Memória

Luiz Carlos Azedo: Fogo na camisa amarela

Como brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração seria uma espécie de suicídio coletivo

O carnaval sempre foi um momento de inversão de papéis, de questionamento das normas, de fuga do padrão da vida cotidiana e da libertação da repressão. Neste ano, não. Ainda vamos levar algum tempo para ter a verdadeira dimensão do que está ocorrendo, mas, talvez, o carnaval deste ano seja um momento de choque da dura realidade, que é a crise sanitária pela qual o mundo está passando, agravada pela incompetência e pelo negacionismo do governo. Oxalá, no próximo carnaval, a maioria da população esteja imunizada contra a covid-19.

No começo da pandemia, imaginava-se que o carnaval de 2021 seria um dos maiores de todos os tempos, com a população indo às ruas se divertir, superada a peste. Estaríamos vivendo momentos felizes, de muita contestação aos tabus da nudez e da sensualidade, de ironias e críticas escrachadas aos governantes e, como não poderia deixar de ser, ao presidente Jair Bolsonaro. Feminismo, racismo, diversidade, exclusão, os temas caraterísticos do debate contemporâneo, numa sociedade pluralista e democrática, estariam sendo tratados com bom humor e muita sagacidade pelo povo nas ruas, cantando marchinhas e sambas.

Por incrível que possa parecer, o carnaval — essa festa tão desvairada — também é um momento de conscientização da população. É quase impossível na vida de um brasileiro não ter visto um desfile de escola de samba, não ter saído num bloco ou participado de um baile de carnaval no qual não houvesse ruptura ou transformação de costumes. É uma festa muito ambígua, na qual a fuga da realidade funciona como um espelho da sociedade, quando a velha senhora que passa roupa para fora se veste de luxuosa baiana, a madame vira figurante numa ala de escola de samba, o jovem desempregado brilha na bateria, a socialite leva uma bronca do bombeiro hidráulico por atrasar o desfile e o galã da novela arrisca um desengonçado samba no pé, sendo ele mesmo, e não o seu personagem.

O carnaval substituiu o entrudo, que era uma festa embrutecida, na qual o povo tomava as ruas para jogar farinha, baldes d’água, limões de cheiro e até lama e areia uns nos outros. Ou seja, um avanço civilizatório. Roberto DaMatta, o antropólogo estudioso dos foliões e dos malandros, sempre destacou que o carnaval não é apenas um momento de alienação da realidade, é um espaço de transformação dos padrões da sociedade. O Rio de Janeiro, quanta ironia, teve um prefeito que não gosta de carnaval e não conseguiu se reeleger. Temos um presidente da República que também não gosta e que, talvez, se regozije pelo fato de o povo não ter tomado as ruas para fazer troça das autoridades e de si próprio.

Folião de raça
Um dos maiores carnavais de todos os tempos, segundo os historiadores, foi o de 1919, no Rio de Janeiro, ano de estreia do Cordão do Bola Preta, que havia sido fundado em dezembro do ano anterior e, hoje, é o maior bloco do país, arrastando milhões pelo centro do Rio de Janeiro no sábado de carnaval, o que deveria ter acontecido ontem. Aquele foi um carnaval no qual a população comemorou o fim da gripe espanhola, a epidemia que matou 15 mil pessoas somente no Rio de Janeiro. Neste carnaval, a média de óbitos na cidade está em 158 mortes por dia, sendo 234 óbitos e 5,5 mil casos de contaminação nas últimas 24 horas. Já são 551 mil casos no estado.

Não é privilégio de cariocas e fluminenses. No Distrito Federal, a covid-19 matou 4.198 pessoas, de um total de 247 mil infectados; oito vezes mais do que acidentes e homicídios. Em Belo Horizonte, foram 16,5 mil mortes, de um total de 798 mil infectados. Em São Paulo, 55 mil mortes, com 1,9 milhão de infectados. Na Bahia, 10,6 mil mortos para 623 mil infectados. Em Pernambuco, 10,6 mil mortos para 277 mil infectados; no Amazonas, são 9,7 mil mortos para 292 mil infectados. Estamos vivendo a rebordosa das campanhas eleitorais e das festas de fim de ano.

Como brincar carnaval diante de um cenário tão macabro? Agora, com a segunda onda da pandemia, ir às ruas para uma festa cujo clima depende de aglomeração e contato físico seria uma espécie de suicídio coletivo. Por isso, mesmo que a festa seja em casa e nas redes sociais, neste ano, o carnaval não valeu. Melhor ficar em casa, cantar A Jardineira e pôr fogo na camisa amarela, como aquele folião de raça de Ary e Elizeth, na quarta-feira de cinzas.

PS: até quinta-feira!

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Luiz Carlos Azedo: A resiliência de Moro

Fora do debate político e dedicado à advocacia, Moro voltou ao noticiário devido à divulgação das gravações de suas conversas com os procuradores da Lava-Jato

Moro: Esse documento em que a perícia da PF constatou ter sido feita uma rasura, o senhor sabe quem o rasurou?

Lula: A Polícia Federal não descobriu quem foi? Não? Então, quando descobrir, o senhor me fala, eu também quero saber.

Moro: O senhor não sabia dos desvios da Petrobras?

Lula: Ninguém sabia dos desvios da Petrobras. Nem eu, nem a imprensa, nem o senhor, nem o Ministério Público e nem a PF. Só ficamos sabendo quando grampearam o Youssef.

Moro: Mas eu não tinha que saber. Não tenho nada com isso.

Lula: Tem, sim. Foi o senhor quem soltou o Youssef. O senhor deve saber mais que eu (referindo-se ao escândalo do Banestado).

Moro: Saíram denúncias na Folha de S. Paulo e no jornal O Globo de que…

Lula: Doutor, não me julgue por notícias, mas por provas.

Moro: Senhor ex-presidente, você não sabia que Renato Duque roubava a Petrobras?

Lula: Doutor, o filho quando tira nota vermelha, ele não chega em casa e fala: “Pai, tirei nota vermelha”.

Moro: Os meus filhos falam.

Lula: Doutor Moro, o Renato Duque não é seu filho.

Moro: Tem um documento aqui que fala do triplex…

Lula: Tá assinado por quem?

Moro: Hmm… A assinatura tá em branco…

Lula: Então, o senhor pode guardar por gentileza!

O diálogo cortante acima, quase um repente, é o resumo do depoimento do réu Luiz Inácio Lula da Silva ao então juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, que circula nas redes sociais com o mesmo significado de quando ocorreu: um duelo verbal entre o ex-presidente da República e o líder da Operação Lava-Jato. É divulgado como uma peça de desconstrução de Moro, que, de acusador passa a acusado, na polêmica entre os advogados de Lula e os antigos integrantes da força-tarefa de Curitiba que desmantelou o esquema de corrupção na Petrobras. A Pesquisa XP/Ipespe, divulgada ontem, porém, mostra que o bombardeio contra o ex-juiz, do ponto de vista da opinião pública, pode ter errado o alvo. Moro aparece como o mais bem colocado nas simulações de segundo turno sobre a eleição para a Presidência da República de 2022.

Pesquisa
O governo Bolsonaro vem em queda nas pesquisas desde setembro, sendo avaliado como “ruim ou péssimo” por 42% dos entrevistados, ante 40% em janeiro. Trinta por cento o veem, hoje, como “bom ou ótimo”. No mês passado, eram 32%. Mais da metade (53%) dos brasileiros avalia como “ruim ou péssima” a atuação do presidente Jair Bolsonaro diante da pandemia, que, no Brasil, matou 231 mil pessoas desde março do ano passado. A pesquisa divulgada ontem indica que a percepção negativa sobre o presidente tem piora contínua desde outubro, quando o indicador estava em 47%.

