Memória
Protecionismo de Trump tem raízes no passado dos EUA
Conselheiro de Lincoln, Carey via a política de livre-comércio como uma forma de dominação econômica britânica, mais ou menos como Trump faz agora com a China
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Henry Charles Carey foi um economista do século 19, conhecido por ser o principal teórico econômico do protetorado industrial dos Estados Unidos. Sua defesa do protecionismo se contrapunha às ideias do “laissez faire” (livre-comércio) britânico representado por David Ricardo e Adam Smith. Quem me chamou atenção para a importância desse economista na história dos Estados Unidos foi meu velho camarada Gilvan Cavalcanti de Melo, editor do site Democracia política e novo reformismo.
Dele recebi duas páginas instigantes do livro Grundisse (Boi Tempo), os manuscritos de Karl Marx (1818-1883) intitulados “Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie” (Elementos fundamentais para a crítica da economia política), no qual o autor de “O Capital” destaca a originalidade das ideias de Carey àquela altura da expansão capitalista pelo mundo. Um dos manuscritos é “Formações econômicas pré-capitalistas”, que contraria o determinismo histórico stalinista. Esses textos somente foram publicados em 1941.
Natural da Filadélfia, Henry Charles Carey (1793 –1879) foi um dos principais representantes da escola americana de economia política no século 19. No seu livro Harmonia de interesses, comparou e contrastou o que ele chamava de “sistema britânico” de livre comércio com o “sistema americano” de desenvolvimento econômico, mediante proteção alfandegária e intervenção governamental para estimular a produção. Essa obra fez dele o mais importante consultor econômico de Abraham Lincoln (1809-1865) na Presidência dos EUA.
Era filho do também economista Mathew Carey (1760-1839), um irlandês reformador e editor de livros radicado na Filadélfia, cujos ensaios sobre economia endossavam as ideias de Alexandre Hamilton (1755-1804, um dos federalistas patronos da democracia americana, sobre a proteção e a promoção da indústria. Henry Carey também escreveu sobre salários, sistema de crédito, juro, escravidão, direito autoral, ensaios que reuniu na trilogia “Princípios da ciência social”.
Marx reconhece Carey como o único economista original entre os norte-americanos de sua época, mas criticou sua tentativa de apresentar o capitalismo norte-americano como um sistema harmonioso. No “Grundrisse”, observa que Carey, vindo de um país onde a sociedade burguesa se desenvolveu sem as estruturas feudais europeias, tendia a ver as relações de produção capitalistas da sua época como naturais e eternas. A implicância de Marx se deve ao fato de que Carey considerava os antagonismos sociais do capitalismo meras distorções herdadas do feudalismo europeu, especialmente do modelo britânico, que não se aplicariam aos Estados Unidos.
Indústria e reforma agrária
Como agora faz o presidente norte-americano Donald Trump, Carey defendia que o protecionismo era essencial para o desenvolvimento das indústrias nacionais. Segundo ele, as tarifas de importação protegeriam as indústrias nascentes da concorrência externa, principalmente da hegemonia britânica. Para ele, o livre comércio beneficiava apenas as nações já industrializadas, ampliando as desigualdades globais. Diante disso, o Estado deveria adotar medidas para fortalecer o mercado doméstico e estimular a produção nacional. Mais parecido com o tarifaço de Trump é impossível.
Carey não era apenas economista, era também um ativista político, ligado ao senador Henry Clay e à chamada American System, que propunha tarifas protecionistas, investimento em infraestrutura, um banco nacional forte e, sobretudo, promovia forte campanha contra a Inglaterra, acusada de sufocar e matar as indústrias norte-americanas, mais ou menos como Trump faz agora com a China. Mas não apenas os chineses. O presidente norte-americano afirma que a maioria dos países explora os Estados Unidos, quando o que aconteceu nos últimos cem anos foi o contrário.
Abraham Lincoln foi muito influenciado pelas ideias de Carey, inclusive no combate à escravidão e na defesa da reforma agrária, que resultaram na Guerra da Secessão. Segundo o economista, a vitória sobre as dificuldades para a produção agrícola, pelo árduo e continuado esforço, dá direito ao primeiro ocupante da terra à sua propriedade no solo. Seu valor constitui uma proporção muito pequena do custo despendido, porque representa somente o que seria exigido, com a ciência e os recursos ao longo do tempo, para elevar a terra de seu primitivo estado à situação produtiva.
A propriedade da terra, por conseguinte, seria somente uma forma de capital investido, uma quantidade de trabalho ou os frutos do trabalho permanentemente incorporados ao solo; pelo qual, como para qualquer outro capitalista, o proprietário é compensado por uma parte do produto. As teses de Carey tanto legitimaram a “conquista do Oeste” quanto o consequente massacre das populações indígenas.
Além de referência histórica, a política econômica republicana nos EUA durante o final do século 19, de certa forma, as ideias de Carey também influenciaram o nacional-desenvolvimentismo latino-americano de Celso Furtado e Raúl Prebisch, em meados do Século 20, que pode renascer das cinzas, inclusive aqui no Brasil.
Radicalização aumenta e pode paralisar as votações da Câmara
O catalisador de um grande confronto é a cassação do deputado Glauber Braga (PSol-RJ), aprovada pelo Conselho de Ética. O parlamentar resolveu fazer greve de fome
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, está tendo crescentes dificuldades para manter sua agenda, inclusive a pauta prioritária que anunciou no decorrer desta semana: a Proposta de Emenda Constitucional da Segurança Pública. Segundo ele, há uma convergência entre as lideranças de partidos para dar urgência aos debates sobre o tema. Entretanto, as articulações para aprovação de uma anistia aos condenados pelo envolvimento na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 prosseguem, e o clima de radicalização na Casa pode esquentar ainda mais devido à aprovação do pedido de cassação do deputado Glauber Braga (PSol-RJ) pelo Conselho de Ética da Câmara.
Desde quando recebeu o novo projeto da PEC da Segurança Pública, na terça-feira, das mãos dos ministros da Justiça, Ricardo Lewandowski, e da Secretaria de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, Motta vem reiterando que sua prioridade é a questão da violência e do combate à criminalidade. “Daremos total prioridade para a discussão desse texto. Vamos analisar e propor as mudanças necessárias o quanto antes, porque o Brasil tem pressa para avançar com essa pauta”, garantiu.
O problema, porém, é que a bancada do PL está mobilizada para outra agenda: a anistia dos golpistas. Segundo o líder do partido, Sóstenes Cavalcante (RJ), a oposição já está perto de conseguir as 257 assinaturas para fazer o texto tramitar. “Estamos apostando no diálogo com os colegas parlamentares, que vêm se sensibilizando com essa pauta de justiça, de humanidade e de pacificação nacional”, disse Sóstenes em seu perfil no X. Como a agenda da segurança é uma prioridade para a chamada “bancada da bala”, o PL suspendeu a obstrução que fazia em plenário.
Entretanto, o voto dissidente do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quinta-feira, para absolver todos os 17 réus denunciados por envolvimento nos atos antidemocráticos realizados na capital federal levou água para o moinho dos articuladores da anistia. Indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro para a Corte, no julgamento, Mendonça divergiu do voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, que foi seguido pelos ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino e Dias Toffoli. O ministro Nunes Marques acompanhou o voto de Mendonça.
