualdade de direitos. Uma parte das críticas à “judicialização da política” e às decisões do Supremo resulta do exercício desse papel, como “poder moderador”, ainda mais quando atua para garantir direitos relativos a mudanças nos costumes ou para conter abusos dos governantes.
Pode ser que Ricardo Barros tenha anunciado a proposta para agradar ao chefe, mas é ilusão imaginar que o líder do governo é um bobo da corte. Parlamentar experiente, que há muitos anos lidera setores conservadores do Congresso, viu no plebiscito chileno uma oportunidade. Muitos gostariam de mudar a Constituição por maioria simples, como acontece nas constituintes. Hoje, essas mudanças só podem ser feitas por três quintos dos membros da Câmara e do Senado, em duas votações, sendo que são cláusulas pétreas, ou seja, que não podem ser alteradas: (I) A forma federativa de estado; (II) O voto secreto, direto e universal; (III) A separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias individuais.
Agora mesmo, a propósito da polêmica sobre a obrigatoriedade da vacina contra o novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro investiu contra o Judiciário, com o argumento de que a Justiça não pode decidir sobre esse assunto, embora esteja diretamente relacionado à teoria do dano direto e imediato, consagrada no nosso Código de Processo Civil. Bolsonaro, por diversas vezes, investiu contra o Supremo por acreditar que o fato de ter sido eleito presidente da República lhe dá poderes maiores do que aquele que a Constituição lhe atribuiu. Mudar a Constituição, inclusive para alterar a composição da Suprema Corte e amordaçar a imprensa, reprimir a oposição e se reeleger sucessivas vezes foi o estratagema de muitos mandatários eleitos que governam seus países autoritariamente.
Luiz Carlos Azedo: Eleições pandêmicas
Ao se engajar nas candidaturas de Russomanno e Crivella, em vez de manter distância regulamentar, Bolsonaro corre o risco de ser o grande perdedor das eleições municipais
Eleições municipais nunca foram uma amostra grátis do que virá depois, nas eleições gerais, mesmo na época do regime militar. Por exemplo, em 1974 a oposição (MDB) obteve uma espetacular vitória nas urnas; em 1972, fora massacrada. Em 1976, sofreu nova derrota para o governo (Arena), mas em 1978, o MDB virou o jogo: o resultado das urnas sinalizou o fim da ditadura, iniciando-se a transição que resultou na anistia (1979), nas eleições diretas de governadores (1982) e na eleição de Tancredo Neves no colégio leitoral (1985) . Tirando São Paulo e Rio de Janeiro, as capitais mais cosmopolitas — em Brasília não há eleição —, é muito difícil captar tendências no processo eleitoral que sinalizem o que virá depois nas eleições gerais. Além disso, estamos vivendo um cenário a típico, sem debates e grandes comícios, o que faz o processo eleitoral se desenvolver em “home office”, para usar a expressão que representa a forma predominante de trabalho durante a pandemia.
Sim, as fábricas estão voltando a funcionar, o comércio também, mas não há o burburinho das ruas, nas padarias, nos barbeiros, nas filas das lotéricas e dos caixas dos supermercados, os sintomas de engajamento da grande massa de eleitores na disputa eleitoral. O embate se desenvolve nas redes sociais e, principalmente, nas listas de WhatsApp, subterrâneos nos quais as pessoas se organizam como “tribos”. São as listas da família, dos colegas de escola, dos amigos do futebol, dos parceiros de baralho, dos colegas de trabalho etc. As pessoas se relacionam por afetos e interesses; é assim, de forma compartimentada, segmentada, confinada, em bolhas, que o processo eleitoral hoje ganha a escala da democracia de massas. Somente as urnas eletrônicas poderão nos revelar os mistérios do voto popular.
Polarização
As pesquisas indicam — sempre elas — que apenas seis capitais estariam com as eleições decididas: Natal, com Álvaro Dias (PSDB), reeleição; Salvador, Bruno Reis (DEM); Campo Grande, Marquinhos Trad (PSD), reeleição; Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), reeleição; Curitiba, Rafael Grecca (DEM), reeleição; e Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), reeleição. Mesmo assim, é bom dar um desconto: reviravoltas acontecem, pesquisas nem sempre são tiro e queda. Nas demais capitais, há disputa acirrada e perspectiva de segundo turno.
