meio ambiente

Alvaro Costa e Silva: O pós-turismo de Bolsonaro na 'Cancún brasileira'

Depois da destruição do Pantanal e da Amazônia, governo volta-se para o litoral de Angra dos Reis

Só comunistas, antipatriotas e maconheiros não admitem: em seu projeto de destruição ambiental, o governo é um sucesso. Bem encaminhados os desastres pantaneiro e amazônico, a sanha volta-se agora para o litoral de Angra dos Reis.

A repórter Ana Luiza Albuquerque revelou que Bolsonaro está de olho na ilha do Sandri, a maior entre as 29 que integram a Estação Ecológica de Tamoios, criada em 1990 como contrapartida à instalação de usinas nucleares na região e em cuja extensão é proibido ancorar barcos, desembarcar e fazer edificações.

A investida —que conta com a subserviência do prefeito Fernando Jordão (MDB)— é parte do plano para transformar Angra dos Reis na "Cancún brasileira". É um velho sonho do presidente: entupir a faixa litorânea de enormes hotéis e resorts com piscinas interligadas e réplicas do Hard Rock Cafe. A sensação do turista, com a cabeça entorpecida pelo reggaeton, é que está não no México, mas nos Estados Unidos. Dá até pena do lindo mar azul do Caribe.

Mas antes fosse só um sonho de jeca. Para variar, Bolsonaro está trabalhando para si mesmo: ele tem uma casa na pequena vila de Mambucaba, perto do centro de Angra. E, rancoroso, não esquece que, em 2012, foi multado por pesca ilegal nas águas da estação ecológica.

Sobre o maior problema de Angra dos Reis, a guerra entre traficantes e milicianos, o presidente não tem planos nem dá um pio. A Cancún à brasileira vai inaugurar o pós-turismo, com direito a tiroteios, sequestros relâmpagos e emboscadas.

Com o vice-líder do governo no Senado —Chico Rodrigues (DEM), velho companheiro de Bolsonaro nos tempos de baixo clero— flagrado com dinheiro escondido nas nádegas, o Brasil chegou à fase anal da corrupção. É uma criança. Gordinha, do tipo que aparece nas propagandas de fraldas e que tem tudo para virar um rapagão.

*Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".


Bolívar Lamounier: Nossa infindável fragilidade

A chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota

A pandemia e a certeza de que tão cedo não teremos um ajuste fiscal seguro trouxeram de volta a preocupação com a fala de “resiliência” do sistema político brasileiro. Esse termo significa que nosso Estado cambaleia toda vez que se depara com situações muito negativas.

Triste é constatar que essa joia do jargão politológico não diz nem metade do que precisa ser dito. A fragilidade da organização política brasileira não é ocasional. Não se manifesta somente quando batemos de frente com algum obstáculo poderoso. Trata-se de uma fragilidade mal compreendida, abissal, que deriva de várias causas e produz efeitos crudelíssimos sobre as parcelas mais vulneráveis da sociedade. Seu aspecto mais perceptível é o que Ricardo Noblat certa vez denominou “o céu dos favoritos”. A fauna brasiliense compõe-se de numerosas espécies que diferem em quase tudo, menos no apetite. E na volúpia. Habitam os três Poderes e se valem deles para se apropriarem de cifras estratosféricas, sob a forma de salários, de ajudas de custo, das cotas ministeriais que alimentam o famigerado “presidencialismo de coalizão” e de assessores-de-coisa-alguma, sem esquecer as proverbiais “rachadinhas”. Com as exceções de praxe, claro.

Nesse quadro, o termo “resiliência”, com sua conotação de excepcionalidade ou intermitência, soa doce como o trinado de uma ave da nossa fauna. O buraco é muito mais embaixo, e há um ponto sobre o qual não temos o direito de nos enganar: a chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota. Faz 35 anos que estamos discutindo reformas e o saldo é pífio. A rigor, não dispomos sequer de um diagnóstico, ou seja, de uma visão consistente, objetiva e abrangente do Estado e de suas relações com a sociedade. O problema, como vinha dizendo, não é a baixa “resiliência” de nossa estrutura institucional; é sua incapacidade de extirpar de si a infinidade de privilégios obscenos que se entrincheiraram em seus desvãos, para depois, com a ajuda de Deus, estabelecermos um sistema capaz de impulsionar o crescimento da economia, reduzir as desigualdades sociais e revolucionar o sistema de ensino.

Peço permissão aos leitores para repetir um argumento que venho martelando há várias semanas. Sem um sistema político verdadeiramente propulsor estaremos condenados à chamada “armadilha do baixo crescimento”. Com nossa renda per capita crescendo no máximo 2% ao ano, levaremos décadas para progredir. Nem temos como falar em progresso, pois, nesse horizonte, é de retrocesso que se trata, e deixo a critério de cada um imaginar o que isso significa.

Farei a seguir referência a três aspectos de nosso sistema político, os três com uma longa história e com tendência a piorar. O primeiro é nossa infantil fixação no “Executivo forte”, quero dizer, naquele anseio por um salvador, civil ou militar, que venha nos tirar do buraco. Aquele demiurgo capaz de fixar com sabedoria as prioridades nacionais e de assegurar unidade, estabilidade e eficiência à máquina de Estado que as irá executar.

Para ilustrar esse ponto o caminho mais curto é relembrar o ciclo de governos militares, 1964-1985. Durante aqueles 21 anos tivemos complicações sucessórias em todos os períodos presidenciais. Em todos, sem exceção. O próprio marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do ciclo, comandante inconteste do golpe de 1964, viu-se encantoado pelo general Arthur da Costa e Silva, que lhe impôs sua própria candidatura. O resto da história é bem conhecido.

Os representantes civis do pós-1985 não demonstraram muito mais tirocínio. No tocante ao tamanho do Congresso Nacional, por exemplo, os constituintes de 1987-1988 conseguiram piorar bastante o que começáramos a construir antes de 1964. Estabeleceu o mínimo de oito deputados por Estado e aumentou de dois para três o número de senadores. Ao mesmo tempo, conferiu status de Estado aos quatro territórios do extremo Norte, criando um Congresso mastodôntico.

