meio ambiente

Raul Jungmann: Soberania e clima

O conceito moderno de soberania emerge dos acordos da Paz de Westfália em 1648, após a Guerra dos Trinta anos, que devastou parte da Europa. A paz, que trouxe consigo o declínio da Espanha e a ascensão da Inglaterra, estipulava e reconhecia a autonomia das nações para decidirem sobre seus sistemas de governo, religião e consagrava a “raison d´état”, tal qual a formulara o Cardeal Richelieu, para enfrentar o império Habsburgo que ameaçava a França de Luiz XIII.

Sua âncora, como define Jean Bodin, é o Estado-Nação, sendo soberano o ente que não conhece superior na ordem externa, nem igual na ordem interna, um poder absoluto e perpétuo.

Já o conceito de clima remete às mudanças do tempo atmosférico, numa determinada região ou no planeta. Os fatores que o determinam, suas características e dinâmica são naturais e antropogênicos, isto é, humanos, e compreendem desde a pressão atmosférica até a emissão de dióxido de carbono que adensa o efeito estufa e agrava o aquecimento global.

Segundo o IPCC – Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas da ONU, é preciso “segurar” a elevação da temperatura da terra em, no máximo, 1.5 graus acima da registrada quando da revolução industrial do século XVIII, ou seus efeitos serão catastróficos e irreversíveis sobre o nível dos oceanos, as espécies animais, cidades e países e a vida humana.

Ocorre que o clima, diferentemente da soberania, não está ancorado em nenhum território definido, ordem legal impositiva ou ente controlador, a exemplo do Estado-Nação. Como a ordem internacional é anárquica, inexiste um poder soberano e regulatório sobre o clima em nível global. 

O clima e agravamento das mudanças climáticas, coloca em risco todas e cada uma das soberanias e estados-nação. Tome-se por exemplo a Amazônia, cuja tutela inegociável é nossa. Ela é, ao mesmo tempo, um asset, um ativo decisivo nos rumos do clima do planeta. Como harmonizar as exigências do que é nacional, a soberania sobre a Amazônia, com o que é global, o clima, evitando a securitização que nos pesa como uma ameaça?

Inexiste outro caminho que não o desenvolvimento sustentável dessa vasta região, que ocupa mais de 60% do nosso território e abriga uma população de 25 milhões de almas, ostentando o menor IDH dentre todas as regiões do país. A Amazônia e o seu desenvolvimento sustentável, tenhamos clareza, são a chave para tornarmo-nos uma potência bioeconômica e termos assento à mesa dos rumos do futuro global.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Luiz Carlos Azedo: O espelho estilhaçado

É impressionante o paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump, a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon

Instigante artigo do ex-chanceler Celso Lafer, professor emérito da Faculdade do Largo do São Francisco (Direito-USP), publicado no último domingo, no O Estado de S. Paulo, faz um diagnóstico político preciso do governo de Donald Trump, que merece muita reflexão entre nós, pelo paralelo que podemos projetar, a partir do texto, para o governo do presidente Jair Bolsonaro.

O “mote” do artigo é uma carta enviada, em 1975, pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, à filósofa judia-alemã Hannah Arendt, autora de Origens do Totalitarismo (Companhia de Bolso) e a A Condição Humana (Forense Universitária), na qual solicita à escritora que lhe envie o texto de uma palestra que fizera nas comemorações do bicentenário da independência dos Estados Unidos. Intitulada Tiro pela culatra, na tradução para o português, seu texto fui publicado no Brasil, na coletânea Responsabilidade e Julgamento (Companhia das Letras), organizada por Jerome Kohn.

Lafer destaca a iniciativa de Biden, quando integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado, como uma espécie de preocupação germinal do que pode vir a ser a linha de atuação do novo presidente dos Estados Unidos, de resto já anunciada na campanha eleitoral. O texto de Arendt trata da crise do governo Nixon e da degenerescência da política norte-americana nos anos 1970, cujos elementos se reproduzem durante o governo Trump, na visão de Lafer:

(1) a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e, nesse caminho, pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados;

(2) o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência;

(3) o inserir da criminalidade nos processos políticos do país;

(4) o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder;

(5) o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio;

(6) o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (Arendt);

(7) o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.

Espelho quebrado
A dimensão histórica da vitória de Biden vem sendo destacada não somente por Lafer como por outros analistas da cena brasileira. Sua repercussão na política mundial já se faz sentir, em todos os aspectos, inclusive em relação à pandemia da covid-19. Como ignorar, por exemplo, o gesto de ontem, quando o novo presidente dos Estados Unidos foi a um posto de saúde de sua cidade para tomar a vacina da Pfizer-Biontech? Quanta diferença em relação ao nosso presidente da República, que já disse e repetiu que não vai tomar e vacina e põe em dúvida a eficácia e segurança de qualquer uma delas. A troca de comando e rumo nos Estados Unidos, porém, transcende esse plano imediato das políticas públicas: a prática dos costumes democráticos repercute no fortalecimento das instituições republicanas e servem de exemplo para o mundo.

“A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela ‘alma’ dos Estados Unidos”, destaca Lafer. Nessa batalha, Biden personificou os valores e as instituições americanas, suas práticas e seus costumes. “Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do softpower de atração dos Estados Unidos.”

E, aqui, no Brasil? É impressionante como Donald Trump serviu de espelho para o presidente Jair Bolsonaro, nas mais diversas áreas. Na política externa brasileira, por exemplo, toda a respeitabilidade de nossa diplomacia está sendo jogada pela janela, apesar de sua cultura secular, cujas raízes são as negociações com os países vizinhos, nas quais garantimos a consolidação de nossas fronteiras, sem derramamento de sangue. Ou na questão ambiental, na qual nosso protagonismo, da Rio-92 ao Acordo de Paris, deu lugar à vexatória condição de “pária” internacional, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo.

As mentiras (1); as afrontas legais aos demais poderes (2); a promiscuidade com as milícias e outras atividades transgressoras (3); a proteção aos apaniguados (4); o não-reconhecimento dos fracassos (5); os incentivos à grilagem de terras, ao garimpo ilegal e ao desmatamento (6); e a terceirização dos problemas nacionais (7) tecem impressionante paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump (derrotado na reeleição), a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon (afastado por impeachment). Com a vitória de Joe Biden, esse espelho se quebrou.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-espelho-estilhacado/

Como o Brasil pode ter inserção positiva na economia mundial? Bazileu Margarido explica

Em artigo publicado na revista de dezembro da FAP, engenheiro diz que país tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O Brasil deveria buscar inserção positiva na economia mundial através da diversificação e agregação de valor à sua pauta de exportações e do investimento em inovação e tecnologia e nas novas oportunidades que estão surgindo na transição para uma economia de baixo carbono”. A análise é do engenheiro de produção e assessor econômico da liderança da Rede no Senado, Bazileu Margarido, ex-presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com Margarido, há um cardápio extenso de atividades econômicas que deveriam ser incentivadas para a recuperação da economia depois da pandemia da Covid-19.

“O Brasil tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia, das fontes distribuídas de energia renovável e limpa, da agricultura de baixo carbono, da exploração sustentável de florestas nacionais, da universalização do saneamento ambiental, entre outras”, assinala. De 2003 a 2007, ele foi chefe de gabinete da então de meio ambiente, Marina Silva, antes de se tornar presidente do Ibama, de 2007 a 2008.

Segundo Margarido, esses investimentos têm capacidade para gerar milhões de empregos verdes e atrair capital externo ávido por um portfólio de atividades sustentáveis. Isso, segundo ele, para satisfazer as exigências de um novo consumidor, mais consciente dos limites das bases naturais que dão sustentação ao desenvolvimento.  

“Insistir na ocupação da Amazônia pela grilagem de terra, por pastos para criação extensiva de gado e pela mineração ilegal só vai nos levar ao atraso e ao isolamento político e econômico”, alerta o engenheiro. Ele também é mestre em economia e, de 2001 a 2002, foi secretário de Fazenda de São Carlos (SP).

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‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

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‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Em artigo publicado na revista mensal da FAP, professor da Unesp avalia o que chama de ‘Ano 2’ do presidente

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mostra-se “despreparado para o exercício do governo, sequer consegue ganhar uma posição no contexto dramático de combate à pandemia, empreendendo ‘gestão’ desastrosa que não evitou os mais de 180 mil mortos em menos de 12 meses”. A afirmação é do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, em artigo que produziu para a revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Em seu artigo, Aggio também critica incapacidade do governo diante de “questões mais estruturais como as reformas tributária e administrativa que vão ficando para as calendas”.

“Sem liderança e sem rumo, a filiação de Bolsonaro a algum partido do Centrão tornou-se disputa rasa, quase um leilão, com vistas a um transformismo que garanta ao presidente um ‘novo’ protagonismo em 202’”, diz o professor da Unesp, em outro trecho de sua análise na Política Democrática Online de dezembro. “Num cenário ainda difuso, já se pode divisar, contudo, outros transformismos em projeção, todos visando alcançar o poder nas próximas eleições”, assevera.

Se, no Ano 1, o governo foi uma usina de péssimas ideias, no Ano 2 a imagem é de desolação, de acordo com o artigo do historiador. “2022 já começou e aos brasileiros importa superar a pandemia que nos assola bem como a crise que desorganiza a nação depois da sanha destruidora que se instalou no poder”, afirma Aggio, para acrescentar: “Só assim se poderá conceber em que termos avançaremos para o futuro, depois da breve – assim esperamos – ‘era Bolsonaro’”.

Em seu artigo, o professor da Unesp lembra que, no final do ano passado, publicou um artigo com o título “Bolsonaro, Ano 1”. “Mobilizei, intencionalmente, a demarcação temporal recorrendo àquilo que Benito Mussolini estabeleceu para a Itália quando instituiu o fascismo. Contava-se a sequência dos anos da ‘Era Fascista’, com início em 1922, ano da tomada do poder com a ‘Marcha sobre Roma’. Como todo aspirante a ‘revolucionário’, Mussolini acalentava a ideia de alterar o tempo histórico”, explica.