Destacam-se São Paulo, onde o pleito está se polarizando entre o prefeito Bruno Covas (PSDB), que tenta a reeleição, e Celso Russsomano (REP), que começou na frente e está derretendo, mais uma vez; e Rio de Janeiro, onde o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) se mantém na liderança, faturando o desgaste do prefeito Marcelo Crivella (REP), que fez uma gestão “terrivelmente evangélica” e queimou o filme dos pastores. Guilherme Boulos (PSOL) e a delegada Marta Rocha(PDT) correm por fora, nas duas capitais, respectivamente.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, há engajamento do presidente Jair Bolsonaro nas candidaturas de Russomanno e Crivella. Embora venha mantendo distância regulamentar da maioria das disputas municipais, até porque não conseguiu formar um partido para disputá-las, nos dois casos o presidente da República corre o risco de ser o grande perdedor das eleições. Sua alternativa será jogar todo o seu prestígio e mobilizar seus aliados nas disputas de segundo turno, não só nessas capitais mas também nas demais cidades, o que será uma manobra de alto risco.
Bolsonaro correria o risco de perder seu favoritismo nas eleições de 2022. É preciso uma administração muito desastrada na politica para inviabilizar a reeleição, porém, um estado de calamidade financeira pode tornar a tarefa do gestor uma missão impossível, como aconteceu com Saturnino Braga (PDT), no Rio de Janeiro, cuja falência decretou em 1988. Com a dívida pública igual a 100% do PIB, esse risco também existe para Bolsonaro, se fracassar na economia. Aliás, o fracasso financeiro vem sendo o carma dos governantes gaúchos, que não conseguem se reeleger, como se houvesse uma maldição de Borges de Medeiros no Palacio Piratini, construído para ser o mais belo do Brasil, com esculturas de Paul Landowski, criador do Cristo Redentor, telefone folheado a ouro, réplicas dos lustres do Palácio de Versalhes e murais de Aldo Locatelli. O caudilho gaúcho foi presidente do Rio Grande do Sul de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928, quando passou o poder a Getúlio Vargas, porque o Acordo de Pedras Altas (1923) proibira a reeleição.
Luiz Carlos Azedo: Desinvestimento no futuro
“O governo não se convence de que a floresta em pé, com sua biodiversidade, é uma fonte inesgotável de riquezas. Houve uma mudança de paradigma na economia”
O presidente da República, Jair Bolsonaro, afirmou, ontem, que convidará diplomatas estrangeiros para visitar a floresta amazônica, que não verão “nada queimando ou sequer um hectare de selva devastada”. A afirmação foi feita na formatura dos novos diplomatas do Itamaraty, que aprenderam tudo ao contrário no Instituto Rio Branco e ficaram estupefatos. No fundo, essas declarações de Bolsonaro são pura contra-informação, uma tentativa de criar uma cortina de fumaça para encobrir a nossa crise ambiental, nos dois sentidos: de um lado, protege os predadores das florestas — grileiros, garimpeiros, madeireiros, pecuaristas e fazendeiros inescrupulosos —, que continuam fazendo queimadas e desmatando; de outro, tenta enganar a opinião pública mundial quanto à política antiambientalista de seu governo, o que já não cola mais nem no exterior.
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de janeiro a setembro deste ano, foram registrados 76.030 pontos de fogo. A última vez em que houve registro de número superior foi em 2010 — 102.409, em igual período. No mesmo dia em que Bolsonaro deu a declaração, o Ibama determinou a interrupção do trabalho de todas as brigadas de incêndio, por falta de recursos financeiros, sendo que alguns contratos estão com pagamentos atrasados há três meses. Na verdade, a estratégia do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, é inviabilizar o cumprimento da legislação ambiental ainda vigente, que, por enquanto, não teve força para derrubar, e desmantelar seus órgãos de controle, o Ibama e o ICMBio.
As declarações de Bolsonaro sobre a Amazônia estão em contraposição aos fatos. No exterior, isso passa a ideia de um governo descomprometido com a verdade, que tenta mascarar seus atos com uma narrativa insustentável. No plano internacional, é um desastre de grandes proporções, que pode ter a mesma consequência que sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas tiveram durante o regime militar: perda total de credibilidade junto às chancelarias e aos investidores. Com o agravante de que uma eventual derrota do presidente Donald Trump nas eleições norte-americanas, com a eleição do democrata Joe Biden, pode resultar numa invertida semelhante àquela que houve no governo do general Ernesto Geisel, com a eleição do democrata Jimmy Carter.