Para Mendonça, o nível de evidência probatória exigida para a condenação difere daquele para “simples recebimento da denúncia” e, no caso dos réus que estão sendo julgados, “não foi atingido”. O ministro votou por absolver os envolvidos de todas as acusações formuladas nas ações em julgamento. Em seu voto, Alexandre de Moraes condenou os acusados a 1 ano de reclusão com prestação de serviços à comunidade e realização de curso sobre Estado e democracia; também proíbe o uso de redes sociais, determina multa, suspende o passaporte e revoga o pedido ou porte de arma dos réus.
Greve de fome
Mas o fato que pode ser o catalisador de um grande confronto na Câmara é a cassação do deputado Glauber Braga, aprovada pelo Conselho de Ética. Em protesto, o parlamentar do PSol resolveu fazer uma greve de fome, que já dura três dias e pode se estender até a próxima semana. Na terça-feira, quando a maioria dos deputados estará de volta a Brasília, Glauber estará completando uma semana de jejum alimentar, uma situação de risco.
Leia ainda: Sob ameaça de cassação, deputado Glauber Braga anuncia greve de fome
O Conselho de Ética aprovou a cassação do mandato na quarta-feira, por 13 votos a 5. A acusação, motivada por uma representação do Partido Novo, refere-se a um incidente ocorrido em abril de 2024, quando Braga teria expulsado, com empurrões e chutes, o integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) Gabriel Costenaro, que participava de uma manifestação na Câmara. O deputado afirma que a iniciativa é uma perseguição política.
O processo ainda permite recurso à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, posteriormente, será submetido ao plenário da Casa. Na comissão, Glauber pode ter alguma chance. Seu novo presidente é o deputado Paulo Azi (União-BA), eleito com 54 votos. Houve apenas um voto em branco. Ao assumir a presidência, Azi anunciou que dará atenção especial às propostas do Poder Executivo, “que tem a obrigação de implantar e propor políticas públicas para as quais foi eleito”. É uma sinalização de que o pedido de cassação de Glauber pode ir para a geladeira.
Não é a primeira vez que deputados realizam greves de fome na Câmara. Em junho de 2010, o deputado Domingos Dutra (PT-MA) realizou uma greve de fome em protesto contra a decisão do diretório nacional do PT de apoiar a candidatura de Roseana Sarney (PMDB) ao governo do Maranhão. Durante o protesto, ele permaneceu no plenário da Câmara.
Outro caso ocorreu em 2009, quando o ex-deputado José Edmar realizou uma greve de fome em defesa do imposto único. À época, ele era filiado ao PR e utilizou o protesto para chamar atenção para sua proposta tributária. O ex-deputado João Correia (PMDB-AC) também recorreu à greve de fome em 2010, após ser acusado de envolvimento no escândalo dos “sanguessugas”. Foi inocentado pela Conselho de Ética da Câmara.
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Trump dobra a aposta contra a China e causa pânico nos mercados
Teme-se um período de recessão econômica sem que se saiba como e quando se sairá dela. A retaliação chinesa mirou as empresas de tecnologia dos Estados Unidos
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaçou a China com tarifas adicionais de 50%, se Pequim não retirar suas taxas retaliatórias de 34% sobre os EUA. A escalada da guerra tarifária entre os dois gigantes da economia mundial provocou queda generalizada nas bolsas de valores de todo o mundo, principalmente na Ásia e na Europa. No Brasil, o Ibovespa, principal índice de desempenho das ações, abriu o mercado em queda de 1,7%, encerrando o dia com perda de 1,38%, enquanto o dólar fechou em alta, sendo vendido a R$ 5,91.
Nos EUA, fecharam em queda o Dow Jones, de 0,91%, e o S&P 500, de 0,23%. O Nasdaq de alta tecnologia reagiu e registrou pequena alta de 0,10%, entretanto o S&P 500 VIX, o chamado “índice do medo”, fechou com alta de 3,69%, em 46,98 pontos. Historicamente, os maiores patamares desse índice foram registrados na crise da Rússia, em agosto de 1998, quando fechou em 44,28; na crise financeira norte americana, em setembro de 2008, quando o tradicional banco de investimentos Lehman Brothers foi à falência e o índice fechou em 59,89; e na pandemia de covid-19, em março de 2020, quando chegou a 53,54.
O S&P 500 VIX é chamado de “índice do medo” porque tem a capacidade de refletir o sentimento dos investidores em relação à incerteza e à turbulência do mercado nos EUA e, sobretudo, mundo afora. No estresse financeiro, é uma resposta rápida à seguinte pergunta: você prefere deixar de ganhar um determinado valor ou arriscar perdê-lo mediante a possibilidade de um bom rendimento? A primeira opção é a resposta da maioria das pessoas. O índice VIX procura mostrar ao mercado essa aversão ao risco.
Esse comportamento, comum do ser humano, foi estudado pelo economista Richard Thaler. Segundo ele, quando as pessoas estão em uma situação mais favorável, preferem não mudar nada e manter o que já têm. Isso só muda quando há algo importante para resolver e não se tem o direcionamento para isso. O VIX (sigla para volatility index) é um índice de volatilidade criado pela Bolsa de Valores de Chicago. Esse indicador reflete o desempenho das ações das empresas que compõem o S&P 500 por 30 dias seguidos.
Valores mais altos indicam uma expectativa de maior oscilação de preços e incerteza, enquanto valores mais baixos sugerem maior confiança e estabilidade. Por isso, em tempos de crise, o VIX serve para medir a volatilidade esperada do mercado de ações, o sentimento dos investidores em relação à incerteza, o risco e a turbulência à frente no mercado de ações. Por isso mesmo, orienta para a tomada de decisões em momentos de crise financeira.
Perdas trilionárias
Como na situação desta segunda-feira, quando as quedas nas bolsas foram generalizadas: Nikkei 225 (Japão): -6,5%; Shanghai Composite (China continental): -6,4%; ASX 200 (Austrália): -3,8%; Kospi (Coreia do Sul): -5,2%; Taiex (Taiwan): -9,7%; STI (Singapura): -7,5%; Nifty 50 (Índia): -4,0%; Sensex (Índia): -3,7%.
Diante desses resultados, logo cedo, Trump foi às redes pedir para as pessoas não serem fracas e estúpidas. Não adiantou muito, a Dax da Alemanha caiu quase 10% no início do pregão, enquanto o FTSE 100 do Reino Unido tinha uma redução de quase 6% e o índice Cac 40 da França estava registrando queda de 7%.
Trump atirou na China, mas acertou os principais aliados dos Estados Unidos na Ásia, Japão e Coreia do Sul, além da Austrália. Toyota, Honda e Nissan estão entre as empresas mais atingidas. O primeiro-ministro japonês, Shigeru Ishiba, ao mesmo tempo em que se aproximou da China, ainda tenta um acordo com Trump. O Japão é o maior investidor estrangeiro nos Estados Unidos.
China e Estados Unidos produzem quase metade dos bens globais. Com a ameaça desta segunda-feira, Trump escalou mais ainda a crise: “Se a China não retirar seu aumento de 34% acima de seus abusos comerciais de longo prazo até esta terça-feira, 8 de abril de 2025, os Estados Unidos imporão tarifas adicionais à China de 50%, com efeito em 9 de abril”, publicou em sua rede social.
Na conversa com jornalistas na Casa Branca, estabeleceu um horário: a China tem até o meio-dia de hoje para recuar. É um ultimato que ainda pode fazer desta terça-feira um dia de pânico nos mercados financeiros. Uma guerra comercial generalizada é temida por governos e empresas porque pode provocar uma onda inflacionária mundial, com aumento de matérias-primas, bens de consumo e serviços.