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Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Revista da FAP analisa o resultado das eleições em direção diferente a da polarização de 2018; acesso gratuito no site da entidade

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O recado das urnas em direção oposta à da polarização de dois anos atrás, o desastre da gestão governamental de Bolsonaro que gerou retrocesso recorde na área ambiental e a incapacidade de o presidente exercer sua responsabilidade primária, a de governar, são destaques da revista Política Democrática Online de dezembro. A publicação mensal foi lançada, nesta quinta-feira (17), pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), que disponibiliza a íntegra dos conteúdos em seu site, gratuitamente.

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No editorial, a publicação projeta o que chama de “horizonte sombrio”. “Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional”, diz um trecho.

Em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, o professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo), José Álvaro Moisés, avalia que existe, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer Bolsonaro nas eleições de 2022.

Moisés, que é coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP, o grande desafio da oposição para superar o Bolsonarismo é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade. Isso, segundo ele, para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País.

Outro destaque é para a análise do historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista) Alberto Aggio, que avalia que “o Ano 2 – como dizem os jovens – ‘deu mal’ para Bolsonaro”. Ao final de 2020, diz o autor do artigo, o destino o presidente é cada vez mais incerto, com popularidade declinante e problemas políticos de grande magnitude. “Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico”, afirma Aggio.

“O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a ‘País pária’ na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo”, acrescenta o professor da Unesp.

Ex-ministro da Reforma Agrária, Defesa Nacional e Segurança Pública e ex-deputado federal, Raul Jungmann analisa, em seu artigo, a necessidade de dialogar e liderar as Forças Armadas na definição de uma defesa nacional adequada ao Brasil. Isso, segundo ele, “é um imperativo da nossa existência enquanto nação soberana”.  “Construir essa relação, levar a sério nossa defesa e as FFAA, assumir as responsabilidades que cabem ao poder político e as nossas elites, é também uma questão democrática, incontornável e premente”, assevera.

O conselho editorial da revista Política Democrática Online é formado por Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

Veja lista de todos os conteúdos da revista Política Democrática Online de dezembro:

  • José Álvaro Moisés: ‘O Bolsonarismo entrou em crise porque ele não tem conteúdo nenhum’
  • Cleomar Almeida: Vítimas enfrentam longa via-crúcis no combate ao estupro
  • Charge de JCaesar
  • Editorial: Horizonte sombrio
  • Rodrigo Augusto Prando: A politização da vacina e o Bolsonarismo
  • Paulo Ferraciolli: RCEP, o maior tratado de livre-comércio do mundo
  • Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro – Uma eleição e dois scripts
  • Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso
  • Jorio Dauster: Do Catcher ao Apanhador, um percurso de acasos
  • Alberto Aggio: Bolsonaro, Ano 2
  • Zulu Araújo: Entre daltônicos, pessoas de cor e o racismo
  • Ciro Gondim Leichsenring: Adivinhando o futuro
  • Dora Kaufman: Transformação digital acelerada é desafio crucial
  • Henrique Brandão: Nelson Rodrigues – O mundo pelo buraco da fechadura
  • Hussein Kalout: A diplomacia do caos
  • João Trindade Cavalcante Filho: O STF e a democracia
  • Raul Jungmann: Militares e elites civis – Liderança e responsabilidade

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Luiz Carlos Azedo: Quem chega por último…

Pode ser que a estratégia de reaproximação do governo brasileiro com a Casa Branca se dê pelo baixo instinto, ou seja, pela via do alinhamento contra a China

Citando o Hino dos Estados Unidos — “a terra dos livres e o lar dos corajosos” —, o presidente Jair Bolsonaro reconheceu, ontem, a eleição do presidente Joe Biden, um dia após o democrata ter sido referendado pelo colégio de delegados que consagra o resultado das urnas. Foi o penúltimo chefe de Estado a fazê-lo; falta, ainda, o norte-coreano Kim Jong-Un. Vladimir Putin, da Rússia, e López Obrador, do México, também enviaram suas mensagens. Como a aposta de Bolsonaro era a reeleição de Donald Trump, que defendeu abertamente, inclusive, endossando suas acusações de que a apuração das urnas estaria sendo fraudada, não será fácil a reconstituição das relações com a Casa Branca. Como se diz na política, só quem chega primeiro bebe água limpa…

A mensagem de ontem não deixa, porém, de ser um marco na nossa política externa. É o registro de um fracasso retumbante do chanceler Ernesto Araújo, que apostou na construção de um eixo político-ideológico reacionário nas relações internacionais, cujo vértice era Donald Trump. Uma política negacionista do aquecimento global, da pandemia do novo coronavírus e de guerra comercial com a China, que nunca teve a menor chance de dar certo. A evidência de que Trump fracassaria veio logo que a União Europeia passou a obstruir suas iniciativas nos foros internacionais, principalmente na questão ambiental. Um outro sinal foi a guinada de Boris Johnson em relação à pandemia da covid-19, após contraí-la.

Isso significa que Bolsonaro dará um cavalo de pau na política externa brasileira? A torcida para que isso aconteça é muito grande, mas não há sinais de que isso venha a ocorrer no curto prazo, a não ser que Ernesto Araújo seja demitido. Pode ser que a estratégia de reaproximação do governo brasileiro com a Casa Branca se dê pelo baixo instinto, ou seja, pela via do alinhamento contra a China. Não é à toa que Xi Jinping não enviou, ainda, sua mensagem pessoal de congratulações a Joe Biden, embora a chancelaria chinesa já tenha reconhecido sua eleição. Ainda não está claro qual será a nova política norte-americana em relação à China, por causa da disputa comercial entre os dois países, principalmente na área de tecnologia.

Um dos grandes equívocos da política externa de Trump foi retirar os Estados Unidos da Aliança do Pacífico, um êxito diplomático do seu antecessor, Barack Obama. Isso abriu espaço para que a China entrasse no acordo comercial dos países asiáticos. Negociado desde 2012, com o nome de Parceria Comercial Regional Abrangente (RCEP), na sigla em inglês, reúne 15 países, sem os Estados Unidos, somando 2,1 bilhões de consumidores e 30% do PIB mundial. China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia assinaram o pacto, com os 10 países da Associação de Nações do Sudeste Asiático: Indonésia, Tailândia, Singapura, Malásia, Filipinas, Vietnã, Myanmar, Camboja, Laos e Brunei. Somente a Índia ficou fora, temendo a concorrência chinesa, mas ainda pode entrar no acordo.

Internet
É muito provável que Biden mantenha, em termos mais elegantes e sofisticados, a guerra comercial com a China. Pode ser que a tentação de Bolsonaro, para se reaproximar da Casa Branca, seja manter o alinhamento do governo brasileiro com os Estados Unidos nesse contencioso. É aí que mora o maior perigo, pois a sobrevida da atual política externa, nessas condições, pode ter consequências terríveis de médio e longo prazos para a nossa economia, porque a China é o nosso maior parceiro comercial. O divisor de águas, com toda certeza, será a forma como a tecnologia 5G será implantada no Brasil.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) deve realizar o leilão das faixas de 5G no primeiro semestre de 2021. Por elas vão passar os dados que chegam aos nossos smartphones, numa velocidade que permitirá implantar a chamada “internet das coisas”. Em outubro passado, os Estados Unidos pressionaram o governo brasileiro para que banissem da disputa a gigante chinesa Huawei, que já tem forte presença no Brasil, como fornecedora de equipamentos e serviços. Ofereceu em troca US$ 1 bilhão em financiamentos de projetos nas áreas de energia, infraestrutura e telecomunicações. Na ocasião, o conselheiro de segurança dos Estados Unidos, Robert O’Brien, disse que a empresa chinesa poderia ter acesso a informações sigilosas do governo e de empresas.

Esse posicionamento vai na contramão da orientação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que recomendou ao Brasil não restringir a competição entre os fornecedores de tecnologia 5G. Mesmo assim, o governo brasileiro resolveu apoiar a Clean Network (Rede Limpa), iniciativa de Trump para limitar o avanço chinês nas redes de 5G. Comentário do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sobre o tema, no Twitter, acusando os chineses de usarem a Huawei para espionagem, provocou dura reação da Embaixada da China no Brasil, também na rede social, e igual resposta do Itamaraty. Diplomatas experientes alertam para os sinais de que a China já está se reposicionando para reduzir a sua dependência alimentar em relação ao Brasil, ou seja, da importação de soja e de carnes brasileiras.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/quem-chega-por-ultimox/

RPD || Hussein Kalout: A diplomacia do caos

Política externa sob Bolsonaro se destaca pela irracionalidade, sem responder a interesses concretos do país, se pautando pelo combate frívolo a ameaças imaginárias, além de não refletir interesses ou valores nacionais, avalia Hussein Kalout

Desde a fundação da República, a política exterior do Estado brasileiro tem sido reflexo de consensos nacionais, balizada nos ditames do Direito e executada em conformidade com a dinâmica da ordem internacional. Pela primeira vez em nossa vida republicana, contudo, uma política externa destrutiva e irracional passou a ser implementada por meio de uma antidiplomacia, que, no lugar de buscar soluções, gera conflitos e tensões desnecessários.

Apesar da dissonância de visões ou de ênfases, ao largo dos diferentes governos republicanos, mínimos denominadores comuns uniam aqueles que assumiram a responsabilidade de formular os rumos da política externa nacional. O princípio da não-intervenção, o respeito à soberania do Estados, a defesa da autodeterminação dos povos e o respeito ao Direito Internacional compuseram as linhas mestras do processo decisório de nossa política exterior e guiaram a perseguição do interesse nacional desde pelo menos o Barão do Rio Branco.  

Hoje se assiste a uma ruptura com essa linha de continuidade. Não se trata de uma política externa simplesmente diferente. Trata-se, antes, da irracionalidade erigida como política de governo, uma vez que não responde a interesses concretos do país, mas se pauta pelo combate frívolo a ameaças imaginárias. Ao contrário do que apregoa, não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias.

