Memória

Luiz Carlos Azedo: A grande travessia

A transmissão do novo coronavírus do Brasil deu um salto: formou-se uma segunda onda, na qual 100 infectados contaminam outras 130 pessoas

Os brasileiros estão diante de uma grande travessia, como o jagunço Riobaldo no romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: “Viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa…”. Essa forma de encarar a vida faz parte do nosso inconsciente coletivo, principalmente em razão da secular iniquidade social em que vive a maioria da população, ou seja, está entranhada na camada mais profunda e inata do nosso inconsciente social. Grande Sertão: Veredas foi publicado em 1956, sem capítulos e com mais de 600 páginas. Guimarães Rosa fundiu o experimentalismo linguístico e a temática regionalista do movimento modernista numa obra universal e, ao mesmo tempo, capaz de capturar a alma dos caboclos mineiros, no relato de Riobaldo sobre suas lutas, seus medos e o amor reprimido por Diadorim.

A analogia faz todo sentido. É mais ou menos o que acontece nesta pandemia, que está entrando numa segunda onda, com a maioria da população se arriscando, estoicamente, para manter algum nível de atividade econômica e renda, enquanto outra parcela está se expondo sem necessidade alguma, por pura irresponsabilidade e/ou negacionismo. A taxa de transmissão do novo coronavírus no Brasil deu um salto, chegando a 1,30 na última semana epidemiológica, o que equivale aos índices de maio passado, segundo o Imperial College de Londres. Isso significa que se formou uma segunda onda, na qual 100 infectados contaminam outras 130 pessoas. Como a pandemia estava em baixa, mas não havia acabado, essa segunda onda começa de um patamar muito elevado. O resultado imediato são enfermarias dos hospitais começando a ficar lotadas, na maioria das cidades.

A situação é agravada pelo fato de o presidente da República, Jair Bolsonaro, ser um negacionista, que paralisa as ações do Ministério da Saúde nas três esferas em que deveria atuar: a prevenção (é contra o isolamento social), o diagnóstico (seis milhões de testes estão se deteriorando nos estoques do governo) e o tratamento (é responsável por apenas 5% dos leitos). Mesmo as vacinas que estão em fase final de testes, não têm ainda um planejamento adequado para a compra do medicamento e a vacinação em massa da população.

Não fosse o Sistema Único de Saúde (SUS), sob comando de prefeitos e governadores, a situação seria muito pior. Entretanto, temos um presidente da República que responsabiliza-os pelos graves prejuízos causados pela pandemia, em vez de agradecer o esforço que fazem para proteger a população. A última de Bolsonaro foi afirmar que os testes de coronavírus que estão se deteriorando nos estoques do governo federal haviam sido distribuídos para os estados e municípios, o que não ocorreu.

Vacinas

Ontem, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou para que, num prazo de 30 dias, o Ministério da Saúde apresente um plano de vacinação em massa da população. É uma missão complicada para o ministro Eduardo Pazuello, em razão das idiossincrasias do presidente Jair Bolsonaro, que transformou a aquisição de vacinas numa guerra política, embora o Brasil tenha parcerias para a futura produção de três vacinas:

A ChAdOx1, desenvolvida pela AstraZeneca/Oxford, que será produzida em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, com investimentos previsto de R$ 1,9 bilhão na produção de 100 milhões de doses.

A CoronaVac, da farmacêutica chinesa Sinovac, que será adquirida pelo governo de São Paulo e produzida pelo Instituto Butantan, com chegada de 120 mil doses para uso imediato, mas que depende de autorização da Anvisa.

E a Sputinik V, do Instituto Gamaleya, da Rússia, que está sendo adquirida pelo governo do Paraná.

Diante da segunda onda, com as finanças do governo exauridas e o sistema de saúde pública sob forte pressão, já passou da hora de o presidente Jair Bolsonaro baixar a bola e deixar que os sanitaristas façam seu trabalho. “Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas”, diria o Riobaldo. “Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto.” Tudo que a população deseja é acordar do pesadelo e tomar uma vacina eficaz contra o vírus.

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Luiz Carlos Azedo: A competência à prova

Nem nos governos militares houve tantos oficiais de alta patente em posições que normalmente seriam ocupadas por servidores civis na Esplanada dos Ministérios

Desde a criação do Dasp, em 1938, no Estado Novo, por Getúlio Vargas, no auge de seu período ditatorial, houve um grande esforço no Brasil para a criação e a manutenção de uma burocracia capaz de garantir a “racionalidade” e neutralizar a “irracionalidade” da política na administração federal. A ideia era formar um quadro de servidores civis capazes de operar uma máquina pública moderna, num país que iniciava a sua transição do agrarismo para a industrialização e que, consequentemente, ingressava num processo de urbanização acelerada.

Mesmo durante o regime militar, essa preocupação foi mantida, consolidando alguns centros de excelência que se formaram ao longo dos anos, como o Itamaraty, a Receita Federal, o Banco Central, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea); e alguns órgãos de pesquisas científicas, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), além de empresas estatais como a Petrobras e o Banco do Brasil. Sem desconsiderar outras áreas técnicas do governo, esses exemplos ilustram o raciocínio.

Obviamente, as Forças Armadas fazem parte desse universo dos centros de excelência, sobretudo após o governo do general Ernesto Geisel, que acabou com a bagunça na hierarquia militar, implantando efetivamente regras que haviam sido concebidas já no governo do general Castelo Branco, o que possibilitou a efetiva profissionalização e renovação da carreira militar. Foi o desfecho de uma disputa com seu ministro do Exército, Sílvio Frota, exonerado do cargo por liderar a “linha dura” contrária à “abertura política” e tentar impor sua candidatura à Presidência, como o fizera o general Costa e Silva com Castelo Branco.

Esses setores radicais viriam, mais tarde, a praticar atentados terroristas contra civis, no governo do general João Batista Figueiredo, como foram os casos dos atentados contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que matou a secretária da instituição, Lida Monteiro da Silva, e o frustrado atentado do Rio Centro, cuja bomba explodiu no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, que morreu, e feriu gravemente o capitão Wilson Luís Chaves Machado, lotados no DOI-Code do I Exército. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi afastado da tropa por indisciplina, suspeito de planejar atentados contra quartéis na Escola Superior de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao), em 1987.

Disfunções
Para profissionalizar as Forças Armadas e entregar o poder de volta aos civis, era fundamental a existência de uma burocracia concursada, capacitada e eficiente. Com a redemocratização, as regras do jogo foram estabelecidas pela Constituição de 1988: os militares voltaram para os quartéis, dedicando-se às suas atribuições constitucionais; os políticos voltaram a exercer o poder; e a burocracia de carreira ficou encarregada de zelar pela legitimidade dos meios por eles utilizados para alcançar seus fins. Quando o trem descarrilou no Executivo, o Congresso entrou em ação (impeachment dos presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff) e o Judiciário acionou os órgãos de controle do Estado (Mensalão e Lava-Jato).

De certa forma, a eleição do presidente Jair Bolsonaro fez parte desse processo de correção de rumos, pelo voto popular, mas não exatamente na direção em que está indo na Presidência. Político sem compromisso partidário nem quadros técnicos para ocupar o poder, recorreu aos militares para administrar o país, nomeando-os para postos-chave no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios e em dezenas de órgãos federais e nas estatais. Nem nos governos militares houve tantos oficiais de alta patente em posições que normalmente seriam ocupadas por servidores civis. Despreparados para as novas funções que exercem, mesmo assim trocaram as rodas da administração federal com o carro em movimento; porém, não entendem de mecânica para resolver os problemas quando a engrenagem administrativa enguiça.

