Memória
Luiz Carlos Azedo: A grande sabotagem
Países de dimensões continentais têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros estratégicos na economia e nas políticas públicas têm graves consequências
A história universal tem inúmeros exemplos de tragédias humanitárias, causadas por fenômenos geológicos, climáticos, biológicos e/ou decisões políticas equivocadas, às vezes a combinação de duas ou mais causas. Essas tragédias deixam traumas sociais e provocam mudanças culturais e políticas. Uma das calamidades mais devastadoras da humanidade foi a peste negra, entre 1347 e 1351, que matou 50 milhões de pessoas na Europa e na Ásia. Causada por uma bactéria (Yersinia Pestis), a doença foi transmitida ao ser humano por meio das pulgas dos ratos e outros roedores. A peste disseminou o antissemitismo, provocou revoltas camponesas e a Guerra dos 100 Anos, mas, também, deu origem ao Iluminismo, em contraposição às teses místicas que atribuíam a doença ao castigo divino.
Em 1755, o grande terremoto de Lisboa resultou na destruição da capital portuguesa. O número exato de vítimas da tragédia é desconhecido, mas estima-se que pode ter chegado a 90 mil pessoas. Como consequência, o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, precisando de recursos para reconstruir Lisboa, acabou com as capitanias hereditárias no Brasil, transferiu a capital de Salvador para o Rio de Janeiro, criou o Distrito Diamantino, aumentou a cobrança de impostos nas Minas Gerais e fortificou as fronteiras na Amazônia, entre os quais o grande Forte Real do Príncipe da Beira, à margem direita do Guaporé, em Rondônia. Em contrapartida, a “derrama” deflagrou o movimento de Independência, cujo marco histórico foi a Inconfidência Mineira.
Em abril de 1986, um reator da central nuclear de Chernobyl explodiu e liberou uma imensa nuvem radioativa, contaminando pessoas, animais e o meio ambiente de uma vasta extensão da Europa. Na Ucrânia, Belarus e Rússia foram evacuadas e reassentadas 200 mil pessoas. O negacionismo e a censura agravaram a tragédia. Mais de 90 mil pessoas ainda poderão morrer de câncer, causado pela radiação do acidente nuclear. O episódio foi decisivo para Gorbatchov iniciar a glasnost (transparência) e desistir da corrida nuclear, o que acabou com a guerra fria com os Estados Unidos e foi um dos catalisadores do fim da própria União Soviética.
Pandemias e fome
No final da I Guerra Mundial, em 1918, uma pandemia do vírus Influenza se espalhou por quase todo o mundo. A gripe espanhola afetou 50% da população mundial. O número de mortos pode ter chegado a 100 milhões de pessoas. O vírus Influenza A, do subtipo H1N1, matou mais gente do que qualquer outra enfermidade na história e desapareceu tão misteriosamente como surgiu, mas ajudou a acabar com o conflito, provocou grandes reformas urbanas, uma revolução nas pesquisas médicas e nas políticas de saúde pública.
A maior tragédia humanitária do século passado, porém, não teve nada a ver com eventos geológicos, climáticos ou biológicos. Foi fruto do nacionalismo extremado de algumas nações e da ambição de poder de Adolf Hitler. A II Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, mobilizou mais de 100 milhões de militares e deixou mais de 70 milhões de mortos. Foi a única vez que armas nucleares foram utilizadas em combate, resultando na morte de mais de 140 mil pessoas no Japão, nos bombardeios feitos pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Além disso, a loucura de Hitler resultou no Holocausto. Dos 6 milhões de judeus mortos somente em Auschwitz, o mais conhecido campo de concentração nazista, 1 milhão foi assassinado nas câmaras de gás e cremados.
Mortes em massa também foram provocadas por decisões políticas e econômicas equivocadas de líderes comunistas. As coletivizações forçadas de Josef Stálin, na antiga União Soviética, nos anos de 1932-33, mataram de fome 10 milhões de camponeses na Ucrânia, e 1,25 milhão no Cazaquistão. O Grande Salto Adiante de Mao Tse Tung, na China, de 1958 a 1961, matou de fome 20 milhões de chineses. Entre 1994 e 1998, na Coreia de Norte, o fim da ajuda soviética, fatores climáticos e erros de planejamento de Kim Jong-un provocaram a morte de, pelo menos, 600 mil pessoas por desnutrição (fala-se em até 3 milhões de norte-coreanos).
Países de dimensões continentais, por sua escala demográfica, têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros no rumo estratégico, principalmente na economia e políticas públicas, têm consequências de grande envergadura. O que está acontecendo nos EUA, por exemplo, devido ao negacionismo de Donald Trump, entrará para os anais da história como uma dessas grandes tragédias. O país é o epicentro da pandemia de covid-19, com 17 milhões de casos confirmados e 300 mil mortos pelo novo coronavírus, mais do que o número de soldados americanos mortos na II Guerra.
Aqui, no Brasil, com quase 7 milhões de infectados e 190 mil mortos, o presidente Jair Bolsonaro vai pelo mesmo caminho, com seu negacionismo, que chega a aponto de se recusar a tomar a vacina contra a covid-19. Sabota, assim, os esforços realizados por autoridades de saúde, prefeitos, governadores e até mesmo pelo governo federal — cuja atuação deixa muito a desejar — para conter a epidemia e imunizar a população contra a doença, única maneira de salvar a economia de profunda recessão e do desemprego em escala sem precedentes, ou seja, de voltar à vida normal. A história não perdoa erros dessa magnitude.
Luiz Carlos Azedo: O vírus não brinca
O negacionismo de Bolsonaro funciona como sabotagem aos esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia
Não há sanitarista no Brasil que não tenha estudado o caso da epidemia de meningite ocorrida durante a década de 1970, em pleno regime militar, bem como a campanha de vacinação que controlou a doença. A epidemia começou em Santo Amaro, na Grande São Paulo, causando 2.500 mortes na capital paulista. Mesmo com a incidência de casos saltando a cada ano, e com mortalidade oscilando de 12% a 14% dos doentes, o regime militar escondia os números da população e negava a existência de epidemia, estabelecendo censura prévia aos veículos de comunicação para que não divulgassem o que estava ocorrendo. Médicos e sanitaristas não podiam dar entrevistas.
Só a partir de 1974, quando a doença já grassava em áreas centrais de São Paulo, e não havia mais como negar a situação, com hospitais em colapso, os generais começaram a reconhecer o problema. Na época, o Brasil vivia o chamado “milagre econômico” e os militares temiam que a divulgação da epidemia gerasse pânico na população e prejudicasse as atividades econômicas.
Enquanto a meningite matava moradores da periferia, conseguiram abafar o assunto, mas, quando a epidemia atingiu bairros nobres de São Paulo, as autoridades foram obrigadas a admitir que havia uma crise de saúde. O estrago já estava feito. A incidência em São Paulo subiu de 2,16 casos por 100 mil habitantes, em 1970, para 5,90 casos em 1971. Em 1972, chegou a 15,64 diagnósticos por 100 mil habitantes e, em 1973, atingiu os 29,38 casos por 100 mil habitantes. A partir de 1974, houve uma explosão, motivada pela circulação do meningococo A, gerando uma sobreposição de surtos. Em 1974, a taxa de meningite chegou a 179,71 casos por 100 mil habitantes.
Com a curva de casos em ascensão sobre áreas centrais do Sudeste e em Brasília, não havia mais como impedir o fluxo da informação. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu o poder e reconheceu a existência do problema, criando a Comissão Nacional de Controle de Meningite, que importou milhões de doses da vacina. Somente em 1977, porém, a epidemia foi controlada. Havia se expandido de tal forma que a campanha de vacinação teve de atingir 97% dos municípios brasileiros. Se os nossos sanitaristas aprenderam com a epidemia de meningite, parece que os militares no Ministério da Saúde esqueceram completamente a experiência do passado, com a diferença de que, agora, vivemos numa democracia e eles não têm mais como evitar a revelação dos fatos e a discussão dos problemas.