Obviamente, não estou afirmando que a sociedade brasileira ficaria bem representada por cem ou duzentos parlamentares, mas o número a que se chegou – 513 deputados e 81 senadores – é um atroz disparate. Basta lembrar que o governo dos Estados Unidos, com uma população um terço maior que a nossa, mantém desde priscas eras uma Câmara de Representantes com 435 deputados e uma Câmara Alta com 100 senadores.

A premissa é a de que o poder da instituição e o poder individual de cada representante crescem indefinidamente com o aumento do total de representantes. No Paper Federalista número 55, um dos documentos que precederam a ratificação da Constituição norte-americana, James Madison foi direto ao ponto: “Mesmo se cada cidadão ateniense fosse um Sócrates, com milhares de membros a assembleia da cidade seria uma balbúrdia”.

Para organizar o tumulto contamos atualmente 26 deputados federais, nenhum deles chegando à marca de 20% das cadeiras. Ora, convenhamos que ter 26 partidos fracos e não ter nenhum é mais ou menos a mesma coisa.

*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Política Democrática Online mostra falta de transparência no combate à corrupção

Destruição do Pantanal e estratégias de discurso de Bolsonaro também são analisadas na edição de outubro da publicação da FAP

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Brasil menos transparente no combate à corrupção, Pantanal destruído em meio ao desmonte de políticas ambientais no governo Bolsonaro, a retórica do ódio nas pregações do guru do Bolsonarismo e politização do combate à pandemia frente a perspectivas filosóficas dos governantes brasileiros. Esses são os principais destaques da revista Política Democrática Online de outubro, lançada nesta sexta-feira (16).

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!

A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza acessos gratuito a todos os conteúdos da revista em seu site. No editorial, a revista Política Democrática Online chama atenção para a urgente necessidade de “retomar o processo de convergência em torno de objetivos comuns: a defesa da democracia e a construção de uma plataforma mínima de reconstrução nacional”.

“Está em curso a consolidação da aliança entre o presidente da República e o bloco de deputados e senadores que responde pelo nome de ‘centrão’”, observa o texto. “Repudiada, no primeiro momento, pelos núcleos duros do bolsonarismo como capitulação frente à velha política, a aliança já rende frutos significativos ao governo e promete colheita ainda maior de resultados no futuro”, critica.

Em entrevista exclusiva para a nova edição da revista, o economista Gil Castello Branco, fundador e atual diretor executivo da Associação Contas Abertas, diz que o Brasil está menos transparente. A entidade fomenta a transparência, o acesso à informação e o controle social no país. Ele alerta que o país pode perder cerca de R$ 18 bilhões de recursos federais usados no combate à pandemia por conta da corrupção.

A reportagem especial, por sua vez, analisa como a destruição do Pantanal confirma retrocessos da política ambiental no governo Bolsonaro, o que, de acordo com o texto, é refletido também na declaração do próprio presidente e de seus ministros em defesa do “boi-bombeiro”. “A versão do governo não sinaliza, positivamente, para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país”, afirma um trecho.

'Ética do diálogo'

Ao analisar a retórica do ódio e bolsonarismo, o professor titular de Literatura Comparada da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e ensaísta João Cezar de Castro Rocha aponta para a necessidade de se abraçar “a ética do diálogo, na qual o outro é sempre um outro eu, cuja diferença enriquece minha perspectiva porque amplia meus horizontes”. Segundo ele, esse é o primeiro passo para a superação da problemática.

A política nacional na pandemia é analisada pelo professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio. Segundo ele, Bolsonaro notabilizou-se, dentro e fora do país, porque politizou a pandemia da forma mais equivocada possível. “Desdenhou de suas consequências e principalmente dos mortos; recusou-se a colaborar com governadores e prefeitos no combate à pandemia, alegando falsamente suposta obstrução do STF [Supremo Tribunal Federal]”, exemplificou.

Aggio também avalia que Bolsonaro impediu a comunicação e a transparência a respeito do avanço e do combate à pandemia. “E, por fim, buscou, a todo custo, ‘abater’ politicamente seus supostos concorrentes às futuríssimas eleições presidências de 2022. Assim se comportou com dirigentes democraticamente eleitos e com ministros que ele próprio convocou como seus auxiliares”, lamenta.

Além desses assuntos, a revista Política Democrática Online também tem conteúdos sobre economia e cultura. A publicação é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado e tem o conselho editorial formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Leia também:

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


RPD || Reportagem especial: Destruição do Pantanal confirma desmonte de política ambiental no governo Bolsonaro

Discurso de ministros sobre boi bombeiro não sinaliza para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país

Cleomar Almeida

Quase quatro milhões de hectares já foram destruídos por incêndios no Pantanal, a maior planície alagada do mundo, com 65% de seu território concentrados nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Além de deixar a vegetação em cinzas e o céu do país tomado por fumaça e fuligem, as queimadas são consideradas a maior da história pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o que, para especialistas, refletem o desmonte das políticas ambientais em menos de dois anos do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

A dimensão exata da destruição da fauna e flora ainda é incerta diante da imensidão das queimadas que aumentam a área devastada a cada dia. A Polícia Federal suspeita que fazendeiros provocaram os incêndios criminosos para transformar a área em pasto, seguindo uma linha do próprio governo federal. Em audiência no Senado, no dia 9 deste mês, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, disse que o boi é o “bombeiro do Pantanal” e, segunda ela, as queimadas e o “desastre” na região poderiam ter sido menores se houvesse mais gado no bioma.

Tereza Cristina: “O boi é o bombeiro do Pantanal". Foto: Walter Campanato/Agência Brasil

“O boi é o bombeiro do Pantanal, porque é ele que come aquela massa do capim, seja ele o capim nativo ou o capim plantado, que foi feita a troca. É ele que come essa massa para não deixar como este ano nós tivemos. Com a seca, a água do subsolo também baixou os níveis. Essa massa virou um material altamente combustível", afirmou Tereza Cristina. Seu discurso foi criticado por especialistas e segue na linha do que já havia sido defendido pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e por Bolsonaro.