O Palácio do Planalto é prisioneiro dos velhos conceitos do regime militar sobre a ocupação e a exploração da Amazônia, que se baseavam no binômio integração e desenvolvimento e se traduziam na construção de rodovias, mineração e derrubada da mata para exploração comercial e produção agrícola. Hoje, tudo mudou, são outros os paradigmas, mas o governo não se convence de que a floresta em pé, com sua biodiversidade, é uma fonte inesgotável de riquezas. Além disso, não se dá conta de que houve uma mudança de paradigma na economia mundial, que já registra um grande desinvestimento na economia do carbono. Cada vez mais, as grandes empresas e fundos de investimentos submetem suas decisões ao crivo do politicamente correto do ponto de vista ambiental. E nós estamos fazendo tudo errado.
Mercado
Talvez, o melhor exemplo dessa mudança seja a estratégia adotada pelo Rockefeller Brothers Fund, que, em 2015, deixou de investir no mercado de petróleo e carvão e passou a apostar na economia verde. A fortuna da família Rockefeller foi construída com base no petróleo, mas, agora, está sendo direcionada para um movimento global de investidores interessados em descarbonizar a economia, como estratégia de reduzir os riscos de seus investimentos a médio e longo prazos. Mais de 500 instituições possuidoras de US$ 3,4 trilhões em ativos assumiram compromissos para ações de desinvestimento, ou seja, retirar a aplicação de seu capital de empresas e atividades econômicas intensivas em carbono. E os chamados Investimentos Sustentáveis e Responsáveis (ISR, ou SRI, na sigla em inglês), segundo a Global Sustainable Investment Review, realizados com critérios de sustentabilidade, entre eles, o de baixo carbono, representam mais de 30% dos ativos nos mercados de Europa, Estados Unidos, Canadá, Ásia, Japão, Austrália e África. São mais de US$ 60 trilhões que estão em jogo.
No momento, a grande dor de cabeça do ministro da Economia, Paulo Guedes, é a alta vertiginosa dos juros futuros, que estão três vezes mais caros do que a taxa Selic. Isso significa que o governo está tendo de se endividar muito mais para que o Banco Central (BC) consiga vender os títulos da dívida pública, além de encurtar o prazo de resgate desses títulos de seis para dois anos, o que pode resultar numa crise financeira grave em 2022. Esse fenômeno está sendo atribuído aos gastos públicos com a pandemia do novo coronavírus, porém, não é somente consequência de a dívida pública ter chegado próximo a 100% do PIB, o que aumentou o poder de barganha dos compradores. O outro lado dessa moeda é a fuga crescente dos investimentos produtivos, entre outras razões, por causa da política ambiental.
Luiz Carlos Azedo: A teoria do dano e a vacina
Bolsonaro não leva em conta que uma pessoa infectada, por se recusar a tomar a vacina, pode contaminar as outras, com consequências trágicas e irreparáveis
A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.
Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.
Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião pública para convencer as pessoas a não tomarem certas atitudes, mas condenava a repressão direta a ações individuais que afetam apenas a própria vida. É possível desenhar a sua “teoria do dano”: todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos eventualmente causados por um indivíduo a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias sobre a liberdade individual continuam atuais.
Rebanho
No Brasil, a “teoria do dano” foi introduzida na nossa jurisprudência no Código Civil de 1916, que estabeleceu um nexo causal entre o dano e o fato que o produziu, e foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de 2002. Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado pode ser processado pelos prejuízos causados aos cidadãos. Por ironia, em tempos de pandemia e de “imunização de rebanho”, ou seja, da necessidade de vacinação em massa para combater o novo coronavírus, um caso analisado pelo jurista Robert Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil francês de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os bois do comprador, impedindo-o de cultivar suas terras. Ciente do vício oculto, o vendedor responde pelo perecimento da vaca como também pela morte do restante do rebanho do comprador.
No caso da vacina contra o coronavírus, que na sua opinião não deve ser obrigatória, o presidente Jair Bolsonaro não leva em conta o dano que pode ser causado voluntariamente por uma pessoa infectada, ao contaminar as outras, por se recusar a tomar a vacina. O governo também pode ser responsabilizado por não utilizar uma vacina disponível. Apesar disso, cancelou o acordo feito entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, do governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, que serão produzidas por aquela consagrada instituição científica, em parceria com o laboratório chinês, com previsão para estar pronta para imunização já em dezembro.