Perde perde
Não dá mais para escamotear: estamos numa segunda onda da epidemia do novo coronavírus. O Brasil registrou, nas últimas 24 horas, 433 mortes e 25.193 novos casos da covid-19; o número de vítimas fatais da doença no país subiu para 181.835, e o total de casos confirmados aumentou para 6.927.145. A única maneira de evitar uma tragédia maior do que a da primeira onda é manter a política de distanciamento social e promover a vacinação em massa da população. O vírus não está para brincadeira, a segunda onda já atinge 18 estados e o Distrito Federal.
Entretanto, o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Dória, se digladiam. É um jogo de perde-perde. O primeiro dispõe de recursos para vacinar a população, mas não dispõe ainda de uma vacina, pois a de Oxford, já comprada pelo governo brasileiro, não está pronta, e a da Pfizer, que havia sido oferecida e fora desprezada, não está disponível, embora o governo federal agora queira comprá-la. O segundo tem a vacina chinesa CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan, mas precisa ainda de aprovação da Anvisa, que negaceia os prazos e tenta mudar as regras do jogo.
Em algum momento, a realidade falará mais alto. Com a velocidade com que a segunda onda está se propagando, será inevitável a adoção de novas medidas de distanciamento social, para evitar o colapso do sistema hospitalar. O reiterado negacionismo de Bolsonaro, porém, funciona como uma espécie de sabotagem aos esforços governamentais para conter a pandemia, inclusive os do próprio Ministério da Saúde, cada vez mais enrolado na própria burocracia. Uma campanha de vacinação em massa precisa de mobilização da sociedade, de convencimento da necessidade e da eficácia da vacina. Retardar a aprovação da vacina produzida pelo Butantan, porque seria um êxito de Doria, e desacreditar sua eficácia, em razão de sua procedência chinesa, é um tiro no próprio pé.
Ontem, a Anvisa divulgou uma nota mudando de 72 horas para 10 dias o prazo de aprovação das vacinas, além de fazer referência a supostas implicações geopolíticas de cada vacina, que precisariam ser analisadas, o que levou o governo de São Paulo a desistir de pedir o uso emergencial da vacina e apostar na sua iminente aprovação definitiva, pela agência reguladora da China. É um contrassenso sob todos os aspectos: praticamente todas as vacinas que estão sendo desenvolvidas no mundo têm algum nível de participação da China, pois foram os cientistas chineses que forneceram o sequenciamento genético utilizados nas pesquisas.
Luiz Carlos Azedo: O atraso na vanguarda
Estamos diante de uma nova ofensiva do presidente Bolsonaro para aumentar seu poder, desta vez voltada para controlar o Congresso e impor sua agenda política, social e ambiental regressiva
Uma das variáveis fortes das eleições municipais passadas – com exceção da disputa de Macapá, cujo segundo turno será domingo próximo, mas que ainda pode confirmar a regra — foi a atuação de forças centrífugas que fragilizaram a participação do presidente Jair Bolsonaro no pleito. O grande número de candidatos, o fim das coligações e as dimensões continentais do país atuaram nessa direção. O presidente Jair Bolsonaro subestimou esses aspectos e misturou o impacto do auxilio emergencial nas famílias de mais baixa renda e o peso específico da União como se fossem uma mesma coisa que o seu carisma pessoal, o que o levou a apostar suas fichas abertamente em Celso Russomano (Republicanos), em São Paulo, e no prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio, julgando-se o grande eleitor do país. O primeiro sequer foi ao segundo turno; o segundo, perdeu a reeleição. Essas derrotas, como as da maioria das demais cidades onde interferiu no pleito, caíram no seu colo.
Entretanto, é um erro avaliar que as eleições municipais transformaram Bolsonaro num pato manco. Seria uma transposição mecânica do resultado eleitoral para o pleito de 2002. Pode ser até que isso ocorra, mas por outros motivos, que não são propriamente as eleições municipais: a desastrada atuação do Ministério da Saúde na pandemia do novo coronavírus, mitigada graças ao abono emergencial, mas cuja conta já está chegando; a falta de empatia em relação às vítimas da pandemia, que está provocando ojeriza em todo o pessoal da saúde e em parcelas da população que o haviam apoiado em 2018. Em plena segunda onda, vamos entrar o ano sem abono emergencial nem vacinação em massa, com déficit fiscal astronômico, inflação em alta e a economia ainda sem rumo.
Contraditoriamente, porém, o mesmo fator que levou à fragmentação da base eleitoral de Bolsonaro nas eleições municipais, agora, atua a seu favor, ao desagregar as forças de oposição, que continuam dispersas, em razão do mesmo pragmatismo que impera na política local. Além disso, abre-se novo ciclo de centralização política, cujo eixo é a força da União junto aos estados e municípios. Essa é uma tradição da política brasileira marcada por ciclos longos, como já foi demonstrado por Alberto Torres, no começo do século; Oliveira Viana, no Estado Novo; e general Golbery do Couto e Silva, em célebre palestra na Escola Superior de Guerra, em 1980, intitulada Sístoles e Diástolesl. A metáfora da contração e dilatação do coração serviu de base para a estratégia adotada por Geisel para que os militares se retirassem da política em ordem e tutelassem a transição à democracia. A Revolução de 1930, com a posterior implantação do Estado Novo (1937), e o golpe militar de 1964, com a fascistizaçao do regime militar a partir do Ato Institucional no. 5, em 1968 (que hoje completa 52 anos), foram grandes sístoles do período republicano.
Coincidentemente, esses dois ciclos foram encerrados em momentos de grandes mudanças na política mundial: a derrota do nazi-fascismo na II Guerra Mundial (1945) e o fim da guerra-fria, com a derrubada do Muro de Berlim, em 1989. Acontece que o federalismo brasileiro, consagrados nas Constituições de 1891, 1946 e 1988, sempre esteve sobre pressão da União. O mestre José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma no Brasil, 1965), grande estudioso das raízes do pensamento reacionário e das elites conservadoras sempre destacou que a tensa relação entre a União com estados e municípios como vetor um permanente da política brasileira. Em plena vigência do regime democrático, promoveu, desde eleição de Tancredo Neves, para o mal (Plano. Cruzado) e para bem (Plano Real), sucessivas ondas de centralização política e financeira.
Tutela militar
O fim da tutela militar, a partir da Constituição de 1988, que consagrou um Estado democrático ampliado, mais permeável às pressões da sociedade, e as eleições diretas para a Presidência, com alternância de poder, encerraram os ciclos longos, mas as forças de sístole permanecem existindo, sendo que a eleição de Jair Bolsonaro trouxe de volta ao poder, pelo voto, um grupo de militares saudosos do regime militar, que mantem a ambição de tutelar o Estado brasileiro — por favor, não generalizem. A primeira tentativa de tutela se traduziu na ofensiva de Bolsonaro e de setores de ultra-direita contra o Supremo Tribunal Federal (STF), mas esbarrou na reação da própria Corte e do Congresso, apoiados pelas forças políticas mais responsáveis, pela sociedade civil organizada e pelos grandes meios de comunicação de massa. O golpismo que rondava os quartéis não contaminou as Forças Armadas.
Agora, estamos diante de uma nova ofensiva de Bolsonaro para aumentar seu poder, desta vez voltada para controlar o Congresso, com objetivo de impor a sua agenda política, social e ambiental regressiva, o que surpreendeu aqueles que tratavam Bolsonaro como um pato manca. Nunca é demais lembrar que o governo é sempre a forma mais concentrada de poder, mesmo quando é um mau governo; quando nada, porque porque arrecada, normatiza e coage. Mas o que está fazendo a diferença não é a truculência verbal de Bolsonaro, é a velha política de conciliação, que Bolsonaro opera com sinal trocado: desta vez, a vanguarda é o baixo clero do Congresso, que conhece na palma da mão, porque dele fez parte.