Também não estão livres das disfunções da burocracia: “incapacidade treinada”, a transposição mecânica de rotinas; “psicose ocupacional”, as preferências e antipatias pessoais; e “deformação profissional”, a obediência incondicional, em detrimento da ética da responsabilidade. Trocando em miúdos, a competência dos militares está sendo posta à prova num governo errático, como nos ministérios da Saúde, onde milhões de testes da covid-19 estocados estão em vias de serem jogados fora, por vencimento do prazo de validade; e de Minas e Energia, devido ao espantoso “apagão” no Amapá, que já vai para a terceira semana. São pastas comandadas, respectivamente, por um especialista em logística, o general de divisão Eduardo Pazuello, e o ex-diretor do audacioso e bem-sucedido programa nuclear da Marinha almirante de esquadra Bento Albuquerque.

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Zumbi dos Palmares portrait1 | Foto: Reprodução

Luiz Carlos Azedo: O Zumbi de cada dia

Existe uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis absurdos

No livro Escravidão, primeiro volume, de Laurentino Gomes, Zumbi dos Palmares é descrito como um herói em construção. Encurralado e morto no dia 20 de novembro de 1695, pelo capitão André Furtado de Mendonça, estava acompanhado de 20 guerreiros, dos quais somente um foi capturado vivo; os demais lutaram até a morte. “Decepada e salgada”, a cabeça do líder quilombola foi enviada para Recife, onde ficou exposta no Pátio do Carmo. Em carta ao rei de Portugal, o governador Mello e Castro registrou para a história a origem do mito:

“Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e injustamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares”.

Hoje, quase ninguém sabe quem foi o ex-governador de Pernambuco Mello e Castro, seu sobrenome é associado ao engenheiro, escritor, artista plástico e poeta experimentalista português Ernesto Manuel Geraldes de Melo e Castro, que se radicou em São Paulo, onde morreu em agosto passado . Zumbi, não; a data de sua morte rivalizava com o Dia da Abolição, 13 de Maio de 1888, como marco da luta dos negros no Brasil. O Treze de Maio foi feriado nacional durante toda a República Velha; o 20 de novembro somente em 2011 foi oficializado como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, mas é considerado feriado somente no Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Pará e Rondônia.

O conflito de datas não é trivial, reflete uma disputa ideológica entre aqueles que não admitem a existência do racismo no Brasil, com o presidente Jair Bolsonaro — “sou daltônico”— e o vice-presidente da República, o general Hamilton Mourão – “não existe”—, e os militantes do movimento negro, que lutam contra o racismo estrutural brasileiro, para os quais a Lei Áurea seria um ato de fachada da aristocracia agrária e escravocrata. O Brasil foi o último pais do Ocidente a acabar com o tráfico de escravos, em 1850, e com a escravidão, 38 anos depois. Não haveria o que comemorar no 13 de maio porque os escravos libertos foram abandonados à própria sorte, sendo substituídos por trabalhadores imigrantes europeus nas lavouras, manufaturas e comércio.

Os mitos
Entretanto, uma biografia robusta de Zumbi, segundo alguns historiadores, é uma tarefa impossível, em razão da insuficiência de fontes primárias e da multiplicidade de versões. Haveria três Zumbis míticos:

(1) O Zumbi dos colonizadores. Palmares era apontado como um núcleo de barbárie africana e ameaça à civilização. Joaquim Manoel de Macedo, médico e escritor, autor de A Moreninha e Memórias da Rua do Ouvidor, em 1869, afirmava que os negros carregavam “os vícios ignóbeis, a perversão, os ódios, os ferozes instintos do escravocrata, inimigo natural e rancoroso do seu senhor, os miasmas, a sífilis moral da escravidão infeccionando a casa, a fazenda, a família dos senhores, a sua raiva concentrada, mas sempre em conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra de seus incônscios opressores”. Essa visão permanece subliminarmente na nossa sociedade em relação aos negros.

(2) O Zumbi revolucionário. Está associado “à autêntica luta de classes que encheu séculos de nossa história” — na visão do jornalista Astrojildo Pereira, fundador e secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, no jornal A classe Operária, em 1929 —, cujo momento “culminante de heroísmo e grandeza” fora a república de Palmares, “tendo a sua frente a figura épica de Zumbi, o nosso Spartaco negro”. É uma visão ideológica, que reproduz o determinismo marxista da época na interpretação da História e predomina na velha esquerda, que subordina a questão do racismo à luta de classes.

(3) O Zumbi em construção. É o mito que nasce do movimento abolicionista, que o elegeu como ícone da resistência dos escravos, mas ganhou fôlego no século XX, como ícone literário, consagrado nos livros de Joel Rufino, Décio Freitas e Ivan Alves Filho na década de 1980, e reproduzido na pintura, no cinema, na música e nos desfiles de escolas de samba.“É o Zumbi dos oprimidos, herói das lutas pela liberdade, não só de escravos e negros, mas também dos camponeses, índios, trabalhadores, das minorias”, segundo Laurentino Gomes. É uma visão mais pluralista.

Lugar de fala
Existe um Zumbi para cada oprimido, até mesmo uma versão de que o herói de Palmares seria um gay jaga, do antropólogo baiano Luiz Mott. O mito renasce a cada dia, não por causa dos historiadores, mas em razão da existência objetiva do racismo e da luta identitária, centrada no “lugar de fala”. A exclusão, a injustiça social e a violência física incidem mais contra os negros do que contra outros segmentos da população, independentemente do nível social. Há todo um debate político sobre as agendas identitárias e a política de cotas raciais, que agora chegou à distribuição de recursos dos partidos na campanha eleitoral, e mesmo uma polêmica sobre a reprodução de conceitos e práticas do movimento negro norte-americano aqui no Brasil, que não seriam compatíveis com a realidade de um pais miscigenado como nosso, capaz de “traduzir” toda e qualquer identidade étnica do ponto de vista cultural.

Entretanto, existe uma realidade social indelével, que explode na nossa cara, principalmente quando a exclusão, o preconceito e a violência contra os negros atingem níveis absurdos. É o caso do assassinato de João Alberto Silveira de Freitas, espancado até a morte por dois seguranças de uma loja do Carrefour em Porto Alegre. O crime ocorreu na véspera do dia da morte de Zumbi dos Palmares, cujas comemorações se transformaram em manifestações de protesto em todo o país. Episódios como esse fazem o mito de Zumbi ser mais forte a cada dia, ainda mais se levarmos em conta que o herói de Palmares inspira uma nova elite artística e intelectual negra, que lidera a tomada de consciência sobre o racismo estrutural no Brasil, contra o qual lutou com relativo êxito individual, mas que permanece à espreita em cada esquina de suas vidas.

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Luiz Carlos Azedo: Decifra-me ou te devoro

A política no Brasil está no campo da moderna complexidade. As eleições municipais são um momento decisivo desse processo de ordem-desordem das relações políticas

Quem foi aluno de cursinho do falecido professor Manoel Maurício de Albuquerque, um expurgado do Instituto Rio Branco pelo regime militar, antes de qualquer aula sobre História do Brasil, aprendia a diferença entre uma totalidade simples e uma totalidade complexa. Ele desenhava um círculo com quatro traços verticais e pedia que um dos alunos o descrevesse em voz alta. Depois, desenhava o mesmo círculo e dispunha os demais elementos na posição da boca, do nariz e dos olhos. O primeiro representava a totalidade simples; o segundo, a complexa. Mais Paulo Freire, impossível.

Na sociologia moderna, a discussão é mais complicada. Newton consolidou o paradigma cartesiano de totalidade complexa a partir da lei da gravitação universal. Daí resultam conceitos que buscam separar a mente e o corpo, a verdade objetiva externa do observador, a estrutura dividida em parcelamentos e a noção de tempo flecha, entre outros. Trata-se da ideia de que a natureza tem uma ordem dada e, para decifrá-la, é preciso esquartejá-la em pequenos pedaços, mensuráveis.