Anulou o protocolo assinado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, com todos os governadores, para aquisição e aplicação da vacina, com o argumento absurdo de que o “povo brasileiro não será cobaia” da “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo. Alguém precisa avisar ao presidente que isso pode gerar uma enxurrada de pedidos de indenização por “dano direto e imediato” e caracterizar um “crime de responsabilidade”.
Luiz Carlos Azedo: Tudo é perigoso
Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo a batalha para a violência
A música Divino, Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, veio à lembrança por causa da morte do jovem Caio Gomes Soares, atingido por uma bala perdida após levantar da cama para pegar um suco, por volta das 7h de ontem, no Catumbi, Rio de Janeiro. Faleceu nos braços da irmã, sem tempo de receber socorro. É uma canção de 1968, que faz parte do antológico disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circenses, do qual participaram também os Mutantes, Tom Zé, Nara Leão e Gal Costa, que interpretou a canção da forma explosiva que viria a ser sua marca registrada.
“Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”. Atenção para a estrofe e para o refrão: a música fala do perigo ao dobrar uma esquina, do que pode cair do alto de uma janela, do cuidado ao pisar no asfalto e do sangue no chão. Não havia naquela época o perigo de levar um tiro por ir até a geladeira, para tomar um refrigerante, em certas localidades do Rio de Janeiro.
Um tiroteio entre traficantes e policiais no Morro da Coroa teria sido a origem do disparo que matou o jovem Caio, num bairro tradicional do Rio de Janeiro, muito próximo do centro histórico da cidade, um dos cenários de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A obra de Machado de Assis inaugurou o nosso realismo, ao retratar a escravidão, as classes sociais, o cientificismo e o positivismo de sua época. Entre o Rio Comprido, Santa Teresa e o Estácio, hoje, o Catumbi não é mais um bairro abastado. É um território em frequente disputa entre traficantes e milicianos, principalmente por causa da proximidade do Morro de São Carlos, onde existe uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Polícia Militar fluminense, e o túnel Catumbi-Laranjeiras, de acesso à Zona Sul carioca, que o transformou num bairro de passagem.
Numa estatística macabra, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o número de homicídios no Brasil não para de subir. Estamos perdendo novamente a batalha para a violência, resultado de uma política de segurança pública que facilita a venda de armas, estimula a justiça pelas próprias mãos e tolera a formação de milícias, fenômeno que está sendo exportado do Rio de Janeiro para os demais estados do país, sem que se tenha muita noção do perigo que isso representa.
Pesquisa divulgada neste fim de semana sobre a expansão de organizações criminosas no Rio revela que milícia e tráfico estão presentes em 96 dos 163 bairros da cidade, nos quais vivem 3,76 milhões de pessoas, do total de 6.747.815 habitantes da capital fluminense: 2,1 milhões de pessoas (33% da população) vivem em área sob o comando de milícias; 1,1 milhão de pessoas (18,2% da população) vivem em área dominada pelo Comando Vermelho; 337,2 mil pessoas (5,1% da população) vivem em área dominada pelo Terceiro Comando; 48,2 mil pessoas (0,7% da população) vivem em área dominada pelo Amigos dos Amigos.
Enquanto isso…
Em Brasília, a cúpula do Senado pressiona o senador Chico Rodrigues (DEM-RR) para que se licencie do cargo, antes do julgamento da liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que o suspendeu do mandato, previsto para amanhã, no plenário da Corte. O parlamentar foi flagrado pela Polícia Federal (PF) tentando esconder R$ 33,1 mil na cueca, durante operação de busca e apreensão em sua residência. Agora, alega que o dinheiro era destinado ao pagamento de funcionários e tenta justificar a sua posse, argumento que não cola na opinião pública, mas é a linha de defesa de seus advogados. Os senadores do grupo Muda Senado querem cassar seu mandado no Conselho de Ética, mas o presidente do órgão, senador Jayme Campos (DEM-MT), seu colega de partido, se recusa a convocar uma reunião do colegiado — prefere sugerir que Chico se licencie logo.