Mesmo assim, Bolsonaro continua sendo líder absoluto na pesquisa estimulada, com 28% de intenções de votos. Moro (sem partido) e Lula/Haddad (PT) têm 12%; Ciro Gomes (PDT), 11%. Estão embolados num empate técnico. A mesma coisa com Luciano Huck (sem partido), 7%; e Guilherme Boulos (PSol), 6%, num segundo grupo. João Doria (PSDB), com 4%; João Amoedo (Novo), 3%; e Henrique Mandetta (DEM), com 3%, vêm no terceiro empate técnico. Numa disputa de segundo turno, porém, o único que derrota Bolsonaro nas simulações é o ex-juiz Sergio Moro, com 36% contra 32%. Os demais resultados são favoráveis a Bolsonaro: 41% a 36% contra Lula/Haddad; 39% a 37% contra Ciro; 37% a 33%, Huck; 37% a 30%, Doria; e 42% a 31%, contra Boulos.

Fora do debate político, pois resolveu se dedicar à advocacia, Moro voltou ao noticiário devido à divulgação das gravações de suas conversas com os procuradores da Lava-Jato, liberada pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), cuja Segunda Turma deve validar a legalidade do compartilhamento de dados da Operação Spoofing com a defesa do ex-presidente Lula.

A Polícia Federal apreendeu mensagens de Telegram trocadas entre integrantes da Lava-Jato, nas quais há evidências de que o então juiz Sergio Moro e procuradores da República, especialmente Deltan Dallagnol, coordenaram suas ações para condenar o ex-presidente da República. Moro e Dallagnol negam a não-conformidade, que pode levar à anulação da condenação de Lula no caso do triplex de Guarujá. Desconstruído como juiz, porém, Moro cresce como candidato à Presidência, quanto mais apanha dos petistas.

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Luiz Carlos Azedo: Um candidato no telhado

Huck parece realmente disposto a largar o mundo do entretenimento e ingressar na política. Mas a aposentadoria do Faustão pode mudar suas perspectivas na TV Globo

Desculpem-me o trocadilho com a inspiradora história do leiteiro Tevje e sua família, na pequena aldeia russa de Anatecka, um conto de autoria de Scholem Aleichen, o grande escritor ídiche, a língua falada pelos judeus da Europa Central e Oriental. Com sua esposa Golde, ele tenta criar as filhas Tzeitel, Hedel, Chava, Shprintze e Bielke na melhor tradição judaica. Tevje e sua canção “Se algum dia eu ficasse rico” bombaram na estreia do musical “Um violinista no telhado” (Anatevka) na Broadway, em setembro de 1964.

Foi um verdadeiro espanto à época, porque o musical era em ídiche, uma mistura de alemão, hebraico e línguas eslavas, e lotou as sessões do Teatro Imperial da Broadway. O título original da adaptação é Fiddler on the roof (Um violinista no telhado). “Parece loucura, não é? Mas no nosso lugarejo Anatevka é assim. Cada um de nós é um violinista no telhado. Ficamos aqui, porque Anatevka é a nossa terra natal. E o que traz equilíbrio à nossa mente pode ser resumido numa palavra: tradição”, esclarece o protagonista da peça. Dirigido por Norman Jewison, com roteiro de Joseph Stein, a versão para o cinema, lançada em 1971, também fez grande sucesso e ganhou quatro Oscar: fotografia, som, direção de arte e trilha sonora.

O filme, uma comédia dramática, é boa pedida para o domingão. Religioso, Tevje imagina que suas cinco filhas deverão pouco a pouco seguir o caminho em direção ao “porto seguro” do casamento. Pobre, tenta, com a ajuda de sua mulher, Golde, casar a filha mais velha com o açougueiro Lazar Wolf, bem mais velho rico e endinheirado. O casamento de conveniência é frustrado pela personalidade teimosa da filha Zeitel, que se apaixona pelo pobre alfaiate Mottel. Para desespero do casal, a segunda filha se apaixona pelo estudante revolucionário Perchik, tomando a decisão de segui-lo até a Sibéria, para onde ele havia sido banido pelo regime czarista. Como se não bastasse, a terceira filha, Chava, ultrapassa os limites da tolerância de Tevje, ao casar-se com o cristão Fedja, o que o pai considera uma traição. Entretanto, um pogrom iminente no vilarejo no qual conviviam judeus e cristãos ortodoxos, força Tevje, Golda e suas duas filhas mais novas a emigrar para os Estados Unidos.

Caldeirão

Na política, quem subiu no telhado nas eleições de 2018, quando o cavalo passou arreado, e nunca mais desceu, foi o apresentador Luciano Huck. Jovem, rico, bem-informado, carismático, bem assessorado — o ex-governador Paulo Hartung e o economista Armínio Fraga são seus principais conselheiros —, o comunicador conhece o Brasil de ponta a ponta e tem perfil de filantropo, sinceramente empenhado em melhorar a vida das pessoas. No seu caldeirão, conseguiu a proeza de fundir o entretenimento despretensioso com o fomento do empreendorismo. Aos interlocutores, Huck tem revelado o desejo de se candidatar à Presidência da República. Tem seus motivos: acredita que pode atrair para a política jovens lideranças da sociedade, vê nela uma maneira de melhorar a vida das pessoas no atacado e não deseja passar toda a vida repetindo o que já faz, embora seu programa de tevê tenha acompanhado a metamorfose da vida pessoal de seu criador.

Nos últimos meses, Huck parecia realmente disposto a largar o mundo do entretenimento e ingressar na política. Seguia um roteiro mais ou menos previsível. Em junho, teria que deixar a TV Globo, por exigência da própria empresa. Como todo outside da política, com base na legislação eleitoral, teria até 4 de abril de 2022 para escolher um partido. Obviamente, escolheria o que lhe oferecesse mais garantias de legenda e melhores condições políticas para concorrer. Mesmo assim, ainda teria até 15 de agosto para registrar a candidatura. O problema é que, na política, o tempo não é igual para todos. Huck precisa descer do telhado.

O DEM se colocava como boa alternativa, saiu das eleições fortalecido das municipais, tinha um núcleo dirigente jovem e uma imagem de partido liberal consolidada. Entretanto, alinhou-se com o presidente Jair Bolsonaro e catapultou o principal interlocutor de Huck na legenda, o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (RJ), para fora do partido. O PSDB, cada vez mais liberal e menos social-democrata, também não é alternativa, embora o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso goste de Huck, porque o governador João Doria (SP) dá demonstrações efetivas de que vai disputar a Presidência da República.

Restam o Cidadania, com três senadores e sete deputados, cujo presidente, o ex-deputado Roberto Freire, é um entusiasta de sua candidatura, e o Podemos, liderado pela deputada Renata Abreu, com nove senadores e 10 deputados, que namorava o ex-juiz Sérgio Moro, que optou pela advocacia empresarial. Os dois partidos, como a família de Tejve, correm risco de diáspora; precisam de um candidato para chamar de seu e, com isso, ultrapassar a cláusula de barreira. Entretanto, podem ficar a ouvir o violinista no telhado, porque a aposentadoria do apresentador Faustão abriu a possibilidade de Huck se tornar o dono das tardes de domingo na TV Globo.