Ao atrair para o campo do governo os setores oligárquicos mais fisiológicos e patrimonialistas da política brasileira, principalmente do Norte e Nordeste, Bolsonaro anabolizou o atraso na Câmara, a partir da candidatura de seu principal aliado, o deputado Arthur Lira (PP-AL), que articula um arrastão parlamentar, com farta distribuição cargos e distribuição de verba. No Senado, já estava tudo dominado. Engana-se, porém, quem imagina que mira apenas a reeleição. Seu projeto é inaugurar um ciclo longo de centralização do poder e resgate da tutela militar sobre a democracia brasileira, a partir do controle do Congresso. Para isso, porém, é preciso também subjugar as instituições de Estado, principalmente as que têm o monopólio da força, o Judiciário e os órgãos de comunicação de massa, além de intimidar agentes econômicos e a sociedade civil. Entretanto, ainda não existe correlação de forças favorável, interna e externa.
Luiz Carlos Azedo: A derrota do negacionismo
Chegamos a 178 mil mortos, 6,65 milhões de infectados e 796 mortes nas últimas 24 horas. A média móvel está em 617 mortes, ou seja, 25 pessoas por hora, vítimas da “gripezinha”
A primeira pessoa vacinada contra a covid-19 no Ocidente foi uma senhora de 90 anos; por ironia, a segunda pessoa, um homem de 81 anos, homônimo do dramaturgo inglês William Shakespeare, para quem era uma infelicidade da época, que “os doidos governassem os cegos”. O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, porém, só tem cara de doido. Quis o destino que seu negacionismo em relação ao novo coronavírus e à qualidade do sistema de saúde pública britânico durasse apenas o tempo suficiente para que fosse alcançado pelo vírus. A dura realidade da doença fez com que mudasse radicalmente de opinião. Ontem, deu início à vacinação em massa dos britânicos. Não esperou a conclusão dos testes da vacina de Oxford, ainda envolta na polêmica sobre a eficácia de suas dosagens; optou pela aplicação da vacina da Pfizer-Biontech, americana.
Essa é segunda derrota acachapante do negacionismo, no campo objetivo da vacina como caminho mais eficaz para conter a pandemia, erradicar a doença e voltar à vida normal. A primeira grande derrota foi a eleição de Joe Biden nos Estados Unidos, que até hoje o presidente Jair Bolsonaro não reconheceu. Não se deu conta ainda da envergadura estratégica da mudança de governo norte-americano, que deixa em colapso a atual política externa brasileira. Suas consequências também serão sentidas na política interna, a começar pela política sanitária. Nos Estados Unidos, a segunda onda da pandemia do novo coronavírus foi fatal para a reeleição de Donald Trump, de quem Bolsonaro é aliado incondicional. Como Boris Jonhson, porém tardiamente, o presidente norte-americano encerra o mandato correndo para começar a vacinar sua população. Vladimir Putin, na Rússia, e Xi Jinping, na China, já estão vacinando.
Bolsonaro manobra para disfarçar o que todo mundo já sabe: fez tudo errado durante a pandemia. É deprimente ver o general de divisão da ativa do Exército Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde: com marcial arrogância, corrobora uma política sanitária desastrosa para o país, cuja estratégia equivocada sai da cabeça de Bolsonaro. Os números da pandemia estão em ascensão e o governo anuncia que a Anvisa vai levar 60 dias para autorizar o uso de vacinas que já estão aprovadas por agências controladoras de outros países. Como diria o Bussunda, é brincadeira. Ok, existe uma disputa política entre o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, mas quem fez a aposta errada foi o governo federal. A vacina chinesa chegou primeiro, o Instituto Butantan está sendo mais eficiente, nada disso acontece por acaso.
Atraso
Um governo que demite dois ministros em plena pandemia, Henrique Mandetta e Nelson Teich, e substitui um time experiente de sanitaristas por um grupo de militares paraquedistas no Ministério da Saúde, cujo secretário-executivo exibe na lapela uma faca ensangüentada, símbolo do 1º. Batalhão de Operações Especiais do Exército, agora corre atrás do prejuízo. Está tudo atrasado, falta planejamento e logística para a campanha de vacinação. O ministro anunciou que o governo terá 300 milhões de doses de vacina, mas não disse quando nem como será a campanha. O plano estaria pronto, mas até agora é secreto. Se tivesse mais grandeza, Bolsonaro criticaria o governador João Doria por tirar partido da situação, mas não retardaria a vacinação em massa. Entretanto, sempre desdenhou da eficácia da vacina chinesa ; agora, negaceia sua aprovação. O negacionismo em relação à vacina Coronavac é um bordo perdido do governo, que largou mal e ficou para trás, por uma aposta ideológica e não-científica.
A história está cheia de exemplos de decisões políticas equivocadas que causaram grandes tragédias. Quando a Itália entrou na I Guerra Mundial, em 1915, ao lado da “Entente” (aliança entre França, Inglaterra e Rússia), os italianos acreditavam que aquela seria uma oportunidade de libertar Trento e Trieste do jugo estrangeiro e declararam guerra ao Império Austro-Húngaro. Centenas de milhares de jovens foram recrutados e lançados à batalha. No primeiro confronto, porém, o exército inimigo manteve as suas linhas de defesa de Izonso e o ataque foi contido. Morreram 15 mil italianos.
Na segunda batalha, foram 40 mil mortos; na terceira, 60 mil. Os italianos lutaram “por Trento e por Trieste” em mais oito batalhas, até que, em Caporreto, na décima-segunda, foram derrotados fragorosamente e empurrados pelas forças austro-húngaras às portas de Veneza. O episódio, citado no livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari (Companhia das Letras), ficou conhecido como a síndrome “Nossos rapazes não morreram em vão”: foram 700 mil italianos mortos e mais de 1 milhão de feridos ao final da guerra.
Na maioria das guerras, não são os generais que morrem, é o cidadão que vai para a frente de batalha. Ontem, chegamos a 178 mil mortos, 6,65 milhões de infectados e 796 mortes nas últimas 24 horas. A média móvel das duas últimas semanas está em 617 mortes, isso significa que estão morrendo mais de 25 pessoas por hora, vítimas da “gripezinha”. Não são números que possam ser naturalizados como o general Pazuello e sua equipe estão fazendo, porém, a mentalidade marcial leva a isso. Embora esteja no vértice do Sistema Único de Saúde (SUS), o Brasil é uma federação e o sistema é tripartite, a União não tem o monopólio da política de vacinação, cabe-lhe coordenar e não obstruir. A legislação, inclusive, faculta aos demais entes federados — estados e municípios — o direito de formarem consórcios para resolverem problemas comuns e desenvolver políticas conjuntas.
Luiz Carlos Azedo: Regresso em marcha forçada
O desmonte das políticas públicas voltadas para os direitos humanos está em pleno curso, mas é uma contradição com as necessidades imediatas os brasileiros
Na sua primeira e única visita ao Jardim Botânico, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles — o homem que conduz as boiadas do desmatamento, das queimadas e das demais agressões ao meio ambiente — anunciou a intenção de transformar o Museu do Meio Ambiente, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, num hotel-boutique, espécie de pousada de alto luxo, acessível apenas aos mais privilegiados. O cara tem uma mentalidade mais atrasada do que a do D. João VI, o rei português que fugiu de Napoleão Bonaparte para o Brasil e mandou criar a instituição, nos idos de 1808, ou seja, mais de 212 anos atrás, com objetivo de aclimatar e cultivar especiarias e árvores exóticas, entre as quais, palmeiras imperiais, nogueiras, mangueiras, jaqueiras e cravos-da-Índia, que vieram do Oriente, das Ilhas Maurício a Macau.