Essa política levou à destruição da reputação internacional do Brasil por meio da implementação de uma “estratégia” única: contra os perigos ilusórios do globalismo, supostamente refletidos nas instituições multilaterais e na aliança improvável de financistas, progressistas e grande mídia, que seriam os responsáveis últimos pela decadência do Ocidente, só restaria a alternativa da aliança subserviente com o governo Donald Trump. Trata-se de um equívoco monumental que seria risível se não fosse trágico.

Uma relação equilibrada e produtiva com os EUA é desejável e sempre foi o objetivo do Estado brasileiro. Mas o recurso à submissão não coaduna com a vocação de uma nação da envergadura do Brasil. É, na realidade, francamente contrária à vocação universalista da política externa brasileira e sua capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, tanto desenvolvidos quanto em desenvolvimento, em benefício de nossos próprios interesses.

"Não reflete interesses ou valores nacionais, mas generaliza como visão nacional o que não passa de uma linha de pensamento marginal, cujo principal traço distintivo é a crença em teorias conspiratórias"
Hussein Kalout

Essa subserviência está por trás das posições, ações e omissões desastrosas de nossa política externa, em contradição com os dispositivos da Constituição. Alguns dos exemplos vergonhosos são o apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a compra por valor de face da narrativa norte-americana sobre o Oriente Médio.  

O projeto em curso, além de violar flagrantemente a Constituição Federal e seus ditames, impinge ao país custos irreparáveis como o desmoronamento de nossa credibilidade, perdas econômicas e fuga de investimentos.

Na área ambiental, o Brasil que era visto, desde Rio-92, como líder natural no tema do desenvolvimento sustentável, agora é tratado com “pária ambiental”. A medíocre participação na COP-25, em Madri, foi o mais puro retrato da imposição de um auto fracasso diplomático –– e de custos irreparáveis ao nosso país.  

No sistema multilateral, éramos reconhecidos como ícones do respeito a uma ordem internacional baseada em regras, mas hoje somos vistos como um Estado “rejeitado”. Em vez de reformar e fortalecer o multilateralismo, para aprimorar sua capacidade de encontrar soluções comuns para problemas compartilhados, preferimos tecer loas ao unilateralismo, em detrimento de nossos próprios interesses, uma vez que o Brasil, embora seja país grande, conta com o poder suave da persuasão e não com o poder duro da força para influenciar processos decisórios internacionais.

Na América do Sul, de indutores do processo de integração, passamos a apoiar aventuras intervencionistas e antidemocráticas. A relação entre Brasil e Argentina levou duas décadas para que as mútuas desconfianças fossem eliminadas, e a relação, estabilizada. Graças a uma diplomacia presidencial consciente de sua responsabilidade histórica, José Sarney e Raul Alfonsín, ainda nos anos 1980, puseram fim às fricções entre os dois países. A rivalidade deu ligar à cooperação. Como resultado, nasceu o Mercosul. Contudo, a abordagem ideológica e a tensão desnecessária com Buenos Aires podem arruinar as conquistas de uma diplomacia construtiva entre os dois países.

Prevalece, atualmente, o ceticismo em relação à integração regional, além do desprezo a qualquer iniciativa que não seja empreendida por governos afins ideologicamente. Com isso, o Brasil cede terreno a potências extrarregionais e abre mão da capacidade de defender seus interesses, como demonstra a retirada de todo o pessoal diplomático e consular brasileiro da Venezuela, um verdadeiro tiro no pé motivado pelo sectarismo.  

Na Europa ocidental, o Brasil perdeu seu peso gravitacional. Qual é o ganho em confrontar parceiros estratégicos e tradicionais como França e Alemanha? O acordo Mercosul-União Europeia e o projeto de ingresso na OCDE dependem, em boa medida, de amplo consenso entre os países europeus. A antidiplomacia atual somente afasta o país de seus objetivos estratégicos, ao hostilizar países essenciais para a própria implementação da agenda econômica do atual governo.

O papelão de nossa diplomacia diante da maior crise mundial de saúde é estarrecedor. A ausência de liderança, o desrespeito à ciência e às instituições de pesquisa científica e a desnecessária agressividade contra o nosso maior parceiro comercial que é a China, revelam o nível de degradação institucional. Atacar os chineses em um momento em que a nossa economia precisa preservar o escoamento de sua produção e garantir acesso a produto hospitalares é um crime lesa-pátria. O atrito com Pequim somente irá gerar desinvestimentos, declínio da produtividade e aprofundar o fosso do desemprego. É difícil encontrar uma justificava racional mínima para explicar tamanho despautério.  

A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e necessária. Não há mais tempo a perder. O resgate dos princípios constitucionais das relações internacionais do Brasil não requer a reinvenção da roda, apenas o retorno à racionalidade e à nossa tradição diplomática, para que deixemos de lado a subserviência e a importação de conflitos que não nos pertencem. E para que o foco volte a ser no que interessa: a segurança, o bem-estar e a prosperidade do Brasil.

Sem os ingredientes do realismo e do pragmatismo não será possível construir qualquer projeto de política externa minimante defensável. Sem abandonar a ideologia, as fantasias e as alegorias fantasmagóricas que atualmente animam nossa “política externa” de corte fundamentalista, não será possível voltar a enxergar a realidade tal como ela é e não através de lentes psicodélicas. É preciso trabalhar para restaurar o corolário doutrinário da política externa. Devemos trazer a política externa ao seu leito tradicional, de Rio Branco a San Tiago Dantas, cujos elementos centrais foram consagrados pela Constituição Federal.  

Homens públicos de diferentes estirpes e crenças legaram ao país, por gerações e gerações, resultados tangíveis e amparados na melhor feição do patriotismo e da decência republicana. Para implementar uma política externa da destruição, ao arrepio dos princípios constitucionais, é preciso que se instale a amnésia diplomática, é imperativo que se desaprenda a fazer diplomacia, entendida como um método racional, implementada com base em memória histórica e institucional, enriquecida por uma tradição consolidada de maneira laboriosa por um corpo diplomático profissional.

Enfim, o que está sendo legado ao Brasil, desde o início da administração Bolsonaro, é a promoção de rupturas paradigmáticas nos cânones da política externa e, consequentemente, a tentativa de fundar um novo corolário doutrinário para expressar o interesse nacional sob o falso trinômio de liberdade, democracia e nacionalismo. Tudo para combater, em suma, o que se erigiu, fantasmagoricamente, de males que ameaçam o Brasil: comunismo, globalismo e autoritarismo. Essa diplomacia do caos e seus tentáculos obscurantistas cedo ou tarde têm encontro marcado com história.  

(*) Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard.  Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018).  


RPD || Bazileu Margarido: Política ambiental liderando o atraso

Bolsonaro promoveu retrocesso recorde na área ambiental desde o início de seu governo. Desastre da gestão governamental impactou diretamente na imagem do Brasil no exterior

O mundo caminha celeremente para uma economia de baixo carbono. No final do ano passado, o Conselho Europeu comprometeu-se com o objetivo de neutralizar as emissões de carbono até 2050. A agenda de implementação dessa decisão tem sido intensa, com a definição de estratégias setoriais e instituição do Fundo de Transição Justa, de 100 milhões de Euros, para apoiar a substituição de indústrias intensivas em carbono. 

A mesma meta vem sendo estabelecida por vários países, como a Coreia do Sul, o Japão e a Inglaterra. A eleição de Joe Biden reforça essa tendência, afastando da Casa Branca o negacionismo climático. Isso irá provocar impactos profundos no mundo todo. 

Setores intensivos em carbono, como energia e transportes, estão passando por uma revolução tecnológica de amplo alcance. A energia solar é a fonte que mais cresce no mundo e as projeções indicam que, até 2050, será a maior fonte mundial de eletricidade. As principais montadoras de veículos já estabeleceram prazos (que não ultrapassam 2030) para tirar os motores a combustão de suas linhas de montagem. 

A Europa discute a precificação do carbono no mercado internacional, com a instituição de um mecanismo para que produtos manufaturados paguem uma “taxa de carbono” ao ingressarem no Mercado Europeu, previsto para entrar em vigor em 2023. Ou seja, “amanhã”. 

Enquanto isso, agravamos nosso isolamento político e econômico com uma política ambiental irresponsável. Os reflexos já são sentidos. Em junho passado, um grupo de 30 empresas globais de investimento, que administram US$ 3,7 trilhões, enviou cartas a embaixadas brasileiras em 9 países alertando o governo brasileiro sobre o avanço do desmatamento na Amazônia, o que pode interferir nas decisões de investimento. 

A política ambiental também está colocando em risco a implementação do Acordo EU-MERCOSUL. Assinado após anos de duras negociações, dificilmente será ratificado pelo parlamento dos países envolvidos por não cumprirmos a cláusula ambiental.

O agronegócio, nossa “galinha de ovos de ouro”, não passará ileso por essas transformações. A Estratégia da Fazenda ao Prato, uma das medidas em curso na Comissão Europeia, prevê um sistema de certificação de origem dos produtos agropecuários e florestais, o que pode facilitar o embargo daqueles provenientes de áreas de desmatamento.

Não se trata apenas de desconsiderar as mudanças de longo prazo nas estratégias mundiais de desenvolvimento. A política ambiental do governo Bolsonaro está destruindo as bases institucionais que podem construir pontes de diálogo para a inserção do Brasil nesse cenário. 

A Secretaria de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente e a Subsecretaria Geral de Meio Ambiente, Energia e Ciência e Tecnologia do Ministério das Relações Exteriores foram extintas logo de início. Após muita pressão da sociedade, o governo anunciou a meta de zerar as emissões até 2060. Além de ser insuficiente, tem pouco crédito pois não está suportada em ações efetivas, principalmente em relação à nossa maior fonte de emissão – desmatamento.

O Ibama está sucateado e não consegue executar nem o que restou de seu exíguo orçamento. O exemplo mais emblemático é a contratação de brigadistas, que só ocorreu quando o fogo se alastrava sem controle. Para agravar, o governo paralisou o Fundo Amazônia, que tem cerca de R$ 2,9 bilhões em doações, sendo que 60% seriam destinados ao próprio Ibama ou a órgãos ambientais estaduais.  