O moderno paradigma da complexidade é mais complicado, surge da mecânica quântica e da teoria da relatividade, muda o entendimento da relação entre tempo e espaço, considera inseparável o sujeito do objeto e usa modelos matemáticos não lineares. Não existe uma estrutura dada, mas uma tensão entre equilíbrio e desequilíbrio, auto-organização e caos, com forças de atração e dissipação. O princípio da separação não morreu, mas é insuficiente. É preciso separar, distinguir, mas também é necessário reunir e juntar. O princípio da ordem renasce na ordem-desordem-organização. Morre o princípio da simplificação e da redução, jamais chegaremos ao conhecimento de um todo a partir do conhecimento dos elementos de base.

No exemplo do Maneco, a chave da transformação era a mão de quem reorganizou os pauzinhos, ou seja, o trabalho direto. Agora, é mais complicado. A crise que enfrentamos resulta da modernização da sociedade e de suas estruturas de produção, com novos problemas, como a ressignifição do trabalho na sociedade do conhecimento, a separação entre o conhecimento e a consciência pela inteligência artificial, o novo papel das escolas, as novas relações entre a produção do conhecimento científico e tecnológico com o Estado, as universidades, empresas, mercado e a sociedade em geral. A tensão resultante de tudo isso deságua na política, cujas estruturas de representação se originaram na velha ordem das coisas e têm dificuldades para encontras as soluções. Boa parte dos problemas que enfrentamos no Brasil resulta desse processo — são de ordem objetiva — e de nossas seculares desigualdades e injustiças sociais, mas são agravados pela tentativa de simplificação desses problemas e da busca de soluções toscas, de um subjetivismo que nega a ciência e se baseiam no senso comum. A pandemia, por exemplo, resulta de um dos grandes fenômenos da criação: o encontro de um vírus com uma bactéria, que provoca uma mutação genética. Desprezar a ciência para enfrentá-la é uma derrota por antecipação.

Eleições
A política no Brasil está no campo da moderna complexidade. Nesse sentido, as eleições municipais são um momento decisivo desse processo de ordem-desordem das relações políticas, equilíbrio e desequilíbrio, caos e auto-organização. As pesquisas divulgadas ontem pelo DataFolha ilustram isso sobre vários aspectos; chocam o senso comum do que seria um processo linear. Em São Paulo, a reeleição do prefeito Bruno Covas (PSDB) é muito provável, porém, a emergência da liderança de Guilherme Boulos (PSOL) sinaliza o fim do hegemonismo petista no campo da esquerda e uma espécie de volta às origens jacobinas da esquerda, muito mais do que uma iminente ruptura político-administrativa.

Já no Rio de Janeiro, o prefeito Marcello Crivella (Republicanos) conseguiu a proeza de isolar as lideranças evangélicas, que aparelharam a administração e fracassaram como modelo para a ideia retrograda de governos teológicos. Tudo indica que Eduardo Paes (DEM) já está praticamente eleito, com apoio de toda a esquerda, inclusive do principal líder político do PSol, Marcelo Freixo, o que sinaliza uma tendência de frente única contra um inimigo comum cuja matriz está na eleição de Negrão de Lima (PSD), na antiga Guanabara, em 1965, a tática que ensinou a oposição o caminho para derrotar o regime militar. É uma tendência a se observar em 2022, principalmente no segundo turno.

Nada, porém, é mais surpreendente do que a disputa no Recife, entre Marília Arraes (PT) e João Campos. (PSB), um embate no campo da esquerda tradicional, entre a neta e o bisneto do ex-governador Miguel Arraes, na qual emerge uma inusitada aliança entre petistas e toda direita pernambucana, para quebrar a longa hegemonia do velho clã pernambucano, apoiando uma liderança dissidente da própria família para implodi-lo. Se levasse em conta essas e outras disputas, e os resultados do primeiro turno, o presidente Jair Bolsonaro veria diante de si a travessia de um grande deserto. A complexidade do novo cenário político é como o enigma da esfinge de Tebas: “Decifra-me ou te devoro”. Não se resolve somente reposicionando os pauzinhos.

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Luiz Carlos Azedo: Efeitos colaterais

Lucena (duas vezes), ACM (duas), Sarney (quatro) e Renan (quatro) presidiram o Senado mais de uma vez, mas nunca foram reeleitos na mesma legislatura; existe, porém, precedentes na Câmara

O primeiro impacto das eleições municipais na política nacional se dará nas disputas pelas Mesas do Congresso, principalmente a da Câmara. Do ponto de vista da composição das duas Casas, não houve grande mudança na correlação de forças, apesar dos suplentes que deverão assumir, porém, o desempenho dos partidos na eleição de prefeitos e vereadores, que estão na base da reprodução e renovação dos mandatos dos deputados, influencia — e muito — os humores dos congressistas. As articulações para o comando do Senado e da Câmara ganharam nova dinâmica já a partir desta semana.

A premissa a se resolver é a questão da reeleição na mesma legislatura, que a Constituição de 1988 proíbe. Um parecer da consultoria jurídica do Senado diz que o assunto é regimental e que, portanto, dependeria apenas de decisão dos senadores. Essa questão, porém, será dirimida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As articulações para que os ministros do Supremo lavem as mãos, como Pilatos, seguem o percurso que todos conhecem: as relações entre senadores e ministros, tecidas ao longo do tempo. Entretanto, não dá para apostar que o Supremo aceitará a mudança das regras de jogo, pelo precedente que abre.

Na hipótese de que a reeleição seja permitida, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), está com quase tudo dominado. Já se acertou com as bancadas do MDB e do PT. O seu problema é o grupo Muda Senado, que originalmente foi um esteio de sua vitória contra o senador Renan Calheiros (MDB-AL). Na Câmara, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), que é contra a reeleição, caso isso seja permitido, não terá adversários capazes de derrotá-lo. Essa possibilidade lhe cairia no colo, pois quem trabalha abertamente para a reeleição é Alcolumbre.

No período republicano, foram poucos os presidentes da Câmara que se reelegeram na mesma legislatura: Sabino Barroso (1909-1914), Arnolfo Rodrigues de Azevedo (1921-1926) e Ranielli Mazzini (1958-1965), que, por duas vezes, assumiu a Presidência da República em situação de crise institucional. A primeira, na renúncia de Jânio, em 1961; a segunda, na deposição do presidente João Goulart, em 1964, mas acabou tendo de entregar o cargo para o marechal Castelo Branco. No Senado, nunca houve esse precedente. Embora Humberto Lucena (duas vezes), Antonio Carlos Magalhães (duas), José Sarney (quatro) e Renan Calheiros (quatro) tenham presidido a Casa mais de uma vez, nunca foram reeleitos na mesma legislatura.

Bolsonaro
Caso não seja mesmo permitida a reeleição na mesma legislatura, no Senado, o candidato mais forte à sucessão de Alcolumbre é o senador Eduardo Braga (MDB-AM), líder do governo na Casa. O circo pega fogo, porém, na Câmara, onde está instalada a disputa entre o líder do PP, deputado Arthur Lira (AL), e o líder do MDB, deputado Baleia Rossi (SP). O primeiro, é o candidato apoiado pelo Palácio do Planalto, com objetivo de domar a Câmara, controlando a sua pauta. O fortalecimento do PP nas eleições municipais, nas quais saltou de 495 para 682 prefeituras, foi resultado da estratégia de aproximação com Bolsonaro desenvolvida pelo senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, e Arthur Lira, que, por isso mesmo, aumentou o seu cacife na disputa da Câmara junto ao Palácio do Planalto.