Mal sabe o ministro: os cariocas têm apego àquele espaço privilegiado nas bordas da Lagoa Rodrigo de Freitas e ao pé da Serra do Mar, polo irradiador da cultura ecológica de suas crianças e adolescentes, parte integrante da memória afetiva da cidade; e da importância científica de suas pesquisas e do seu acervo, que preserva 7,5 mil espécies em pé, um herbário com 600 mil amostras e a maior biblioteca de botânica do país, com 32 mil volumes. Como a arrogância de Ricardo Salles não tem limites, ficamos imaginando: até onde vai essa sanha regressista em marcha forçada? O governo Bolsonaro se comporta como se estivesse no antigo regime militar (1964-1985) e não tivesse que dar satisfações a ninguém.
A propósito, a postura de Salles não difere muito da adotada pelo ministro da Saúde, o general da ativa Eduardo Pazuello, que não presta contas à comunidade científica nem à sociedade, e cumpre as ordens do presidente da República sem pestanejar. Vamos ver o que vai acontecer em 25 de janeiro, quando o governo de São Paulo, segundo anunciou o governador João Doria (PSDB), pretende iniciar a vacinação em massa da população residente e de quem mais estiver por lá. A vacina ainda depende da aprovação da Anvisa, que hoje está sob absoluto controle de militares negacionistas como Bolsonaro, mas há controvérsias, porque a legislação é ambígua. Diz que as autoridades, no âmbito de sua competência, podem importar e distribuir medicamentos e outros materiais, equipamentos e insumos sem registro na Anvisa, desde que autorizados pela FDA, EMA ou entidade similar — a legislação nomeia – do Japão e da China.
Direitos humanos
Se ligarmos uma coisa com a outra, veremos que o regresso está em marcha forçada em toda linha, como na educação, por exemplo. Ontem mesmo, um manifesto de pediatras pedia que as crianças voltassem às aulas. A mesma coisa na área da segurança pública, onde a política do tipo compre uma arma e se defenda sozinho é narrativa dos violentos, e deixa a população à mercê de traficantes, milicianos e policiais despreparados. Temos um governo que não está nem aí para os direitos humanos, que remontam à Revolução Francesa, um mix de direito liberal, moral cristã e política humanista. Bolsonaro despreza esses valores, embora faça apologia da liberdade individual.
É falsa a ideia de que os direitos humanos perderam seu significado e limites com a globalização e a revolução digital. Direitos como atributos individuais, apenas, não podem combater a desigualdade, nem são sinônimos de justiça. Direitos humanos são prescrições: as pessoas não são livres e iguais, mas deveriam ser. O “direito à vida”, por exemplo, por si só, não responde as perguntas sobre o aborto. Nem às necessidades da sobrevivência, como alimento, abrigo ou cuidados de saúde. Na maioria dos casos, uma reivindicação de direitos humanos é o começo de um processo de desenvolvimento social e não o fim.
A Constituição brasileira de 1988 consagrou como direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Três emendas constitucionais, em 2000, 2010 e 2015, incluiram no artigo 6º da Carta Magna, os direitos à moradia, à alimentação e ao transporte. Sempre houve muitas críticas ao texto constitucional, mas essa é uma agenda que corresponde às necessidades do nosso desenvolvimento social. O desmonte das políticas públicas voltadas para esses objetivos está em pleno curso, mas é uma contradição com as necessidades mais prementes da grande maioria da população. De certa forma, a pandemia do novo coronavírus tornou isso mais evidente e desnudou o caráter regressivo da atuação do governo federal nessas áreas. Isso ficará mais evidente com o fim do auxílio emergencial, que mitigou os efeitos mais perversos desse desmonte.
Luiz Carlos Azedo: Como perder a guerra
Bolsonaro cria mais obstáculos para o desenvolvimento do país do que se imagina, pois aprofunda nosso atraso econômico e tecnológico e retarda a recuperação da economia
Quando invadiu a antiga União Soviética, Adolf Hitler já havia conquistado boa parte da Europa: além da Áustria, Tchecoslováquia e Polônia — o que deflagrou a Segunda Guerra Mundial —, a Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, a Holanda, a França, a antiga Iugoslávia e a Grécia, além de ex-colônias europeias na África. A Operação Barbarrosa foi iniciada pelos alemães em 22 de junho de 1941 e mobilizou mais de três milhões de soldados. Sua intenção era conquistar a URSS em oito semanas. Três objetivos estratégicos foram estabelecidos por Hitler. Ocupar Moscou, a sede do governo; obter a rendição de Leningrado (São Petersburgo), a grande porta russa para o Ocidente; e controlar Stalingrado (antiga Tsarítsin, hoje, Volgogrado), para garantir petróleo em abundância. Foram passos maiores que as pernas. A 30 quilômetros de Moscou, que chegou a ser evacuada, os alemães foram repelidos; apesar da fome, a população de Leningrado resistiu até o cerco ser quebrado, em 1944. Estratégica para o controle do Cáucaso, área considerada vital para o abastecimento das tropas alemãs, em Stalingrado, a batalha foi a mais longa e sangrenta de toda a guerra, mudando seu curso.
Os alemães não tinham recursos suficientes para manter uma guerra de longa duração em território soviético, na qual exauriram suas energias. Além disso, a derrota em Stalingrado quebrou a aura de invencibilidade do Exército alemão, que acabou cercado e se rendeu. Cerca de 400 mil alemães, 200 mil romenos, 130 mil italianos e 120 mil húngaros morreram, foram feridos ou capturados. Dos 91 mil alemães feitos prisioneiros em Stalingrado, apenas 5 mil voltaram para a Alemanha. Os soviéticos sofreram cerca de 1,13 milhão de baixas, sendo 480 mil mortos e prisioneiros e 650 mil feridos em toda área de Stalingrado. Quando se rendeu, o comandante do 6º Exército alemão, marechal de campo Friedrich Paulus, referindo-se a Hitler, declarou: “Não tenho intenção de me suicidar por aquele cabo da Baviera”. Nunca antes um marechal de campo alemão havia se rendido numa frente de batalha; preferiam o suicídio à desonra. Ele havia cumprido as ordens de não se retirar de Stalingrado, a qualquer preço, mas acabou isolado, sem munição nem suprimentos.
Tem gente que considera a política uma guerra sem derramamento de sangue. Geralmente, trata os adversários como inimigos a serem exterminados. Entretanto, eles ressuscitam. Um dos três protagonistas da Conferência de Yalta, que dividiu o mundo em áreas de influência — ao lado de Franklin Delano Roosevelt (EUA) e Josef Stálin (URSS) —, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill dizia: “A política é quase tão excitante como a guerra e não menos perigosa. Na guerra a pessoa só pode ser morta uma vez, mas na política diversas vezes.”
Frentes de batalha
Não por acaso, analogias de cunho militar são usadas na análise política. Por exemplo, a chegada do presidente Jair Bolsonaro ao poder resultou de uma “guerra de movimento” bem-sucedida na campanha eleitoral de 2018, uma espécie de “britzkrieg”. Na Presidência, manteve essa tática no primeiro ano de governo para ampliar seus poderes, até trombar com o Supremo Tribunal Federal (STF), que investiga o chamado “gabinete do ódio” (a disseminação de fake news e ataques a autoridades nas redes sociais por colaboradores encastelados no Palácio do Planalto) e o caso “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual está envolvido o senador Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Desde então, opera uma “guerra de posições”, na qual tenta envolver as Forças Armadas, mobiliza os órgãos de controle do Estado, entre os quais o Ministério Público Federal (MPF), e pretende controlar o Congresso, o Judiciário e os grandes meios de comunicação de massa. Mutatis mutandis, foi essa estratégia de Wladimir Putin na Rússia para garantir sua longa permanência no poder.