Quem tenta trabalhar é punido. O ex-diretor e dois chefes de fiscalização foram degolados logo após uma série de operações contra garimpeiros que atuam em terras indígenas. O fiscal que multou o presidente por pesca ilegal em 2012 foi afastado da chefia do Centro de Operações Aéreas e a multa foi anulada. 

Por outro lado, os nomeados deixam a boiada passar, eliminando a autorização ambiental para a exportação de madeira retirada das florestas do país, fato comemorado pelas madeireiras que atuam ilegalmente, e cancelando multas aplicadas pela equipe técnica, como no caso de um prédio de luxo em área de preservação, numa das regiões mais caras de Salvador, por exemplo. 

O Ministério do Meio Ambiente age como se não tivesse responsabilidade na fiscalização de crimes ambientais. O resultado todos sabem: a área desmatada na Amazônia, que já havia saltado 34,41% em 2019, prossegue em alta e cresceu mais 9,5% em 2020, batendo o recorde de desmatamento da década com mais de 11 mil Km². 

O INPE também sofre o mesmo processo de desconstrução. Após a difamação de seu presidente (Ricardo Galvão, a quem Bolsonaro acusou de estar a serviço de ONGs) e sua demissão, vieram o estrangulamento orçamentário, a redução da estrutura de comando e, por fim, a usurpação das suas funções, com o anúncio da compra de um satélite pelas Forças Armadas, por R$ 145 milhões, para fazer o mesmo que os satélites do INPE fazem. 

 O Brasil deveria buscar inserção positiva na economia mundial através da diversificação e agregação de valor à sua pauta de exportações e do investimento em inovação e tecnologia e nas novas oportunidades que estão surgindo na transição para uma economia de baixo carbono. 

Há um cardápio extenso de atividades econômicas que deveriam ser incentivadas para a recuperação da economia pós-COVID. O Brasil tem grande potencial de desenvolvimento da bioeconomia, das fontes distribuídas de energia renovável e limpa, da agricultura de baixo carbono, da exploração sustentável de florestas nacionais, da universalização do saneamento ambiental, entre outras.

Esses investimentos têm capacidade para gerar milhões de empregos verdes e atrair capital externo ávido por um portfólio de atividades sustentáveis para satisfazer as exigências de um novo consumidor mais consciente dos limites das bases naturais que dão sustentação ao desenvolvimento. 

Insistir na ocupação da Amazônia pela grilagem de terra, por pastos para criação extensiva de gado e pela mineração ilegal só vai nos levar ao atraso e ao isolamento político e econômico.


BBC Brasil: Amazônia - Mapeamento inédito identifica 2,7 mil projetos de restauração

  • Mariana Schreiber, Da BBC News Brasil em Brasília

Enquanto de um lado avança o desmatamento na Amazônia, de outro 2.773 projetos promovem hoje no Brasil a restauração da maior floresta tropical do mundo, mas cobrindo ainda uma área ínfima dos milhões de hectares com potencial para serem recuperados.

São iniciativas tocadas por organizações da sociedade civil, empresas, agricultores, instituições de pesquisa e governos que foram mapeadas pela primeira vez pela Aliança pela Restauração na Amazônia, em documento lançado nesta quarta-feira (09/12) e antecipado à BBC News Brasil.

É o caso do projeto Café Apuí, no Amazonas, em que 59 famílias produzem café orgânico em 33 hectares de sistemas agroflorestais — método de cultivo em que coexistem na mesma área o cultivo agrícola e outras vegetações.

A iniciativa, que já plantou 32 mil árvores, recuperou antigos cafezais que estavam abandonados por baixa produtividade devido a degradação do solo. A melhor qualidade do café produzido sob a sombra da vegetação mais alta replantada permitiu um aumento de 300% da renda das famílias envolvidas, destaca a publicação.

Os 2.773 projetos mapeados, no entanto, cobrem 113,5 mil hectares, uma pequena área frente ao acelerado ritmo de destruição da floresta. Apenas entre agosto de 2019 e julho de 2020, foram desmatados 1,1 milhão de hectares da Amazônia (alta de 9,5% ante os doze meses anteriores), segundo dados oficiais preliminares do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — cada hectare equivale a aproximadamente um campo profissional de futebol.

Por isso, a publicação traz dez recomendações para que a restauração ganhe escala no Brasil, ao mesmo tempo que alerta que esses projetos não substituem a preservação da floresta ainda de pé, com o combate ao desmatamento, que é majoritariamente ilegal na Amazônia.

Segundo Danielle Celentano, secretária executiva da Aliança pela Restauração na Amazônia, a recuperação da floresta e o combate ao desmatamento são estratégias que caminham juntas para evitar que a Amazônia chegue ao "ponto de não retorno" (tipping point, em inglês), um patamar de destruição em que a floresta perderia a capacidade de se regenerar e haveria mudanças drásticas e permanentes do ecossistema (como redução das chuva e aumento da seca).

Cientistas como Carlos Nobres calculam que esse ponto irreversível deve ocorrer quando o desmatamento atingir algo entre 20% a 25% da floresta original. Em entrevista à BBC News Brasil em setembro, ele disse que já foi perdido de 16% a 17% da floresta, e que o "ponto de não retorno" será atingido no intervalo de 15 a 30 anos, permanecendo a taxa de desmatamento atual.

"A Amazônia está chegando perto do tipping point. Então, é agora ou nunca: tem que parar de desmatar e recuperar o passivo (o que foi desmatado ilegalmente), promovendo uma nova economia de base florestal", afirma Celentano, que é também gerente sênior de restauração de paisagens florestais da Conservação Internacional, uma das 80 instituições que integram a Aliança pela Restauração.

Ela ressalta que uma das formas de ampliar a recuperação da Amazônia é promover o cumprimento da lei. O Código Florestal, de 2012, estabeleceu que apenas 20% das propriedades na Amazônia podem ser desmatadas e determinou a restauração das áreas de floresta que foram suprimidas ilegalmente, mas o prazo para cumprimento tem sido sucessivamente adiado.

Segundo a publicação da Aliança, a área que deve ser recuperada por esses proprietários para legalizar suas terras é estimada em 8 milhões de hectares, sendo que 5 milhões são passíveis de serem restaurados (a diferença pode ser compensada através de outros mecanismos previstos na lei).

Sem o cumprimento da lei pelos donos de terra, a maioria das iniciativas de restauração são tocadas por organizações da sociedade civil (87,5% dos projetos mapeados). Em seguida estão empresas (5,6%), agricultores (3,8%), instituições de pesquisa (2,4%) e governos (0,7%).

São os projetos de empresas, porém, que respondem pela maior área em recuperação (52% do total). O levantamento mostra ainda que Rondônia concentra o maior número de iniciativas (1.658), mas responde por apenas 9% da área em restauração. Já o Pará concentra 49% da área total mapeada e Mato Grosso, 27%.

Floresta se recupera sozinha, mas é desmatada de novo

Os projetos mapeados cobrem uma diversidade de técnicas de restauração, que podem variar de acordo com o nível de degradação da área e a finalidade buscada com a recuperação.

O desmatamento acumulado da Amazônia é calculado em 80,3 milhões de hectares. Parte da floresta consegue se recuperar sozinha, quando a área destruída fica depois abandonada, mas essa vegetação secundária não tem a mesma riqueza de biodiversidade da mata nativa e é também mais vulnerável a ser novamente desmatada, destaca a publicação.

Estimativa do MapBiomas é de que, em 2018, 14,9 milhões de hectares da Amazônia estavam cobertos com vegetação secundária, mas o desmatamento nessas áreas têm sido, em média, 40% maior do que em florestas primárias.

Por isso, o documento da Aliança considera como área em restauração apenas os espaços de vegetação secundária que estão em "regeneração natural assistida". Ou seja, que recebem interferência humana para evitar novos desmatamentos e aumentar a biodiversidade. Segundo o documento, há 147 projetos desse tipo, que cobrem 12% do território mapeado.

Já espaços com baixo potencial de regeneração natural demandam intervenções ativas, normalmente mais custosas, como o plantio de sementes e mudas. O levantamento identificou 734 iniciativas desse tipo, que cobrem a maior parte da área em restauração (59%).

A semeadura direta é uma forma mais barata, considerada promissora, mas ainda usada em pequena dimensão (são 185 projetos que cobrem 3% da área mapeada). Uma dessas técnicas, batizada de muvuca, consiste em plantar com máquinas agrícolas uma mistura de sementes agrícolas e florestais, de espécies de ciclo curto, médio e longo.

"Mistura de sementes nativas e de adubação verde com areia que forma um insumo homogêneo propício para a formação da estrutura da floresta, a muvuca consegue colocar o dobro ou até dez vezes mais árvores por hectare e com metade do custo do que seria um plantio com mudas", diz o portal do Instituto Socioambiental, que usa a técnica em projetos de restauração em parceria com produtores rurais nas bacias dos rios Xingu e Araguaia, no Mato Grosso.

Restauração com produção para frear novos desmatamentos

A maioria das iniciativas, porém, é de sistemas agroflorestais (1.643 ou 59% do total, cobrindo 14% da área mapeada), técnica de restauração florestal produtiva que garante retorno econômico, servindo como instrumento importante para evitar novos desmatamentos.

Um desses projetos, o Cacau Floresta, envolve 250 famílias que desde 2013 já restauraram mais de 500 hectares da Amazônia nos municípios de São Félix do Xingu e Tucumã (Pará), cidades que estão no chamado Arco do Desmatamento (região com maiores taxas de destruição da floresta que engloba partes do Maranhão, Pará, Mato Grosso, Rondônia e Acre).

A iniciativa, que alia o cultivo de cacau com outras espécies nativas, recuperando áreas degradadas pela pecuária extensiva, é desenvolvido pela The Nature Conservancy (TNC) — organização que atua com preservação em mais de 60 países e também integra a Aliança pela Restauração na Amazônia.

Rodrigo Freire, vice-gerente de restauração florestal na TNC Brasil, explica que fazendas de gado só atingem maior rentabilidade com uso mais intensivo de tecnologia, o que é não é o caso de pequenos produtores da região do Arco do Desmatamento, onde o ganho anual por hectare com pecuária de corte varia de R$ 50 a R$ 200.