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Luiz Carlos Azedo: A volta do Lula lá

Setores do governo consideram uma disputa com Lula o cenário ideal para a reeleição de Bolsonaro; na oposição, muitos veem como a melhor opção para derrotá-lo

A quebra de sigilo das conversas privadas entre o então juiz federal Sergio Moro e os procuradores da Lava-Jato é tóxica, porque mostra que, supostamente, na instrução do processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no caso do triplex de Guarujá e outras investigações, teria havido conluio entre o Ministério Público e a Justiça. Advogados criminalistas sabem que essa relação promíscua entre a acusação e o juiz é muito mais frequente do que a sociedade imagina, mas, nem por isso, deixa de ser um vício de origem nos processos. Quando são comprovadas, obviamente, geram nulidades nos tribunais. A decisão de tornar públicas as conversas foi do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, notoriamente ligado a Lula, que o indicou para a Corte, porém, o teor das conversas geraram espanto e perplexidade.

Como já era de se esperar, os advogados de Lula querem usar o material para derrubar a condenação do petista, com o argumento de sempre: Moro teria atuado de forma parcial nos processos e orientou as ações do Ministério Público, com objetivo de remover o ex-presidente da República da disputa eleitoral de 2018. A anulação do processo, porém, não é assim tão fácil. Uma preliminar será a discussão sobre a competência de Lewandowski para atuar nesse caso. Os advogados de Moro argumentam que caberia ao ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato no Supremo, decidir sobre a matéria. Alegam que o fato de Lewandowski ser relator do caso que deu acesso a Lula aos acordos de leniência firmado pela Odebrecht não justifica a liminar em favor da quebra de sigilo.

Moro questiona a veracidade das mensagens atribuídas a ele, ou seja, sustenta que essas provas são ilícitas. Alega que podem ter sido adulteradas ou forjadas antes da Operação Spoofing da Polícia Federal, que apreendeu as gravações. De fato, não existe ainda comprovação da veracidade das gravações. “As perícias ali realizadas apenas confirmam que as mensagens foram objeto de busca e apreensão nos computadores dos hackers, mas não há demonstração de que não foram corrompidas após terem sido roubadas dos celulares dos procuradores da República”, diz a ação.

Segundo Moro, as mensagens não permitem concluir que Lula não é culpado dos crimes pelos quais foi condenado nem que o Ministério Público ou o juiz sonegaram provas da inocência do ex-presidente. O ex-magistrado tenta justificar as conversas com os procuradores como uma interação normal entre juiz, procuradores e advogados. “O juiz perguntar ao procurador se ele tem elementos para denunciar é meramente um cuidado retórico para advertir ao Ministério Público de que não deve oferecer acusações levianas, isso para proteger o acusado e não para prejudicá-lo”, alega a defesa de Moro.

“Macedada”

As 50 páginas de transcrições seriam mais do que constrangedoras para o ex-ministro da Justiça, porque, supostamente, deixam evidentes suas intenções de apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro. Após as eleições, Moro aceitou o convite de Bolsonaro para integrar sua equipe ministerial. Como Lula acabou excluído do processo eleitoral, em razão da condenação, é óbvio que o caso da quebra de sigilo por Lewandowski chegará ao plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) com ares de julgamento político, e não criminal.

Não vou entrar no mérito da Operação Lava-Jato, apenas recomendo os livros dos colegas Vladimir Neto (Lava-Jato), Malu Gaspar (A Organização) e Letícia Duarte (Vaza Jato). A delação premiada da Odebrecht foi uma bomba de fragmentação que atingiu todo o sistema político, aprofundando a crise de representação dos partidos e levantando uma onda antissistema que levou Bolsonaro ao poder. Promoveu um grande expurgo político, mas a roda girou, e os sobreviventes, agora, montaram uma operação de cerco e aniquilamento da Lava-Jato, na qual o presidente Bolsonaro vem tendo um papel muito importante. A anulação da condenação de Lula seria o coroamento desse processo.

Nos bastidores de Brasília, sabe-se que há setores do governo que consideram uma disputa eleitoral com Lula o cenário ideal para a reeleição de Bolsonaro; na oposição, muitos veem a situação com sinal trocado: a melhor opção para derrotá-lo. Outros acreditam que Bolsonaro prepara um golpe. A anulação da condenação seria uma espécie de nova “Macedada”. Em 1936, José Macedo Soares, ministro da Justiça, decidiu libertar 300 comunistas presos em razão da chamada Intentona de 1935. Sem essa “anistia”, a fraude do Plano Cohn (supostas diretrizes da Internacional Comunista para uma nova insurreição no Brasil), que serviu de pretexto para o golpe do Estado Novo, em 1937, teria menos credibilidade ainda. O documento foi forjado pelo então major Mourão Filho, que mais tarde, como general, seria um dos líderes do golpe militar de 1964.

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Luiz Carlos Azedo: A grande jabuticaba

Enquanto o Palácio do Planalto avança na sua “guerra de posições”, a oposição se baratina numa “guerra de movimentos”, cujo objetivo é atalhar o poder com o impeachment

Uma das dificuldades para a compreensão da situação política brasileira é definir o caráter do governo Bolsonaro. O fato de ser um governo com características bonapartistas, ou seja, controlado por militares e que se coloca acima das classes sociais — numa ordem democrática, porém, é uma grande jabuticaba. Historicamente, governos bonapartistas são uma espécie de antessala do fascismo e só existem em regimes autoritários. Não é o nosso caso, o que faz da situação uma espécie de esquizofrenia política.

O fato de o presidente Jair Bolsonaro exaltar o antigo regime militar e, frequentemente, tomar decisões ou ter atitudes que revelam um viés profundamente autoritário, reforça em muitos setores da sociedade e, principalmente, nos partidos de oposição, o temor de que trabalhe dia e noite para resolver essa contradição subvertendo as regras do jogo democrático. Em qual direção? No rumo de uma espécie de “ditadura do Executivo”, na qual seu poder subjugasse o Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público, os demais entes federados e os meios de comunicação. A legitimidade da centralização e verticalização do poder seria dada pelo fato de que foi eleito, ou seja, seria esse o desejo da maioria dos eleitores.

Há países cujos governos foram eleitos, mas seus chefes de Estado operam de forma autoritária: Rússia, Turquia, Egito, Cingapura, Filipinas, Índia etc. Esse é um cardápio de opções institucionais bastante variado, mas todas confrontam a Constituição brasileira de 1988. Alguns desses países se destacam, na corrida mundial para reinventar o Estado, por alcançar padrões de modernização compatíveis com integração ao processo de globalização e a revolução tecnológica em curso. O caso de Cingapura é exemplar, porque tem um governo altamente eficiente e um regime de partido majoritário que servem de inspiração para os líderes chineses, que estudam seu modelo na escola de formação de quadros do Partido Comunista.

Esses temores da oposição em relação a Bolsonaro, num ambiente de agravamento da crise sanitária e recessão da economia, leva muitos a acreditar que o presidente da República aposta no caos para dar um golpe de Estado. Seu negacionismo em relação à pandemia da covid-19 e à eficácia das vacinas, a falta de empatia com as vítimas da pandemia, a subestimação de seu impacto nas atividades econômicas e a ausência de um programa claro de saída desta crise somam-se a atitudes e declarações políticas contra a urna eletrônica e suspeita, sem quaisquer fundamentos, de que teria havido fraude nas eleições de 2018. Isso reforça na oposição o sentimento de que é preciso afastar Bolsonaro do poder antes que seja tarde, quando nada porque já é grande o rol de fatos que podem ser caracterizados como crime de responsabilidade. Para esses setores, o impeachment é a melhor alternativa, ainda que isso signifique aumentar o tamanho da patente da jabuticaba, porque no lugar de Bolsonaro assumiria o general Hamilton Mourão, seu vice eleito.