Teme-se um período de recessão econômica sem que se saiba como e quando se sairá dela. A retaliação chinesa mirou as empresas de tecnologia dos Estados Unidos, ao aumentar o controle sobre a exportação de terras raras para os EUA. Samário, gadolínio, térbio, disprósio, lutécio, escândio e ítrio são matérias-primas utilizadas na fabricação de chips para celulares, computadores, cartões e outros produtos tecnológicos.
Na sexta-feira, Alphabet (dona do Google), Amazon, Apple, Meta, Microsoft, Nvidia e Tesla, as gigantes da tecnologia, já acumulavam perdas de US$ 1,8 trilhão. Ao todo, empresas listadas no mercado norte-americano perderam US$ 6 trilhões em valor de mercado em apenas dois dias.
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Desaprovação do governo Lula está perto do não retorno
A superexposição de Lula por meio de entrevistas e eventos não neutralizou a percepção negativa que a população tem da economia. A causa é a inflação
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Por onde quer que se olhe, o apoio da população ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva continua em queda livre. Apesar de o governo adotar medidas com o propósito de melhorar a própria imagem, como o empréstimo consignado para assalariados, a bolsa de estudos Pé-de-Meia para jovens adolescentes de baixa renda e a isenção do Imposto de Renda para quem recebe até cinco salários-mínimos, Lula não consegue estancar a sua queda nas pesquisas.
A Pesquisa Genial/Quaest, divulgada nesta quarta-feira, mostra que a desaprovação do governo Lula subiu de 49% para 56% entre 25 de janeiro e 25 de março, enquanto a aprovação caiu de 47% para 41%. Os números são brutos. O esforço de marketing realizado pelo ministro Sidônio Palmeira (Comunicação Social) até agora não surtiu efeito. A tese de que o problema do governo era sobretudo não se comunicar com a sociedade está sendo posta em xeque pelas pesquisas.
Parece o caso da velha máxima do gerenciamento estratégico: quando um projeto está dando errado, se as mesmas coisas continuarem a ser feitas, continuará dando errado. A quase universalidade dos números negativos reflete um mal-estar generalizado da sociedade com o governo federal.
A queda na aprovação ocorre em todas as regiões do país. No Nordeste, principal reduto eleitoral de Lula, a vantagem que era de 35 pontos percentuais (pp) caiu para 6 pontos entre dezembro e março, e a desaprovação subiu para 23 pp maior que a aprovação. No Sul, a diferença é de 30 pp. Entre as mulheres, é a primeira vez que a desaprovação chega a 53% e supera a aprovação, que está em 43%.
Sem o apoio maciço do Nordeste, da maioria das mulheres e dos brasileiros de baixa renda, o projeto de reeleição do Lula estará irremediavelmente comprometido. A aprovação está em 34% para quem tem renda familiar de mais de 5 salários-mínimos, em 36% para quem tem renda de 2 a 5 SM e chegou a 52% para quem tem renda de até 2 salários. A vantagem estratégica de Lula entre os eleitores de até 2 SM já foi de 43 pp em julho de 2024; agora, está em apenas 7 pp.
A desaprovação ao governo Lula chegou a 26% entre os seus próprios eleitores, ou seja, 25% de sua base de apoio. Isso significa um deslocamento muito além daqueles que votaram em Lula no segundo turno para impedir a reeleição de Jair Bolsonaro. Esse percentual abarca muitos que votaram em Lula no primeiro turno, o que é ainda mais preocupante para o Palácio do Planalto. O nome disso é frustração de expectativas.
Força de inércia
Com esses resultados, é o caso de Lula ir para o divã e avaliar a sustentabilidade de seu projeto de reeleição. É preciso encontrar as causas profundas desse descontentamento, que não está sendo revertido por medidas que o governo julgava capazes de alavancar a sua popularidade. O alcance dos projetos não atingiu a escala que se esperava.
O programa Pé-de-Meia, por exemplo, além das dificuldades de controle sobre a sua execução nos municípios, para que realmente chegue aos que devem ser beneficiados, exibe um aspecto que precisa ser mais bem avaliado pelo governo: ninguém vai convencer os pais dos alunos que não recebem a bolsa de que seus filhos não têm igualmente esse direito, se estudam na mesma escola pública do jovem com Pé-de-Meia.
O crédito consignado, o empréstimo do Lula, é um indiscutível sucesso de bilheteria: até 24 de março de 2025, mais de 5 milhões de assalariados haviam solicitado o consignado CLT, totalizando mais de R$ 50 bilhões. Entretanto, a maioria pega o empréstimo para quitar ou renegociar dívidas com os bancos e operadoras de cartão de crédito. Ou seja, o programa é bem-vindo, mas não impacta de imediato o custo de vida.
Até agora, a proposta de isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil também não surtiu o efeito esperado; como só valerá para o próximo ano, pode ser que ainda traga resultados efetivamente positivos no futuro. A maioria da população tem a percepção de que a economia piorou e o governo caminha na direção errada: são 56% em ambos os quesitos.
A superexposição de Lula por meio de entrevistas e eventos foi alicerçada nesses programas, porém não neutralizou essa percepção negativa que a população tem da economia. A causa principal é a inflação, sobretudo o preço dos alimentos nos supermercados e dos combustíveis nos postos de gasolina. Lula subestima a inflação como fez no Plano Real, em 1994, quando estava na oposição e combatia o ajuste fiscal.
O poder de compra da população decaiu nesses dois quesitos, apesar da redução do desemprego e do aumento da renda média. Isso poderia ser compensado pelos programas sociais do governo, porém, 67% da população de baixa renda identifica esses programas como direito adquirido. É o caso do Bolsa Família.
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Brasil não deve despertar velhos ressentimentos dos paraguaios
Funcionário da Abin revela que a agência fez invasões de hacker a sistemas do Congresso, da Presidência e de autoridades do Paraguai envolvidas nas negociações de Itaipu
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Segundo volume da coleção Plenos Pecados, da Editora Objetiva, Xadrez, Truco e Outras Guerras, do escritor José Roberto Torero, é inspirado na Guerra do Paraguai (1865-1870), o maior conflito armado em que o Brasil esteve envolvido no continente. Os demais livros, sem spoiler, são Mal Secreto, de Zuenir Ventura (Inveja); O Clube dos Anjos, de Luís Fernando Verissimo (Gula); A Casa dos Budas Ditosos, de João Ubaldo Ribeiro (Luxúria); Canoas e Marolas, de João Gilberto Noll (Preguiça); Terapia, de Ariel Dorfman (Avareza); e Voo da Rainha, de Tomás Eloy Martínez (Soberba).
O livro de Torero é uma sátira meio macabra envolvendo pessoas em conflitos durante a Guerra do Paraguai. Seu pecado capital é a ira. O livro narra de forma ficcional a implacável perseguição ao Mariscal (marechal) Francisco Solano López, o ditador do Paraguai, de mando do príncipe francês Gastão de Orléans, o Conde d’Eu, capitão de cavalaria na Guerra Hispano-Marroquina e comandante-chefe do exército imperial na Guerra do Paraguai, casado com a Princesa Isabel, a herdeira do trono brasileiro. O trauma dessa guerra até hoje alimenta ressentimentos dos paraguaios. Morreram 90% dos homens acima de 20 anos do Paraguai.
Nesta terça-feira, o governo do Paraguai convocou o embaixador do Brasil no país, José Antônio Marcondes, para cobrar explicações sobre o suposto monitoramento da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a sistemas do governo paraguaio. Em depoimento à Polícia Federal, um funcionário da Abin informou que a atual gestão da agência teria mantido operações de invasão hacker a sistemas do governo do Paraguai e de autoridades envolvidas nas negociações da usina de Itaipu.