Segundo ele, o investimento para converter esses pastos em agrofloresta é de R$ 15 mil (sendo R$ 6 mil o valor da própria mão de obra) por hectare, investimento que costuma ser recuperado em quatro a cinco anos, usando inicialmente cultivos de ciclo mais curto, como milho, mandioca e banana. Depois, com o aumento da produção de cacau, produto de alto valor agregado vendido para a indústria de chocolate, é possível chegar a uma rentabilidade anual de R$ 7 mil a R$ 10 mil por hectare, diz.

"A partir do momento que o produtor viu mais rentabilidade naquela agrofloresta do que no pasto, ele abre a percepção também para a importância das árvores em pé e desses recursos ecológicos como umidade, água, fertilidade do solo (que são recuperados com a restauração da floresta)", nota ele.

Freire reconhece que a agrofloresta é menos diversa que a mata nativa, podendo chegar a 50 espécies por hectare, ante mais de 140 por hectare na floresta original da Amazônia. Apesar disso, diz que a área restaurada consegue recuperar parte da biodiversidade e retomar "suas funções ecológicas, seus serviços ecossistêmicos".

"Em área de pasto, quando tem chuva forte, a água escorre muito rápido pela superfície, causando assoreamento, o carregamento de nutrientes que são removidos do solo, pois a vegetação do pasto é muito rala, pouco profunda", ressalta.

"Quando você abre espaço para uma agrofloresta, com muitas árvores, de diferentes espécies e alturas, volta a ter uma estrutura de floresta de proteção do solo. E as próprias folhas e galhos quando caem fazem com que o solo volte a ter fertilidade muito maior", compara.

Essa recuperação da vegetação e do solo garante mais produtividade e contribui para a preservação das fontes de água da propriedade e da região. Além disso, a nova estrutura de floresta acaba atraindo novamente a fauna para a área antes degradada.

"Passarinhos, por exemplo, fazem ninhos nas copas do cacaueira. Também vemos a anta, maior mamífero terrestre nativo (do Brasil), voltando a ocupar o plantio de cacau, usando o sistema agroflorestal como refúgio de migração entre os fragmentos florestais locais", conta.

Implementação da lei, mais crédito e compromisso do setor privado

Para que a restauração ganhe escala na Amazônia, a publicação diz que é preciso priorizar o cumprimento do Acordo de Paris, no qual o Brasil assumiu o compromisso em 2015 de restaurar 12 milhões de hectares até 2030.

O governo Jair Bolsonaro, porém, não tem dado andamento à Política Nacional para Recuperação da Vegetação Nativa (Proveg), ferramenta criada em 2017 que traz diretrizes para alcançar essa meta.

O documento recomenda também que o os governos estaduais implementem os Programas de Regularização Ambiental (PRAs), previstos no Código Florestal, passo fundamental para que propriedades que desmataram mais de 20% na Amazônia recuperem a área destruída ilegalmente.

A publicação destaca ainda a necessidade de criar e regulamentar mecanismos de "pagamentos por serviços ambientais", como o mercado de crédito de carbono, para que as áreas restauradas, que têm grande capacidade de capturar e armazenar carbono da atmosfera, possam gerar retorno aos proprietários.

Outra recomendação é o aumento das linhas de crédito para financiar esses projetos, assim como compromissos mais ambiciosos de empresas e bancos para não realizar negócios com fornecedores que não estão com suas propriedades legalmente restauradas.

"Sabemos que só a obrigatoriedade não motiva ninguém. Cumprir a lei deve ser o básico de qualquer sociedade coerente, responsável, mas precisa ter incentivos também (para os proprietários se regularizarem), principalmente quando boa parte dessa restauração florestal custa, exige investimento, trabalho, tecnologia e insumos", afirma Rodrigo Freire.

"E faz parte da abordagem da restauração (ter) uma solução para o desmatamento. Não dá para desmatar em um lugar e ficar restaurando no outro. Vai ter perda de biodiversidade, não é isso que a gente quer", reforçou.


Ricardo Noblat: Era Bolsonaro marca mais uma fase de fechamento político

A reabertura virá, só não se sabe quando

Ideias, princípios e valores que catapultaram Jair Bolsonaro para o cargo que ocupa foram convalidados na eleição municipal deste ano que deu a vitória às forças da direita e do centro, e outra vez assim será em fevereiro próximo quando a Câmara dos Deputados e o Senado escolherem seus novos dirigentes.

Candidatos a prefeito e a vereador apoiados por Bolsonaro podem ter sido derrotados, mas ele não foi. E disso também informam as pesquisas mais recentes de avaliação do governo, do presidente, e de intenção de votos para 2022. Com mais de 180 mil mortos pela pandemia, a aprovação de Bolsonaro permanece estável.

Os que apostam no seu eventual fracasso nas urnas daqui a dois anos argumentam que a economia em 2021 atravessará seu pior momento. Aumentará o número de desempregados e faltará dinheiro para quase tudo, inclusive para o pagamento do auxílio emergencial contra o vírus, tenha ele o nome que tiver.

De resto, de acordo com os mais otimistas, emergirão os dispostos a enfrentar Bolsonaro, o que fará muita diferença. Por ora, ele galopa sozinho sem que ninguém o acosse. O distinto público observa à distância e de maneira desinteressada. Quando os demais cavaleiros entrarem na raia, tudo mudará. A ver.

O raciocínio pode até fazer algum sentido, mas está longe de enfraquecer a condição de favorito de quem se candidata à reeleição. Dizia-se que Bolsonaro não sobreviveria a sua trágica performance durante a fase mais assassina do coronavírus. Pois sobreviveu sem que se registrassem danos à sua imagem.

Diz-se, agora, que corre o risco de ir para a estrebaria se a vacinação em massa, sem data marcada para começar e sem meios adequados para ser aplicada, frustrar a expectativa da população ansiosa por virar a página do ano mais sofrido de sua vida. Não é o que parece. O vírus ideológico joga a favor de Bolsonaro.

A resiliência do brasileiro é notável, o que significa sua capacidade de assimilar golpes sem reagir à altura. É o que explica o fato de o Brasil ser um dos países de maior concentração de riquezas do mundo. Explica porque nele dá-se o nome de “bala perdida” aos projéteis que matam inocentes, e fica tudo por isso mesmo.

O general Golbery do Couto e Silva, um dos arquitetos do golpe militar de 64 e, mais tarde, do processo de abertura política do regime, valeu-se de termos da cardiologia para ilustrar o que acontece também com a política. Sístole quer dizer fechamento. Diástole, distensão. São dois estágios do ciclo cardíaco.

Entende-se por sístole a fase de contração do coração, em que o sangue é bombeado para os vasos sanguíneos. Diástole é a fase de relaxamento, quando o sangue entra no coração. A ascensão de Bolsonaro ao poder é mais uma fase de sístole do processo político. A diástole virá, só não há sinais dela no horizonte. Isso é ruim.


Eliane Brum: Como pode uma empresa controlar a vida e a morte?

Com cinco anos de operação, a hidrelétrica de Belo Monte tornou-se um laboratório de como o capitalismo produz colapso ecológico na Amazônia

Imagine. E mantenha o fôlego.

Imagine que sua vida não é controlada por você, mas pelas grandes corporações. A serviço delas estão grande parte dos Governos e grande parte dos parlamentares. Pelo seu poder financeiro, essas corporações fazem pressão para aprovar leis favoráveis a seus interesses, financiam campanhas políticas, publicitárias e de marketing, financiam cientistas em universidades prestigiadas e financiam também outra indústria que entra em suas telas 24 horas por sete dias da semana, a de entretenimento. Você é estimulado a comer produtos ultraprocessados (bolachas de pacote, congelados, refrigerantes...), que, apesar de serem chamados de alimentos, são na verdade produtores de epidemias de obesidade em várias partes do globo, provocando doenças relacionadas que vão demandar os produtos de outra indústria, a farmacêutica. Agrotóxicos produzidos por corporações transnacionais são liberados pelas agências de Governos e contaminam os rios, que contaminam os peixes e também o lençol freático e assim a água que você bebe. Esses agrotóxicos envenenam ainda a comida que você bota na mesa para os seus filhos e estão relacionados a várias doenças de trabalhadores e também a suicídios.

soja que substituiu as florestas e as savanas serve para alimentar os animais que, depois de uma vida escravizada, serão enfileirados em pedaços despersonalizados nas prateleiras dos supermercados. Parte desses bois foram colocados sobre as ruínas da floresta apenas para garantir a posse da terra que era pública, o que faz com que a carne no seu prato seja o final de um processo que começou com a destruição da natureza. Esses bois são também uma das principais causas do superaquecimento global pelo metano que emitem ao arrotar. Em alguns países, como o Brasil, a população bovina é maior do que a humana, o que torna sua digestão uma catástrofe global. A roupa que você veste tem, na ponta visível, uma vitrine iluminada de loja, ou um site supereficiente que entrega produtos na sua porta.

Na outra ponta da cadeia, com frequência, tem trabalho escravo e também infantil em algum país pobre no outro lado do mundo, em fábricas ou porões insalubres, que às vezes explodem ou queimam, ou então na parte pobre e insalubre de um país rico. Essa ampla circulação de mercadorias e de pessoas (e agora também de vírus) demanda uma enorme quantidade de combustíveis fósseis (derivados de petróleo, carvão mineral e gás natural), principal causa do colapso climático. Quase tudo que rodeia você veio de alguma cadeia de mineração, que destrói o meio ambiente em grande escala e também contamina os rios, os peixes, diferentes espécies de animais e também humanos com mercúrio e outras substâncias tóxicas. Mais recentemente, as corporações estão fazendo mineração também no fundo dos oceanos, onde ainda há menor regulamentação ou nenhuma. Se nada for feito, os lindos documentários do fundo do mar que você assiste em canais de “natureza” serão em breve memorial de um passado que já não existe no presente.