Estratégias
Na política propriamente dita, porém, esse não parece ser o rumo verdadeiro do governo Bolsonaro. Houve uma mudança de estratégia muito significativa do primeiro para o segundo ano de governo, na qual a confrontação permanente com os demais Poderes, inclusive, com a mobilização de seus apoiadores mais radicais e truculentos, foi substituída por uma política de construção de uma base parlamentar robusta, que começou como uma atitude de resistência contra um eventual pedido de impeachment, mas acabou se transformando na articulação de uma base parlamentar majoritária no Congresso. A eleição de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) como presidente do Senado e do deputado Arthur Lira (PP-AL), da Câmara, coroou esse trabalho de articulação política, cujos principais artífices foram os militares que ocupam o Palácio do Planalto, entre os quais o ministro Luiz Eduardo Ramos, secretário de Governo, e os líderes do Centrão, cujos partidos saíram bastante fortalecidos das eleições municipais.

Objetivamente, houve uma aposta do governo Bolsonaro na política. O Centrão existe desde a Constituinte, que, em alguns momentos, deu as cartas na Câmara, em outros, não. As vitórias acachapantes do DEM no Senado e do PP na Câmara, se olharmos para o resultado das eleições municipais, são frutos de uma mesma trajetória de acumulação de forças desses dois partidos, que miram as eleições de 2022. Mesmo que fomente uma militância armada, frequentando formatura nos quartéis e adulando corporações violentas, Bolsonaro ainda aposta na própria reeleição, o que pressupõe caminhar no leito da ordem democrática. Mesmo que o cenário não lhe seja tão fácil, em razão dos desgastes que vem sofrendo, até agora todas as pesquisas apontam sua presença no segundo turno das eleições presidenciais.

Enquanto o Palácio do Planalto avança na sua “guerra de posições”, a oposição se baratina numa “guerra de movimentos”, cujo objetivo é atalhar o poder com o impeachment, como se isso fosse possível sem o apoio do Centrão e o doce constrangimento do vice-presidente Hamilton Mourão e dos militares que, hoje, controlam o governo. As dificuldades de êxito dessa estratégia, melhor dizer, desse taticismo, foram demonstradas nas eleições da Câmara, onde a oposição sofreu uma derrota acachapante. O impeachment é um julgamento político, no qual não bastam os crimes de responsabilidade, há que se ter uma correlação de forças sociais (mobilização popular) e políticas (maioria parlamentar) favorável. Não existe uma coisa nem outra. O leito natural da alternância de poder é a eleição. Melhor faria a oposição se definisse logo seus candidatos a presidente da República.

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Luiz Carlos Azedo: Jogo jogado no Congresso

É sensato fazer uma aposta de que a atuação do novo presidente do Congresso será um fator de equilíbrio na relação entre os três Poderes

O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), conforme se previa, foi eleito de forma consagradora para a Presidência do Senado e, por conseguinte, do Congresso. Recebeu 57 votos, contra 21 na senadora Simone Tebet (MDB-MS), que desafiou o candidato governista. O placar dilatado deve-se ao fato de que contou com o apoio do presidente Jair Bolsonaro e de uma ampla aliança, que incorporou os partidos governistas e, também, PT, PDT e Rede. Simone Tebet perdeu competitividade quando a bancada do MDB resolveu não apoiá-la.

Apesar de ter nascido em Porto Velho (RO), Rodrigo Pacheco foi criado em Minas e fez a sua carreira política no estado. Tem todas as características de um político liberal mineiro, sendo hábil articulador e muito moderado no discurso. Não foi à toa que citou o presidente Juscelino Kubitscheck, um político pessedista conciliador e, ao mesmo tempo, inovador. Nessa perspectiva, seu discurso, logo após a eleição, foi irretocável, porque tratou de todos os temas da atualidade — pandemia, crise econômica, reformas, ética etc. —, com equilíbrio e objetividade, tendo reafirmado seu compromisso com o Estado democrático de direito.

O clima da eleição de Pacheco no Senado foi completamente diferente do que aconteceu na eleição de Davi Alcolumbre, cuja disputa com Renan Calheiros (MDB-AL) foi duríssima, com ataques pesados de ambos os lados. Após a eleição, o novo presidente da Casa tratou a candidata derrotada com muita deferência, na tentativa de evitar sequelas no relacionamento político entre ambos e o grupo de senadores que Simone Tebet representou. É sensato fazer uma aposta de que a atuação do novo presidente do Congresso será um fator de equilíbrio na relação entre os três Poderes.

A propósito: neste começo de ano, Rodrigo Pacheco promoveu a reedição, pelo Senado, do livro de Pedro Aleixo sobre a “imunidade parlamentar”, lançado em 1961. É uma obra rara hoje em dia, em se tratando de um parlamentar, pela qualidade do trabalho jurídico. Um dos cardeais da antiga UDN, o político mineiro era um conservador. Foi vice-presidente da República no governo Costa e Silva. No prefácio da edição, Pacheco faz referência à noite de 13 de dezembro de 1968, quando os membros do Conselho de Segurança do regime militar se reuniram no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, a pedido do então presidente Artur da Costa e Silva. Na pauta, estava a decretação do Ato Institucional Número 5, que deu início ao período mais autoritário da história recente do Brasil.

Aleixo não tinha virado vice-presidente por acaso — apoiara o golpe contra João Goulart quatro anos antes, assim como fizeram outros civis da elite política e econômica do país, entre os quais, o próprio Juscelino e Ulysses Guimarães, que mais tarde, como presidente do MDB, viria a ser o grande líder da oposição. No entanto, o vice civil sabia o que o ato representaria e, naquela noite, votou contra sua decretação. Foi o único dos 23 membros do conselho a fazê-lo. No ano seguinte, quando deveria assumir o lugar de Costa e Silva, que havia morrido, foi impedido de tomar posse pelas Forças Armadas. Não voltou mais à política.

Câmara
Escrevo antes da eleição da Mesa da Câmara, cuja votação avançou pela noite, mantendo-se o favoritismo do candidato do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro. As articulações que antecederam a eleição revelaram uma profunda divisão no DEM e no PSDB. Em ambos os casos, os articuladores do Palácio do Planalto e do Centrão acenaram com cargos, verbas e financiamentos para fraturar os dois partidos. O pano de fundo é o projeto de reeleição de Bolsonaro e eventuais candidaturas de oposição.

No primeiro caso, a cúpula do partido decidiu liberar a bancada, cuja maioria apoia Lira, embora o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), tenha sido o grande artífice da candidatura do postulante do MDB, Baleia Rossi (SP). O presidente da legenda, ACM Neto, evitou que a bancada formalizasse o apoio a Lira, mas foi o principal articulador da aliança com o candidato governista, como contrapartida pelo apoio do PP a Rodrigo Pacheco no Senado. O desgaste de Maia é tão grande que o político fluminense pode deixar o DEM.

Em tempo: Lira venceu no primeiro turno, com 302 votos, muito próximo dos 308 (2/3 dos votos) necessários para aprovar emendas constitucionais. Baleia teve 145 votos, dos 276 das bancadas que o apoiaram formalmente. O primeiro ato de Lira foi implodir o bloco de oposição, anulando o registro feito por Rodrigo Maia, alegando perda de prazo.