A versão do governo não sinaliza, positivamente, para qualquer medida eficaz de preservação do meio ambiente no país. No Pantanal, animais foram carbonizados ou severamente feridos pelas chamas, que também jogaram inúmeras árvores chão abaixo e destruíram quase todo o Parque Estadual Encontro das Águas, refúgio de onças pintadas no Mato Grosso, e o famoso Ninho do Tuiuiú. Organizações não-governamentais (ONGs) e voluntários atuam para socorrer animais, enquanto brigadistas, bombeiros e integrantes da Marinha tentam combater os incêndios.

Até o dia 3 de outubro, 2.160.000 hectares já haviam sido destruídos no Pantanal mato-grossense e outros 1.817.000 hectares em Mato Grosso do Sul. O total de área devastada entre os dois estados é de 3.977.000 hectares, o que representa 26% de todo o Pantanal. Os dados são do levantamento mais recente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) Prevfogo e do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), divulgado no dia 6 deste mês, antes do fechamento desta edição. Toda essa área devastada equivale a quase 20 vezes o tamanho das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro juntas.

O Pantanal arde em chamas desde julho e, em menos de três meses, o Inpe identificou cerca de 16 mil focos de calor no bioma. É o maior número desde 2015, quando foram contabilizados 12.536 focos de calor. A região enfrenta a maior seca em 60 anos, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemadene), e a longa estiagem faz os incêndios avançarem ainda mais. A falta de chuvas ajuda na propagação do fogo subterrâneo, o que, segundo o instituto, só poderiam ser controlados efetivamente por chuvas constantes.

Incêndio de grandes proporções atinge área do Pantanal. Foto: Mayke Toscano/Secom-MT

Com a estiagem, a navegabilidade também fica ainda mais prejudicada na região, que carece de estradas. Para ter uma ideia, o nível do Rio Paraguai já atingiu o marco zero em régua de porto em Mato Grosso do Sul, onde o governo federal decretou estado de emergência, assim como em Mato Grosso. No entanto, de acordo com o Observatório do Clima, o Ministério do Meio Ambiente não gastou nem 1% da verba de preservação.

Dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) mostram, ainda, que o Pantanal sofreu redução de 50% nos registros de chuva em relação à média histórica. De acordo com o órgão, um dos principais indicadores da forte estiagem é o Rio Paraguai, que, segundo levantamento oficial, também atingiu o nível mais baixo desde os anos 1960. Além disso, técnicos reforçam a suspeita de que a propagação dos incêndios pode ter relação com o uso do fogo para fins agropecuários, utilizando-o para limpeza ou renovação da pastagem do gado.

Os efeitos devastadores dos incêndios no Pantanal têm consequências em todo o país, que vem registrando aumento das temperaturas e baixa umidade do ar nos 26 Estados e no Distrito Federal. Em algumas regiões, como no Rio Grande do Sul, já houve chuva preta, consequência da grande quantidade de fumaça das queimadas na atmosfera.

A organização não-governamental Greenpeace, que atua em defesa do meio ambiente, lamentou a destruição do Pantanal e informou, em nota, que o argumento da ministra da Agricultura sobre boi bombeiro foi “equivocado”. Disse, ainda, que o governo promoveu um desmonte na gestão ambiental, o que, conforme acrescentou, provocou as queimadas descontroladas no bioma.

“Diante de um cenário já previsto de seca severa, com focos de calor muito superiores à média desde março de 2019, não foram tomadas medidas efetivas de combate e prevenção aos incêndios, necessárias desde o primeiro semestre. Se não tivesse ocorrido um desmonte da gestão ambiental no Brasil, a situação não teria chegado a este nível de gravidade”, afirmou o Greenpeace na nota. A Presidência da República e os Ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente não se pronunciaram.


Presidente recebeu críticas por conta do "boi-bombeiro". Foto: Alan Santos/PR

Comissão quer bioma no Conselho Nacional da Amazônia Legal

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) começou a ser pressionado para responder a um requerimento da comissão que acompanha ações contra as queimadas no Pantanal sobre a inclusão do bioma no Conselho Nacional da Amazônia Legal pelos próximos cinco anos. Assim como ele, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foram criticados por especialistas por deferem “mito do boi-bombeiro”.

Em relação ao requerimento da comissão, o colegiado quer que o governo federal assuma sua responsabilidade e garanta uma estrutura de enfrentamento a futuras queimadas no Pantanal. A medida inclui mais recursos financeiros e estrutura logística, com aparato de combate a incêndios, como helicópteros e apoio da Força Nacional e da Defesa Civil.

A ação da comissão também poderá fazer o governo repensar sua defesa sobre o “boi bombeiro” no pantanal, que, segundo ambientalistas, é um mito. Bolsonaro e seus ministros endossam uma tese do agrônomo e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Evaristo de Miranda, que é chefe da Embrapa Territorial. Em entrevista à imprensa, Miranda culpou o declínio da pecuária no Pantanal e a criação de reservas ambientais na região pelo fogo.

“Quando a pecuária declina, por razões econômicas, de competitividade, quando se retira o boi, como se retirou de grandes reservas que se criaram na região, reservas ecológicas, a RPPN [Reserva Particular do Patrimônio Natural] do Sesc Pantanal, o que acontece nesses lugares, tirando o gado e cercando? O capim cresce muito e acumula muita massa vegetal. Na hora em que pega fogo, é um fogo muito intenso”, disse ele.

Bombeiros no combate aos incêndios no Pantanal. Foto: Christiano Antonucci/Secom – MT

Pesquisadores ouvidos pela BBC Brasil afirmaram que o gado criado solto ajuda, de fato, a reduzir a quantidade de matéria prima disponível para queima, mas, segundo eles, não é a redução na pecuária que explica os incêndios deste ano. Essa falta de correlação também é apontada em dados da Pesquisa Pecuária Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre os rebanhos bovinos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul nas últimas décadas e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Além disso, o rebanho bovino no Pantanal tem aumentado nos últimos anos, ao invés de diminuir. De 1999 a 2019, segundo levantamento do projeto Mapbiomas, a cobertura de vegetação nativa no Pantanal caiu 7%, reduzindo de 13,1 milhões de hectares, para 12,2 milhões de hectares. “Já a área de pastagem exótica cresceu 64% sobre áreas naturais, passando de 1,4 milhões de hectares, para 2,3 milhões de hectares. Nesse mesmo período, o rebanho de bovinos no Pantanal aumentou 38%, de 6,9 milhões para 9,58 milhões de cabeças”, afirmou o coordenador de inteligência territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), Vinícius Silgueiro, à BBC Brasil.