Por sua vez, Bolsonaro resolveu reiniciar sua campanha negacionista contra a obrigatoriedade do uso da vacina contra a covid-19: “Tem uma lei de 1975 que diz que cabe ao Ministério da Saúde o Programa Nacional de Imunização, ali incluídas possíveis vacinas obrigatórias. A vacina contra a covid — como cabe ao Ministério da Saúde definir esta questão — não será obrigatória”, disse, em cerimônia no Palácio do Planalto, para apresentação de pesquisa sobre um medicamento. Completou: “Qualquer vacina precisa ter comprovação científica e ser aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”. Foi uma resposta ao governador de São Paulo, João Doria, que anunciou ontem a intenção de iniciar a vacinação contra a covid ainda neste ano. Uma vacina chinesa que está sendo testada pelo Instituto Butantan.
Luiz Carlos Azedo: Dinheiro na cueca pode?
A verdade pode ser distorcida para obter vantagem política, aproveitar o momento mais conveniente, obter a resposta desejada, favorecer pessoas, priorizar fatos e reescrever a História
Coluna boi com abóbora, como diria meu querido Noca da Portela, rende polêmicas inesperadas. Foi o que aconteceu na sexta-feira, comigo, por causa da grana na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado pela Polícia Federal, supostamente, tentando ocultar provas e obstruir a ação da Justiça durante uma operação de busca e apreensão em sua residência, em Boa Vista. Vice-líder do governo Bolsonaro no Senado, a notícia se espalhou pelo mundo e virou meme nas redes sociais, porque o parlamentar governista tentara esconder R$ 33,1 mil no calção do pijama, uma parte nas nádegas, dentro da cueca. Havia pedido para ir ao banheiro, e o delegado desconfiou do grande volume dentro do pijama. A versão vazada era de que o senador se borrou todo, nervoso, quando sofreu a revista íntima.
Diz um velho jargão das redações: um homem ser mordido por um cachorro não é notícia (não é bem assim), ela só existe quando o homem morde o cachorro, fato que nunca vi registrado nos jornais. Já vi atirar ou espancar um animal. Era óbvio que a história do senador Chico Rodrigues seria o assunto político do dia, a ponto de ofuscar o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do polêmico habeas corpus do traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, que havia sido concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), e fora suspenso pelo presidente daquela Corte, ministro Luiz Fux. Como vinha acompanhando o julgamento, tive de tratar dos dois assuntos na mesma coluna, intitulada “O traficante e o senador”.
O julgamento do caso de André do Rap terminou 9 a 1, a favor da excepcionalidade da suspensão do habeas corpus, mas gerou muita discussão entre os ministros sobre: a) o poder de Fux no comando do tribunal para sustar liminares dos pares, contestado pela maioria; b) as fragilidades do sistema de distribuição de processos (o advogado entrou com nove habeas corpus sucessivos e os retirava sempre que julgava que o ministro escolhido não o concederia, até ser distribuído para Marco Aurélio, que já havia concedido mais de 70 liminares com a mesma interpretação literal da lei); c) a sucessão de omissões da Justiça, do Ministério Público e das autoridades policiais quanto ao caso de André do Rap; e d) a libertação automática dos presos preventivamente, caso o juiz não faça a revisão a cada 90 dias, que, no entendimento da maioria, com exceção de Marco Aurélio, não deve ocorrer mais.
Toda a confusão deu-se por causa da exegese do artigo 316 do Código de Processo Penal, que diz, em seu parágrafo único: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”. Marco Aurélio Mello interpretava ao pé da letra o citado artigo e mandava soltar todos os presos nessa situação, cujos casos fossem parar em suas mãos, inclusive, André do Rap, segundo o princípio do direito germânico-romano, predominante na legislação brasileira, de que a lei precede o fato, não importa o “paciente” nem as consequências. É o que os advogados chamam de “bom direito”.