O problema de Bolsonaro é que a verdadeira guerra está sendo travada em outros terrenos, nos quais não tem a menor chance de vitória. A primeira frente é a política ambiental, que nos levou a um grave litígio com a União Europeia, principalmente, com a Alemanha, a França e a Noruega. Os resultados de sua política são uma contradição em si mesma: quanto mais “passa com a boiada”, mais isolado internacionalmente fica.
A segunda, a crise sanitária, na qual Bolsonaro chegou a um ponto crítico, em razão do seu negacionismo: entrou numa guerra particular com o governador João Doria (SP), de São Paulo, por causa da vacina chinesa, e não tem mais como sair dela, a não ser se rendendo e comprando a CoronaVac, que já começou a ser produzida em grande escala pelo Instituto Butantan. Se não o fizer, a segunda onda da pandemia será uma tragédia ainda maior do que a primeira, porque a vacina de Oxford não está pronta e levará mais tempo para ser produzida pela Fiocruz e aplicada em massa.
A terceira frente é o não-reconhecimento da vitória do presidente norte-americano Joe Biden, que nos leva a um isolamento internacional sem nenhum precedente na História. Com isso, a política externa de Bolsonaro, como a ambiental e a sanitária, está em colapso. Em rota de colisão com a China, nosso maior parceiro comercial, agora ficou de mal com novo presidente dos Estados Unidos, o segundo parceiro, tudo em solidariedade ao presidente Donald Trump, que não se reelegeu. Essas três frentes de batalhas criam mais obstáculos para o desenvolvimento do país do que se imagina, pois aprofundam nosso atraso econômico e tecnológico e retardam a recuperação da economia.
Luiz Carlos Azedo: Poderia ser pior?
Não temos um plano efetivo de vacinação em massa por parte do Ministério da Saúde, cujo titular é um general de divisão da ativa, especialista em logística
Não gosto de análises catastróficas nem do quanto pior, melhor. Prefiro a teoria das duas hipóteses do humorista Aparíccio Apporelly, o Barão de Itararé, descrita por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere. O escritor alagoano deliciava-se com as anedotas e os comentários espirituosos do jornalista gaúcho, encarcerado durante a ditadura de Getúlio Vargas. Com sua voz pastosa e hesitante, dono de um “otimismo panglossiano”, o Barão sustentava que tudo ia bem e poderia melhorar, fundado numa demonstração de que diante de cada situação haveria sempre uma pior: “Excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas; uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida”, explicava Graciliano. Com a palavra, o próprio Apporelly quando estava preso:
“Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor, esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí. Realmente. Realmente ignorávamos o que nos sucederia se fôssemos para o inferno. Mas, ainda assim, não convinha alarmar-nos, pois essa desgraça poderia chegar a qualquer pessoa, na Casa de Detenção ou fora dela”.
O raciocínio irônico do Barão de Itararé é altamente filosófico e serve para qualquer situação. Por exemplo, para a turma enrolada na Lava-Jato, que agora assiste, de tornozeleira eletrônica ou no xadrez, o ex-juiz Sergio Moro ser contratado como especialista em combate à corrupção por um grande escritório de consultoria que presta serviços à Odebrecht. Como se sabe, Emilio Odebrecht, para salvar a empresa e aliviar a cana de seu filho, Marcelo Odebrecht, negociou uma delação premiada com o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que quase implodiu o sistema político brasileiro. Alguns imaginam que o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff pavimentou o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro; não, essa estrada foi asfaltada pelo escândalo da Petrobras e o uso generalizado de caixa dois nas campanhas eleitorais.
Pandemia
Mas, voltemos à teoria das duas hipóteses. O ano da pandemia do novo coronavírus está acabando, porém a covid-19 recrudesceu. Há uma corrida mundial para conter a segunda onda na Europa e nos Estados Unidos, que é repetição do que ocorreu com a gripe espanhola, 100 anos atrás. Agora, além do isolamento social, estarão sendo utilizadas vacinas em caráter emergencial. No Brasil, em razão do negacionismo do presidente Jair Bolsonaro e da mentalidade castrense do ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, estamos numa guerra entre o governo federal, que comprou a vacina de Oxford, inglesa, que será produzida pela Fundação Oswaldo Cruz, e o governo de São Paulo, que adquiriu a vacina chinesa CoronaVac, cuja fabricação será iniciada pelo Instituto Butantan. Há, também, uma vacina russa, a Sputnick V, adquirida pelo governo do Paraná.
Entretanto, não temos um plano efetivo de vacinação em massa por parte do Ministério da Saúde, cujo titular é um general de divisão da ativa, especialista em logística, que será o grande responsável pelo atraso da campanha de vacinação. No momento, sua grande preocupação é negar a existência de uma segunda onda da pandemia, sabotar as medidas de isolamento social e atrasar a liberação da vacina chinesa. Vidas não importam, afinal, não existe guerra sem defuntos. E onde aplica-se a teoria das duas hipóteses? Ao comparar o número de mortos com os que sobreviveram à covid-19, graças aos esforços heróicos dos profissionais da saúde.
Nas últimas 24 horas, houve 776 mortes, somando 175.307 óbitos desde o começo da pandemia. A média móvel de mortes no Brasil, nos últimos sete dias, foi de 544. Desde o começo da pandemia, 6.487.516 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 50.883 desses casos confirmados nas últimas 24 horas. Em média, nos últimos sete dias, houve 40.421 novos diagnósticos por dia, a maior desde agosto, que registrou 40.526 mortes. O aumento no número de casos foi de 37%. A pandemia recrudesceu nos seguintes estados: PR, RS, SC, ES, MS, AC, AP, RO, CE, PB, PE, RN e SE.
Luiz Carlos Azedo: A volta do Febeapá
A sorte do general Pazuello , ministro da Saúde, é que ainda não apareceu um novo Sérgio Porto, o cronista Stanislaw Ponte Preta, para reeditar o famoso Festival de Besteira que Assola o País
Consta que o general Zenildo Gonzaga Zoroastro de Lucena, ministro do Exército nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, que faleceu aos 89 anos, em março de 2017, teria sido o grande responsável pela formação da atual elite militar do país, pela ênfase que deu ao aperfeiçoamento e à formação de oficiais superiores, inclusive, estimulando a graduação e pós-graduação em áreas civis, como economia e finanças, administração, ciências políticas, comunicação social, direito etc.
O general assumiu o mais alto posto do Exército Brasileiro logo após o afastamento do ex-presidente Fernando Collor de Melo, em outubro de 1992, durante a transição entre a posse de Itamar Franco e as eleições de 1994. Ao assumir o cargo de ministro do Exército, em meio à crise que culminou com o impeachment de Collor, teria atuado para evitar uma intervenção dos militares. Em junho de 1993, por exemplo, rebateu as declarações do deputado federal e capitão da reserva Jair Bolsonaro favoráveis ao fechamento do Congresso e à volta do regime de exceção, garantindo o apoio do Exército ao governo.
Por causa da perda de privilégios e do corte de verbas destinados às Forças Armadas durante o ajuste fiscal do Plano Real, os militares não gostam de lembrar dos anos do governo FHC, nos quais houve um grande sucateamento de seus equipamentos. No fundo, foram mais felizes durante o governo Lula, que apostou na criação de uma indústria nacional de Defesa, com a produção de veículos de transporte de tropas e carros blindados, lança-foguetes, novos caças e avião cargueiro, e dos novos submarinos, um deles nuclear, além articular missões internacionais a serviço da ONU, entre as quais a do Haiti, onde estiveram alguns dos atuais integrantes do governo Bolsonaro.