Foto: Christiano Antonucci / Secom – MT

Cinzas de animais deixa fauna enlutada

Animais mortos pelos incêndios no Pantanal têm suas amostras coletadas por força-tarefa que busca levantar o impacto das labaredas na fauna. Animais menores, como pequenos mamíferos e serpentes, foram carbonizados facilmente em razão de terem deslocamento curto e lento. Também já foram encontradas cinzas de jacarés, onças e antas.

O Pantanal tem cerca de 2 mil espécies de plantas, 580 de aves, 280 de peixes, 174 de mamíferos, 131 de répteis e 57 de anfíbios. O número de invertebrados é desconhecido. O bioma também é refúgio para espécies ameaçadas de extinção que vivem em outras regiões. Considerando levantamentos anteriores, o projeto Bichos do Pantanal estima que entre 30% e 35% das espécies de flora e cerca de 20% de mamíferos foram atingidos pelos atuais incêndios.

Os animais de maior porte têm maior chance de fugir. Se não forem cercados pelas chamas ou queimados nas patas pelo fogo que arde por baixo da vegetação, conseguem ir para áreas úmidas ou próximas aos rios. No entanto, em áreas em que há pouca água, praticamente nenhuma espécie consegue escapar.

Além de ter representantes do projeto Bichos do Pantanal, a força-tarefa conta com apoio da ONG Panthera, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e do Instituto Nacional de Pesquisa do Pantanal (INPP).

Também participam dos trabalhos profissionais do Instituto Homem Pantaneiro, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), entre outras instituições. A unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) do Pantanal tem atuado na elaboração dos protocolos e na análise dos dados coletados.


Valor: Salles “joga contra” ambiente, diz Jungmann

Para ex-ministro da Defesa, proposta de Joe Biden para Amazônia é “colonialista”

Por Rafael Rosas e Daniela Chiaretti, Valor Econômico

RIO E SÃO PAULO - A saída do ministro Ricardo Salles da pasta do Meio Ambiente é fundamental para que o Brasil seja “levado a sério” na área ambiental. A afirmação foi feita ontem pelo ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública Raul Jungmann durante sua participação na Live do Valor.

“Ele joga contra o projeto de desenvolvimento sustentável”, disse Jungmann, acrescentando que Salles também “joga contra” o que o ex-ministro do governo Michal Temer acredita ser o pensamento do segmento militar e daqueles “que querem o desenvolvimento sustentável da Amazônia”. “Ricardo Salles efetivamente não nos credencia externamente e internamente como tendo um projeto sério de desenvolvimento e defesa do meio ambiente do Brasil”, frisou Jungmann, que considerou ainda uma “estupidez” a decisão de derrubar os acordos fechados no âmbito do Fundo Amazônia.

Durante os mais de 40 minutos de conversa, Jungmann procurou demonstrar a necessidade de diálogo e entendimento entre diferentes setores nas questões relativas à defesa da soberania brasileira e na preservação do meio ambiente. Nesse sentido, fez uma dura crítica à postura do candidato do Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden, que em debate com Donald Trump propôs uma ajuda de US$ 20 bilhões para preservação da Amazônia e ameaçou o Brasil de sanções caso o desmatamento continue a avançar. Para Jungmann, a postura de Biden “é cheia de boas intenções, mas é colonialista”.

“Ajuda à Amazônia tem que ser de acordo com nossos objetivos e com a nossa soberania”, ressaltou.

O ex-ministro demonstrou de que maneira o conceito da defesa da soberania acabou virando um sinônimo de luta exclusiva da ala militar da sociedade. Para Jungmann, a omissão da elite política civil em debater a questão acabou transformando os militares praticamente no único segmento organizado da sociedade a discutir o tema. Ele afirma que os integrantes das Forças Armadas são defensores da preservação ambiental e que o principal problema na região amazônica hoje passa pela falta de projeto nacional para o desenvolvimento sustentável e pela falta de diálogo entre militares, ambientalistas e outros atores da sociedade.

“Se a elite política civil não leva em conta os militares, também não será levada em conta [pelos militares]. Não cabe exclusivamente aos militares esse papel [de pensar a defesa do país e da Amazônia], que cabe à liderança política, que tem que estar à frente do processo, e não está”, disse.

Para o ex-ministro, o distanciamento entre militares e sociedade civil é um erro, uma vez que “o mundo militar é uma ferramenta da nossa soberania”, que não deve ser usada como o “bombril da República” sempre que há uma questão em que o governo precisa agir e acaba utilizando as Forças Armadas fora do seu escopo original.

Jungmann lembrou os temores dos militares com a existência de áreas indígenas e regiões de preservação próximas às fronteiras, o que, na visão deles, abre uma possibilidade futura de ameaça à soberania. “Esse é o entendimento militar”, frisou. “Preocupação que tem que ser reconhecida e tem que gerar diálogo”, acrescentou.

Jungmann fez questão de frisar que as organizações não governamentais “são importantíssimas” na Amazônia, embora haja o estereótipo de que elas não querem desenvolvimento da Amazônia. “A saída é dialogar e chegar a um consenso”, frisou. “Mas onde está o Estado?”, questionou, ressaltando que há a necessidade de convergir a preocupação de soberania dos militares com a preservação defendida por ambientalistas. “Enquanto não se construir isso e transformar isso em atividades sustentáveis, vamos estar queimando árvores. E isso é queimar dinheiro”, frisou.