A denúncia é mais uma dor de cabeça para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pois o governo está em fase de negociações com o Paraguai sobre o Anexo C do acordo de construção da usina de Itaipu, que define as condições de comercialização da energia gerada. O chanceler do Paraguai, Rubén Ramírez, afirmou que as autoridades do país classificam o tema como “delicado” e disseram que o Brasil precisa explicar qual foi o resultado da interferência. O ministro de Indústria e Comércio, Javier Giménez García de Zúñiga, que negocia o acordo, afirmou que os debates sobre o tema estão suspensos até que a questão seja esclarecida.
A Polícia Federal investiga o vazamento de informações no âmbito do inquérito sobre a chamada “Abin paralela”, que teria utilizado ferramentas e serviços da agência para a prática de ações ilícitas. No depoimento, o funcionário da Abin afirmou que a atual gestão da agência manteve operações de invasão hacker a sistemas governamentais do país vizinho, inclusive do Congresso, da Presidência da República e de autoridades envolvidas nas negociações da usina de Itaipu.
A ação foi iniciada ainda no governo Jair Bolsonaro, mas continuou durante o governo Lula, com suposta autorização expressa do atual diretor da Abin, Luiz Fernando Corrêa. Teria como objetivo obter dados sigilosos sobre valores em negociação no Anexo C do Tratado de Itaipu. Uma tremenda trapalhada.
O massacre
Solano López morreu na Batalha de Cerro Corá ou Aquidabanigui, a última da guerra, a 454km ao nordeste de Assunção. Os paraguaios tinham sido derrotados na Batalha de Campo Grande (16 de agosto de 1869), pelas tropas imperiais. O exército paraguaio estava, desde então, reduzido a uns 400 ou 500 combatentes, sobretudo velhos, adolescentes e crianças, famintos, esfarrapados e mal armados.
Em 26 de fevereiro de 1870, o general brasileiro José Antônio Correia da Câmara, no comando de mais de 2 mil homens bem armados e bem alimentados, seguiu em direção ao acampamento paraguaio de Cerro Corá. Na manhã de 1º de março, uma terça-feira, as forças imperiais atacaram em duas frentes. Em 15 minutos, a linha de resistência sucumbiu. Juan Francisco, o Panchito, filho de Solano López, de 15 anos, lutou de sabre na mão, até ser fulminado por tiro.
O presidente paraguaio fugiu a cavalo, acompanhado de três oficiais. A versão oficial conta que López acabou cercado por dois soldados e resistiu, empunhando seu espadim de cerimônia, sendo revidado com um golpe na cabeça. O cabo José Francisco Lacerda, de 22 anos, conhecido como Chico Diabo, transpassou López com a lança, de baixo para cima, atingindo a virilha direita e alcançando as entranhas. O que aconteceu depois tem várias versões, todas tendo o general Correia da Câmara no comando.
López morreu em combate ou foi executado? A hipótese de execução é corroborada pela profanação do seu cadáver, que teve sua orelha esquerda cortada, os dentes quebrados a coronhadas de fuzis, um dedo arrancado e um pedaço do couro cabeludo escalpelado, tudo seguido de um massacre da população civil. Somente em 4 de março, o Conde d’Eu foi informado da morte de Solano López; estava longe dos combates, a bordo de um navio.
A espada do López foi enviada por Correia da Câmara ao imperador D. Pedro II. O general presenteou o visconde de Rio Branco com a condecoração que López portava e ficou com o relógio do Mariscal, que a seguir doaria a um museu. Chico Diabo, o matador de López, tomou para si a faca de prata e ouro, com as iniciais FL (Francisco López).
O canhão “El Cristiano” (o cristão, em português), com 12 toneladas, que está exposto no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, foi feito com o metal dos sinos das igrejas de Assunção, onde ajudou a conter o avanço das tropas brasileiras por dois anos. Até hoje o Paraguai espera sua prometida devolução.
Fonte | Nas entrelinhas: todas as colunas no Blog do Azedo
Lula destaca 40 anos de democracia ao lembrar golpe de 1964
É importante a reflexão sobre 1964 para que os fatos não se repitam como tragédia, ou seja, para que outra tentativa de golpe não tenha êxito
Luiz Carlos Azedo, Entrelinhas/Correio Braziliense
Desde a redemocratização, há 40 anos, nunca foi tão importante relembrar o golpe de 1964. Embora nossas instituições democráticas tenham revelado resiliência ao debelar a intentona de 8 de janeiro de 2023, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) dos envolvidos na conspiração golpista, entre os quais o ex-presidente Jair Bolsonaro, três generais de Exército e um almirante de esquadra, não é um tema pacífico no Congresso Nacional, mesmo tendo sido um dos palácios invadidos e depredados por bolsonaristas inconformados com a eleição do petista.
As articulações para aprovação de uma anistia aos envolvidos, o que inclui o ex-presidente Jair Bolsonaro, que está inelegível, são a comprovação de que o passado sombrio precisa ser levado em conta no presente. Foi o que fez o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, sem alimentar ressentimentos em relação às Forças Armadas, que foram fundamentais para que fracassasse a tentativa de o destituir, uma semana após a posse.
“Hoje é dia de lembrarmos da importância da democracia, dos direitos humanos e da soberania do povo para escolher nas urnas seus líderes e traçar o seu futuro. E de seguirmos fortes e unidos em sua defesa contra as ameaças autoritárias que, infelizmente, ainda insistem em sobreviver”, escreveu Lula no seu perfil do X.
“Não existe, fora da democracia, caminhos para que o Brasil seja um país mais justo e menos desigual. Não existe um verdadeiro desenvolvimento inclusivo sem que a voz do povo seja ouvida e respeitada. Não existe justiça sem a garantia de que as instituições sejam sólidas, harmônicas e independentes”, acrescentou.
Lula completou: “Nosso povo, com muita luta, superou os períodos sombrios de sua história. Há 40 anos, vivemos em um regime democrático e de liberdades, que se tornou ainda mais forte e vivo com a Constituição Federal de 1988. Esta é uma trajetória que, tenho certeza, continuaremos seguindo. Sem nunca retroceder.”
“Lembrai-vos de 64”, perdão pelo trocadilho com o título do livro de Ferdinando Carvalho sobre a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado pela Biblioteca do Exército, em 1981, mas é o caso. O general é autor de mais duas obras sobre o mesmo tema, porém ficcionais: Os Sete Matizes do Rosa e Os Sete Matizes do Vermelho, ambos de 1977.
Seus livros até hoje alimentam o discurso de ódio dos saudosistas do regime militar, principalmente aqueles que tomaram de assalto o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo com objetivo de provocar uma intervenção militar e destituir o presidente Lula. Carvalho escreveu Lembrai-vos de 35 (Biblioteca do Exército) com o objetivo de conter a abertura política durante o governo do general João Baptista Figueiredo, após a anistia de 1979 e o restabelecimento das eleições diretas para governadores, marcadas para 1982.
Radicalização política
Enfraquecido na Presidência pelo avanço da oposição, que vencera as eleições proporcionais de 1974 e 1978, Figueiredo era desafiado pelos porões do próprio regime militar, de onde partiam os atentados terroristas em bancas de jornais, gráficas, até contra a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que clamavam por democracia e liberdade.
A disposição terrorista dos militares envolvidos com sequestros, torturas e assassinatos de oposicionistas nos quartéis, que também haviam sido beneficiados pela anistia, não tinha limites. Até que deu errada a ação terrorista promovida por membros do DOI-Codi e setores da linha dura militar em 30 de abril de 1981.