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Luiz Carlos Azedo: Rede de intrigas

O que parecia impensável, passou a ser uma possibilidade, diante do descalabro na saúde: uma aliança entre os partidos de esquerda e o general Mourão contra Bolsonaro

A moral da história não tem muito a ver com o longa-metragem que empresta o título à coluna, por sinal, uma excelente dica para a tarde deste domingo, em tempos de distanciamento social. Lançado em 1976, o filme de Sidney Lumet é uma dura crítica aos meios de comunicação, principalmente a tevê, que arrebatou quatro Oscar: Ator (Peter Finch, entregue de forma póstuma), Atriz (Faye Dunaway), Atriz Coadjuvante (Beatrice Straight) e Roteiro (Paddy Chayefsky). A trama de Rede de Intrigas é uma pequena obra-prima:

Com baixos índices de audiência, o âncora do programa de notícias da rede UBS, Howard Beale (Peter Finch), surta e aparece na televisão afirmando que cometerá suicídio dentro de uma semana, em pleno horário nobre. Seu produtor entra em pânico com a atitude do amigo, acreditando que sua carreira e a de Howard estariam encerradas. Entretanto, o colapso do âncora acaba dando mais audiência ao programa. A ambiciosa diretora de tevê Diana Christensen (Faye Dunaway) e o executivo Frank Hackett (Robert Duvall) não estão nem aí para o surto do apresentador, só querem saber de faturar com o sucesso de público.
Rede de Intrigas se passa logo após a Guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate, que levou Richard Nixon à renúncia. É um ambiente de muito ceticismo em relação à política e às instituições norte-americanas. Neste cenário, o sisudo âncora Howard Beale se transforma num jornalista sem papas na língua, que não tolera a situação e assume o papel de porta-voz da opinião pública. Controlar o desequilibrado Howard Beale, porém, será bem mais difícil do que qualquer um poderia pensar.

Na política brasileira, a intriga da hora é o estresse entre o presidente Jair Bolsonaro e seu vice, general Hamilton Mourão, provocado por inconfidências de um assessor parlamentar, que acabou demitido. Desde o episódio das “rachadinhas” (devolução de parte dos salários dos assessores para o parlamentar que os nomeou) da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, no qual estão envolvidos o senador Flávio Bolsonaro (PR-RJ), seu filho, e a primeira-dama Michele, Bolsonaro está convencido de que o vice sonha com a cadeira de presidente da República. Demitiu dois ministros, logo após o escândalo vir à tona, por acreditar numa conspiração para apeá-lo do cargo: o ex-secretário-geral da Presidência Gustavo Bebianno, já falecido, e o ex-secretário de Governo Carlos Alberto Santos Cruz, um general reformado — respeitadíssimo na caserna, por sua atuação em missões da ONU no Haiti e no Congo —, que hoje lhe faz uma oposição implacável.

Patente é documento
A crise sanitária e a recessão econômica, que Bolsonaro tenta mitigar no gogó falando barbaridades, jogaram os indicadores de aprovação do governo para baixo e estão desgastando a imagem do presidente da República de forma muito acelerada. O número de mortes provocado pela covid-19 e a indignação da população com o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus, além de desmoralizar os militares à frente do Ministério da Saúde, sob comando do general Eduardo Pazuello, embalaram a agitação a favor do impeachment de Bolsonaro. O que parecia impensável, passou a ser uma possibilidade, diante do descalabro na saúde: uma aliança entre os partidos de esquerda e o general Mourão, homem sabidamente de direita. Com essa, Bolsonaro não contava.

A escolha de Mourão como vice teve por objetivo evitar que a oposição derrotada nas urnas em 2018 embarcasse na canoa do impeachment. A narrativa de que o impeachment de Dilma Rousseff fora um golpe liderado pelo vice Michael Temer, com apoio dos militares, dividia oposição. Mas não é que o impeachment passou a ser o centro da tática tanto da esquerda como dos movimentos cívicos que foram pra rua contra a “presidenta” petista. Bolsonaro trabalha para consolidar sua blindagem no Congresso, com a eleição do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e do deputado Arthur Lira (PP-AL) à Presidência do Senado e da Câmara, respectivamente. É jogo jogado, mas isso não significa corpo fechado.

Mesmo que Bolsonaro obtenha uma vitória consagradora na “guerra de posições” para se manter no poder, isso não altera certas características de seu governo nem do Congresso. A maioria formada para apoiá-lo, tanto na Câmara como no Senado, foi obra silenciosa dos militares que controlam o governo, sobretudo do ministro Luiz Ramos, secretário de Governo, e das velhas raposas políticas do Centrão, entre as quais o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, e os ex-deputados Valdemar Costa Neto (SP), do PL, e Roberto Jefferson (RJ)), do PTB, e o ex-prefeito Gilberto Kassab (SP), do PSD, com maior ou menor estridência.

São políticos que já apoiaram e abandonaram todos os governos. Por sua vez, os militares têm uma cultura de troca de guarda, ou seja, rodízio nos comandos, que foi uma das características do regime militar. Bolsonaro tem razão ao ver em Mourão uma ameaça. O vice é “imexível” e está preparado para assumir seu lugar em caso de necessidade, com apoio do Centrão e dos militares, caso a popularidade do presidente continue desabando e o impeachment realmente ganhe as ruas, financiado por setores empresariais descontentes com os rumos da economia. Além disso, num governo de características bonapartistas, patente é documento.

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Luiz Carlos Azedo: Só falta chamar de Cristiana

Os caciques do MDB “cristianizaram” a senadora Simone Tebet (MS), que se lançou candidata avulsa à Presidência do Senado, sem o apoio formal da bancada

Mineiro de Sabará, Cristiano Monteiro Machado foi prefeito de Belo Horizonte no final da década de 1920. Partidário da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, conquistou uma cadeira na Assembleia Nacional Constituinte em 1933. Renunciou ao mandato em 1936, para ser secretário de Educação e Saúde Pública de Minas Gerais, no governo de Benedito Valadares. Deixou o cargo no início de novembro de 1945, em decorrência da deposição de Getúlio Vargas (29/10/1945) e do consequente fim do governo Valadares. Filiado ao recém-fundado Partido Social Democrático (PSD), foi eleito deputado à Constituinte de 1946.

Em 15 de maio de 1950, Cristiano Machado foi lançado candidato à Presidência da República pelo PSD nas eleições que se realizariam em outubro. Entretanto, a ala getulista do PSD do Rio Grande do Sul era favorável à indicação de Nereu Ramos e se recusou a aceitar Cristiano como candidato. Logo depois, membros do Partido Social Progressista (PSP), de Ademar de Barros, comunicaram ao PSD que não apoiariam Cristiano. A candidatura de Getúlio Vargas, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), já estava sendo articulada e viria a ser apoiada por Ademar. Mesmo com o PSD dividido, Cristiano foi aclamado na convenção nacional do partido. Coube ao Partido Republicano (PR) indicar Altino Arantes para a vice-presidência. Cristiano ainda fez uma aliança com Hugo Borghi, candidato ao governo de São Paulo pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN).