Míriam Leitão: O compadrismo e os outros erros

O Brasil está em emergência ambiental. Não são focos em alguns biomas, é o país em chamas. A seca é uma das causas, mas o principal fator são os erros do ministro do Meio Ambiente. Ricardo Salles é um desmatador de aluguel. O mandante é o presidente da República. O vice-presidente, Hamilton Mourão, não nos deixa esquecer o lado perverso dos militares que voltaram ao poder com Jair Bolsonaro e repete a defesa do mais notório torturador brasileiro. O episódio da indicação de Kassio Nunes exibiu novos flagrantes da inaceitável promiscuidade do poder em Brasília.

Quem se afasta um pouco dos acontecimentos consegue ver com mais acuidade o quanto a democracia brasileira está disfuncional. Os que têm posição de poder no Brasil afrontam os princípios que deveriam seguir pela posição que ocupam.

Ministro do Meio Ambiente tem que respeitar o motivo pelo qual o Ministério foi criado. Não foi para desproteger manguezais e restingas, não foi para ameaçar a biodiversidade. E é o que Salles faz de forma acintosa. E ainda ofende quem se mobiliza para corrigir os estragos que ele espalha pela natureza, como o produto químico que mandou jogar na Chapada dos Veadeiros. Salles segue uma agenda. A da destruição ambiental. Ele deliberadamente retirou a representatividade do Conama. Agora o conselho, passivo, referenda seus desatinos.

Salles não é um problema isolado, uma peça que, se sair, ficará tudo resolvido. Deve ser demitido porque é pessoalmente deletério, mas é bom sempre ter em mente que esse é o projeto. Ele é defendido pelos generais que estão no governo, pelo presidente que o nomeou e é acobertado pelo silêncio dos outros ministros.

A entrevista concedida pelo vice-presidente Hamilton Mourão a Tim Sebastian da Deutsche Welle não surpreende quem acompanhou suas declarações durante a campanha. Numa entrevista conduzida por mim na Globonews, em 2018, lembrei ao então candidato que Carlos Alberto Brilhante Ustra era comandante do Doi-Codi quando mais de 40 pessoas morreram sob tortura. Quis saber se mesmo assim ele o considerava herói. E ele respondeu: “Heróis matam”. O papel do jornalista em entrevistas como essa é o de permitir que se revele o caráter do candidato. Isso ficou claro naquela entrevista. Agora ele confirma. O presidente e o vice-presidente do Brasil definem como herói quem, acusado por várias vítimas, foi condenado pelo comportamento repugnante de submeter adversários políticos a sofrimento extremo, levando alguns à morte, quando eles estavam presos e sob a custódia do Estado. Mourão disse ao jornalista alemão que quando todas as pessoas envolvidas “desaparecerem” poderá ser feita a análise desse caso. E ainda afirmou que Ustra respeitava os direitos humanos “dos seus subordinados”.

Bolsonaro sempre fez apologia da tortura e dos atos mais violentos da ditadura, mas ele ficou apenas 11 anos no Exército, saiu como oficial de baixa patente e pela porta dos fundos. Mourão cumpriu toda a carreira no Exército e saiu com quatro estrelas. Ainda assim — e mesmo agora — defende um notório torturador e acha que isso só poderá ser analisado quando “desaparecerem” todos os que querem “colocar as coisas como eles viram”. Os torturados não apenas viram, sentiram as dores da tortura em prédios das Forças Armadas. Muitos nada podem contar porque foram mortos. Se o Exército não é capaz de reavaliar esses atos hediondos, quase 50 anos depois de cometidos, infelizmente, os está legitimando.

Há agora erros novos acontecendo diante de nós. A escolha de Kassio Nunes não foi apenas pelo currículo — que aliás já mostrou inconsistências — mas porque tomou tubaína com o presidente, segundo exposição de motivos apresentada pelo próprio Bolsonaro. O encontro na casa de Dias Toffoli mostrou diversos inconvenientes. Aquele abraço entre ele e Bolsonaro mostra que Toffoli não entendeu até hoje o principal sobre o cargo que ocupa. Bolsonaro é investigado pelo Supremo, Toffoli tomou decisão que beneficiou o filho do presidente, o mesmo filho que sugeriu o nome do desembargador. O Senado vai avaliar a indicação, por isso o presidente do Senado não poderia estar ali. O encontro mostrou que todos os envolvidos não sabem a diferença entre o bom relacionamento institucional e o compadrismo.


Cristina Serra: A fraude do boi bombeiro

A ministra da Agricultura tenta dar algum verniz de credibilidade às barbaridades ditas por seu colega do Meio Ambiente

Discreta e cordial no trato, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tenta dar algum verniz de credibilidade às mesmas barbaridades ditas por seu colega do Meio Ambiente, o desclassificado Ricardo Salles. Ambos são sócios na novilíngua bolsonarista que criou um tal de “boi bombeiro”.

Isso é conversa para boi dormir. Em português cristalino, é mentira que o fogo no Pantanal se deva à falta de boi para comer o mato seco. O rebanho na região aumentou nos últimos 20 anos. A verdade é que o governo não tomou medidas de prevenção adequadas, não deu importância aos alertas da ciência sobre secas mais intensas e a polícia investiga a origem das queimadas em grandes fazendas. É preciso dar nome aos bois.

Quando deputada e presidente da frente parlamentar da agropecuária —conhecida como bancada do boi—, a ministra se notabilizou pela pauta anti-indígena, no que faz jus ao DNA familiar. Conforme reportagem do site “De olho nos ruralistas”, a história de seus antepassados se confunde com o poder em Mato Grosso desde o fim do século 19 (o estado foi dividido em dois em 1977 e ela fez carreira política em Mato Grosso do Sul).

O avô da ministra, Fernando Correa da Costa, quando governador, fez o que pôde para evitar a demarcação do Parque Indígena do Xingu, proposto pelos irmãos Villas Boas.

No governo, a ministra tem executado a pauta do setor mais atrasado do agronegócio. Ela chama agrotóxicos —liberados em quantidade recorde sob Bolsonaro— de “remédio de planta”. Recentemente, investiu contra o Guia Alimentar para a população brasileira, válido desde 2014, que desencoraja o consumo de produtos ultraprocessados.

O documento foi elaborado pelo Ministério da Saúde com base em estudos científicos que a ministra tenta desqualificar. Como diz o ditado popular, boi sonso é que derruba a cerca. E onde passa boi, passa “boiada”.