Durante um show de MPB com 20 mil pessoas, no Rio Centro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma bomba explodiu acidentalmente em um veículo, matou um sargento e feriu um capitão do Exército, enquanto outro artefato, posicionado no gerador, não foi detonado.
O caso expôs divisões nas Forças Armadas e intensificou o movimento por mudanças democráticas. A imprensa teve um papel fundamental na denúncia de abusos e na luta pela verdade histórica durante a transição, sua atuação na cobertura desse atentado é um marco do jornalismo brasileiro.
Alguns jovens cadetes e oficiais influenciados àquela época pelas obras de Carvalho voltariam ao poder com a eleição de Jair Bolsonaro (PL) à Presidência, em 2018, entre eles o ex-ajudante de ordens do general Silvio Frota e general de Exército Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, com destacada liderança militar.
A matéria-prima dos livros de Carvalho é o Inquérito Policial Militar (IPM) nº 7.098 (1964-1966), do qual foi responsável, para apurar as atividades do PCB no território nacional. Muito do que a direita ideológica brasileira fala hoje sobre a esquerda no Brasil reproduz suas teses.
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Nas Entrelinhas: Recordações da distensão — o estudante desaparecido
Faculdade de Direito de Niterói concedeu o título de bacharel a Fernando Santa Cruz. E propôs ao Conselho Universitário que lhe agracie com o título de Doutor Honoris Causa
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Eleito deputado federal pelo antigo estado da Guanabara, em 1970 e 1974, o jurista e político carioca Célio Borja passou a representar o novo estado do Rio de Janeiro a partir de 15 de março de 1975, após a fusão dos dois, por força de lei sancionada no governo Ernesto Geisel, cujo objetivo era reequilibrar a balança geopolítica do país com São Paulo. No projeto nacional-desenvolvimentista do então presidente Geisel, o Rio de Janeiro seria a capital do setor produtivo estatal, pois abrigava a sede das mais importantes empresas públicas do país — entre as quais a Petrobras, a então Vale do Rio Doce, a Companhia Siderúrgica Nacional, a Embratel, o BNDE (não tinha o S) e o BNH (antigo Banco Nacional de Habitação).
Enquanto o ministro do Planejamento da época, João Paulo dos Reis Veloso, articulava o tripé do ambicioso II Plano Nacional Desenvolvimento de Geisel — setor estatal, empresários brasileiros e multinacionais —, caberia a Borja liderar a bancada da Arena na Câmara Federal e dar continuidade ao projeto de “distensão lenta, gradual e segura” — que havia sido abalado pela espetacular vitória do MDB, o partido de oposição, nas eleições de 1974.
Mas ou menos nessa época, Borja foi convidado para uma palestra na centenária Faculdade de Direito de Niterói (UFF), que ainda hoje funciona no velho prédio em estilo neoclássico da Avenida Presidente Pedreira, no Ingá, bairro nobre de Niterói. O novo líder da Arena havia sido encarregado por Geisel do operar a “Missão Portela” na Câmara — assim batizada por causa do senador Petrônio Portela (PI), presidente da Arena à época. Borja seria ministro da Justiça de Geisel, mas foi vetado pelos militares “linha dura”. Por muito pouco também não foi impedido de assumir a Presidência da Câmara.
Borja era um político liberal, defendia a abertura política com sinceridade. Mal começou a sua palestra, foi interrompido por um grupo de estudantes que protestava contra o sequestro e desaparecimento de um dos alunos da Faculdade de Direito, Fernando Santa Cruz. Sua mulher, Ana Lúcia Santa Cruz — mãe daquele que mais tarde seria presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, que tinha pouco mais de dois anos —, aos prantos gritava: “Vocês sequestraram meu marido. Cadê o pai do meu filho?”
Não foi somente a palestra de Borja que acabou ali. Na verdade, o processo de abertura estava sendo interrompido, em razão da derrota eleitoral de 1974, por violenta repressão à oposição de esquerda ao regime. A pá de cal seria o Pacote de Abril, de 1977, do então ministro da Justiça Armando Falcão. O corpo de Fernando Santa Cruz nunca foi devolvido à família, mas o tempo se encarregou de esclarecer as circunstâncias de seu assassinato.
Em 23 de julho de 2014, a Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco, recebeu documentos inéditos da Operação Cacau, de 1973, realizada pelo IV Exército, com órgãos e agentes da repressão na Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Todo o material estava guardado no Arquivo Nacional.
Honoris causa
Juliana Dal Piva, repórter do jornal O Dia, do Rio de Janeiro, ao investigar o destino dos mortos e desaparecidos da Casa da Morte, de Petrópolis, para um mestrado no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getulio Vargas, havia encontrado os documentos sobre a operação para desmontar a Ação Popular Marxista-Leninista (APML), da qual Fernando Santa Cruz fazia parte.
O relatório confirma que Eduardo Collier Filho, Fernando Santa Cruz, Gildo Lacerda, José Carlos da Mata Machado, Paulo Wright e Umberto Câmara Neto, dirigentes da organização, que não havia aderido à luta armada contra o regime, foram mortos pelos militares. Em fitas gravadas em 1983, Gilberto Prata, cunhado de José Carlos, relata detalhes de sua colaboração remunerada com o Centro de Informação do Exército (CIE).
O caso de Fernando Santa Cruz foi motivo de uma polêmica entre seu filho Felipe e o ex-presidente Jair Bolsonaro, que negava a existência dos documentos. São mais de 300. Um deles, da Aeronáutica, datado de 22 de setembro de 1978, confirma que Fernando foi preso em 22 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro. Ele já integrava uma lista com mais 48 desaparecidos do Comitê Brasileiro de Anistia. No Arquivo do DOPS/SP, na sua ficha consta: “Nascido em 1948, casado, funcionário público, estudante de Direito, preso no RJ em 23/02/74”. Em outro, o antigo Ministério da Marinha informa que “foi preso no RJ em 23/02/74, sendo dado como desaparecido a partir de então”.
Cinco dias antes da fala de Bolsonaro sobre Fernando, em 24 de julho de 2019, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao seu governo, havia emitido uma retificação de atestado de óbito do pai de Felipe Santa Cruz, reconhecendo o desaparecimento “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado Brasileiro”. No atestado de óbito, também consta que Fernando morreu provavelmente em 23 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro.
Ontem, por proposta do seu decano e ex-diretor Manoel Martins Junior, o Colegiado da Faculdade de Direito de Niterói concedeu o título póstumo de bacharel em direito a Fernando Santa Cruz. E propôs ao Conselho Universitário a concessão do título de Doutor Honoris Causa, também post mortem, ao jovem desaparecido, que será homenageado com uma placa no prédio onde estudava e que testemunhou a denúncia de seu sequestro. Detalhe: sua ficha havia desaparecido dos arquivos da faculdade.
Nas entrelinhas: De quando as ofensas levam à ruína política
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
No embalo das pesquisas e dando sequência à coluna de sexta-feira (Quando a fortuna governa a política, e a virtude, não), voltamos ao clássico dos clássicos da política, O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, para falar do governo Bolsonaro e das próximas eleições. O astuto florentino foi associado ao vale tudo na política por uma frase que lhe é atribuída, mas que nunca dissera: “Os fins justificam os meios”. Essa interpretação errônea (ou de má-fé) é fruto do seu realismo, ao desvincular o Estado do Direito Divino.