Dizem que você é livre, porque é consumidor e seus filhos já nascem como consumidores e clientes. Tem, portanto, a fantástica escolha de consumir a marca e o produto que quiser com o dinheiro, invariavelmente menos do que você precisa, que ganhou vendendo o seu corpo e o seu tempo, que é tudo o que você tem. Caso você considere essa condição desumana e se revolte, se junte com outros para denunciar a violência dessas cadeias e desse sistema, as corporações têm o poder financeiro de pagar os melhores advogados e até mesmo pesquisas com cientistas de instituições respeitáveis, capazes de romper todas as amarras éticas para afirmar as conclusões que as corporações precisam para seguir comendo o planeta. Com a Internet, as corporações passaram também a financiar centrais de ódio, onde geram robôs e conteúdos falsos para acabar com a sua reputação —ou a da organização não governamental ou do movimento do qual você participa— com ataques e mentiras nas redes sociais. Toda voz dissidente deve ser combatida e, se possível, destruída. Destruir uma reputação é um tipo de assassinato.

Por trás de toda essa engrenagem que determina, regula e controla vidas há pessoas feitas da mesma matéria que você. Vale a pena lembrar que o planeta inteiro tem 2.153 bilionários, um número de pessoas que cabe num teatro grande. Juntas, elas têm mais riqueza do que 60% da população mundial. Na América Latina e Caribe, esses bilionários somam 73 pessoas. Um estudo da Oxfam mostrou que, entre março e junho de 2020, nos meses iniciais de pandemia, esses 73 aumentaram sua fortuna em 48,2 bilhões de dólares, o equivalente a um terço do total de recursos previstos em pacotes de estímulos econômicos adotados por todos os países da região. No Brasil, há 42 bilionários. Entre março e julho deste ano, período de intensa crise humanitária causada pela pandemia, eles aumentaram suas fortunas em 34 bilhões de dólares. Quando, com organização e luta, a sociedade da qual você faz parte ou o grupo que o representa conquista algum direito, uma entidade que chamam “mercado”, mas que você nunca viu, afirma que “vai quebrar a economia”. O mercado são essas pessoas e os executivos que trabalham para elas nas mais variadas áreas, destacando-se nesse amplo espectro os economistas. Quando os jornais dizem que o “mercado está nervoso”, é essa “meia dúzia”, comparada à população mundial, que sentiu uma comichão de estresse.

Parece um pesadelo? Essa distopia é a vida hoje no sistema capitalista neoliberal. Nesse sistema, o mercado é a base da organização da sociedade, com desregulamentação da economia, privatização das empresas estatais e enxugamento dos gastos sociais. Faz parte também uma ampla circulação de mercadorias, fluxo de capitais e de informações num mundo cada vez mais globalizado, fazendo com que se torne muito difícil, quando não impossível, fiscalizar e controlar as grandes corporações transnacionais. A sensação que você partilha com os bilhões que habitam esse planeta e não fazem parte dessa minoria dominante é a de que não controla a sua vida. Não é uma sensação.

O capitalismo neoliberal é o ápice do processo pelo qual a espécie humana provocou o colapso climático que hoje ameaça nosso futuro no planeta e provocou também a sexta extinção em massa de espécies, em curso nesse momento. Essa distopia é nossa vida atual e sua última realização foi nos trazer ao tempo das pandemias, que já matou quase 180.000 pessoas no Brasil e mais de 1,5 milhão no planeta.

O que isso tem a ver com Belo Monte, a usina hidrelétrica construída no Médio Xingu, uma das mais ricas e biodiversas regiões da Amazônia?

Tudo.

Um laboratório de catástrofe

A região atingida por Belo Monte é um microcosmo onde o modo de existência capitalista neoliberal foi imposto a outros modos de existência, como o dos povos indígenas e ribeirinhos, num curto espaço de tempo. Em apenas uma década, esse modo de operação provocou destruição em cadeia. Os piores efeitos estão só começando. Nesse momento, o grande embate é pela água, um embate que ecoa uma das maiores guerras do planeta, hoje e muito mais no futuro próximo, o que torna a observação dos acontecimentos do Xingu ainda mais importante.

A empresa concessionária de Belo Monte, a Norte Energia SA, controla a água do rio para a geração de energia e, portanto, controla a quantidade de água que alcança a região povoada por populações da floresta, mais especificamente indígenas e ribeirinhos. A região cuja água está sob controle da Norte Energia é povoada também por milhares de diferentes espécies de animais e vegetais, algumas delas endêmicas, o que significa que em todo o planeta só existem naquele lugar. No leilão da usina, em 2010, a Norte Energia era composta por pequenas empreiteiras. Hoje é composta em quase 50% pelo Grupo Eletrobras, 20% por fundos de pensão (Petros e Funcef) e o restante dividido em participações menores.

Quando a Norte Energia controla a água, a empresa transfigura um pequeno grande mundo na floresta amazônica, hoje cada vez mais perto do ponto de não retorno. O que é o ponto de não retorno? É o momento em que a floresta deixa de ser floresta, e assim deixa de fazer o seu papel essencial de floresta, que é o de regular o clima, para se tornar uma savana. Obviamente é um acontecimento progressivo, que hoje está em ritmo acelerado devido ao enfraquecimento dos órgãos de proteção, ao aumento do desmatamento e dos incêndios no Governo Bolsonaro. Sem a maior floresta tropical do mundo, vale lembrar, se torna muito difícil controlar o superaquecimento global.

Dentro desse pequeno grande mundo atingido por Belo Monte, há um microuniverso que é ainda mais brutalmente atingido, conhecido como Volta Grande do Xingu. Com extensão de 130 quilômetros de uma beleza acachapante, a Volta Grande é morada de dois povos indígenas, os Yudjá e os Arara, e de vários grupos ribeirinhos, considerados população tradicional da floresta, além de camponeses agroecológicos e pescadores. Também é fortemente atingido o rio Bacajá, afluente do Xingu, do qual depende a vida do povo Xikrin. Em uma década, o universo dessas milhares de pessoas entrou em colapso provocado por Belo Monte.

Há sempre títulos complicados e em geral falsos nesses empreendimentos predatórios. Faz parte da estratégia converter a população atingida, grande parte dela formalmente analfabeta da escrita, também em analfabeta dos ouvidos. Chamaram de “Hidrograma de Consenso” a administração da quantidade de água liberada pela usina para a Volta Grande do Xingu. A inclusão da palavra “consenso” é um mistério, já que jamais houve consenso algum. Portanto, mais do que um mistério, é um truque de marketing para confundir o entendimento e dificultar o enfrentamento. A luta pela água, que para os povos do Xingu é uma luta pela vida, sempre foi produzida no conflito, já que suas vozes foram ilegalmente ignoradas desde a decisão de implantar a usina.

Fatos, pesquisas científicas e experiência cotidiana mostram que a administração da água para a operação de Belo Monte está provocando a destruição da Volta Grande do Xingu e, portanto, a destruição da vida dos humanos e não humanos que vivem lá. André Oliveira Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo, afirma que o efeito do controle da água pela Norte Energia equivale a antecipar o colapso climático na Volta Grande do Xingu. “Possivelmente, o desmatamento no Alto Xingu e as barragens de Belo Monte têm um efeito muito mais severo (e em curso) na vazão da Volta Grande que a crise climática global”, afirma o geólogo, que estuda o Xingu e Belo Monte há anos. “Alguns estudos projetam redução de 30% na vazão do Xingu devido à emergência climática. Porém, o desvio de água para alimentar o reservatório intermediário já reduz a vazão em 35-40%, nos meses de setembro e outubro, no período da seca, e em 60-85% em março e abril, no período da cheia. Isso significa que a crise climática já chegou para a Volta Grande —e de forma mais severa.”

O Ministério Público Federal, que já moveu 24 ações pelas violações cometidas na implantação de Belo Monte, chama os acontecimentos ocorridos na Volta Grande de “ecocídio”. O conceito contempla o extermínio de um ecossistema ou bioma com todas as espécies que o constituem e busca a responsabilização dos agentes de destruição —pessoas, empresas, corporações, Governos. Os cientistas mais renomados do país, que pesquisam a região há décadas, já somaram suas vozes aos povos da floresta, ao afirmar que a administração da água proposta pela empresa está causando e irá causar um desastre ecológico que poderá levar espécies endêmicas à extinção e colapsar por completo a vida de indígenas e de ribeirinhos. Em maio deste ano, até mesmo o sistema financeiro internacional começou a se mover: o fundo soberano da Noruega, que administra mais de 1 trilhão de dólares, excluiu de sua carteira de investimentos a Eletrobras, por decisão de seu conselho de ética. A empresa, principal acionista da Norte Energia SA, foi deletada por “inaceitável risco de que contribua para sérias ou sistemáticas violações de direitos humanos”, devido à usina hidrelétrica de Belo Monte.

O roubo da água

No final de novembro, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) conseguiu obter uma decisão favorável na Justiça federal, que obriga a Norte Energia a manter um hidrograma “provisório”, até que os estudos possam ser concluídos, para garantir a sobrevivência da Volta Grande. Isso significa que a empresa precisa liberar mais água para o ecossistema do que ela demanda no maliciosamente chamado Hidrograma de Consenso. A decisão foi tomada pelo juiz federal Roberto Carlos de Oliveira com base no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”, “impondo ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”.

Quando a usina recebeu a licença de operação, em 24 de novembro de 2015, apesar de todas as denúncias de violações e todo o passivo ecológico, a Volta Grande já tinha começado a se transfigurar. No ano seguinte, os Yudjá, povo indígena que considera ter canoas em vez de pés, porque são parte do rio, chamaram o ano de 2016 de “o ano do fim do mundo” (leia aqui). Em 2020, porém, a seca foi ainda maior. Por consequência, a situação da Volta Grande ficou ainda pior. Em toda a região atingida por Belo Monte, houve uma morte massiva de peixes. Ribeirinhos avisaram pelo WhatsApp que o Xingu estava se transformando num cemitério. “Os filhos do Xingu já não reconhecem mais o vai e vem da água”, disse Raimunda Gomes da Silva, liderança ribeirinha que teve sua casa e sua ilha incendiadas pela Norte Energia.