Luiz Carlos Azedo: O peso da imprudência

Falta-nos um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades

Num de seus ensaios sobre a França no século XX — O peso da responsabilidade (Objetiva) —, o historiador britânico Tony Judt, falecido em 2010, aos 62 anos, analisa a vida pública francesa entre a Primeira Guerra Mundial e os anos 1970. Como se sabe, o primeiro grande Estado-nação da Europa influenciou toda a história moderna do Ocidente, em razão da Revolução Francesa e da Comuna de Paris. Por essa razão, Judt não esconde seu espanto com “a incompetência, a ‘insoucience’ indiferença e a negligência injuriosa dos homens que governavam o país e representavam seus cidadãos” nesse período, e dedica o livro a Léo Brum, Albert Camus e Raymond Aron, intelectuais franceses que nadaram contra a maré e confrontaram seus pares.

Segundo Judt, o problema da França era mais cultural do que político. Os deputados e senadores de todos os partidos, presidentes, primeiros-ministros, generais, funcionários públicos, prefeitos e dirigentes de partidos “exibiam uma assombrosa falta de entendimento de sua época e do seu lugar”. Para um país que no começo do século teve grandes líderes políticos, como o socialista Jean Jaurès, que tentou evitar a I Guerra Mundial e morreu assassinado num comício pela paz, e George Clemenceau, primeiro-ministro durante a guerra e um dos artífices do Tratado de Versalhes, chama atenção a petrificação das suas instituições políticas no período. Traumatizada pelo sangrento desastre que foi o conflito mundial, a França foi polarizada pela radicalização ideológica que antagonizava comunistas e socialistas, de um lado, liberais e fascistas, de outro, em toda a Europa, e imobilizava o país.

Dividida entre um anseio pela prosperidade, equivocadamente inspirada no passado, e pela estabilidade dos anos anteriores à guerra, de um lado, e as promessas de reforma e renovação a serem pagas com recursos financeiros da punição à Alemanha, de outro, a elite francesa não tinha a menor chance de acertar. Qualquer tentativa de mudança em favor de melhores condições de vida para os franceses era barrada por uma política polarizada entre esquerda e direita, toda reforma institucional ou econômica era tratada como um jogo de soma zero. O desfecho foi a ocupação alemã, período ainda mais traumático, do qual a França foi salva pela vitória dos aliados, sem embargo da heroica resistência dos maquis.

A crítica de Judt é duríssima: “Que a França tenha sido salva de seus líderes políticos, de um modo como não podia ser salvar década antes, se deu graças a grandes mudanças no pós-guerra nas relações internacionais. Membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), beneficiária do Plano Marshall e cada vez mais integrada à nascente comunidade europeia, a França não dependia de seus próprios recursos e decisões para ter segurança e prosperidade, e a incompetência e os erros de seus governantes lhe custaram muito menos do que ocorrera em anos anteriores”.

Um paralelo

A tradução literal de “insoucience” é imprudência. Essa é a palavra-chave do paralelo entre esse período da história francesa e a política brasileira atual. Talvez a maior imprudência visível seja a atual política ambiental, que está fadada ao desastre absoluto, porque assentada em base políticas e ideológicas com 50 anos de atraso, ou seja, que remontam à estratégia de ocupação e exploração econômica da Amazônia do regime militar. Suas consequências de curto prazo — perda de investimentos, dificuldades de comercialização de produtos e isolamento internacional —, apontam para um desastre muito maior, porque o mundo passa por uma mudança de padrão energético que está nos deixando muito para trás, como aconteceu na Segunda Revolução Industrial, à qual só viemos a nos incorporar na década de 1950.

A questão ambiental é apenas a ponta do iceberg: falta-nos um projeto capaz de construir consensos políticos majoritários e resgatar nossa coesão social, para uma grande reforma democrática do Estado e a redução das desigualdades, no espaço de uma ou duas gerações. Ninguém tem uma fórmula pronta e acabada para isso. A única certeza é que os velhos paradigmas, que alimentam a polarização ideológica atual, não são capazes de dar as respostas adequadas aos problemas brasileiros. O pior é que o velho nacional desenvolvimentismo e os populismos de direita e de esquerda rondam as instituições políticas, sem que nenhuma dessas vertentes tenha a menor capacidade de dar respostas adequadas às contradições atuais.

A Revolução Francesa inspirou nossas instituições políticas, assim como a Revolução Americana, matriz das nossas ideias federativas. Tanto a França como os Estados Unidos, porém, vivem novos dilemas, com a revolução tecnológica e a globalização, em que perdem protagonismo econômico e político, a primeira para Alemanha, os segundos para a China. Esses quatro países protagonizam as linhas de força do desenvolvimento mundial, no qual precisamos nos inserir de maneira mais proativa. Nenhum deles, porém, nos serve de modelo de desenvolvimento.

Os Estados Unidos não nos darão de bandeja um Plano Marshall, o Mercosul está cada vez mais na contramão da União Europeia e não nos interessa a militarização do Atlântico Sul. Precisamos traçar o nosso próprio rumo. Nossos gargalos econômicos e sociais têm raízes ibéricas (patrimonialismo, compadrio, clientelismo) e escravocratas (a exclusão social e o racismo estrutural). O xis da questão é produzir uma nova síntese sobre a realidade brasileira e, politicamente, desatar os nós institucionais que impedem o nosso desenvolvimento sustentável. Nossa elite política não tem se demonstrado capaz de cumprir essa tarefa.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/o-peso-da-imprudencia/

Cristovam Buarque: Todas as florestas

Governo federal comete uma loucura irresponsável na Amazônia

Faz 20 anos, O GLOBO publicou o artigo “Um mundo para todos”. Nele, transcrevi a resposta à pergunta de um estudante durante palestra na cidade de Nova York, em setembro de 2000. O jovem perguntou: “O que pensa de internacionalizar a Amazônia?”. Antes que eu começasse a dizer “sou contra”, ele completou: “Quero opinião de humanista, não de brasileiro”.