Nas eleições de 3 de outubro de 1950, Cristiano Machado concorreu com o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN) e Getúlio Vargas (PTB). Vargas teve uma vitória acachapante, inclusive, nos redutos eleitorais do PSD. A transferência dos votos de Cristiano para Vargas caracterizou um processo de esvaziamento eleitoral que ficou conhecido no jargão político como “cristianização”. Passou a ser uma marca registrada do MDB nas eleições para presidente da República, sempre que a legenda lançou candidato, com aconteceu com Ulyssses Guimarães (1989) e Orestes Quércia (1994).

Ontem, no Senado, os caciques do MDB “cristianizaram” a senadora Simone Tebet (MS), que se lançou candidata avulsa à Presidência da Casa, depois de perder o apoio formal da bancada. Pesaram na balança a maioria dos senadores do PSDB e do PT, que apoiam o candidato governista Rodrigo Pacheco (DEM-MG), numa articulação bem-sucedida do senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), aliado incondicional do presidente Jair Bolsonaro. Havia uma expectativa de reversão desses apoios, o que equilibraria muito a disputa, mas isso não ocorreu.

Traições
Simone Tebet tentava virar dois votos do PSDB dos cinco que apoiam Pacheco, mais dois votos do PT e o voto do senador Cid Gomes (PDT). Se essa articulação prosperasse, haveria alguma chance de manter o apoio dos caciques da legenda. Os senadores Eduardo Gomes (TO), líder do governo no Congresso, Luiz do Carmo (GO), Márcio Bittar (AC) e Confúncio Mouro (RO) já estavam com o candidato do DEM. Os senadores Fernando Bezerra (PE), líder do governo no Senado; Eduardo Braga (AM), líder da bancada; Renan Calheiros (AL), Fernando Bezerra (PE), Jarbas Vasconcelos ((PE), Jader Barbalho (PA), Nilda Gondim (PB) e Veneziano Vital do Rego (PB) apoiavam Tebet. Entretanto, Dario Berger (SC), Marcelo Castro (PI) e Rose de Freitas (ES) ainda aguardavam as definições no PSDB e no PT.

Ao contrário da Câmara, que tem 513 deputados, as disputas no Senado são um jogo de cartas marcadas, que se decide de véspera, muitas vezes, em razão do número de senadores (81, três por unidade da Federação). Quando se consolida uma maioria, isso tem um efeito desestabilizador para quem está em desvantagem. Foi o que aconteceu com Tebet, com a decisão da bancada do MDB de não oficializar sua candidatura e liberar seus integrantes para votar como quiserem.

A ocupação de espaços na Mesa Diretora do Senado e a situação eleitoral nos estados também costumam ter um peso decisivo no posicionamento de cada senador. Por exemplo, Eduardo Gomes e Veneziano disputam a primeira vice-presidência do Senado, que ficará com o MDB, porque a bancada abriu mão de apoiar Simone Tebet. Por fim, os dados estão lançados. E é sempre bom levar em conta que a votação secreta dá “uma vontade danada de trair”, como dizia Tancredo Neves.

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Luiz Carlos Azedo: A vacina dos camarotes

A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos

Uma das características da pandemia de coronavírus, que certamente será objeto de muitos estudos e pesquisas, é a desigualdade social escancarada que nos revela. A cortina foi rasgada pelo auxílio emergencial: a iniquidade chegava a 56 milhões de pessoas, dos quais 2,6 milhões em São Paulo e 1,6 milhão no Rio de Janeiro, cidades ícones do Sul Maravilha, segundo dados do Portal da Transparência de junho do ano passado. O número de “invisíveis” dependentes dos recursos governamentais ultrapassava meio milhão de pessoas em Salvador (762 mil), Fortaleza (747), Manaus (634 mil) e, pasmem, Brasília (562 mil). No time das 10 cidades com maior número de “flagelados” da crise sanitária, constavam, também, Belo Horizonte (494 mil), Belém (453 mil), Recife (420 mil) e Curitiba (339 mil).

Vejam bem, não estamos falando do Brasil profundo, mas das principais cidades brasileiras, que lideram o nosso desenvolvimento econômico e social, os principais polos da transição do Brasil rural para o urbano, na marcha forçada do nosso modelo nacional-desenvolvimentista. Esse processo melhorou a vida das pessoas da porta para dentro, principalmente da classe média. Entretanto, o crescimento acelerado das cidades deteriorou as condições urbanas e deixou ao abandono a vida banal das periferias e morros, degradando a vida coletiva da porta para fora. Principalmente depois do Plano Real, a economia informal e o empreendedorismo mascararam a gravidade do problema, mitigado, ainda, pelo programa Bolsa família, até que veio a recessão provocada pela pandemia, que destruiu empregos e também provocou um “apagão” de capital.

A conta da pandemia, do ponto de vista fiscal, ainda vai chegar, mas ninguém mais pode ignorar a gravidade do problema social que o Brasil enfrenta, principalmente, as elites econômicas do país. As desigualdades se manifestam em todos os seus aspectos — econômico, social, cultural, étnico e de gênero — e não será a prorrogação do auxílio emergencial que resolverá o problema. É inviável uma política de renda mínima sem um projeto de desenvolvimento, sem política industrial e de comércio exterior, sem reforma tributária e administrativa, sem investimento em ciência e tecnologia, em habitação, transportes e, principalmente, educação. Acontece que, até agora, o governo federal pautou-se pela omissão ou o improviso nas políticas sociais.

Lei de Murici
Um retrospecto das declarações do presidente Jair Bolsonaro; do ministro da Economia, Paulo Guedes; e do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, mostra um governo errático na condução do país e focado apenas na preservação e fortalecimento do seu poder em relação ao Legislativo, ao Judiciário e aos demais entes federados. O sucesso do Palácio do Planalto nas disputas pelo controle das Mesas da Câmara e do Senado fixará o foco na “guerra de posições” para consolidar um governo bonapartista, que se pretende tutor da sociedade. O problema das desigualdades está fora de sua agenda. A crise sanitária mostra isso. Uma política de transferência de renda com objetivo apenas eleitoral não será sustentável.

A política de saúde pública de Bolsonaro, por exemplo, é inspirada na Lei de Murici: “Cada um sabe de si”, a máxima do coronel Pedro Tamarindo na debandada da terceira campanha de Canudos. O presidente da República sempre se colocou ao lado dos que não querem se vacinar, mesmo depois de os principais líderes mundiais darem o exemplo se vacinando. É o principal responsável pelo desmantelo do Ministério da Saúde na condução da política epidemiológica. Agora, Bolsonaro resolveu defender a compra e a distribuição de vacinas por empresas privadas, entre elas, a Petrobras e a Vale, para imunizar seus funcionários, furando a fila do Programa Nacional de Imunização, para manter a atividade da economia. A doação de metade das vacinas para o Sistema Único de Saúde (SUS) legitimaria o privilégio. Teremos a vacina dos camarotes, para usar uma expressão do meu xará Luiz Carlos Rocha, advogado de Curitiba, enquanto a “pipoca” espera a vez nas filas do SUS, devido ao descaso e às trapalhadas do general Pazuello na Saúde.

Acontece que a Lei de Murici pode ser a senha para um desastre anunciado, como na retirada de Canudos. Tudo começou quando o sanguinário coronel Moreira Cezar, no dia 3 de fevereiro de 1897, mudou subitamente de ideia e optou pelo ataque imediato, em vez do cerco a Canudos. O arraial foi duramente castigado pela artilharia. As forças do Exército conseguiram invadir o arraial e conquistar algumas casas. Foram, contudo, obrigadas a recuar, devido à pouca munição. Após cerca de cinco horas de combate, Moreira César foi mortalmente ferido no ventre, quando se preparava para ir à frente de batalha incentivar a tropa.