Os tempos de vacas magras e confinamento nos quartéis, porém, haviam servido para reconstruir a imagem dos militares perante a sociedade, depois do desgaste causado por 20 anos de ditadura, restabelecendo o prestígio que se perdera nas décadas de 1970 e 1980. Operações humanitárias na Amazônia e no Nordeste e de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nos estados, em momentos de colapso do sistema de segurança pública, nos anos mais recentes, contribuíram para essa reconstrução de imagem.
Entretanto, a militarização do governo de Jair Bolsonaro ameaça pôr tudo a perder. A preocupação já tomou conta dos altos-comandos das Forças Armadas, por uma série de episódios que colocam em xeque a competência dos oficiais generais, alguns da ativa, que, hoje, controlam postos estratégicos do governo. É o caso do general de divisão Eduardo Pazuello, cuja subserviência mascarada de disciplina e respeito à hierarquia fica evidente quando fala besteiras com o claro propósito de agradar o presidente Bolsonaro, um negacionista da gravidade da covid-19, da vacina e do isolamento social.
Nova onda
Ontem, houve mais um desses casos, durante audiência na Câmara, quando o ministro da Saúde tratou com desdém e ironia as medidas que estão sendo adotadas por governadores e prefeitos para conter a segunda onda da pandemia da covid-19, como acontece em outros países que enfrentam o problema. Disse que as eleições demonstram que o isolamento social é desnecessário, quando a lotação das enfermarias nas redes privada e pública estão demonstrando exatamente o contrário. Para completar, numa espécie de quem manda aqui sou eu, voltou a advertir, sem necessidade, que nenhuma vacina será aplicada sem autorização da Anvisa, deixando no ar que o governo federal criará dificuldades para a imediata aplicação da vacina chinesa CoronaVac pelo governo de São Paulo.
A sorte do general é que ainda não apareceu um novo Sérgio Porto, o cronista Stanislaw Ponte Preta, para reeditar o famoso Febeapá (Festival de Besteira que Assola o País), uma coletânea de “causos” de políticos, militares e delegados proeminentes durante o regime militar. O livro foi publicado em 1966, antes do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que legitimou a censura prévia e acabou com habeas corpus, entre outras medidas antidemocráticas. Sérgio Porto morreu três meses antes, aos 45 anos.
O Brasil registrou 669 mortes pela covid-19 nas últimas 24 horas, chegando ao total de 174.531 óbitos desde o começo da pandemia. A média móvel de mortes no país, nos últimos sete dias, foi de 533. Desde o começo da crise sanitária, 6.436.633 brasileiros já tiveram ou têm o novo coronavírus, com 48.107 desses confirmados no último dia. A média móvel nos últimos sete dias foi de 38.534 novos diagnósticos por dia, a maior desde 6 de setembro — quando chegou a 39.356. Isso representa uma variação de +35% em relação aos casos registrados em duas semanas, o que indica tendência de alta nos diagnósticos em 11 estados: PR, RS, SC, ES, MS, AC, AM, RO, CE, PE e SE.
Luiz Carlos Azedo: Esperando Godot
Estragon: O que a gente faz agora?
Vladimir: Não sei.
Estragon: Vamos embora.
Vladimir: A gente não pode.
Estragon: Por quê?
Vladimir: Estamos esperando Godot.
Estragon: É mesmo.
Escrita no pós-Segunda Guerra Mundial, a peça do irlandês Samuel Beckett, que empresta o título à coluna, é uma obra-prima do chamado Teatro do Absurdo. Faz sucesso no mundo desde 1953, quando estreou em Paris. No Brasil, teve duas montagens amadoras na década de 1950, até o estrondoso sucesso de sua montagem profissional, no Teatro TBC, em São Paulo, sob direção de Flávio Rangel, em 1969, com Cacilda Becker no papel de Estragon e seu marido, Walmor Chagas, no de Vladimir. O contexto político da época, em plena vigência do Ato Institucional nº 5 do regime militar, e o fato de Cacilda Becker sofrer um derrame cerebral em pleno palco, numa apresentação para estudantes em São Carlos, agonizando por 38 dias, deram à peça um lugar na história da cultura brasileira.
A peça somente faz sentido quando serve de analogia para um contexto de incertezas. Sua essência é a espera. É a desconstrução completa do teatro, pois não tem história, as falas não são coesas e nada acontece do ponto de vista da ação dos personagens. Tudo parece obscuro e pessimista, mas provoca uma profunda reflexão sobre a vida e a sua incessante busca por respostas. O palco vazio desconstrói o mundo ao redor, os diálogos repetitivos reproduzem as relações humanas e a inação dos personagens mostra a paralisia que a incerteza provoca. Na espera, nada acontece.
A fábula de Becker tem tudo a ver com o momento que o Brasil está vivendo. Os resultados das eleições municipais, em vez de dissiparem as incertezas, aumentaram-nas. Em 9 de outubro passado, a pouco mais um mês das eleições, segundo a pesquisa Exame-Ideia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) seria reeleito para um segundo mandato. No primeiro turno, teria 30% das intenções de voto, contra 18% do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e 10% do ex-ministro da Justiça Sergio Moro (sem partido).
A pesquisa mostrava, ainda, Ciro Gomes (PDT), com 9%, Luciano Huck (sem partido), com 5%, e João Doria (PSDB), com 4%. A pesquisa também apontava Luiz Henrique Mandetta (DEM) com 3%, Marina Silva (Rede) com 2%, João Amoedo (Novo) com 1%, e Flávio Dino (PCdoB) com 1%. Brancos e nulos somavam 9%. Os que “não sabiam” eram 10%. Em uma projeção de segundo turno, Bolsonaro venceria Moro com 41% dos votos contra 35% do ex-ministro. Em relação a Lula, Bolsonaro teria 43%, contra 33% do petista. Numa disputa contra Doria, a vantagem do Bolsonaro seria ainda maior: 42% das intenções de voto contra 21%.
Incógnitas
Menos de dois meses depois, Bolsonaro, que venceria em todos os cenários e regiões, sofreu uma derrota acachapante nas eleições municipais. Continua sendo o principal polo de atração de forças políticas, mas viu a extrema-direita que o levou ao poder definhar e tem de disputar o centro político com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que busca alianças nesse campo, principalmente com o DEM, o MDB e o PSD.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que opera a mesma estratégia de 2018, viu o PT ser volatilizado completamente nas capitais, a ponto de não eleger nenhum vereador em Rio Branco (AC). A nova estrela da esquerda é Guilherme Boulos, do PSol, que não tem o passivo de corrupção petista. O novo líder paulista também é um problema para Ciro Gomes, do PDT, por outros motivos: fecha-lhe a porta do Sudeste.
Restam as duas incógnitas que justificam a analogia: Sergio Moro, que acabou de assinar um contrato milionário de trabalho com um escritório que presta serviços de consultoria à Odebrecht, e o apresentador Luciano Huck, que tem até junho para decidir se mantém seu contrato, também milionário, com a TV Globo. São nomes que podem aglutinar forças de centrodireita e/ou centroesquerda para construir uma alternativa de poder, mas somente serão candidatos se as pesquisas mostrarem que têm chances de vencer. Enquanto isso, o diálogo de nossos personagens reproduz as incertezas:
Vladimir: Amanhã nos enforcamos. (Pausa)
A não ser que Godot venha.
Estragon: E se vier?/
Vladimir: Estaremos salvos.
Estragon: Então, vamos?
Vladimir: Sim, vamos lá.
(Eles não se mexem)
A cortina se fecha.