Respondi que defenderia a internacionalização da Amazônia se antes fossem internacionalizados os museus, as armas, o petróleo, os patrimônios históricos, rios e florestas do mundo inteiro. Depois de uma longa lista do que julgava que deveria ser internacionalizado, concluí: “Quando a humanidade internacionalizar tudo isso, aceito debater a ideia de internacionalizar a Amazônia. Até lá, a Amazônia é nossa. Só nossa!”.

Graças ao artigo, a resposta foi traduzida em diversos idiomas e entrou na coletânea de “Cem discursos históricos brasileiros”, elaborada por Carlos Figueiredo. Anos depois, o fotógrafo Sebastião Salgado me disse que não gostava da última frase.

Ele estava certo. O discurso deveria concluir com uma frase adicional: “Mas, se não soubermos proteger a Amazônia, não merecemos, nem conseguiremos tê-la para sempre”.

A resposta ainda não tinha dimensão humanista, porque tratava a Amazônia como propriedade brasileira, sem perceber que ela é também patrimônio da humanidade, parte do Condomínio Terra. Tal qual os móveis de um apartamento, cujo dono não tem o direito de incendiá-los dentro de casa. O que está acontecendo com nossas florestas é a demonstração de insensatez nacional e irresponsabilidade com a Humanidade. Um patriotismo anti-humanista e suicida.

Ao negar a realidade visível da destruição de nossas florestas, o governo federal comete uma loucura irresponsável com o país e insensível com a Humanidade, levando a população mundial a tratar o Brasil como país perigoso para o futuro da vida no planeta, um país que pratica ecoterrorismo.

No lugar da mentirosa defensiva do presidente e de seu ministro do Meio Ambiente, deveríamos reconhecer nossos descuidos históricos, apresentar correções no cuidado de nossa biodiversidade e assumir posição ativa, propondo uma Conferência Internacional pela Preservação e Recuperação de Todas as Florestas do Mundo — nossas, africanas, europeias, russas, asiáticas e norte-americanas, cuidadas como propriedade do país e patrimônio da Humanidade.

Em vez de incendiários, poderíamos ser os promotores do respeito às florestas da Terra. É isso o que faríamos se ainda tivéssemos no comando do Itamaraty diplomatas do porte daqueles que articularam a Rio-92 e a Rio+20. No Ministério do Meio Ambiente, pessoas com a competência e o prestígio de José Goldemberg, Marina Silva, Carlos Minc e Izabella Teixeira.

Tudo indica que, em vez de tentar salvar o mundo, vamos continuar perdidos na incompetência e na insensibilidade, e o mundo perdendo a chance de sermos atores decisivos na proteção de todas as florestas do mundo.

*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília


Celso Ming: Acordo entre Mercosul e União Europeia está sob ataque

Nesta quarta-feira, o Parlamento Europeu rechaçou “em seu estado atual” os termos do acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul.

Não é decisão que produz efeito imediato porque, para ratificação de tratados, o Parlamento Europeu não é instância decisória da União Europeia. Mas essa votação tem enorme influência sobre o destino do acordo, que foi fechado em junho de 2019 depois de 20 anos de árduas negociações. Com essa rejeição, fica mais difícil a aprovação final pelos Parlamentos dos 27 países que integram a União Europeia e pela Comissão Europeia, formada pelos chefes de governo da área.

Nas justificativas para a decisão tomada, o argumento central é o de que os tratados não podem respaldar a desastrada política de preservação da Amazônia pelo governo Bolsonaro.

Para o governo brasileiro, trata-se de um falso motivo. A má vontade dos políticos europeus, liderada pelo presidente da França, Emmanuel Macron, é mais que tudo protecionista. Os europeus temem que a liberação do comércio entre os dois blocos produziria invasão de produtos agropecuários do Mercosul, o que colocaria em risco os negócios pouco competitivos da área, sustentados artificialmente por subsídios e reservas de mercado.

Essa análise do governo brasileiro está correta. Desde o início das negociações, houve enorme pressão do lobby da agricultura da União Europeia pelo fechamento de um acordo. A crise produzida pela pandemia e as crescentes dificuldades políticas no interior dos países mais importantes da área apenas acirraram essa oposição.

Antes de prosseguir, convém apontar alguns paradoxos. O primeiro deles é o de que os argumentos contrários ao acordo de livre comércio se voltam contra a política de Bolsonaro, cujo governo é conhecido como defensor do livre comércio.

A oposição ao acordo por políticos da União Europeia, por sua vez, não levanta nem a indignação do governo de Buenos Aires nem a contestação da área diplomática da Argentina porque, diante da grave crise cambial do país, a última coisa que o governo argentino pretende, neste momento, é a liberação do seu comércio exterior. Ainda assim, o governo Fernández poderá aproveitar a oportunidade para acusar o governo Bolsonaro de ter solapado um acordo comercial estratégico e, portanto, de ter trabalhado contra os interesses dos outros sócios do Mercosul, em consequência de sua catastrófica política ambiental.

O caráter inequivocamente protecionista prevalecente na União Europeia não justifica as graves omissões e as decisões brutais do governo brasileiro na área ambiental. O governo do Brasil não pode fugir de seus deveres na preservação da Amazônia e em todas as outras dimensões do meio ambiente interno, não só por uma questão de interesse nacional, mas também de responsabilidade perante as demais nações.

Não dá para seguir argumentando, como vêm fazendo autoridades da área do governo Bolsonaro, que europeus, americanos e asiáticos destruíram suas florestas, emporcalharam seus rios e poluíram o ar antes dos brasileiros e agora lhes cobram um preço que eles próprios não se cobraram nem pagaram em seu tempo.

Se não for capaz de manter em relação a esse assunto uma política sadia como simples consequência de convicções científicas e doutrinárias, o governo Bolsonaro terá ao menos de lutar pela preservação ambiental por mero pragmatismo. Essa decisão do Parlamento Europeu é mais uma advertência de que a deterioração ambiental no Brasil implicará perda de negócios e fechamento de empregos por aqui.