De 9 a 12 de novembro, o núcleo de “Guardiões”, formado por indígenas dos povos Xipaya, Kuruaya e Yudjá, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, interditou a Transamazônica no quilômetro 27 para denunciar que os peixes não conseguiam fazer a piracema. Ou seja, a reprodução tinha sido interrompida. “Estamos unidos para defender as águas do Xingu e as nossas vidas. Belo Monte quer nos matar aos poucos, assim como faz com os peixes do Xingu, mas nós lutaremos”, escreveram em uma carta manuscrita. “Estamos aqui para mostrar a situação que temos vivido desde a chegada de Belo Monte e o roubo da água do Xingu. Faz cinco anos que estamos sofrendo os impactos da barragem [...] A nossa vida não pode ser ignorada. Nossas vidas importam!”, afirmaram em documento às autoridades.

Costuma-se mencionar peixes com a linguagem da mercadoria. Em gramas, quilos e toneladas. Nesse caso, Belo Monte matou toneladas de peixes. Mas peixes não são mercadorias, peixes são criaturas vivas, diversas e fascinantes. Em maio de 2019, o britânico The Guardian, um dos jornais mais ativos na cobertura do colapso climático, anunciou a atualização de seu manual de redação e defendeu em editorial a mudança da linguagem, para que a imprensa seja capaz de conferir exatidão à cobertura ao se referir a esse momento limite vivido pela humanidade. Não mais “mudança climática”, mas “crise, colapso ou emergência” climática/o. Não mais “aquecimento global”, mas “superaquecimento global” (global heating, difícil de traduzir para o português). Não mais toneladas, estoques e outros termos relativos a mercadorias para seres vivos —e sim populações e outros termos adequados àqueles que vivem. Foi um marco, infelizmente ainda não seguido pela totalidade dos grandes jornais do mundo.

Quando milhões de peixes são assassinados ou impedidos de se reproduzir, toda uma cadeia de acontecimentos entra em colapso. As cidades romperam sua conexão com a natureza, fazendo com que as pessoas que nelas vivem se esqueçam de que são também natureza, mas na floresta, mesmo uma floresta duramente afetada e atacada, como a amazônica, é possível constatar que nenhum acontecimento, por menor que seja, é isolado. Tudo se conecta e se afeta mutuamente. São relações sociais, são também relações de vida. A morte dos peixes é uma tragédia para os peixes, mas é também uma tragédia para todos os humanos e não humanos que lá vivem. E se é uma tragédia para todos eles, será uma tragédia que vai ecoando em cadeia pelo planeta.

“Eu estava indo colher uma castanha pra fazer um peixe no leite de castanha e ouvi um barulhinho de folha. Quando fui investigar, era um carrapato andando”, contou Juma Xipaia, uma das principais lideranças de seu povo, em uma entrevista pública que fiz com ela para o Wow Festival Mulheres do Mundo. “Levei um susto imenso. Se eu pude ouvir um carrapatinho andando no meio da floresta amazônica é porque está muito, mas muito seco.” Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, Juma tinha se recolhido à aldeia para se proteger da covid-19. “Na minha opinião, o animal que mais está em risco de extinção é o próprio humano, por não entender que cada ser, por menor que seja, tem sua importância”, diz a indígena. “Os humanos vão comendo o mundo como se fossem uma grande traça.”

As cenas de indígenas e ribeirinhos tentando salvar peixes é de uma tragicidade imensa. E a partir dela se desencadearam vários pequenos acontecimentos. Bel Yudjá, liderança da aldeia de Mïratu, na Volta Grande do Xingu, conta que seu povo testemunhou a chegada de uma horda de urubus. Já não é aconselhável deixar roupas nos varais, porque são arrancadas por esses animais fascinantes. Urubus também começaram a aparecer nas pias onde lavam a louça. Os urubus migraram para se alimentar dos peixes mortos. Só esse pequeno, muito pequeno acontecimento, muda o lugar para onde os urubus migraram e muda também o lugar que deixaram.

A natureza é muito mais delicada e complexa do que qualquer invenção humana. “Espero que a Justiça e o Ibama consigam garantir uma quantidade de água que nos permita viver na Volta Grande”, diz Bel Yudjá. “Já estamos nos transformando num cemitério de peixes, acredito que seremos um cemitério de árvores mortas. Estamos aqui, lutando, e esperamos que as pessoas se somem a nós nessa luta para que a Volta Grande possa continuar viva e a nossa vida deixe de estar ameaçada.”

A pergunta mais inconveniente

Desde que a água virou “insumo”, um objeto sujeito à administração para obedecer à necessidade de lucros de uma empresa e não às necessidades da vida de um pedaço da floresta tropical mais importante do mundo, a grande pergunta no Médio Xingu, é: como uma empresa é capaz de controlar a água de um rio e de um ecossistema inteiro e, portanto, a vida de humanos e não humanos? Como uma empresa pode ser dona da água?

Essa é uma pergunta que só pode ser formulada por quem ainda é capaz de se espantar com a forma como o capitalismo converte tudo em mercadoria. Quem vive nas cidades já tem dificuldades de se espantar e fazer perguntas como essa porque o sistema que destrói a natureza se tornou “natural”. Essa é uma inversão só possível pela mística do capitalismo, na qual o “selvagem”, o não sujeitado ao sistema, é apresentado como anomalia. Essa mistificação encobre a anomalia real, que é o sistema que nos últimos séculos destruiu o próprio planeta, nos trazendo ao momento atual, no qual a própria espécie se encontra ameaçada.

proliferação de negacionistas é a resposta de um sistema que já não consegue encobrir com os métodos tradicionais os sinais evidentes, que qualquer um já pode sentir em seu cotidiano, de que a vida humana no planeta está em risco. É o caso de Donald Trump, nos Estados Unidos, ocupando o cargo de maior poder da principal potência mundial, e de Jair Bolsonaro no Brasil, ao ocupar a presidência de um país estratégico para o controle do superaquecimento global, por ter 60% da floresta amazônica em seu território. Não basta usar os métodos tradicionais quando a realidade se impõe de forma tão contundente. É preciso provocar o caos instalando mentirosos no topo da cadeia.

Ainda assim, como a maioria vive em grandes cidades, as engrenagens são mais difíceis de enxergar porque já foram assimiladas, a maioria já nasceu dentro do sistema que a tritura e que lhe é apresentado como normalidade. Para os indígenas e ribeirinhos afetados por Belo Monte, não. Eles se abismam com aqueles que o pensador Yanomami Davi Kopenawa chama de “povo da mercadoria” ou “comedores de floresta”.

“Quanto vale a vida?”, perguntou Graça Yudjá, matriarca da aldeia Mïratu, a representantes da Norte Energia. “Essa é uma pergunta de levante da vida contra sua transformação em rendimento de energia elétrica”, diz a antropóloga Thais Mantovanelli em seu capítulo no livro Insurgências, ecologias dissidentes e antropologia modal (Imprensa Universitária). “A questão dos impactos da hidrelétrica tornou-se uma guerra para os povos afetados. Uma guerra de corpos índios, ribeirinhos, cromáticos, contra o monocromatismo dos uniformes azul-claros do corpo técnico burocrático de Belo Monte, que impõe o fim do fluxo das águas e o fim da circulação da vida.”

A implantação de Belo Monte e os impactos em cadeia gerados pela usina produziram, em uma década, uma catástrofe ecológica. E por isso Graça Yudjá se assombra. Catástrofes ecológicas só acontecem quando a vida é usurpada ao ganhar preço. É óbvio que o fato de o preço sempre ser baixo alarga o abismo, mas o crime fundador é a monetarização da vida para que seu valor possa ser comparado àquele gerado pelos lucros —e invariavelmente perder.

Na catástrofe ecológica produzida pelas forças que geraram Belo Monte, todos os elementos estão presentes. Um leilão suspeito de fraudes, seguido pela formação de um consórcio-construtor composto pelas maiores empreiteiras do país, que mais tarde seriam objeto de denúncias da Operação Lava Jato; a imposição sobre os povos originários e tradicionais, violando a legislação brasileira e também internacional; a repressão e criminalização dos protestos contra a usina promovidas por participantes de movimentos sociais, indígenas e ribeirinhos, usando a Força Nacional contra o povo; o uso do instrumento jurídico autoritário da Suspensão de Segurança para impedir que as obras fossem paralisadas e assegurar que a usina se tornasse fato consumado antes que as ações fossem julgadas; a utilização da Abin para espionar movimentos sociais em pelo menos um caso comprovado; analfabetos assinando papéis que não eram capazes de ler em que perdiam todos os direitos ou aceitavam indenizações irrisórias para deixar suas casas, terras e ilhas; o comportamento omisso (ou favorável à empresa) de órgãos federais e autoridades públicas que deveriam proteger o meio ambiente e os povos originários, mas não o fizeram ou o fizeram debilmente; a contratação de empresas de assessoria de imprensa que atuavam na desqualificação de jornalistas que denunciavam as violações de direitos na construção da usina, ao mesmo tempo em que faziam lobby junto à direção de jornais para enaltecer a “grande obra de engenharia”; mais recentemente, a contratação de advogados especializados em direito ambiental para processar jornalistas que denunciam os abusos da Norte Energia. Todo o funcionamento do sistema, que no caso de Belo Monte foi operado por um conluio entre Governo federal e empresas privadas, pode ser visto, identificado e analisado no caso Belo Monte.

Belo Monte é ao mesmo tempo paradigma, ao mesmo tempo laboratório. Apresentada como a maior hidrelétrica 100% brasileira, já que Itaipu é binacional, custou pelo menos o dobro do anunciado e hoje está orçada em torno de 40 bilhões de reais, grande parte desse montante financiado pelo setor público, no caso o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Divulgada como a quarta maior do mundo pela sua capacidade instalada de 11.000 megawatts, a verdade é que esse valor é apenas potencial. Como o rio Xingu vive metade do ano na seca, a real produção de energia, que no jargão técnico se chama “energia firme”, é, na média, menos da metade disso.