O comando foi transferido ao coronel Pedro Tamarindo, que decidiu recuar, após sete horas de combate. Moreira César agonizou 12 horas, ordenando que Canudos fosse, uma vez mais, atacado. Em reunião de oficiais, porém, fora decidida a retirada, dado o grande número de feridos, numa marcha de 200 quilômetros até Queimada. Atacada incessantemente pelos jagunços, a tropa debandou. Tamarindo foi morto no Córrego dos Angicos. Seu corpo foi deixado no campo de batalha. Acabou empalado num galho de angico pelos jagunços. A primeira favela do Rio de Janeiro foi formada pelos soldados desmobilizados após a Guerra de Canudos.

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Luiz Carlos Azedo: Pazuello em Manaus

O ministro do STF Ricardo Lewandowski autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise sanitária no Amazonas, onde o SUS entrou em colapso

Em tempos de quarentenas e isolamento social, o filme Operação Final é um dos mais populares da Netflix. Narra o sequestro do criminoso nazista Adolf Eichmann (Ben Kingsley, em interpretação magistral), na Argentina, para submetê-lo a julgamento em Jerusalém pelos crimes que cometeu na Segunda Guerra Mundial. Os principais líderes nazistas, como Adolf Hitler, evitaram a Justiça por meio do suicídio, mas o responsável pelos campos de concentração conseguiu escapar e vivia escondido, até ser identificado e localizado por causa das suas ligações com a extrema direita argentina.

Fugitivo, Eichmann era imaginado como um sujeito brutal e sanguinário, mas o julgamento mostrou outro tipo de personalidade: um burocrata militar (tenente-coronel das SS), cujo objetivo central era vencer na vida a todo custo, incapaz de refletir sobre as consequências de suas ações. Eichmann era o gestor de um conjunto de instruções voltadas à destruição dos judeus. Cumpria ordens para dar cabo dos objetivos genocidas do movimento nacional-socialista alemão, fundado e chefiado por Hitler. Era o mais comum dos homens, educado, inteligente e afirmava que, particularmente, não era antissemita. Era apenas um servidor público cumpridor das leis.

Eichmann foi um dos responsáveis pelo transporte dos prisioneiros judeus para os campos de concentração. Ele cuidava da logística que levaria milhões de pessoas aos mais diversos tipos de torturas e à morte. Entretanto, via sua função como sendo apenas parte do sistema, como se estivesse meramente cumprindo ordens, executando corretamente suas tarefas, sem levar em consideração o que realmente significava sua parte no esquema nazista. Ele era um de muitos do mesmo tipo, indiferente ao sofrimento alheio, com frieza e incapacidade de comiseração.

A filósofa judia-alemã Hannah Arendt acompanhou o julgamento e escreveu um livro (Eichmann em Jerusalém) no qual caracterizou a atuação do oficial nazista como a banalização do mal: “O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram, e ainda são, terrível e assustadoramente normais. Do ponto de vista de nossas instituições, e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que (…) esse era um novo tipo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado”, escreveu. O filme Hannah Arendt — Ideias que chocaram o mundo conta muito bem essa história.

Inquérito
Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, na crise de saúde do Amazonas, que entrou em colapso, com superlotação dos leitos hospitalares e desabastecimento de oxigênio. Em depoimento do ministro à Polícia Federal, em data a ser marcada, ele terá que apresentar informações sobre as ações efetivamente adotadas em relação ao estado da saúde pública de Manaus. Lewandowski definiu prazo inicial de 60 dias para a investigações da Procuradoria-Geral da República (PGR) serem concluídas.

O caso foi enviado a Lewandowski pela vice-presidente do STF, Rosa Weber, à frente do plantão judiciário durante o recesso, porque o ministro é o relator de outros processos ligados à pandemia. O pedido de inquérito foi feito pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, com base em uma representação do partido Cidadania e em informações apresentadas pelo próprio ministro Pazuello, além de apuração preliminar dos procuradores federais que atuam na área de Saúde. O ministro soube do colapso iminente do Sistema Único de Saúde (SUS) em Manaus em dezembro, mas só tomou providências efetivas em janeiro. Dezenas de pessoas morreram por falta de oxigênio, enquanto o Ministério da Saúde insistia em prescrever cloroquina para conter a crise sanitária.

Nem de longe as mortes causadas pela pandemia no Brasil, apesar de toda a incúria e falta de empatia do presidente Jair Bolsonaro, se comparam aos horrores do Holocausto. Entretanto, a “banalidade” com que são tratadas é um espanto. O comportamento é o mesmo apontado por Arendt na descrição de Eichmann: alguém que não conseguia perceber a realidade, não se colocava no lugar de outra pessoa, porque internalizou que o que estava fazendo era o correto. Eichmann cumpria ordens sem questionar o certo e o errado, dessa forma tornou-se um dos maiores criminosos de guerra. Bolsonaro manda, Pazuello obedece e, com isso, se tornou o pior ministro da Saúde da nossa história.

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Luiz Carlos Azedo: Sobre atalhos e eleições

A eventual vitória de Bolsonaro na disputa pelas Mesas do Congresso lhe dará fôlego para salvar o mandato, mas não será o bastante, caso sua popularidade continue desabando

O Conselheiro Acácio, criação do escritor português Eça de Queiróz (1840-1900) no romance Primo Basílio, com passar do tempo, acabou se tornando maior do que o protagonista que empresta o nome ao livro e os demais personagens, por seu pedantismo e suas obviedades. A expressão “acaciano”, inspirada em suas platitudes e redundâncias, virou até adjetivo na língua portuguesa. Eça descreve-o de forma caricatural: “Alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo, ia-se alargando até a calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto. Tingia os cabelos, que de uma orelha à outra lhe faziam colar para trás da nuca; e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, maior brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo e as orelhas muito grandes, muito despegadas do crânio”.

O que humanizou e fez do Conselheiro um personagem maior e universal foram seu falso moralismo (vivia amancebado com a criada), o burocratismo (adorava carimbos, despachos, fichas e relatórios que para nada serviam) e a bajulação (toda vez que o nome do Rei era pronunciado, erguia-se um pouco da cadeira). Como uma espécie de Barão de Itararé (Apparício Torelly) às avessas, suas frases de efeito tornaram-se famosas, como “a saúde é um bem que só apreciamos quando nos foge”. Tudo para ele era cercado de pompa: “Que maior prazer, meu Jorge, que passar assim as horas entre amigos, de reconhecida ilustração, discutir as questões mais importantes, e ver travada uma conversação erudita…? Parecem excelentes os ovos”.

Conselheiros como ele pululam nos palácios e seus gabinetes. Muita gente gosta desse tipo de colaborador, que dá razão ao chefe em tudo. O presidente Jair Bolsonaro não foge à regra, mas — quanta ironia —, como diria o Conselheiro Acácio, “as consequências vêm depois”. É o que está acontecendo, agora, com a pandemia da covid-19 no Brasil, cuja segunda onda é uma realidade dramática e, tudo indica, está se somando à “quarta onda” a que se refere o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, que seriam os efeitos psicológicos das mortes, do desemprego, dos confinamentos e das desesperanças. A diferença é que o general imaginava um desespero individual, que até poderia levar ao aumento dos suicídios, ou a saques e depredações espontâneos, mas que poderiam provocar uma convulsão social.