Do outro lado do balcão, Baleia Rossi, que também é presidente do MDB, candidato apoiado por Rodrigo Maia, amarga a perda de 261 prefeituras (caiu de 1.035 para 774). Entretanto, o MDB continua sendo o partido mais forte do país em termos de prefeitos, vereadores e número de votos. Além disso, para Baleia, o apoio do DEM foi robustecido pelo desempenho eleitoral dessa legenda, que aumentou o número de prefeituras de 266 para 459 (193 a mais). Seu problema é a resistência da esquerda, o que faz de Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), mesmo com candidato avulso, um azarão. É óbvio que essa matemática não se reflete automaticamente na eleição da Câmara, mas mexe com os ânimos dos deputados, que se envolvem diretamente nas eleições municipais e captam os humores do eleitorado.

É aí que a derrota dos candidatos apoiados por Bolsonaro no primeiro turno pesa na balança. Fragiliza sua relação com os partidos do Centrão, entre os quais o PSD de Gilberto Kassab. Se tivesse mais senso estratégico, Bolsonaro não teria se envolvido, como se envolveu, no primeiro turno. Nada garante que não repita o erro no segundo turno, correndo risco de ter o apoio rejeitado pelos candidatos com quem tem afinidade. Mesmo no caso de Crivella, no Rio, seu apoio pode ser desastroso, pois as primeiras pesquisas mostram que o eleitorado de esquerda e centro-esquerda já desembarcou na candidatura de Eduardo Paes (DEM), e a eleição está praticamente perdida. Além disso, envolver-se diretamente na disputa pelo comando da Câmara é um jogo perigoso. Por exemplo, custou muito caro para a ex-presidente Dilma Rousseff, que foi derrotada por Eduardo Cunha (MDB-RJ), de quem era inimiga figadal. Ele abriu o processo de impeachment da ex-presidente da República, antes de ser afastado do cargo e preso por causa do Petrolão.

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Luiz Carlos Azedo: As forças centrífugas

“Nas disputas de segundo turno, há todo tipo de combinações. Não se pode falar de polarização entre Bolsonaro, que saiu do primeiro turno com fama de pé frio, e a oposição”

As eleições municipais no Brasil, mesmo na época do regime militar, sempre funcionaram como forças centrífugas, mitigando a polarização política das eleições gerais, para que um novo ciclo de reaglutinação de forças ocorresse. Tínhamos, a partir da redemocratização de 1945, um sistema partidário consolidado, no qual três grandes partidos nacionais predominavam — PSD, PTB e UDN —, com uma força regional importante — o Partido Social Progressista, de Ademar de Barros, em São Paulo — e a esquerda ideológica dividida entre o PSB, de João Mangabeira, e o então proscrito Partido Comunista, liderado por Luiz Carlos Prestes.

Com o golpe de 1964, para se manter no poder, os militares acabaram com os partidos políticos, impondo artificialmente o bipartidarismo oficial, com a criação da Arena e do antigo MDB, que se tornou uma frente legal de oposição; suprimiram as eleições presidenciais, marcadas para 1965; e acabaram com as eleições para governadores e prefeitos das capitais. Mas não puderam eliminar completamente as eleições municipais — ocorrera a mesma coisa durante o Estado Novo —, canceladas apenas naqueles municípios considerados “áreas de segurança nacional”. Mesmo assim, não conseguiram conter as forças centrífugas da política local, sendo obrigados a criar um subterfúgio, as sublegendas, para impedir que as eleições municipais implodissem a Arena, com suas dissidências migrando para o MDB, o que acabou ocorrendo com o passar dos anos, principalmente depois das eleições de 1974.

As eleições municipais do último domingo não fugiram à regra. Seus resultados mostram que atuaram como forças centrífugas do quadro político nacional, que estava muito polarizado entre Jair Bolsonaro e a oposição de esquerda. Os números permitem múltiplas interpretações, mas algumas conclusões são consensuais: 1) os partidos de centro cresceram muito, principalmente o PP, PSD e DEM; 2) a esquerda tradicional perdeu terreno, principalmente o PT; 3) os partidos de extrema-direita não hegemonizaram o pleito. Se há um grande derrotado no primeiro turno, é o presidente, que participou da disputa como aquele jogador de futebol que entra numa bola dividida, achando que vai chegar primeiro e tirá-la do adversário com o bico da chuteira, mas acaba perdendo para quem entrou na jogada mais decidido, com o pé mais firme.

A opção que Bolsonaro fez por alguns candidatos no primeiro turno, principalmente Celso Russomanno (Republicanos), em São Paulo, e o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio de Janeiro, logo no começo da campanha, foi uma decisão tomada muito mais com o fígado que por estratégia. Sem partido, fora aconselhado a se manter distante das disputas municipais. Viu no apoio a Russomanno, que despontava como líder, uma maneira de derrotar o governador João Doria (PSDB).

No Rio de Janeiro, de igual maneira, seria uma forma de derrotar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), que articula ostensivamente a candidatura de Luciano Huck para 2022. Antecipar definições para 2022 nas eleições municipais é uma aposta de alto risco, porque não se pode combinar com os adversários nem com o eleitor. Bolsonaro ofuscou outros resultados que poderiam até beneficiá-lo.

Prefeituras

PSDB e MDB perderam o maior número de prefeituras na comparação do primeiro turno de 2016 e de 2020. O PSDB foi de 785 para 512 prefeitos eleitos — ou seja, 273 a menos. O MDB perdeu 261 prefeituras (caiu de 1.035 para 774), embora continue sendo o maior partido do país em número de prefeituras, vereadores eleitos e votação. O PT registrou mais uma queda, conquistando 179 prefeituras, 75 a menos que em 2016. DEM e PP foram partidos que ganharam mais prefeituras. O primeiro foi de 266 para 459, ou seja, 193 a mais, sendo três dos sete prefeitos eleitos no primeiro turno nas capitais. O segundo, saltou de 495 para 682 prefeitos, 187 a mais. Destaque também para o PSD, que passou de 537 para 650 prefeituras.

Nas disputas de segundo turno, há todo tipo de combinações: direita contra centro-direita, esquerda contra centro-esquerda, centro-esquerda contra o centro-direita. Nesse sentido, não se pode falar numa polarização entre Bolsonaro e a oposição. Além disso, o presidente da República saiu do primeiro turno com fama de pé frio — os políticos são muito supersticiosos —, o que desaconselha seu apoio. Vamos ver o que vai acontecer entre Bolsonaro e seus aliados neste segundo turno, no qual o objetivo de derrotar seus prováveis adversários em 2022 subiu no telhado.

No campo governista, digamos assim, o PP e o PSD emergiram como grandes forças políticas, fortalecendo setores mais moderados do Palácio do Planalto. A ala de extrema-direita ideológica do bolsonarismo foi derrotada no primeiro turno. No campo da oposição, o hegemonismo petista também está sendo derrotado, principalmente em razão do resultado de São Paulo, no qual Guilherme Boulos levou o PSol a ocupar um lugar que sempre fora do PT.

Finalmente, há que se destacar que o resultado das eleições municipais inviabilizou a sobrevivência de muitos partidos, à direita e à esquerda, que terão de repensar o próprio projeto, buscando fusões e incorporações àqueles com quem tem alguma afinidade ideológica e/ou programática e mais viabilidade eleitoral em 2022.