É lugar comum o conselho atribuído a Maquiavel de que o mal deve ser feito de uma só vez. “Por isso, é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para não precisar renová-las a cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios. Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem sempre necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança diante das novas e contínuas injúrias”.
Arremata sabiamente: “Portanto, as ofensas devem ser feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para que sejam mais bem apreciados. Acima de tudo, um príncipe deve viver com seus súditos de modo que nenhum acidente, bom ou mau, o faça variar. Porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não estarás em tempo de fazer o mal, e o bem que tu fizeres não te será útil — eis que, julgado forçado, não trará gratidão”.
O Príncipe era o livro de cabeceira de Napoleão Bonaparte, cujos comentários sobre a obra estão acessíveis em algumas boas edições. Não conheço político que não tenha a obra prima de Maquiavel. Bolsonaro e seu estado-maior, formado por generais de quatro estrelas, não devem ser exceções.
Entretanto, pode-se concluir que Bolsonaro está fazendo tudo errado. Governou o tempo todo contra a maioria da opinião pública e com ofensas ao Supremo Tribunal Federal (STF), além da imprensa e dos adversários. Agora, às vésperas das eleições, tenta oferecer benefícios de uma só vez, o que não está conseguindo, diante da conjuntura adversa. Nem mesmo para seus aliados mais orgânicos, como os caminhoneiros e os policiais, cujas demandas estão acima das possibilidades reais do governo.
Maquiavel dizia que “contra a inimizade do povo um príncipe jamais pode estar garantido, por serem muitos; dos grandes, porém, pode se assegurar porque são poucos”. As pesquisas eleitorais, porém, estão tendo um efeito corrosivo junto aos aliados políticos de Bolsonaro, porque sua vantagem estratégica no Brasil meridional, onde está a sua mais sólida base de sustentação, está sendo reduzida progressivamente pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em contrapartida, a vantagem de Lula se ampliou tremendamente no Nordeste, o eixo geográfico da aliança de Bolsonaro com os caciques do Centrão, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mestres da baldeação política.
Governo civil
Essa desvantagem de Bolsonaro no Nordeste (17% contra 56% de intenções de votos a favor de Lula) se reproduz em outros segmentos importantes do eleitorado, segundo o Datafolha de quinta-feira passada: mulheres, 23% a 49%; jovens (16 a 24 anos), 21% a 58%; baixa renda (até dois salários mínimos), 20% a 56%; pretos, 23% a 57%; desempregados, 16% a 57%; beneficiários do Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família): 20% a 59%.
A situação somente se inverte entre evangélicos, onde a vantagem de Bolsonaro se reduziu a quase um empate técnico: 39% contra 36% de Lula. Mas se mantém bem dilatada entre os empresários, 56% a 23%, e os eleitores de renda acima de 10 salários mínimos, 42% a 31% contra Lula.
Na medida em que sua expectativa de poder se reduz, o sistema de alianças de Bolsonaro ameaça ruir: “O pior que pode um príncipe esperar do povo hostil é ser por ele abandonado. Mas dos poderosos inimigos não só deve temer ser abandonado, como também deve recear que os mesmos se lhe voltem contra, pois que, havendo neles mais visão e maior astúcia, contam sempre com tempo para salvar-se e procuram adquirir prestígio junto àquele que esperam venha a vencer”, ensina Maquiavel.
Bolsonaro não consegue domar a inflação. Como o cenário eleitoral permanece adverso, mantém sua rota de colisão com as urnas eletrônicas. Recrudesceu os ataques aos ministros Edson Fachin, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e Alessandro de Moraes, que o substituirá durante as eleições. Também faz ataques diretos ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaça não cumprir suas decisões, o que é uma quebra do juramento de posse na Presidência. Com isso, suas declarações reforçam as suspeitas de que prepara um golpe de estado para se manter no poder, caso perca as eleições. É um momento perigoso.
Ao falar dos governos civis, Maquiavel tratou do assunto: “Amiúde esses principados periclitam quando estão para passar da ordem civil para um governo absoluto (…), porque os cidadãos e os súditos, acostumados a receber as ordens dos magistrados, não estão, naquelas conjunturas, para obedecer às suas determinações, havendo sempre, ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas nas quais ele possa confiar”. Fica a dica.
Estarei de volta no primeiro domingo de julho.
Nas entrelinhas: Quando a fortuna governa a política, e a virtude, não
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, discorre longamente sobre a sorte na política. “De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se lhe deva servir” (Quantum fortuna in rebus humanis possit, et quomodo illis it occurrem dum), o 15º capítulo de seu livro, foi escrito com a intenção subjacente de separar o Estado da Igreja, que exercia enorme influência sobre os principados italianos. À época, dizia-se que as coisas eram governadas pela fortuna e por Deus e que os homens não poderiam modificar o seu destino, que já estava predeterminado. Muitos deixavam-se governar pela sorte e perdiam o poder.
Com a cautela que seu pescoço exigia, Maquiavel resolveu dividir as responsabilidades: “Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase”.
Para explicar sua tese, comparou a fortuna aos rios torrenciais: “Quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores e os edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso”.
As conclusões de Maquiavel são atualíssimas, já escrevi sobre isso. Dizia que o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruína-se segundo as mudanças de conjuntura. Seria feliz aquele que acomodasse o modo de proceder à natureza dos tempos, da mesma forma que infeliz aquele que, com o seu proceder, entrasse em choque com o momento. É o que está acontecendo com o presidente Jair Bolsonaro, que chegou ao poder muito mais pela sorte do que pelas virtudes, mas não se deu conta de que o ambiente político e econômico mudou profundamente desde que assumiu o governo.
Agora, Bolsonaro corre o risco de perder a eleição no primeiro turno, para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que contraria a lógica do instituto da reeleição, que favorece quem está no poder com propósito de dar continuidade aos seus bons projetos. É preciso um desgoverno, e errar muito na política, para não se reeleger. É exatamente isso que vem fazendo.
Pesquisa
A pesquisa DataFolha, divulgada ontem, mostra isso claramente. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está com 48% de intenções de votos, contra 27% de Bolsonaro. Ciro Gomes (PDT) tem 7%; André Janones (Avante), 2%; Simone Tebet (MDB), 2%; Pablo Marçal (Pros), 1%; e Vera Lúcia (PSTU), 1%. Branco/nulo/nenhum somam 7%; não sabe, 4%. Felipe d’Avila (Novo), Sofia Manzano (PCB), Leonardo Péricles (UP), Eymael (DC), Luciano Bivar (UB) e General Santos Cruz (Podemos) não pontuaram.
Na simulação de segundo turno, Lula tem 54%, e Bolsonaro, 30%. O DataFolha ouviu 2.556 pessoas entre 25 e 26 de maio, em 181 cidades brasileiras. A margem de erro é de dois pontos para mais ou para menos.
A pesquisa está sendo espinafrada nas redes sociais pelos bolsonaristas, embora seja uma fotografia do atual momento. A campanha eleitoral somente começa para valer em 15 de agosto. É tempo suficiente para que Bolsonaro e os demais candidatos se reposicionem.
A pesquisa estimulada não pode ser comparada com o levantamento anterior, de 22 e 23 de março, porque o ex-governador de São Paulo João Doria está fora da disputa. Naquele levantamento, Lula registrou 43% das intenções de voto, enquanto Bolsonaro tinha 26%, mas o petista já batia na trave de uma vitória no primeiro turno. O DataFolha pegou de surpresa os estrategistas de Bolsonaro e atordoou os políticos do Centrão, porque a vantagem de Lula no Nordeste é avassaladora: 62% a 17%.
