meio ambiente
Luiz Carlos Azedo: O retrato da (in)governança
“A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país”
A foto divulgada pelo presidente Jair Bolsonaro no Twitter, na noite de domingo, com as sete pessoas mais importantes da República –– excluídos o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, e vice-presidente Hamilton Mourão ––, após uma reunião fora da agenda no Palácio da Alvorada, diz muito mais sobre o que se deixa de fazer do que sobre qualquer outra coisa. Embora os assuntos tratados, segundo o post, fossem muito relevantes: vacina, auxílio emergencial, emprego e situação da pandemia. As conclusões da reunião são um mistério.
Quem são as autoridades na foto? Além de Bolsonaro, os generais Braga Neto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Eduardo Pazuello (Saúde), todos sem máscara, a atitude mais negativista possível em relação à pandemia; os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, esses com máscaras. Evidentemente, a foto sinaliza força política, os pilares da governabilidade: a união entre os generais do Palácio do Planalto e os chefes do Legislativo, além do homem que toma conta do cofre da União, em torno do presidente da República.
Mais governabilidade, impossível. Entretanto, a foto é o retrato da crise de governança em que o país está sendo lançado. A reunião não apontou um rumo. Muito pelo contrário, a crise sanitária se agrava, a escassez de vacinas retarda a imunização em massa, permanece o impasse sobre a PEC Emergencial, a economia desanda. Não foi à toa que o dia de ontem foi pautado pelas manifestações de governadores e prefeitos cobrando mais responsabilidade do governo federal e do Congresso no enfrentamento da crise sanitária. Na semana passada, como em outras, não era essa a prioridade de Bolsonaro e das principais lideranças do Poder Legislativo.
Há uma grande diferença entre governabilidade e governança. A expressão “governance” é uma invenção do Banco Mundial (Bird), focada na existência de um “Estado eficiente”. É a maneira pela qual o poder é exercido na administração dos recursos sociais e econômicos de um país visando ao desenvolvimento, ou seja, a sua capacidade de planejar, formular e implementar políticas e cumprir funções. Ao formular o conceito, o Bird considerou dois aspectos: o desenvolvimento sustentado, o que inclui equidade social e direitos humanos, e os procedimentos governamentais, entre os quais a articulação público-privada e a participação dos interessados nas decisões.
Pintando meio-fio
A alta burocracia do governo federal foi treinada para operar os dois conceitos, com os quais Bolsonaro não tem intimidade. Demorou para valorizar a governabilidade, que se refere à dimensão estatal do exercício do poder, suas condições sistêmicas, como as relações entre os poderes e a intermediação de interesses. A governança, porém, ainda é como aquele caviar do samba de Barbeirinho e Marcos Diniz, consagrado na voz de Zeca Pagodinho: “Nunca vi, nem comi/ eu só ouço falar”.
A governança não se restringe aos aspectos gerenciais e administrativos do Estado. Refere-se a padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais, coordenação e regulação de transações dentro e através das fronteiras do sistema econômico e do mundo social, como o consórcio que prefeitos estão formando para fazer o que o governo não faz: comprar vacinas. A crise sanitária escancara a incapacidade de o governo pôr em movimento, de forma coordenada e a partir de amplos consensos, as políticas públicas do país.
Infelizmente, os generais que comandam o Palácio do Planalto não trabalham com os demais entes federados e a sociedade na base da cooperação e coordenação (como recomenda a moderna doutrina militar). Sob o comando de Bolsonaro, operam de forma prussiana, vertical, hierarquizada, de cima para baixo, como quem manda pintar de branco o meio-fio dos quarteis ou tomar ivermectina e cloroquina contra a covid-19. Além de um centro, essa visão das coisas tem um método: manda quem pode, obedece quem tem juízo. O resultado é que o país está paralisado, sem rumo, como o coelho hipnotizado pela serpente.
Luiz Carlos Azedo: Avante para o passado
Há uma evidente contradição entre a retórica do ministro Paulo Guedes e as ideias positivistas e nacionalistas que caracterizam a mentalidade dos militares brasileiros
Onde foi que o Brasil perdeu o rumo? Essa pergunta tem muitas respostas, que variam de acordo com a ideologia do interlocutor. Mas, se olharmos para o passado, veremos na morte do presidente Tancredo, eleito pelo colégio eleitoral em 1985, depois de grandes mobilizações populares em seu apoio, o momento em que um projeto liberal com ampla base política e social foi abortado. O 21 de abril daquele ano, contraditoriamente, foi a morte do projeto liberal. Nunca mais houve no país uma correlação de forças como aquela, que lhe desse sustentação para fazer coincidir a democratização do país com a ultrapassagem do modelo nacional desenvolvimentista, que havia se esgotado.