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Luiz Carlos Azedo: A volta ao leito natural

O cenário mostra recuperação dos partidos de centro e um enfraquecimento da polarização direita versus esquerda. Isso pode se repetir no segundo turno

Na elite brasileira, existe muito desprezo em relação à política municipalista, rivaliza com o preconceito em relação a Brasília. Duas causas destacam-se: (1) o fato de que sempre haverá políticos espertalhões, falsos moralistas e corruptos, imortalizados pelo prefeito Odorico Paraguaçu, genial personagem de Dias Gomes, interpretado por Paulo Gracindo, ainda hoje lembrado, mas em razão da política nacional; 2) o velho positivismo, que atribui à União a tutela da nação, como se o povo fosse incapaz de se autogovernar, quando o contrário acontece na maioria dos municípios brasileiros, apesar da crescente centralização política do governo federal, embora a Constituição de 1988 tenha dado aos municípios o status de entes federados.

Os indicadores mostram que os municípios gastam mais e melhor do que os governos estaduais e a União, em termos de investimentos públicos e prestação de serviços básicos, principalmente, nas áreas da saúde e da educação. Nesse aspecto, as eleições municipais têm colaborado para que essa tendência se afirme cada vez mais, em termos de qualidade da gestão e do gasto público, entre outras coisas, por causa da Lei de Responsabilidade Fiscal. Além disso, a alternância de poder e a continuidade administrativa, como deve ser na democracia, funcionam como um mecanismo de peso e contrapeso bastante eficiente, tanto nas metrópoles quanto no Brasil mais profundo. A nota negativa é o aumento da violência nas áreas de expansão da atuação das milícias, no Rio de Janeiro e nas periferias de outras metrópoles; e nas regiões de fronteira agrícola, principalmente no norte do país, nas quais grileiros, madeireiros, garimpeiros e pecuaristas truculentos tentam tomar o poder político dos municípios onde atuam.

Nas capitais, cinco candidatos estão com chances de vencer as eleições no primeiro turno: Bruno Reis (DEM), em Salvador; Gean Loureiro (DEM), Florianópolis; Rafael Grega (DEM), Curitiba; Alexandre Kalil (PSD), Belo Horizonte; e Marquinhos Trad (PSD), Campo Grande. São os exemplos de continuidade administrativa, seja porque vão para o segundo mandato, seja porque houve transferência de votos de gestores bem-sucedidos. Nessa linha, destaca-se o candidato do PSDB em São Paulo, Bruno Covas, que lidera a disputa com folga e pode surpreender com uma vitória de primeiro turno.

Partidos
Na maioria das capitais e cidades com mais de 200 mil habitantes, a política voltou ao leito natural, sem muitas candidaturas disruptivas, ao contrário do que ocorreu em 2016 e 2018. Era de se esperar, se levarmos em conta que as eleições municipais existem desde o período colonial, mais precisamente, da criação da comarca de São Vicente (SP), em 1534. A tradição do voto uninominal vem daí, o que explica a resiliência dos partidos. Nosso sistema proporcional uninominal foi idealizado por Assis Brasil e adotado na redemocratização de 1945, com objetivo de canalizar para os partidos a tradição de votar nas pessoas. Nesse aspecto, o fim das coligações proporcionais ajudará a fortalecer e dar mais identidade às legendas que sobreviverem à cláusula de barreira em 2022.

No universo das capitais e municípios com mais de 200 mil eleitores, neste primeiro turno, segundo levantamento do site Poder360, grandes partidos despontam como líderes isolados em muitas cidades: PSDB (15), PSD (8), DEM (7), MDB e PT (6), PP e Podemos (5 cada), PDT (3), PSB, SD e Pros (2 cada), Cidadania, PL, PTN, PCdoB e PSol (1 cada). Além disso, em outras cidades, disputam a liderança: MDB (9), PT (6), PP (5), PSD (4), Cidadania e Republicanos (3 cada), DEM e Pros (2), PDT, SD, PL, PTB, Rede, PSL e DC (1 cada).

Esse cenário mostra recuperação dos partidos de centro e um enfraquecimento da polarização direita versus esquerda. Isso pode se repetir no segundo turno, mas não significa que será a tendência das eleições de 2022, embora o protagonismo do presidente Jair Bolsonaro e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha sido reduzido e/ou até negativo no pleito deste ano. Diante da mudança de conjuntura internacional, com a eleição do democrata Joe Biden, e das grandes dificuldades econômicas que o governo enfrenta, o cenário eleitoral — a se confirmar no segundo turno — aponta para uma reestruturação do quadro partidário, forçada pela cláusula de barreira, e uma disputa aberta pela Presidência, na qual Bolsonaro continua sendo o favorito, mas terá dificuldades para se reeleger, correndo risco de virar um Trump dos trópicos.

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Luiz Carlos Azedo: Bêbado a uma hora dessa?

Apesar de todo o seu poder, Góis Monteiro não escapou da gozação, até mesmo entre os colegas de farda, no auge da luta para o Brasil entrar na guerra contra o nazifascismo

Desculpem-me a analogia. Tem certas coisas no Brasil que não escapam da gozação, mesmo quando são muito sérias e preocupantes. Por exemplo, o namoro de Getúlio Vargas com o fascismo de Benito Mussolini, o ditador da Itália, e o nazismo de Adolf Hitler, da Alemanha, cujo ponto alto foi a entrega da judia alemã Olga Benário, a esposa do líder comunista Luís Carlos Prestes, grávida de sua filha Anita Prestes, à Gestapo. Olga foi morta na câmera de gás do campo de extermínio de Bernburg, mas sua filha foi resgatada antes disso, depois de uma grande campanha internacional. Hoje é professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Nessa época, em plena ditadura Vargas, havia uma luta surda entre o ministro da Guerra, Góis Monteiro, e o chefe de Polícia do Distrito Federal, Filinto Muller, que defendiam uma aliança com o Eixo, de um lado, e o chanceler Oswaldo Aranha e o almirante Amaral Peixoto, genro de Vargas, que articulavam a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Estados Unidos e seus aliados da Europa, de outro.

O repórter David Nasser, no livro Falta alguém em Nuremberg, traça o perfil da equipe de Filinto Muller, “recrutados entre a escória do Exército”: capitão Felisberto Batista Teixeira, delegado especial de Segurança Política e Social: capitão Afonso de Miranda Correia, delegado auxiliar; tenentes Emílio Romano, chefe da Segurança Política, e Serafim Braga, chefe da Segurança Social, e, ainda, o tenente Amaury Kruel e seu irmão, capitão Riograndino Kruel, ambos da inspetoria da Guarda Civil, “indivíduos cujo servilismo ao governo e brutalidade com os presos” contribuíram, segundo Nasser, para as violações dos direitos humanos ocorrida na época. No Estado Novo, segundo o historiador Cláudio de Lacerda Paiva, “quem censurava era Lourival Fontes, quem torturava era Filinto Muller, quem instituiu o fascismo foi Francisco Campos, quem deu o golpe foi Dutra e quem apoiava Hitler era Góis Monteiro”.

É justamente nessa época que começa a gozação com o Góis Monteiro, dentro do próprio governo. Alagoano de São Luís do Quitunde, fora o comandante militar da Revolução de 1930 e chefiou as tropas federais que combateram a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. Na época em que foi ministro da Guerra (1934 e 1935), elaborou a Doutrina de Segurança Nacional que inspirou várias leis da ditadura de Vargas e do regime militar. Em 1937, articulou o golpe do Estado Novo, sendo um dos responsáveis pelo famoso Plano Cohen, que serviu de pretexto, planejamento de uma revolução comunista forjado pelo então capitão Olímpio Mourão Filho. Góis Monteiro deu de presente ao temido deputado fluminense Tenório Cavalcanti a sua famosa “Lurdinha”, uma metralhadora alemã MP-40.