Ombudsman
Voltemos ao dinheiro na cueca, que entrou para o nosso folclore político mais escatológico. Ao ler a coluna de sexta-feira, um querido amigo, em mensagem pela mesma rede social pela qual havia lhe enviado a coluna, indagou: “Mas o crime é carregar dinheiro na cueca?”. Dei-me conta de que estava diante de um questionamento ético, uma discussão muito séria. Tentei explicar: ocultação de prova e obstrução da justiça. E arrematei: vai acabar cassado e preso, por causa do desvio do dinheiro das emendas. Aí veio o questionamento definitivo: “Aí, sim. Mas levar dinheiro na cueca, eu fiz muitas vezes, quando viajava sem cartão de crédito. Mas a manchete tem sido: ‘Dinheiro na cueca’. Pois é. Não é crime. É bullying! ”
Meu ombudsman acidental tem razão. Não é crime mesmo, quem já não viajou com dinheiro e documentos numa pochete sob as vestes para evitar furtos? Eis a questão, estamos diante de uma situação em que a notícia não é o crime, a investigação ainda tem de provar a origem ilícita do dinheiro. Penso que isso acabará acontecendo, mas, quem acha vive se perdendo, advertia Noel Rosa. O parlamentar já foi lançado ao mar pelo presidente Jair Bolsonaro, de quem era próximo, e não será surpresa se seu mandato for cassado por seus pares no Senado, como já aconteceu outras vezes, porque a situação é muito desmoralizante para a vetusta instituição. Tanto que o ministro Luís Roberto Barroso, sem pestanejar, afastou-o do mandato por 90 dias, decisão monocrática que causou mal-estar entre os políticos. A cúpula do Congresso tem ojeriza a isso, porém, não reage, para não afrontar a opinião pública.
Os fatos ocorrem e são registrados como História, os meios de comunicação têm um papel fundamental nisso. Entretanto, como já advertiu Hanna Arendt, a verdade desses eventos pode ser distorcida para justificar uma ação política particular, garantir a revelação dos fatos num momento mais conveniente, assegurar a resposta desejada em determinados momentos e reescrever a história para favorecer certas pessoas ou priorizar certos fatos. A ação policial na casa do senador Chico Rodrigues foi documentada e está anexada aos autos do processo, mas os vídeos da revista íntima foram mantidos em sigilo de Justiça, trancados num cofre, por determinação do ministro Barroso. A divulgação de que o senador estava com dinheiro nas nádegas, o que, por si, não é crime, como já foi dito, fez da operação de busca e apreensão um fenômeno midiático mundial. Entretanto, se não for comprovada a origem ilícita do dinheiro, nada poderá ser feito contra ele, além de exigir o pagamento do Imposto de Renda. Quem se desgasta com a tese de que a polícia prende e a justiça solta, como no caso de André do Rap? O Supremo.
Luiz Carlos Azedo: O peso da imprudência
Falta-nos um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades
Num de seus ensaios sobre a França no século XX — O peso da responsabilidade (Objetiva) —, o historiador britânico Tony Judt, falecido em 2010, aos 62 anos, analisa a vida pública francesa entre a Primeira Guerra Mundial e os anos 1970. Como se sabe, o primeiro grande Estado-nação da Europa influenciou toda a história moderna do Ocidente, em razão da Revolução Francesa e da Comuna de Paris. Por essa razão, Judt não esconde seu espanto com “a incompetência, a ‘insoucience’ indiferença e a negligência injuriosa dos homens que governavam o país e representavam seus cidadãos” nesse período, e dedica o livro a Léo Brum, Albert Camus e Raymond Aron, intelectuais franceses que nadaram contra a maré e confrontaram seus pares.
Segundo Judt, o problema da França era mais cultural do que político. Os deputados e senadores de todos os partidos, presidentes, primeiros-ministros, generais, funcionários públicos, prefeitos e dirigentes de partidos “exibiam uma assombrosa falta de entendimento de sua época e do seu lugar”. Para um país que no começo do século teve grandes líderes políticos, como o socialista Jean Jaurès, que tentou evitar a I Guerra Mundial e morreu assassinado num comício pela paz, e George Clemenceau, primeiro-ministro durante a guerra e um dos artífices do Tratado de Versalhes, chama atenção a petrificação das suas instituições políticas no período. Traumatizada pelo sangrento desastre que foi o conflito mundial, a França foi polarizada pela radicalização ideológica que antagonizava comunistas e socialistas, de um lado, liberais e fascistas, de outro, em toda a Europa, e imobilizava o país.
Dividida entre um anseio pela prosperidade, equivocadamente inspirada no passado, e pela estabilidade dos anos anteriores à guerra, de um lado, e as promessas de reforma e renovação a serem pagas com recursos financeiros da punição à Alemanha, de outro, a elite francesa não tinha a menor chance de acertar. Qualquer tentativa de mudança em favor de melhores condições de vida para os franceses era barrada por uma política polarizada entre esquerda e direita, toda reforma institucional ou econômica era tratada como um jogo de soma zero. O desfecho foi a ocupação alemã, período ainda mais traumático, do qual a França foi salva pela vitória dos aliados, sem embargo da heroica resistência dos maquis.