Enquanto Lula jogou praticamente parado, e deu algumas declarações infelizes, Bolsonaro se deslocou pelo país, lançou novos programas, baixou medidas provisórias, demitiu dois presidentes da Petrobras, partiu novamente para cima dos ministros do Supremo Tribunal Federal e voltou a levantar suspeitas infundadas sobre as urnas eletrônicas. Retomou sua agenda conservadora nos costumes e iliberal na política. Foi um desastre, que reverteu a aproximação junto aos eleitores moderados e jogou no colo de Lula setores de centro-esquerda preocupados com seus arroubos autoritários.
Depois da pandemia de covid-19, que foi controlada, a Guerra da Ucrânia agravou a situação econômica do país. As medidas erráticas que vem adotando para conter a inflação e mitigar seus efeitos junto às camadas mais pobres da população também não estão surtindo o efeito desejado. Na prática, a desorientação política reduziu as expectativas de reeleição que Bolsonaro havia projetado.
Nas entrelinhas: Doria desiste, mas PSDB continua dividido
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
O ex-governador de São Paulo João Doria jogou a toalha e desistiu da candidatura à Presidência da República, após ser comunicado pela cúpula da legenda que seria candidato de si mesmo. Doria perdeu o apoio do grupo liderado pelo governador Rodrigo Garcia, que o sucedeu, e pelo presidente do PSDB, Bruno Araújo, aliados aos presidentes do Cidadania, Roberto Freire, e do MDB, Baleia Rossi. Se depender dos presidentes dos três partidos, a candidata da chamada terceira via será a senadora Simone Tebet (MS), do MDB.
Doria foi vítima dele mesmo. Rompeu com seu padrinho político, Geraldo Alckmin, que hoje é o vice na chapa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A aliança de segundo turno que havia feito com o presidente Jair Bolsonaro, em 2018, rompeu-se no começo da pandemia da covid-19, por causa da política de distanciamento social adotada pelo governo paulista para restringir a propagação da doença. Quando o Instituto Butantan, pioneiramente, começou a produzir a vacina chinesa CoronaVac, Doria se tornou o principal adversário de Bolsonaro, cujo negacionismo combateu em entrevistas diárias pela tevê.
A superexposição na mídia, porém, alavancou sua rejeição nas pesquisas de opinião, embora viesse fazendo um bom governo, dos pontos de vista administrativo e financeiro. Doria nunca teve uma trégua das lideranças petistas de seu estado, muito fortes nas áreas da saúde e da educação, e também sofreu oposição sistemática dos bolsonaristas de São Paulo, principalmente nas áreas do agronegócio e da segurança pública. Lançou-se candidato à Presidência em situação muito desvantajosa do ponto de vista de imagem.
Seu maior erro talvez tenha sido levar o vice-governador Rodrigo Garcia do DEM para o PSDB, o que aprofundou seu isolamento interno, afastando lideranças históricas, como Alckmin, que já estava com um pé fora da legenda, e os ex-senadores Aloysio Nunes Ferreira e José Aníbal. A mudança também provocou o afastamento de sua candidatura do antigo DEM, que viria a se fundir com o PSL e formar o União Brasil. Além disso, Doria terceirizou as articulações políticas com deputados federais, estaduais e prefeitos, deixando-as a cargo de Garcia.
Ungido seu sucessor natural, Rodrigo Garcia passou a operar com os deputados Carlos Sampaio (SP), Rodrigo Maia (RJ), Bruno Araújo e Baleia Rossi para tornar irreversível a saída de Doria do Palácio dos Bandeirantes. As prévias do PSDB, do ponto de vista prático, serviram apenas para isso. Quando Doria ameaçou não disputar a Presidência e permanecer no governo paulista, Garcia e Araujo assinaram um termo de compromisso garantindo que apoiavam sua candidatura ao Planalto. Doria caiu na armadilha: renunciou ao mandato de governador e acabou defenestrado.
Candidatura própria
Doria também nunca teve grande apoio fora de São Paulo. A desistência dele, porém, não unifica o PSDB. Os líderes históricos da legenda desejam lançar uma candidatura própria. Os nomes cogitados são os do ex-governador gaúcho Eduardo Leite, que perdeu as prévias para Doria e retirou sua candidatura, mas está desincompatibilizado para concorrer à Presidência; e o senador Tasso Jereissati (CE), um dos fundadores do partido. O deputado Aécio Neves (MG) e o ex-governador de Goiás Marconi Perillo defendem essa alternativa.
Entretanto, a reunião da Executiva que se realizaria hoje foi suspensa por Bruno Araújo. O grupo paulista não quer uma candidatura própria, para assim poder abrir o palanque de Garcia em São Paulo, numa tentativa desesperada de viabilizar a reeleição do atual gestor. Pesquisa divulgada ontem pelo Real Big Data revela que o candidato petista Fernando Haddad lidera a disputa com 29%, seguido de Tarcísio de Freitas (PR) e Márcio Franca (PSB), com 15%. Rodrigo Garcia tem 7%. Nos cenários sem Haddad ou França, Garcia permanece atrás de Tarcísio, o candidato de Bolsonaro.
A lógica das articulações da bancada paulista para remover a candidatura de Doria foi a da alça de caixão difícil de carregar. Com a desistência, a situação se alterou completamente, porque Garcia não tem mais nenhuma desculpa para explicar sua desvantagem nas pesquisas eleitorais e precisa recuperar a expectativa de poder que perde a cada dia. Ou seja, provar que a rejeição de Doria era seu principal obstáculo. Tem a seu favor o grupo econômico que apoiava seu antecessor e teve um papel decisivo no convencimento de que o tucano deveria desistir de disputar a Presidência. Entretanto, Tarcísio de Freitas também transita entre os empresários paulistas.
Viabilizar o palanque de Simone Tebet em São Paulo é uma prioridade na terceira via, mas tanto Baleia Rossi quanto o prefeito Ricardo Nunes (MDB), que administra a capital paulista, sabem que essa não é uma prioridade do atual governador. A candidata do MDB tem apoiou político de Garcia para impedir uma candidatura própria do PSDB, porém não tem nenhuma garantia de apoio eleitoral no estado com maior eleitorado do país.
Nas entrelinhas: Cúpula do PSDB negocia desistência de Doria
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
A reunião da Executiva do PSDB, ontem, produziu um consenso: o ex-governador de São Paulo João Doria deveria renunciar à corrida presidencial e buscar uma alternativa honrosa para o partido, que tanto pode ser ressuscitar a candidatura do ex-governador gaúcho Eduardo Leite, no caso de uma solução prata da casa, quanto apoiar a indicação da senadora Simone Tebet (MDB-MS), que teria o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) para vice. Com isso, a reunião da terceira via marcada para hoje, na qual será apresentada uma pesquisa sobre a competitividade de Doria, não poderá tomar uma decisão definitiva, porque o presidente do PSDB, Bruno Araujo, não foi credenciado para isso. As conversas continuarão, preferencialmente com a participação de Doria.
O porta-voz dos líderes tucanos foi o deputado Aécio Neves (MG), autor da proposta de consenso. A ideia é realizar uma nova reunião, com os governadores e candidatos majoritários do PSDB e a presença de Doria, para que os próprios correligionários relatem as dificuldades que estão enfrentando para apoiá-lo nos seus respectivos estados. Aécio é desafeto de Doria, mas defende uma candidatura própria da legenda e havia apoiado Leite na disputa das prévias. Entretanto, o maior algoz e interessado na desistência de Doria é mesmo o governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, que o sucedeu no cargo e, inclusive, foi levado ao PSDB pelas mãos do candidato tucano.