Luiz Carlos Azedo: Einsten explica
A única relação mecânica entre os resultados das eleições de hoje e as próximas é a seguinte: a campanha eleitoral de 2022 já começou
A teoria da relatividade de Alberto Einstein revolucionou o século passado, estando mais ostensivamente presente no nosso cotidiano do que outra de suas descobertas, o efeito fotoelétrico, que possibilitou o desenvolvimento da bomba atômica, aplicação que nunca passou por sua cabeça. Einstein sempre foi um pacifista. Empregada duas vezes, pelos Estados Unidos, em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, a bomba continua sendo um espectro da política mundial. A Coreia do Norte e Israel, por exemplo, sociedades militarizadas, são temidos porque têm a bomba.
No Brasil, durante o regime militar, a Marinha e a Aeronáutica desenvolveram secretamente um programa nuclear paralelo, cujo objetivo era dominar a tecnologia e produzir uma bomba atômica. Cerca de 700 militares e técnicos civis foram enviados pelo governo para estudar na França, na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos, em 1979, o que resultou na formação de 55 doutores, 396 mestres e 252 especialistas em segurança de reatores, materiais nucleares, ampliação de técnicas nucleares, infra-estrutura de pesquisa e desenvolvimento, além de recursos humanos.
O presidente José Sarney, quando assumiu o poder, mandou encerrar o programa. Já havia até um buraco de grande profundidade na Serra do Cachimbo, construído pela Aeronáutica, para testar a bomba. Após o Brasil assinar o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, restou do projeto o programa do submarino nuclear da Marinha. Isso possibilitou uma mudança da água para o vinho nas relações com os nossos vizinhos, principalmente a Argentina. Quando o presidente Jair Bolsonaro fala em “pólvora” como fator determinante de nossa independência — e sinaliza que o Brasil será o último a reconhecer a eleição do presidente Joe Biden e somos o único país a votar com Donald Trump contra a Organização Mundial de Saúde(OMS) na Organização das Nações Unidas (ONU) —, penso com os meus botões: “Será o Benedito?” Se pudesse, com certeza, Bolsonaro voltaria no tempo.
Felizmente, a teoria da relatividade tem aplicações muito mais úteis para a sociedade. O GPS, por exemplo, utiliza mecanismos advindos da relatividade para determinar com alta precisão as posições na Terra. Os celulares dependem de 24 satélites em órbita ao redor da Terra para determinar a nossa localização. Se não fosse a relatividade, por exemplo, não seria possível a existência do Uber e do iFood, que são a salvação da lavoura para muita gente nesta pandemia. A fórmula mágica de Einsten — E(energia) = m(massa)c2(velocidade da luz elevada ao quadrado) — é necessária para calcular as distâncias e fazer correções, porque os satélites percorrem a órbita da Terra a uma velocidade de 14 mil km/h. É menor do que a velocidade da luz (cerca de 300 mil km/s), mesmo assim, a fórmula possibilita os cálculos necessários.
Eleições
O tempo também é relativo na política, tanto como num parque de diversões meia hora antes de fechar. Passa diferentemente para o avô que brinca com a netinha, o jovem apaixonado que espera a namorada e o pipoqueiro metódico, que confere o faturamento e arruma sua carrocinha. Os militares britânicos têm uma teoria interessante sobre isso: “a sombra do futuro”, uma sacada dos seus estudos de estado-maior sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), uma guerra de posições. Os soldados ingleses e alemães se confraternizaram no Natal de 1914, na cidade de Ypres, na Bélgica. Mas não foi só isso, também houve cooperação tácita em outros momento ao longo dos fronts, quando se atirava no mesmo lugar já conhecido da trincheira inimiga. A “sombra de futuro” dos soldados, que queriam sobreviver e voltar à vida civil, era maior do que a dos seus generais.
A “sombra de futuro” dos que serão eleitos hoje —como os que o foram no primeiro turno — é maior do que a de deputados estaduais e federais, senadores no sexto ano de mandato e governadores, além, é claro, a do presidente Jair Bolsonaro. A única relação mecânica entre os resultados das eleições municipais e as próximas é a seguinte: a campanha eleitoral de 2022 já começou. No mais, tudo é relativo, inclusive os efeito da derrota dos aliados do presidente Jair Bolsonaro, que tem a maioria dos prefeitos eleitos na dependência de financiamentos e outros recursos federais, inclusive os dos partidos de oposição.
É possível inferir das eleições municipais algumas tendências para 2022, do tipo “a extrema-direita foi isolada”, “o centro recuperou suas posições”, “o PT está renascendo das cinzas”, “surge uma nova esquerda”, “a reeleição de Bolsonaro está em risco”, “existe menos espaço para aventureiros”. Essas tendências, porém, podem se afirmar ou não, dependendo da real situação da economia, da superação da crise sanitária com a chegada das vacinas e das entregas administrativas a partir do terceiro ano de mandato de Bolsonaro. Obviamente, o tempo — o recurso mais escasso de seu mandato — vai passar mais rápido para o governo do que para a oposição; para os eleitores descontentes, porém, será uma eternidade. Einstein explica.
Luiz Carlos Azedo: Três cidades
Em São Paulo, Bruno Covas é assediado por Boulos; no Rio de Janeiro, Eduardo Paes está praticamente eleito; em Recife, Marília e João Campos têm disputa acirrada
Muito interessante a disputa nas três principais capitais onde há segundo turno: São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. Apontam tendências políticas completamente diferentes. A única conclusão que podemos inferir em relação a 2022, com segurança, é o fato de que o presidente Jair Bolsonaro caiu do cavalo nas três cidades. Seus candidatos não emplacaram. A queda de sua popularidade em quase todo o território nacional, em razão da pandemia de coronavírus, das altas taxas de desemprego e das suas patacoadas em relação a alguns temas relevantes, como a política externa e o meio ambiente, fez com que seu apoio se tornasse irrelevante.
Em São Paulo, Bruno Covas (PSDB) mantém a liderança, mesmo caindo de 48% para 47%. Guilherme Boulos (PSol) estacionou nos 40%, segundo o DataFolha. Como o candidato de Bolsomaro, Celso Russomano (Republicanos), virou mosca morta no segundo turno, a disputa reflete uma guinada à esquerda na capital paulista. Bruno Covas é um tucano de raiz, com uma narrativa que não nega a herança familiar do ex-governador Mario Covas. É falsa a acusação de que seria um bolsonarista, sua candidatura se posiciona no campo da centro-esquerda.
O que acontece é que Boulos, candidato do PSol, está à esquerda do PT, o que está contingenciando sua candidatura. Não deixa de ser um fenômeno de implicações nacionais, pois sinaliza a quebra de hegemonia do PT e a emergência de uma nova liderança política em São Paulo com projeção para outros estados. Também é falsa a tese de que seria uma espécie de lulismo sem Lula, quando nada porque o transformismo do PT ocorreu no exercício do poder e não à margem dele. Não se pode confundir o aggiornamento de Boulos com isso.
Boulos tem ampla vantagem entre jovens de 16 a 24 anos (61% a 27%); Covas, entre quem tem 60 anos ou mais (61% a 28%). Os mais jovens, porém, pesam menos (12%) no eleitorado do que os mais velhos (23%). Entre os mais pobres, com renda familiar de até dois salários, o candidato do PSDB tem 46% das intenções de voto, ante 39% do adversário. Também lidera entre quem tem renda familiar de dois a cinco salários (48% a 38%). Boulos vence na faixa de renda de cinco a 10 salários (48% a 42%). Entre os mais ricos, com renda superior a 10 salários, Covas tem 53%, e Boulos, 42%. No total de votos válidos, Covas tem 54% e Boulos, 46%.
Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro, a situação é completamente diferente da de São Paulo. O segundo turno virou uma disputa entre o centro e a direita. A novidade é o maciço apoio da esquerda ao candidato do DEM, Eduardo Paes, que passou de 54% para 55%. O prefeito Marcelo Crivella, um dos raros candidatos de Bolsonaro no segundo turno, mostra resiliência na sua base evangélica, mas avançou apenas de 21% para 23% dos votos, segundo o DataFolha. Em termos de votos válidos, Paes venceria Crivela por 70% a 30%.