Alvorada

Apesar de todo o seu poder, Góis Monteiro não escapou da gozação até mesmo entre os colegas de farda. No auge da luta para o Brasil entrar na guerra contra o nazifascismo, seus adversários políticos se divertiam com a seguinte piada contada nos corredores do Palácio do Catete e nos bares do Rio de Janeiro: Góis Monteiro resolvera conhecer de perto o treinamento das tropas do Eixo. Na Alemanha, um oficial nazista formou um pelotão das SS e mandou que um oficial demonstrasse sua disciplina e amor a Hitler: “Tenente Fritz, tiro na cabeça!”. O jovem oficial disparou a Luger e caiu morto sem dizer um ai, enquanto a tropa fazia a tradicional saudação nazista: “Heil, Hitler!”. Gois Monteiro ficou impressionadíssimo.

No Japão, visitou o porta-aviões do almirante Yamamoto, que formou o esquadrão de pilotos e mandou que um deles dedicasse sua vida ao Imperador: “Capitão Tanaka, seppuku!”. O camicase, como autêntico samurai, sacou seu espadim e rasgou o abdômen; imediatamente, seguindo o ritual de honra, o líder da esquadrilha, num golpe certeiro, cortou sua cabeça com a espada, para evitar maior sofrimento. “Banzai!”. Foi demais para Góis Monteiro: mareado, vomitou.

De volta ao Palácio do Catete, o ministro da Guerra passou a noite em claro e mandou tocar a alvorada às 5 horas da manhã, uma hora mais cedo. Aguardou os Dragões da Independência nos jardins, cantarolando: “A voz do despertar/ Chega a nós/ Que a missão a se cumprir/ É função do que sentir/ Sentir/ Que ela vem dizer/ Com seu repercutir/ / O que é o dever/Quem entender/ Clarim tocar/ Antes do amanhecer/ Tem que se inflamar (…)”. Assustada e sonolenta, a tropa formou desengonçada, às pressas, com a farda mal-abotoada, rabos de cavalo dos capacetes embaraçados, sem saber o porquê da antecipação da alvorada. Góis Monteiro deu a voz de comando: “Primeiro pelotão, sentido!”. O sargento Tião, homem-base na formatura, soldado casca-grossa, já havia percebido a voz pastosa do general quando ele cantava, desconfiou que havia algo errado. Quando o general enrolou a língua no “Apresentar-armas”, Tião se deu conta de que a situação era crítica: “Vixe, está bebado!”. Levou o general para a cama, antes que ele fizesse mais besteira, sem saber de suas sinistras intenções.

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Luiz Carlos Azedo: O presidente dos maricas

As reações de Bolsonaro são típicas de quem tem uma grande perda, no caso, o colapso da sua aliança estratégica com Trump. É um processo que começa pela negação e evolui para a raiva

O presidente Jair Bolsonaro ainda não conseguiu processar a derrota de Donald Trump nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. Em parte, isso explica o fato de não ter manifestado, ainda, as congratulações devidas ao democrata Joe Biden, o novo presidente norte-americano, somando-se aos poucos chefes de Estado que ainda não o fizeram, entre os quais Vladimir Putin, da Rússia, e Xi Jinping, da China, que têm disputas estratégicas com os norte-americanos muito diferentes das nossas contradições com os EUA. No momento, a atitude de Bolsonaro situa o Brasil nesse quadrante político, mas isso não tem a menor aderência à realidade geopolítica da qual fazemos parte historicamente.

Para usar uma velha expressão popular, Bolsonaro está sem pai nem mãe na política internacional. Seu comportamento parece emocional, porém, politicamente, é muito semelhante ao de Vladimir Putin em relação ao então presidente norte-americano Barack Obama, e à primeira-ministra alemã, Angela Merkel. Ambos o decepcionaram por tratarem a Rússia como uma nação decadente e a ele, pessoalmente, como um líder de segunda classe. Putin deu as costas ao Ocidente e recorreu ao nacionalismo russo para se manter no poder, até hoje, com apoio dos militares, controle do Judiciário e da imprensa, e uma estreita aliança com a Igreja Ortodoxa Russa, para uma contrarreforma nos costumes.

Entretanto, na prática, uma conexão ideológica com Putin não faz o menor sentido em termos geopolíticos. As reações de Bolsonaro são típicas de quem está em dificuldades diante de uma grande perda, no caso, o colapso da sua aliança estratégica com Trump. É um processo que, psicologicamente, começa pela negação e evolui para a raiva. O presidente da República parece estar entre uma fase e outra. Num divã de psicanálise, suas declarações levariam a essa conclusão: “A minha vida aqui é uma desgraça, problema o tempo todo. Não tenho paz para absolutamente nada. Não posso mais tomar um caldo de cana na rua, comer um pastel. Quando eu saio, vem essa imprensa me perturbar. Pegar uma piada que eu faço com Guaraná Jesus para tentar me esculhambar”.

Bolsonaro disse, ontem, que o Brasil é um “país de maricas”, por duas vezes: “Tudo agora é pandemia. Tem de acabar com esse negócio, pô. Lamento os mortos, lamento. Todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, fugir da realidade. Tem de deixar de ser um país de maricas, pô. Olha que prato cheio para a imprensa, para a urubuzada que está ali atrás. Temos de lutar. Peito aberto, lutar. Que geração é essa nossa? A geração hoje em dia é toddynho, nutella, zap. É uma realidade”, disse.

Saliva e pólvora
Depois, ao se referir às articulações envolvendo o apresentador Luciano Huck, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro e o governador de São Paulo, João Doria, revelou certo temor de que a oposição de centro se unifique em torno de um desses nomes: “Vem uma turminha falar ‘ah, queremos um centro: nem ódio para cá, nem ódio para lá’. Ódio é coisa de marica, pô. Meu tempo de bullying na escola era porrada. Agora, chamar o cara de gordo é bullying. Nós temos como mudar o destino do Brasil. Não terão outra oportunidade. O Macri, na Argentina, não conseguiu implementar as suas políticas. Começou a levar pancada dos seus seguidores, como eu levo, agora, também. Voltou a turma da Kirchner, Dilma, Maduro e Evo”.

Bolsonaro voltou a investir contra a urna eletrônica: “Não temos um sistema sólido de votação no Brasil, que é passível de fraudes, sim. Tudo pode mudar no futuro com fraude. Eu entendo que só me elegi presidente porque tive muitos votos, e não gastei nada, não: 2 milhões de reais, arrecadado por vaquinha”. Bolsonaro defende a volta do voto impresso, já rechaçada pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, e endossa as acusações de Donald Trump de que a vitória de Biden está sob suspeita de fraude, o que, a essa altura do campeonato, é um desastre diplomático.

Mas o fato que assustou todo mundo, inclusive ministros do governo e os líderes governistas no Congresso, foi a declaração de Bolsonaro comemorando a morte de um dos voluntários que estão testando a vacina chinesa CoronaVac, em pesquisa do Instituto Butantan, que a Anvisa, indevidamente, suspendeu. Além da absurda falta de empatia, Bolsonaro mentiu, ao afirmar que a vacina foi a causa mortis, quando se trata de um caso de suicídio. Se o presidente da República continuar nessa rota, teremos um formidável caso de suicídio político.

Sua declaração de que pode defender a Amazônia com pólvora, contra a suposta interferência de Biden, é simplesmente insana: “Assistimos, há pouco, um grande candidato a chefia de Estado dizer que, se eu não apagar o fogo da Amazônia, ele levanta barreiras comerciais contra o Brasil. E como é que podemos fazer frente a tudo isso? Apenas na diplomacia não dá, não é, Ernesto (Araújo)? Quando acaba a saliva, tem de ter pólvora, senão não funciona. Não precisa nem usar pólvora, mas tem de saber que tem. Esse é o mundo. Ninguém tem o que nós temos.”