Impeachment
Pazuello não contava, porém, com o desgaste provocado pelo negacionismo de Bolsonaro e uma resposta política da oposição. É o que estamos vendo agora, com manifestações de protestos se sucedendo com força: panelaços nas janelas e memes nas redes sociais; e as carreatas, como as de ontem e de hoje, pedindo “vacinas já” e o impeachment do presidente da República, que desabou nas pesquisas. Quaisquer que sejam os resultados das eleições das Mesas da Câmara e do Senado, mesmo que vençam os candidatos apoiados por Bolsonaro — Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), no Senado —, os políticos governistas também sentiram o cheiro de animal ferido na floresta. A fatura a pagar será alta. Nos casos de vitória de Baleia Rossi (MDB-SP) e/ou Simone Tebet (MDB-MS), principalmente a do primeiro, a agenda de costumes e institucional de Bolsonaro estará definitivamente interditada. As pautas do Congresso serão a crise sanitária, a recessão, a inflação, o desemprego, a renda e o fracasso do governo.

O Brasil já viu esse filme duas vezes, nos governos Collor e Dilma, o primeiro, por causa da inflação, o segundo, em decorrência da recessão, ambos temperados por escândalos de corrupção. Nos dois casos, as insatisfações desaguaram no impeachment. No de Collor, o clamor das ruas foi liderado pelo PT, mas o realinhamento das forças políticas resultou na eleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). No de Dilma, o PSDB trabalhou para apeá-la desde o primeiro dia no cargo. Quando chegaram as eleições, deu Bolsonaro. As circunstâncias do impeachment são crime de responsabilidade e grande insatisfação popular, além da vontade de a oposição atalhar o processo de alternância de poder. Entretanto, o perfil do vice-presidente é dado pelas alianças que viabilizaram a eleição do presidente defenestrado. Itamar era aliado de Collor; Michel Temer, de Dilma. O primeiro não podia se candidatar, o segundo foi inviabilizado por denúncias quando ensaiava a reeleição.

A eventual vitória de Bolsonaro na disputa pelas Mesas do Congresso lhe dará fôlego para salvar o mandato, mas não será o bastante, caso sua popularidade continue desabando. Sua força no Congresso resulta da ação de uma espécie de “subgoverno”, que sempre manteve boas relações no Senado e na Câmara, formado por alguns ministros e o grupo de militares que hoje controla o Palácio do Planalto. São aliados que também podem derivar para o impeachment, se perceberem uma debacle iminente, com o país ladeira abaixo, pois estariam mais bem servidos com o vice Hamilton Mourão, um general de quatro estrelas, um potencial “salvador da pátria” embalado nas casernas e pelo povo nas ruas. E o que viria depois? Ninguém sabe, 2022 já está em aberto.


Luiz Carlos Azedo: Colapso da diplomacia

Não existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser que haja um grande ajuste

A posse do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, hoje, representa o colapso da política externa do presidente Jair Bolsonaro, sem mais nem menos. Seu apoio escancarado não somente à reeleição de Donald Trump, mas também às denúncias de fraude eleitoral na eleição do democrata, bem como aos protestos dos republicanos — que culminaram com a invasão do Capitólio — levou as relações entre o Brasil e os Estados Unidos ao seu pior momento desde o governo Geisel, durante o regime militar. Entramos num processo parecido com aquele momento, marcado pela celebração do acordo nuclear com a Alemanha, pelo presidente Ernesto Geisel, que rompeu um velho acordo militar com Estados Unidos, em 1975.

Em março 1978, quando o presidente democrata Jimmy Carter esteve no Brasil, foi recebido friamente por Geisel, embora a visita, de iniciativa da Casa Branca, fosse uma tentativa de melhorar as relações. Entretanto, não houve como deixar fora da pauta do encontro a questão dos direitos humanos. Denúncias de sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas nos quartéis e aparelhos clandestinos dos serviços de inteligência do regime, devidamente circunstanciadas, foram entregues à primeira-dama Rosalyn Carter, estressando ainda mais as relações.

Na época do estresse com os Estados Unidos, Geisel ainda encarnava um projeto nacional-desenvolvimentista, que contava com certo apoio na sociedade, apesar de o regime vir a ser derrotado fragorosamente nas urnas, em novembro do mesmo ano. Agora, não existe projeto nacional algum. Ideologicamente, Bolsonaro se aliou de forma incondicional ao presidente Donald Trump, que, agora, deixa o governo, depois da sua frustrada tentativa de impedir a posse de Biden, numa inopinada e brutal ação golpista, amplamente repudiada pelo Congresso e a Justiça dos Estados Unidos. Como se dizia antigamente, Bolsonaro pegou o bonde errado.

O fracasso da política externa de Bolsonaro é ainda mais grave porque o presidente brasileiro, ao se aliar a Trump, entrou em rota de colisão com a União Europeia, por causa da questão ambiental, e com a China, nosso principal parceiro, devido à guerra comercial entre os dois países. Até mesmo com a Índia e a África do Sul, que são nossos parceiros no Brics, Bolsonaro desgastou as relações diplomáticas, ao votar contra a quebra de patentes de produtos farmacêuticos na Organização Mundial de Comércio (OMC). Agora, o Brasil depende da importação de insumos farmacêuticos e vacinas desses países, que têm seus próprios interesses geopolíticos e nenhuma boa vontade com Bolsonaro.

Reflexos internos

Grande produtor de commodities de minérios e de alimentos, o Brasil tem um lugar cativo na divisão internacional do trabalho que nos garante certa importância na política internacional, mas a nossa atual política externa trabalha na direção de anular essa vantagem estratégica. O resultado são dificuldades em questões nas quais, tradicionalmente, nossa diplomacia contaria com a boa vontade dos parceiros, por seu pragmatismo e habilidade nas negociações multilaterais. Acontece que o multilateralismo e o globalismo viraram palavrão no gabinete do chanceler Ernesto Araújo.

Como se sabe, não existe assimetria entre política externa e política de governo propriamente dita. O colapso de uma, inevitavelmente, levará a outra de roldão, a não ser que haja um grande ajuste, o que não está sendo sinalizado pelo Palácio do Planalto. Uma pandemia é o tipo de problema cuja solução exige certo nível de governança global e boa vontade entre os parceiros internacionais, além do esforço próprio e local. No caso da covid-19, pela primeira vez, nossa diplomacia virou problema em vez de solução. O resultado é que estamos tendo dificuldades, por exemplo, para obtenção de insumos farmacêuticos necessários à produção de vacinas tanto pelo Instituto Butantan (CoronaVac) quanto pela Fiocruz (AstraZeneca-Oxford), agravadas pelos erros do Ministério da Saúde na gestão da crise sanitária e negociações para comprar as vacinas.

A crise sanitária provocou uma crise econômica, cuja superação depende da vacinação em massa da população e não do “tratamento precoce” preconizado pelo presidente Jair Bolsonaro. Mesmo que a pandemia venha a ser contida — estamos numa segunda onda, com escassez de vacinas —, é preciso que medidas econômicas sejam adotadas para gerenciar o deficit fiscal, decorrente das medidas emergenciais adotadas durante a pandemia. Há que se ter, também, um programa de reformas que ajude a recuperação das atividades econômicas. Ocorre que o ministro da Economia, Paulo Guedes, vive numa eterna fuga pra frente, na qual essas medidas dependem sempre de um fato político novo. Desta vez, são as eleições das Mesas da Câmara e do Senado, nas quais o Palácio do Planalto aposta todas as fichas.

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