A vitória de Eduardo Paes repercute no cenário nacional porque fortalece o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e a ala do partido que namora a eventual candidatura a presidente da República do apresentador Luciano Huck. A disputa também aponta uma tendência de convergência de forças contra o presidente Jair Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2022.
A segmentação da pesquisa também mostra uma derrota profunda do projeto político da Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, de quem Crivella é sobrinho. Sua narrativa conservadora em relação aos costumes esbarrou na vida mundana dos cariocas. O aparelhamento da administração da cidade pelos pastores evangélicos também se revelou um fracasso político.
Não é à toa que Paes ampliou a vantagem sobre Crivella entre as mulheres (74% contra 26%); entre os que têm 60 anos ou mais (75% a 25%); entre os mais instruídos (75% a 25%); entre os com renda familiar mensal acima de 10 salários mínimos (85% a 15%); entre os funcionários públicos (83% a 17%); entre os católicos (84% a 16%); e entre os simpatizantes do PT (93% a 7%). Crivella manteve-se em vantagem apenas entre os evangélicos (64% contra 36%).
Recife
A eleição no Recife está eletrizante e virou a política de Pernambuco de pernas para o ar. Marília Arraes (PT) subiu de 41% para 43%, mas João campos (PSB) tem uma curva de crescimento melhor: passou de 34% para 40%. Nos votos válidos, a petista venceria por 52% a 48%, uma diferença que caiu de 10 para quatro pontos, apenas. O mais inusitado da disputa é que ela se dá praticamente no mesmo campo, em todos os sentidos. PT e PSB são partidos de esquerda, socialistas, os dois candidatos pertencem ao clã da família do ex-governador Miguel Arraes e disputam a sua herança.
Curioso é o fato de a direita pernambucana apoiar maciçamente a candidata petista, com objetivo de enfraquecer o governador Paulo Câmara e o jovem deputado federal João Campos, neto de Arraes e herdeiro político do falecido governador Eduardo Campos, que morreu num desastre aéreo na Baixada Santista, em plena campanha eleitoral de 2014.
Marília Arraes leva vantagem entre os homens (46% a 36%); entre as mulheres, fica um pouco atrás (41% a 43%). Entre os mais jovens, de 16 a 24 anos, abre 14 pontos (47% a 33%). Na faixa seguinte, de 25 a 34 anos, tem 43%, ante 41% do candidato do PSB. Entre os eleitores de 35 a 44 anos, Campos lidera (45% a 37%), mas perde entre quem tem de 45 a 59 anos, faixa na qual a petista abre vantagem de 14 pontos novamente. No grupo de eleitores mais velhos, com 60 anos ou mais, o candidato do PSB tem 44% e Marília, 43%.
Luiz Carlos Azedo: Argentina, China e EUA
As relações do Brasil com os três países estão sob estresse político, provocado por declarações inamistosas e de cunho ideológico do presidente Bolsonaro e dos seus filhos
Vamos começar pela Argentina, que ontem perdeu seu maior ídolo, o ex-jogador Diego Maradona, cujo prestígio entre nós era tão grande que a velha rivalidade entre as torcidas brasileira e argentina perde qualquer sentido diante da sua genialidade e importância para o futebol mundial. Aliás, essa rivalidade, do ponto de vista geopolítico, perdeu o sentido desde a Guerra das Malvinas, quando os Estados Unidos, o aliado principal dos argentinos, apoiaram os ingleses, que recuperaram o arquipélago depois de impor dura derrota militar aos nossos vizinhos.
Ao contrário do que imaginava o presidente da Argentina, o general Leopoldo Galtieri, a primeira-ministra britânica Margaret Tatcher não quis saber de negociação e resolveu o assunto pela força, exibindo o poder naval do Reino Unido no Atlântico Sul. Foi um golpe de morte na ditadura militar argentina, desmoralizada na guerra. Muito do prestígio de Maradona se deve à vitória da seleção argentina contra os ingleses, na final da Copa do Mundo do México, em 1986, quando fez dois gols, um com a “mão de Deus” e o outro, numa arrancada em linha reta, driblando todos os ingleses à sua frente. Lavou, em campo, a alma de uma Argentina humilhada.
A Guerra das Malvinas aproximou o Brasil da Argentina, a partir do governo do presidente José Sarney, tanto do ponto de vista diplomático como militar, estreitando a cooperação entre os dois países. Essas relações, porém, vão de mal a pior desde a eleição do presidente Alberto Fernández, um peronista moderado. Bolsonaro nunca esteve com o presidente argentino, contra quem fez campanha aberta na eleição presidencial e a cuja posse nem sequer compareceu, quebrando uma tradição diplomática importante para o Mercosul.
O país vizinho era o nosso terceiro parceiro comercial, agora é o quarto. Com um desempenho comercial de USD 3,7 bilhões tanto em importação quanto em exportação, no primeiro semestre de 2020, mesmo assim, continua sendo o parceiro mais importante para a nossa indústria de automóveis e de eletrodomésticos. Entretanto, em razão da pandemia e da péssima relação de Bolsonaro com Fernández, esse desempenho está muito abaixo do que seria possível. A Holanda passou a ocupar a terceira posição. No primeiro semestre deste ano, exportamos USD 4,5 bilhões para os holandeses, contra USD 647 em importações.
Tecnologia
Nosso segundo parceiro comercial são os Estados Unidos, que estão em guerra comercial com a China. A aliança de Bolsonaro, porém, era com o presidente Donald Trump, que perdeu a eleição. Fez campanha aberta contra o democrata Joe Biden, cuja política está em contradição com os rumos que tomamos na cena internacional e também internamente, em áreas como meio ambiente e saúde pública. Para ajudar Trump na eleição, Bolsonaro fez concessões comerciais que prejudicam a indústria brasileira e não obteve, do ponto de vista prático, nenhuma vantagem significativa.
No primeiro semestre deste ano, a balança comercial do Brasil com os Estados Unidos foi negativa: importamos USD 13,2 bilhões e exportamos USD 10 bilhões. Ou seja, o alinhamento automático com Trump somente nos deu prejuízo. Exportamos petróleo bruto, semimanufaturados de ferro e aço, aviões e pastas químicas; em contrapartida, importamos óleo diesel, gasolina, hulha betuminosa e nafta, principalmente. Por que, com Biden, será diferente?
Há mais de 10 anos, o nosso principal parceiro comercial é a China. No primeiro semestre de 2020, o Brasil exportou mais de USD 34 bilhões para o país. No mesmo período, a importação de produtos chineses foi de USD 16,7 bilhões. Vendemos soja, óleos brutos de petróleo, minérios de ferro e seus concentrados, pastas químicas de madeira e carnes desossadas de bovino congeladas, principalmente. Compramos plataformas de perfuração ou de exploração, flutuantes ou submersíveis; componentes para aparelhos receptores de radiodifusão, televisão etc; para aparelhos de telefonia/telegrafia; células solares em módulos ou painéis; e celulares.
Desde que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência, porém, as relações do Brasil com a China estão sob estresse político, provocado por declarações inamistosas e postagens provocativas, de cunho ideológico, nas redes sociais do presidente da República e dos seus filhos. Os chineses são conhecidos pela paciência, mas resolveram reagir duramente a um comentário do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL -SP), acusando a China de espionagem, na segunda-feira. “Isso é totalmente inaceitável para o lado chinês e manifestamos forte insatisfação e veemente repúdio a esse comportamento”, diz a nota da embaixada chinesa. O plano de fundo é a disputa pelo mercado brasileiro de internet 5G. Responsáveis por 33,5% das nossas exportações, se forem excluídos da disputa por Bolsonaro, a priori, os chineses vão se reposicionar em relação ao Brasil.