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Luiz Carlos Azedo: Biden antecipa 2022

“O encontro do apresentador Luciano Huck com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mexeu com o tabuleiro político. O apresentador de tevê se fingia de morto”

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem: não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e, sim, sob aquela com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Quem já não leu ou ouviu essa frase na crônica política? É citada com frequência, literalmente ou não, mas com o mesmo sentido. Está no segundo parágrafo do O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx (Martin Claret), escrito em Londres, sob encomenda, para um semanário que seria lançado em Nova York, em 1º de janeiro de 1852, cujo editor, Joseph Weydemeyer, morreu. O texto acabou publicado numa revista mensal intitulada Die Revolution e introduzido na Alemanha semiclandestinamente, antes de virar um livro-reportagem sobre o golpe de Estado de Napoleão III, em 1851. O título faz alusão ao golpe de 9 de novembro de 1799, esse, sim, dado por Napoleão Bonaparte. É um clássico da análise política, que cunhou os conceitos de “bonapartismo”, “transformismo político” e “cretinismo parlamentar”.

O presidente Jair Bolsonaro não foge à regra dos grandes personagens da História que se repetem, citados por Marx naquele texto: depara-se com circunstâncias que não escolheu e são completamente diferentes daquelas nas quais se elegeu. É como se a roda da Fortuna tivesse girado a favor dos seus adversários, zerando a vantagem estratégica que a conjuntura de 2018 havia lhe proporcionado. Para piorar a situação, antecipou sua campanha à reeleição em todos os movimentos que fez desde quando assumiu a Presidência e, agora, com o gênio fora da garrafa, não tem como pô-lo de volta. Nem bem o primeiro turno das eleições municipais acabou, o quadro eleitoral de 2022 começa a ser desenhado à sua revelia, agora impulsionado por um fator externo cujo impacto no Brasil não pode ser subestimado: a vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, inequívoca, embora o presidente Donald Trump se recuse a admiti-la e se movimente como quem deseja criar uma crise institucional para permanecer no poder.

Não é à toa que líderes mundiais como Vladimir Putin, da Rússia; Xi Jinping, na China; e López Obrador, no México, ainda não enviaram congratulações ao democrata e aguardem o resultado oficial da disputa, cuja divulgação Trump procura retardar ao máximo, com seus recursos judiciais. São líderes políticos que têm grandes contenciosos com os Estados Unidos e não desejam tornar a vitória de Biden ainda mais consagradora, fortalecendo-o nas negociações. Nenhum deles, porém, tem tanta identidade ideológica com Trump como Bolsonaro. Também não se manifestaram durante o pleito a favor do candidato republicano. O retardo em reconhecer a vitória de Biden, por lealdade a Trump, está aprofundando o mal-estar que já existia com o novo presidente dos Estados Unidos. Além das implicações da vitória dos democratas em relação à política externa e à questão ambiental no Brasil, já estão aparecendo suas consequências para a política nacional propriamente dita, inclusive do ponto de vista eleitoral.

O centro renasce
Por exemplo, o encontro do apresentador Luciano Huck com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro mexeu com o tabuleiro das eleições presidenciais. O jovem comunicador se fingia de morto e sua candidatura somente existia no Twitter do ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania. A partir do momento em que se tornou público seu encontro com Moro e que ambos discutiram o cenário eleitoral de 2022, todos os possíveis candidatos e seus aliados se mobilizaram. É ingenuidade acreditar que o encontro em si alterou o cenário político — o prestígio de ambos estava em declínio nas pesquisas —, o que mudou a correlação de forças foram as novas circunstâncias criadas pela vitória de Biden, com uma narrativa que não tem sintonia com Bolsonaro, com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nem mesmo com Ciro Gomes (PDT).

O encontro de Huck e Moro sinalizou que o campo liberal-democrático pode buscar uma convergência e ocupar, novamente, o centro político, mas isso passa, ainda, por João Doria (PSDB), governador de São Paulo; Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul; Rodrigo Maia, presidente da Câmara; Luiz Henrique Mandetta (DEM), ex-ministro da Saúde; e Marina Silva (Rede), ex-ministra. Unificar o centro democrático não é uma tarefa fácil, nunca foi. Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, no MDB, disputaram a liderança da oposição até a derrota das Diretas Já. Fernando Henrique Cardoso teve de dobrar Mário Covas, no PSDB, para consolidar sua aliança com o PFL, de Antônio Carlos Magalhães e Marco Maciel.

De volta aos programas de tevê com forte cunho social, Huck se movimenta de forma dissimulada, mas sua permanência na TV Globo tem data marcada, precisa decidir até meados do próximo ano se é candidato ou não. Moro enfrenta o sereno na planície, é um candidato encabulado, mas tem um partido pronto para abrigá-lo, com forte bancada no Senado, o Podemos. Doria tem as dificuldades de todo político paulista para sair do Palácio dos Bandeirantes, podendo se reeleger, e arriscar a Presidência. Mandetta é candidato declarado, enquanto houver pandemia, terá pista para correr, mas precisa seduzir a cúpula partidária, que sonha com a candidatura de Huck pela legenda. Eduardo Leite pode ser a nova cara do PSDB, se Doria não concorrer. Marina Silva sonha em renascer como Fênix, para viabilizar a Rede. Reunir todos numa candidatura é um projeto ambicioso. Além disso, não se deve subestimar a força da oposição de esquerda, que pode se reagrupar, a partir das conversas entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula (PT) da Silva e Ciro Gomes (PDT), para chegar ao segundo turno.

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Luiz Carlos Azedo: Entre a águia e o dragão

Candidato a marisco entre EUA e China, faltam ao governo Bolsonaro politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo

— Espera! — exclamou Ega. — Lá vem um “americano””, ainda o apanhamos.
— Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:
— Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma…
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atribulando as pernas magras:
— Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…
A lanterna vermelha do “americano”, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:
— Ainda o apanhamos!
— Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para apanhar o “americano”, os dois romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

(Os Maias, Eça de Queiroz, 1888)

Essa alegoria do escritor português que tanto influenciou nossa literatura encerra um grande “afresco” literário sobre a atávica e parasitária elite lusitana e a situação de estagnação de Portugal no final do século XIX. Serve sob medida para a situação em que se encontram o presidente Jair Bolsonaro e seu ministro das não-Relações Exteriores, Ernesto Araujo, que agora correm atrás do prejuízo como a dupla Carlos Maia e João da Ega, por causa da vitória de Joe Biden, candidato do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos. O presidente Donald Trump, um demagogo tresloucado que ocupou a Casa Branca por 4 anos e levou muitos a acreditarem no naufrágio da civilização ocidental, foi escolhido por ambos como aliado incondicional. Entretanto, mais uma vez, a democracia americana se recuperou de um desastre político e retomou o seu curso histórico.

No mundo globalizado — traumatizado por uma pandemia que já matou 1,4 milhão de pessoas, a recessão dela decorrente e o aprofundamento das desigualdades —, falta uma autoridade moral, portadora de valores universais capazes de influenciar a marcha da História, à qual a sociedade contemporânea possa recorrer. O Velho Mundo, com suas ideias iluministas e protagonista da história mundial do século XV ao XIX, hoje não é o candidato natural a essa posição. Somente os Estados Unidos podem exercer esse papel de liderança global nos fóruns internacionais, pela universalidade de seus fundamentos políticos, sua composição étnica e multiculturalismo, além do inegável poder que adquiriu no século passado, após vencer duas guerras mundiais e a “guerra fria”. Nenhum outro país reúne, simultaneamente, capacidade de produção industrial, força militar, pesquisa científica, conhecimento, tecnologia e influência política e cultural para isso.