A crítica de Judt é duríssima: “Que a França tenha sido salva de seus líderes políticos, de um modo como não podia ser salvar década antes, se deu graças a grandes mudanças no pós-guerra nas relações internacionais. Membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), beneficiária do Plano Marshall e cada vez mais integrada à nascente comunidade europeia, a França não dependia de seus próprios recursos e decisões para ter segurança e prosperidade, e a incompetência e os erros de seus governantes lhe custaram muito menos do que ocorrera em anos anteriores”.
Um paralelo
A tradução literal de “insoucience” é imprudência. Essa é a palavra-chave do paralelo entre esse período da história francesa e a política brasileira atual. Talvez a maior imprudência visível seja a atual política ambiental, que está fadada ao desastre absoluto, porque assentada em base políticas e ideológicas com 50 anos de atraso, ou seja, que remontam à estratégia de ocupação e exploração econômica da Amazônia do regime militar. Suas consequências de curto prazo — perda de investimentos, dificuldades de comercialização de produtos e isolamento internacional —, apontam para um desastre muito maior, porque o mundo passa por uma mudança de padrão energético que está nos deixando muito para trás, como aconteceu na Segunda Revolução Industrial, à qual só viemos a nos incorporar na década de 1950.
A questão ambiental é apenas a ponta do iceberg: falta-nos um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades, no espaço de uma ou duas gerações. Ninguém tem uma fórmula pronta e acabada para isso. A única certeza é que os velhos paradigmas, que alimentam a polarização ideológica atual, não são capazes de dar as respostas adequadas aos problemas brasileiros. O pior é que o velho nacional desenvolvimentismo e os populismos de direita e de esquerda rondam as instituições políticas, sem que nenhuma dessas vertentes tenha a menor capacidade de dar respostas adequadas às contradições atuais.
A Revolução Francesa inspirou nossas instituições políticas, assim como a Revolução Americana, matriz das nossas ideias federativas. Tanto a França como os Estados Unidos, porém, vivem novos dilemas, com a revolução tecnológica e a globalização, em que perdem protagonismo econômico e político, a primeira para Alemanha, os segundos para a China. Esses quatro países protagonizam as linhas de força do desenvolvimento mundial, no qual precisamos nos inserir de maneira mais proativa. Nenhum deles, porém, nos serve de modelo de desenvolvimento.
Os Estados Unidos não nos darão de bandeja um Plano Marshall, o Mercosul está cada vez mais na contramão da União Europeia e não nos interessa a militarização do Atlântico Sul. Precisamos traçar o nosso próprio rumo. Nossos gargalos econômicos e sociais têm raízes ibéricas (patrimonialismo, compadrio, clientelismo) e escravocratas (a exclusão social e o racismo estrutural). O xis da questão é produzir uma nova síntese sobre a realidade brasileira e, politicamente, desatar os nós institucionais que impedem o nosso desenvolvimento sustentável. Nossa elite política não tem se demonstrado capaz de cumprir essa tarefa.
Luiz Carlos Azedo: Dia das Crianças
Passou da hora de as crianças terem uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e eletrônicos
Vivemos tempos sem beijos nem abraços, entre amigos, familiares e até mesmo os amantes. A vida virou uma roleta-russa, todo dia chega uma notícia triste de alguém que morreu e, em maior número, para nossa alegria, das pessoas queridas que sobreviveram à Covid-19. O isolamento social está sendo quebrado à medida em que a taxa de transmissão da doença diminui e as pessoas ficam mais confiantes de que podem desenvolver certas atividades essenciais, com os devidos cuidados. Todos torcem pela vacina eficaz, chinesa, russa, inglesa ou norte-americana, e se arriscam um pouco mais.
Tempos darwinistas sob todos os pontos de vista: sanitário, econômico, social. A sobrevivência humana não está ameaçada, muitos tiram a doença de letra, como se fosse uma “gripezinha”, mas a capacidade de adaptação às contingências do momento é mais importante do que a resistência física de cada um para sobreviver à pandemia. Para isso servem a ciência e a consciência humana. Como diz o ditado, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Depois de tanto tempo, as comorbidades começam a se tornar um problema muito grave, porque as pessoas deixaram de ir ao médico e ao dentista, reduziram as atividades físicas, alimentam-se por ansiedade, adiaram ou interromperam tratamentos, subestimam pequenos sintomas, enfim, não dão importância aos sinais que o corpo nos envia. E têm os nervos à flor da pele, o que agrava conflitos familiares e problemas psicomentais.