A discussão na reunião da Executiva do PSDB foi quente, mas o encerramento teve clima de velório. Essa é a mais séria crise enfrentada pelo PSDB, que corre sério risco de não ter candidato a presidente da República pela primeira vez em sua história — o que também pode ser catastrófico para a legenda. Tanto Garcia como Araujo articulam essa posição, defendendo o apoio a Tebet, como deseja a maioria dos deputados paulistas da chamada terceira via em São Paulo. Na avaliação deles, Doria seria um estorvo para a candidatura de Garcia, que está em quarto lugar nas pesquisas de intenções de votos, atrás de Fernando Haddad (PT), Márcio França (PSB) e Tarcísio de Freitas (Republicanos), o candidato de Bolsonaro.
Defenestrar Doria seria uma maneira de evitar a deriva de prefeitos e candidatos da base de Garcia para a candidatura de Tarcísio, que tem forte penetração no interior paulista, principalmente na área do agronegócio, por causa de sua atuação como ministro da Infraestrutura e do apoio de Bolsonaro. O deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB, e o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), são os principais articuladores da aliança do atual governador paulista com Tebet. Nos bastidores, o ex-presidente Michel Temer se preserva, porque ainda pode ser um trunfo da legenda nas negociações com Doria e Garcia.
“Lularcia”
Quem acha que Garcia alavancará a campanha de Tebet em São Paulo, porém, pode estar muito enganado. O presidente do Solidariedade, Paulinho da Força, articulou uma aliança pirata com o governador paulista, para apoiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A chapa “Lularcia” seria uma alternativa para os sindicalistas que apoiam Lula, mas não querem apoiar o petista Haddad.
Essa é uma velha prática do movimento sindical paulista, useiro e vezeiro em fazer isso, desde a eleição de Jânio Quadros, em 1960. A chapa Jan-Jan garantiu a eleição do vice João Goulart, o Jango, companheiro de chapa do marechal Henrique Teixeira Lott. Naquela época, os votos para presidente da República e para vice eram separados.
Após a reunião de ontem, Doria foi convidado a comparecer ao encontro da terceira via, hoje, que reunirá os presidentes do PSDB, Bruno Araujo; do Cidadania, Roberto Freire; e do MDB, Baleia Rossi. Após a reunião, o tucano ressaltou que os entendimentos com o Cidadania e o MDB para encontrar uma candidatura única continuarão e que o próprio Doria deveria participar da construção de uma alternativa ao seu nome.
Entretanto, o ex-governador já recusou o convite — só pretende voltar a Brasília na próxima semana. Ex-presidente do PSDB, José Aníbal, um dos participantes da reunião, considera a candidatura de Doria liquidada. Sua desistência será apenas uma questão de tempo.
Luiz Carlos Azedo: Eleição de Boric pode virar um El Niño político
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A esquerda venceu as eleições no Chile com a eleição do ex-líder estudantil e jovem deputado Gabriel Boric, de 35 anos, o mais jovem político a presidir o país em toda a sua história. Foi uma eleição marcada pela polarização política, na qual o candidato da Convergência Social, apoiado pelo Partido Comunista chileno, derrotou o ultradireitista José Antônio Kast, do Partido Republicano, um fanático admirador do ex-presidente Augusto Pinochet, o ditador sanguinário que liderou o golpe militar de 1973, no qual o presidente Salvador Allende se suicidou, em meio ao bombardeio do Palácio La Moneda por aviões de caça da Força Aérea chilena. A eleição foi de virada: no primeiro turno, Boric havia ficado em segundo lugar.
A nova situação chilena parece retomar o fio da história interrompido com o golpe de 1973, quando Allende representava o sonho de um socialismo democrático. É como se a história tivesse sido “descongelada” após quase 50 anos. Embora o atual presidente Sebastian Piñera e a socialista Michelle Bachelet tenham protagonizado as disputas políticas direita x esquerda dos últimos 16 anos, ambos são políticos moderados, governaram em aliança com os liberais. Boric se apresentou no primeiro turno como uma candidatura de viés muito esquerdista. Entretanto, moderou o discurso no segundo e se aproximou dos socialistas, liberais e democrata-cristãos para derrotar a extrema-direita.
Gosto da expressão “descongelar” por causa de uma entrevista do filósofo alemão Jürgen Habermas, logo após a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, que marcaram o colapso do chamado “socialismo real” europeu. Habermas comparou a Europa do fim da Guerra Fria a uma fotografia — como aquela de Roosevelt, Stálin e Churchill, em fevereiro de 1945, na Crimeia —, que foi “descongelada” e virou um filme de longa metragem, como se a história anterior à guerra fosse retomada de onde foi interrompida.
“Ninguém me convence de que o socialismo de estado seja, do ponto de vista da evolução social, ‘mais avançado’ ou ‘mais progressista’ do que o capitalismo tardio. (…) São senão variantes de uma mesma formação societária. (…) Temos tanto no leste como no oeste modernas sociedades de classe, diferenciadas em Estado e economia”, disse Habermas à época (Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1989). A história das nações europeias anterior à II Guerra Mundial, de fato, fora “descongelada”, despertando velhos conflitos econômicos e de fronteiras, além de forças políticas muito reacionárias que estavam adormecidas no Leste Europeu, desde a ocupação soviética, principalmente na Hungria, na Ucrânia, na Polônia e na Romênia.
No primeiro turno, Boric foi um duro crítico da democracia chilena pós-Pinochet, que governou com as baionetas de 1973 a 1990. Segundo o novo presidente chileno, a continuidade do modelo liberal deixou as classes média e baixa endividadas, sem condições de arcar com os custos da educação, da saúde e da previdência privada. Sua proposta é um Estado de bem-estar social ao estilo da social-democracia nórdica: Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia. A nova Constituição em elaboração, de certa forma, cria condições para ultrapassagem do modelo econômico neoliberal de Pinochet herdado pelos governos democráticos. Em contrapartida, no primeiro ano de governo, a inflação fora de controle complica muito a execução do projeto de Boric, que também precisa formar uma nova maioria no Congresso.
Polarização política
Em tempos geopolíticos, a vitória de Boric consolida uma guinada à esquerda no Cone Sul, que já havia sido iniciada com a eleição do justicialista Alberto Fernández na Argentina, hoje o mais importante aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na região. Também aprofunda o isolamento político do presidente Jair Bolsonaro, crescente desde a eleição do atual presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden. Pode virar uma espécie de El Niño político , o fenômeno atmosférico oceânico que aquece as águas superficiais do Pacífico tropical e provoca alterações climáticas na América do Sul, sobretudo no Brasil, e outras regiões do mundo, com mudanças no regime de ventos e de chuvas.
O principal beneficiado da eleição de Boric é o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, favorito absoluto em todas as pesquisas de opinião, que pode até vencer as eleições no primeiro turno. Em termos econômicos, Lula ainda é uma esfinge. Candidato à reeleição, Bolsonaro tem altos índices de rejeição, desmantelou as políticas sociais do governo, perdeu o controle da economia, mas ainda não se sente derrotado estrategicamente. Aposta as fichas na força bruta do próprio governo, como forma mais concentrada de poder, e no Auxílio Brasil, o novo programa de transferência de rendas para 14,5 milhões de famílias, no valor de R$ 400 mensais; mantém coesa a sua base de apoio de extrema-direita e evangélica e aposta na polarização política, para se beneficiar do antipetismo da classe média e do conservadorismo popular. Mas disso vamos tratar na próxima coluna.