Essa é uma das principais razões pelas quais cientistas e técnicos apontavam —e apontam— a inviabilidade da hidrelétrica. Desde antes do início da construção, especialistas no setor elétrico já comprovavam que Belo Monte era inviável também para a produção de energia, devido à característica sazonal (estação de chuvas e estação de seca) do Xingu. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do jornal O Estado de S. Paulo, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, o EL PAÍS e o The Guardian revelaram que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.

Consenso em vez de polarização

Belo Monte mostra também como a ideologia para a Amazônia construída pela ditadura civil-militar (1964-1985) é persistente, ao manter-se viva e ativa na visão de desenvolvimento tanto da centro-esquerda como da extrema direita. Nesse olhar tipicamente de século 20, mas que no espectro partidário brasileiro ainda orienta os programas da maioria dos partidos, a floresta amazônica é tratada como objeto de exploração e seus povos são invisibilizados. Apesar de toda a polarização do país nos últimos anos, Belo Monte revelou-se o único consenso: a primeira turbina foi inaugurada por Dilma Rousseff (PT) e a última por Jair Bolsonaro (sem partido).

Durante a construção da usina, povos indígenas da região atingida, mesmo de recente contato, foram durante mais de um ano abastecidos com produtos industrializados, parte deles ultraprocessados. Para quem testemunhou o processo, foi como observar um experimento de laboratório em que povos originários foram usados como cobaias. O nome da pesquisa poderia ter sido: “como indígenas de recente contato da floresta amazônica se comportam ao ter sua alimentação repentinamente substituída por produtos industrializados”. O resultado foram doenças como obesidade, hipertensão e diabetes. O próprio Ministério da Saúde comprovou um aumento de 127% na desnutrição infantil entre 2010 e 2012 nas aldeias da região.

Desde o início da segunda década, o fluxo de indígenas na cidade de Altamira se intensificou, roças deixaram de ser feitas porque a comida chegava em latinhas e embalagens, o modo de vida foi profundamente alterado, a ponto de o Ministério Público Federal denunciar a Norte Energia SA por etnocídio indígena. Essa violenta transfiguração do território e da vida no território fez com que a covid-19 encontrasse as aldeias da região muito mais dependentes da cidade e dos produtos da cidade, o que expôs ainda mais a população originária aos riscos da pandemia. Belo Monte é também paradigma na produção de pobres, ao converter população tradicional da floresta em miseráveis nas periferias urbanas.

A corrupção do território também foi decisiva para converter Altamira na cidade mais violenta da Amazônia e uma das mais violentas do Brasil, com as periferias tomadas por facções criminosas. Em 29 de julho de 2019, essa violência foi decisiva para a irrupção do segundo maior massacre carcerário da história de país, ocorrido no presídio de Altamira, com 62 mortos no total. Nas periferias da cidade, há hoje uma geração de crianças sendo criadas pelas avós porque os pais foram assassinados nos últimos anos. Desde o início de 2020, Altamira testemunha uma série de suicídios de adolescentes, a maioria deles enforcados, fenômeno relacionado pelos especialistas à repentina e violenta transformação do território e do modo de vida da população produzidos por Belo Monte.

Um laboratório de resistência

O que os indígenas e ribeirinhos chamam de “roubo da água” é o mais recente capítulo. Certamente não será o último. Mas talvez seja o mais decisivo. Se não for impedido, como já foi amplamente denunciado por indígenas, ribeirinhos, cientistas, defensores públicos e procuradores da República, pode resultar no extermínio da Volta Grande do Xingu. Jansen Zuanon, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e um dos mais respeitados especialistas em peixes do país, explica que essa transfiguração da Volta Grande pode causar a extinção de espécies que só existem naquele ecossistema, como o famoso acari-zebra, personagem de adoração de visitantes que vêm de várias partes do mundo apenas para observá-lo em seu habitat. Jansen também explica que o que acontece com os peixes também acontece com as outras espécies e até mesmo com os humanos que vivem como natureza:

“A população humana e não humana que habita a Volta Grande está acostumada aos ritmos do rio e conhece os sinais. Essas populações organizaram as suas vidas em torno da previsibilidades desses ritmos. Quando uma empresa passa a regular a quantidade de água a partir da necessidade de energia demandada pelo operador nacional do sistema, uma entidade alheia ao Xingu e a todos os seus ciclos naturais, perde-se todo o sincronismo, desestruturando completamente os ciclos biológicos das espécies. Ao regular a água nas torneiras da usina, a empresa acaba afetando direta ou indiretamente todos os ciclos que acontecem na Volta Grande do Xingu. Nem os peixes, nem os tracajás (quelônios), nem mesmo os humanos conseguem reconhecer os sinais, que passaram a ser contraditórios. A única forma de impedir o desastre total é manter uma quantidade suficiente de água para todas essas espécies e manter também o ritmo natural. É necessário que seja previsível. Sem isso, a desestruturação do ecossistema será completo. Se Belo Sun conseguir se instalar, sobrepondo o seu impacto ao de Belo Monte, aí estaremos no fio da navalha.”

Enquanto Belo Monte seca a Volta Grande do Xingu e provoca um desastre ecológico e uma crise humanitária, com famílias ribeirinhas enfrentando a fome pela primeira vez, outra empresa, essa transnacional, avança sobre a Volta do Xingu. A mineradora de origem canadense Belo Sun pressiona há anos para a instalação do que é vendido como “a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil”. Para conseguir se instalar, produz um lobby intenso junto ao governo do Estado do Pará e junto aos parlamentares, em Belém, e também junto às comunidades locais da Volta Grande do Xingu, cada vez mais desamparadas e testemunhando seu mundo entrar em colapso. Se Belo Sun conseguir avançar, vai sobrepor o seu enorme impacto sobre o já enorme impacto de Belo Monte e deixará como legado uma montanha de rejeitos tóxicos cujos efeitos permanecerão por gerações.

Essa é a situação. No microcosmo chamado Volta Grande do Xingu é possível assistir, em tempo real, o movimento do capitalismo mais predatório em sua ação para subjugar a natureza e os povos que são natureza. É quase uma vitrine, um museu do presente ou, como é chamado pelo ambientalista Marcelo Salazar, “um museu de ruínas”.

A guerra da humanidade em transe climático está se passando lá, agora, em miniatura. Entre os que são natureza —e os que esvaziam a natureza e a convertem em mercadoria. Entre os que chamam o que é vivo de “recurso”— e os que chamam o que é vivo de “vivo”. Esse é o mesmo embate que, travado em larga escala no planeta, tem numa ponta os povos originários, a juventude climática liderada por Greta Thunberg e 99% dos cientistas do mundo, e, na outra, grandes corporações, governantes, políticos, executivos, advogados, publicitários e lobistas a seu serviço.

É por isso que os olhos do mundo se voltam cada vez mais para a Volta Grande do Xingu e Altamira, considerada epicentro da destruição da Amazônia. É importante sublinhar ainda que, se a região se tornou um laboratório da destruição, também tem se mostrado um laboratório de resistência. Contra forças imensamente mais poderosas e um poder econômico totalmente desigual, sofrendo no corpo os impactos da transfiguração de seu mundo, ribeirinhos, indígenas, pescadores, agricultores familiares e ativistas resistem. Nem por um dia sequer deram trégua à Norte Energia e mais recentemente também à Belo Sun.

Não podem, porém, seguir lutando sozinhos uma luta que é pelo planeta de todos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com | Email: elianebrum.coluna@gmail.com | Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


Maria Hermínia Tavares: O traçado de um desastre amazônico

Pressões sobre a mata, seus habitantes e sua biodiversidade vêm de muitos lados

"A Amazônia é o coração biológico do planeta Terra, e ele já não está mais batendo de forma saudável", costuma comparar o cientista Carlos Nobre, voz influente no debate sobre o aquecimento global.

Identificar em detalhe as ameaças a esse formidável bioma e localizá-las na vastidão dos seus 8,2 milhões de km2 é o propósito do "Atlas Amazônia sob Pressão 2020", recém-lançado pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georeferenciada (Raisg), consórcio que reúne organizações não governamentais de seis dos nove países que o abrigam.

São 23 mapas preciosos, acompanhados de textos que descrevem os riscos à integridade da floresta. As cartas permitem seguir as mudanças, em geral negativas, ali ocorridas entre 2012 e 2018, oferecendo um amplo panorama do desastre ambiental em curso e dos processos que o desencadeiam.

As pressões sobre a mata, seus habitantes e a biodiversidade nela abrigada vêm de muitos lados. Entre 2001 e 2009, queimadas acidentais ou, sobretudo, resultantes da expansão da agricultura e da pecuária cobriram um território equivalente ao da Bolívia --por sinal, o segundo maior responsável, depois do Brasil, por esse tipo de catástrofe.

Como se sabe, ou se deveria saber, a degradação da floresta começa pelo fogo, mas pode vir também com obras de infraestrutura, desfigurando a paisagem à margem de estradas ou no entorno de hidrelétricas.

A mineração legal e a extração de petróleo são dois outros fatores de pressão em quase todos os países amazônicos. Além de destruir a floresta, contaminam os rios e, por tabela, os peixes que alimentam os humanos. Pior ainda quando se trata de mineração ilegal. O atlas identificou nada menos de 4.472 locais de atividades extrativas ilícitas, muitas de escala média ou grande, localizadas principalmente no Brasil (58%) e na Venezuela (32%), não raro em áreas de preservação ambiental ou em territórios indígenas. Ilegais são também os plantios de coca nas matas devastadas da Colômbia e do Peru.

O atlas permite uma visão mais complexa dos problemas da Amazônia. Além disso, expõe os governos incapazes de se contrapor aos interesses privados predatórios --quando não coniventes com eles--, alheios ao destino das populações da região e medíocres demais para criar estímulos ao aproveitamento sustentável das riquezas imensuráveis da floresta tropical.

Fosse outro o governo brasileiro, este seria o momento de transformar o Tratado de Cooperação Amazônica de 1978 em instrumento de diplomacia efetiva capaz de promover um esforço compartilhado pela saúde do coração do planeta.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.