Mas, há muita esperança e fé. Amanhã é dia das crianças, os clubes estão abrindo para recebê-las em relativa segurança, apesar da pandemia. Os templos também promovem cultos, recebendo as famílias com maior ou menor distanciamento social, dependendo da fé na ciência de cada padre ou pastor. Criança é sinônimo de futuro. As escolas, porém, estarão fechadas. Desperdiçam a oportunidade de virar o jogo, jogar todos para cima. Por um desses mistérios da criação, desculpem-me o trocadilho, crianças têm menos vulnerabilidade ao coronavírus, quando não têm comorbidades, é claro; porém, podem ser agentes transmissores da doença, porque geralmente são assintomáticas quando contaminadas, dizem os especialistas. Por causa disso, os adultos estão com inconfessável medo das crianças, isso é um problema.
— Azedo, você não vai escrever sobre as crianças?
A pergunta foi feita por um amigo querido, o pediatra carioca Ricardo Chavez, parceiro de muitos blocos e passeatas, preocupado com o fato delas não estarem frequentando a escola. Entre os primeiros a defender o isolamento social, avalia que já passou da hora de as crianças terem uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e outros equipamentos eletrônicos. Mandou-me um artigo excelente sobre o tema, da colega Ruth de Aquino, de quem foi um dos interlocutores, que recomendo. Repassei o texto e a pergunta para outro amigo querido, Luciano Rezende, prefeito de Vitória, que conclui o segundo mandato com reconhecido êxito administrativo e zero escândalos em oito anos. Médico também, respondeu-me dizendo a mesma coisa. Seu problema é convencer diretores de escola, professores e pais de alunos, na rede pública.
Pacto perverso
De memória, porque emprestei o livro e não me devolveram ainda, lembro de certa passagem de A quarta revolução (Portfólio/Penguin), de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, sobre a desilusão da sociedade com os governos. O Ocidente está ficando para trás. Não se trata da chamada indústria 4.0, como o título induz, mas da necessidade de uma nova revolução política para reinventar o Estado. Vivemos uma corrida em busca de eficiência e eficácia, não apenas nas inovações tecnológicas. Estão em jogo os valores políticos que triunfarão no século XXI. Vem daí a tensão no mundo entre forças reacionárias e democráticas.
Quando o livro fala dos lobbies corporativos, cita dois exemplos da Califórnia. O dos agentes penitenciários, focado na luta contra a violência e a criminalidade, que conseguiu endurecer a legislação e multiplicar o número de presídios e a população carcerária, sem reduzir a violência, é claro. E o dos professores, que tem muito mais poder de pressão sobre os políticos, porque conseguem mobilizar os pais de alunos. Pesquisando, vi que em abril do ano passado, por exemplo, pais de alunos de São Francisco promoveram uma campanha para arrecadar fundos para uma professora, após descobrirem que ela, além de lutar contra um câncer de mama, pagava seu próprio substituto na escola. O relato do caso no San Francisco Chronicle gerou indignação em escala nacional, chegando ao Senado. Ao jornal The Washington Post, Eric Heins, presidente da Associação dos Professores da Califórnia, denunciou que o sistema de financiamento da educação sobrecarrega os professores e não os poupa, nem mesmo em momentos críticos, como períodos de doença grave.
Desde 1970, na Califórnia, o acordo coletivo dos professores garante 10 dias de folga para tratamento de saúde, que podem ser prorrogados por mais 100 dias, mas são descontadas do salário as despesas com o substituto, entre US$ 174 e US$ 240 a diária. Um educador infantil recebe por mês, em média, US$ 4.931,67; um professor primário, US$ 4.971,67; no ensino médio, US$ 5.138,33. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em relatório de terça-feira passada, no ensino infantil brasileiro os professores receberiam por mês o equivalente a US$ 2.063,75; no primeiro grau do ensino fundamental, US$ 2.083,75; e no segundo, US$ 2.089,33. A alta do dólar, com certeza, distorceu esses números. O piso do Fundeb é de R$ 2.886,24, sendo que apenas 11 estados cumprem essa regra, segundo o Dieese. No câmbio oficial, isso equivale a US$ 521,04. Por isso, desconfio que as nossas escolas públicas já não estão fechadas por causa da pandemia; estão sem aulas por causa dos salários e, em muitos casos, das condições em que se encontram. Quem paga o pato são as crianças.