Cristina Serra: Massacre no Chico Mendes

Não tem como dar certo a fusão do Ibama com o ICMBio

Faça um esforço de imaginação. Pense que o governo convocou especialistas em biodiversidade, restauração florestal e gestão de parques nacionais para planejar o policiamento das ruas de São Paulo. A chance de dar certo é zero. Da mesma forma, não tem como dar certo a comissão formada por Ricardo Salles para estudar a fusão dos dois órgãos executivos mais importantes do Ministério do Meio Ambiente, o Ibama e o ICMBio. A menos, é claro, que dar certo neste caso signifique a ruína definitiva da proteção ambiental.

Dos sete integrantes do grupo, cinco são oriundos da Polícia Militar paulista. Um deles esteve envolvido no massacre do Carandiru. Em 1992, 111 detentos foram mortos quando a PM tomou o presídio para conter uma rebelião. Outro coronel foi dirigente da Rota, violenta tropa de elite da mesma PM. É nas mãos dessa gente que está o futuro do meio ambiente.

Ibama e ICMBio tem funções diferentes e complementares. O primeiro é responsável pelo licenciamento de empreendimentos econômicos com impacto ambiental e pela fiscalização para impedir crimes, como garimpo e desmatamento, atividades que cresceram exponencialmente sob a dupla Salles/Bolsonaro. O ICMBio cuida do nosso imenso patrimônio natural em 334 unidades de conservação, como parques nacionais e reservas biológicas, além da proteção das espécies ameaçadas de extinção.

A tal comissão criada para discutir "sinergias" entre os dois órgãos é jogo jogado. O objetivo é extinguir o ICMBio, que homenageia em seu nome o seringueiro Chico Mendes, assassinado em 1988, a mando de fazendeiros, no Acre. Em entrevista ao programa Roda Viva, logo que assumiu, o ministro disse considerar o ambientalista "irrelevante".

Não importa o que faça, Salles não conseguirá apagar a memória de Chico Mendes, reconhecido mundialmente como um herói que deu sua vida pela defesa da floresta. Já o ministro, por seus atos de lesa-natureza, terá como destino, ele sim, a irrelevância e a lata de lixo da história.


Fernando Gabeira: De costas para o gol

Há quem não veja o futuro e prefira soltar uma boiada para pisotear sonhos realizáveis

Desde o célebre livro de Stefan Zweig, e mesmo antes dele, o Brasil é reconhecido como o país do futuro. Às vezes, parece que o futuro chegou, e revistas estampam na capa um Cristo Redentor em forma de foguete subindo aos céus. Às vezes, a ideia toma a forma de um gigante que desperta e caminha com decisão. Para onde, José?

Apesar de toda essa fantasia, sinceramente não conheço um momento da história em que a possibilidade real de encontro com o futuro seja tão concreta.

A base dessa presunção é o fato de que a teoria econômica evoluiu no planeta. Não se acredita mais que o progresso é indissociável da destruição ambiental. A própria natureza deixou de ser vista como uma externalidade, um elemento passivo, um simples insumo. Agora, é vista como o centro da produção.

Nesse contexto, o Brasil não só emerge como uma potência ambiental, mas como o território onde mais se produz vida no planeta. As concepções mudam, e nada parece mais fora do lugar hoje do que a tese de que a conservação da natureza é um entrave ao progresso econômico.

Acaba de ser publicado o livro “Brasil, paraíso restaurável”, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib. Caldeira não é um idealista alheio às engrenagens reais da economia. Escreveu o livro “Mauá: empresário do Império” e também uma “História da riqueza no Brasil”, ampla e inteligentemente pesquisada.

O livro sobre o Brasil como potência ambiental é amparado em gráficos e mapas destinados a mostrar que a natureza preservada é o centro de criação do valor econômico.

Um dos capítulos do livro tem este título: “Queimar florestas é queimar dinheiro”. Nele é possível saber que os créditos de carbono no mundo hoje superam o volume das exportações brasileiras. Os créditos são dinheiro disponível para manter florestas em pé, retendo o carbono no subsolo.

Isso sem contar com produções sustentáveis, como as de açaí e castanha, e as incontáveis potencialidades das plantas.

É essa nova visão que faz com que empresas e fundos de pensão se interessem pela defesa do meio ambiente. De um modo geral, supõe-se que esse interesse é para agradar a consumidores, uma operação de marketing. Pode até ser isso também, mas hoje esse aspecto já se torna secundário.

O grande obstáculo para o Brasil ocupar esse espaço no mundo é o governo, que ainda associa progresso com destruição ambiental. A ideia de passar uma boiada sobre as normas de proteção é um eufemismo. Na verdade, querem passar bandos de javalis que devoram tudo pela frente.

No governo militar houve um encanto com esse tipo de progresso. Campanhas do tipo “bem-vinda poluição” circularam pelo mundo tentando atrair capitais já em declínio no Norte.

A destruição da Floresta Amazônica era vista como um triunfo da ação humana sobre a natureza. A mata era vista como um mito a derrubar para que se pudesse faturar.

Mas isso foi há meio século. É compreensível que a cabeça de Bolsonaro tenha se congelado na década dos 70, e ele sonhe com uma, duas, três, muitas Cancúns.

Mas os militares leem, viajam, frequentam cursos, seminários. Não poderiam respaldar essa política destrutiva, na esperança de nos tornarmos um país como os outros do século passado.

Não é só pelo processo destrutivo. Mas pelas evidências de um caminho econômico mais fértil, pela imensa possibilidade de o Brasil, finalmente, encontrar um futuro que não seja um efêmero foguete de capa de revista ou um sonolento gigante se pondo em marcha.

Desta vez, não seria um voo de galinha, mas sim a consciência de ser o país mais rico do mundo, em vida e energia, uma potência ambiental que explora racionalmente suas vantagens e reduz suas deformações como a disparidade de renda.

O futuro finalmente chegou. Há quem não o veja e prefira soltar uma boiada para pisotear sonhos realizáveis.

O Brasil talvez seja o único país hoje presente na agenda da eleição presidencial americana. Seria uma conspiração para derrubar nossas matas, esgotar nossos minérios e celebrar uma volta ao século XX? Ou um novo pacto para o futuro?