Marisco

Misógino, homofóbico e chauvinista, Trump havia abdicado desse protagonismo, lançando os Estados Unidos na contramão da História. Mas é um erro supor que tudo começou com o republicano. Na verdade, o erro histórico dos Estados Unidos foi continuar a tratar os vencidos na “guerra fria” — a antiga União Soviética e os países do Leste europeu — como inimigos a serem humilhados, espoliados e isolados politicamente. É esse hegemonismo truculento que está na gênese do trumpismo, marcadamente após a Guerra do Iraque, com o seu intervencionismo para derrubar regimes e refundar nações, alterando abruptamente a geopolítica de regiões inteiras. O ponto de inflexão dessa política, porém, foram os fracassos nas tentativas de derrubar os governantes da Síria, Bashar al-Asha,d e da Venezuela, Nícolas Maduro, por subestimar o poder de intervenção militar da Rússia e a emergência da China como potência econômica e diplomática.

No seu livro Sobre a China, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado norte-americano, que no governo Richard Nixon negociou com êxito o restabelecimento das relações dos Estados Unidos com os chineses, chamou a atenção para o fato de que as duas guerras mundiais do século XX resultaram de uma disputa pelo controle do comercio mundial no Atlântico por uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, o Reino Unido. Agora, o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico e a disputa continua sendo entre uma potência continental e uma marítima: China e os Estados Unidos, respectivamente. É preciso evitar que essa guerra comercial não se transforme numa guerra quente, não se cansa de advertir Kissinger, o ex-diplomata hoje nonagenário.

O erro estratégico de Bolsonaro e seu não-chanceler, Ernesto Araujo, foi acreditar que isolamento diplomático em que o país mergulhou, por causa de uma agenda negacionista, reacionária e antiambientalista, seria compensado pela aliança imediatista, não com o Estado norte-americano, mas com o presidente Trump. Deu errado. A águia do Norte novamente alçou voo, em busca da liberdade, mas o dragão chinês, nosso principal parceiro comercial, espreita o processo em curso antes de estrugir labaredas de fogo. A China dispõe de recursos humanos e financeiros, capacidade industrial e tecnologia para sustentar essa disputa por longos anos. O maior desafio para a diplomacia brasileira é não virar marisco nessa disputa, que continuará com Biden, em outros termos. Bolsonaro colecionou agressões aos chineses, que pacientemente observam o curso de nossas relações com os Estados Unidos. Se forem toscamente discriminados, principalmente no caso do 5G, vão se reposicionar política e comercialmente, com um poder de retaliação muito grande. Se tem uma coisa que falta ao governo Bolsonaro é politica externa independente e pensamento estratégico. O alinhamento com Trump foi o melhor exemplo.

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Luiz Carlos Azedo: Aposta de alto risco

Ninguém pode acusar Bolsonaro de incoerência. Como disse o chanceler Ernesto Araujo, com a atual política externa, o Brasil optou por ser “um pária” no cenário mundial

O presidente Jair Bolsonaro ontem, nas redes sociais, voltou a apostar todas as fichas na reeleição do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, além de denunciar suposta interferência externa na política norte-americana, sem dizer de quem. Ao mesmo tempo, o mundo aguarda em suspense o resultado do pleito, no qual o democrata Joe Biden é favorito nas pesquisas de opinião. Como escrevo antes da contagem dos votos, vou aguardar o resultado final da apuração; mesmo que, eventualmente, o presidente Trump autoproclame a sua vitória, na festa que organizou na Casa Branca para 400 convidados.

Aqui no Brasil, teríamos o resultado final da eleição, com precisão, no dia de votação, graças à urna eletrônica, à prova de fraudes, nossa melhor jabuticaba política, testada e aprovada. Nos Estados Unidos, com um sistema de votação anacrônico, que leva vários dias, inclusive com voto por correspondência, a apuração é mais complicada. Pode até gerar uma crise institucional, se Trump se declarar eleito e, depois, a contagem dos votos mostrar que o vitorioso é Baden. Como se sabe, o fato de o presidente ser eleito num colégio de delegados dos estados permite, inclusive, que o vitorioso não seja o mais votado nas urnas.

No dia da eleição, a maioria dos chefes de Estado manteve silêncio obsequioso sobre o pleito. Os líderes das democracias ocidentais, porém, torcem pelo democrata Biden, quando nada porque são confrontados pelo republicano Trump em todos os fóruns internacionais, até mesmo na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), o pacto de defesa do Ocidente. Entretanto, ninguém pode acusar Bolsonaro de incoerência. Como disse o chanceler Ernesto Araujo, com a atual política externa, o Brasil optou por ser “um pária” no cenário mundial. Sem Trump, porém, essa linha de atuação se tornará insustentável, devido ao isolamento diplomático quase absoluto. Somente os governos de extrema direita, como o de Victor Orban, na Hungria, e os tiranos árabes mais sanguinários restarão como aliados, do Brasil nos fóruns internacionais, se Biden vencer o pleito.

A não ser que Bolsonaro se reposicione. O alinhamento automático com os Estados Unidos, de imediato, não muda o posicionamento do Brasil nas cadeias de comércio mundial, nas quais nosso principal parceiro é a China. A ideia de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, grande aposta de Araujo e do ministro da Economia, Paulo Guedes, não é exequível a curto prazo. Não era com Trump, muito menos com Biden. No segundo caso, para avançar nessa direção, o Brasil teria que mudar radicalmente sua política interna em relação aos direitos humanos e ao meio ambiente, além do posicionamento nos fóruns internacionais em relação aos mesmos temas.

Momento difícil

Um momento de viragem na política norte-americana ilustra uma situação desse tipo: a eleição do presidente Jimmy Carter, que governou de 1977 a 1981. No seu governo, o Departamento de Estado deu uma guinada em relação às ditaduras da América do Sul, todas implantadas com forte apoio norte-americano. Carter pressionou muito o governo do general Ernesto Geisel, por causa das torturas e dos assassinatos de oposicionistas nos quartéis, o que ajudou a oposição a vencer as eleições de 1978 e resultou na anistia de 1979. Como naquela ocasião, a vitória de Biden pode ser um momento de viragem na política brasileira. Bolsonaro tem dificuldades para aceitar essa mudança, mas em torno dele esse assunto está em pauta, haja vista as declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, que manteve distância regulamentar das eleições norte-americanas.

Um outro fator recomenda mais cautela de Bolsonaro quanto ao resultado do pleito: a nossa situação econômica. O Palácio do Planalto se prepara para uma segunda onda da pandemia de corona vírus da pior forma possível, ao fomenta dúvidas quanto a eficácia e a necessidade das vacinas contra o COVID-19, o que é péssimo. Também empurra as reformas com a barriga para não contrariar interesses corporativos e empresariais. A base parlamentar do governo retarda a aprovação do Orçamento da União para não ter que anunciar cortes de despesas antes das eleições. O ministro da Economia, Paulo Guedes, sonha com a prorrogação da “economia de guerra” para 2021, com o propósito de agradar o presidente Bolsonaro e criar o Renda Cidadã. É uma aposta de jogador compulsivo, que perde todos os bens e a família, acreditando na sorte grande.

O governo não tem prioridades, se movimenta de forma errática. A dívida publica brasileira, que já se aproxima de 100% do PIB, está sendo rolada a prazo de dois anos, com juros acima de 4,5%, o que é muito perigoso. Se a estratégia do governo for prorrogar a “economia de guerra”” por mais seis meses, a inflação vai disparar e a dívida pública crescerá mais ainda, vertiginosamente. Ontem, houve uma reunião dos governadores com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para discutir uma estratégia de vacinação contra a Covid-19, maneira de evitar uma segunda onda da pandemia no Brasil e a prorrogação da economia de guerra”. Quem deveria estar liderando isso é o Ministério da Saúde.

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