Vice eleito, José Sarney, oriundo da Arena, ao assumir a Presidência, se viu contingenciado pelo liberalismo social de Ulysses Guimarães e por forças políticas social-democratas, trabalhistas, socialistas e comunistas, à sua esquerda, que derrotaram o Centrão na Constituinte. A sucessão de planos econômicos de seu governo, a começar pelo Plano Cruzado, que resultou na hiperinflação, foi resultado direto do experimentalismo econômico desenvolvimentista, que buscava alternativas para recidiva de um modelo econômico que já tinha dado o que tinha que dar. Em que pese suas críticas ao caráter social da Constituição de 1988, o máximo de liberalismo a que o governo Sarney chegou foi a política “feijão com arroz” do seu último ministro da Fazenda, Maílson da Nobrega.
Outra oportunidade para a agenda liberal foi a eleição de Fernando Collor de Mello, que fez campanha com um programa dessa natureza, mas, tão logo assumiu a Presidência, deu um cavalo de pau e lançou um plano que também naufragou, no qual o confisco da poupança lhe surrupiou o apoio da classe média. Seu legado foi a abertura comercial da economia, que não é pouca coisa, se levarmos em conta a política de reserva de mercado adotada pelo regime militar, desde o chamado “milagre econômico”, na década de 70, do qual herdamos o atual modelo de transporte rodoviário, o atraso tecnológico na área de informática e um sistema de saneamento que não trata o esgoto e multiplica as caixas d’água.
Talvez, a mais engenhosa política econômica de nossa história republicana, desde o Acordo de Taubaté, tenha sido o Plano Real, lançado no governo Itamar Franco, pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que viria a governar o país por dois mandatos. É falsa a ideia de que era um plano neoliberal, disseminada pelo PT até hoje. A própria existência de uma disputa entre social-liberais e desenvolvimentistas no governo tucano é a prova disso. Houve, sim, uma reforma bancária que consolidou nosso sistema financeiro e uma reforma patrimonial que privatizou a maior parte do setor produtivo estatal, em áreas que estavam em obsolescência industrial, como mineração e siderurgia, e de serviços, sobretudo a telefonia, que era um entrave à produtividade da economia. Mesmo se quisesse, não havia como financiar a modernização desses setores.
Social-liberal
A política de “focalização” do gasto social nas camadas mais pobres da população é social-liberal. Foi adotada no governo FHC e mantida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a diferença de escala na transferência de renda, com o Bolsa Família, que beneficiou 50 milhões de pessoas. A guinada nacional-desenvolvimentista na política econômica somente veio a ocorrer no segundo mandato de Lula, sob comando do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega e a influência direta da então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, o “poste de saias” que sucedeu Lula. A nova matriz econômica surgiu com medidas anticíclicas, para enfrentar a crise do mercado financeiro americano de 2008, mas acabou virando estratégia de desenvolvimento, que fez renascer das cinzas o velho modelo nacional desenvolvimentista, tendo por eixo as empresas estatais, os investimentos em infraestrutura e a política de “campeões nacionais” do BNDES. Os resultados, todos conhecem: a economia entrou em colapso, a inflação disparou, o escândalo da corrupção na Petrobras desmoralizou o governo petista. Dilma acabou apeada do poder pelo impeachment.
O vice Michel Temer, ao assumir o governo, foi o último presidente da República a apresentar um projeto liberal com começo, meio e fim, a chamada “Ponte para o futuro”. Entretanto, não tinha tempo para implementá-lo, diante da recessão e da necessidade de domar a inflação, além da falta de perspectiva política provocada pelas denúncias do procurador-geral Rodrigo Janot, com base na delação premiada da JBS. Quem agarrou a bandeira da agenda liberal com as duas mãos foi Jair Bolsonaro, eleito presidente da República em 2018, com o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, como garoto propaganda. Mas há uma evidente contradição entre a retórica do ministro e as ideias positivistas e nacionalistas que caracterizam a mentalidade dos militares brasileiros.
Essa contradição se tornou cristalina neste episódio de mudança de comando na Petrobras, com a substituição de Roberto Castelo Branco, um executivo civil, pelo general Silva e Luna, prontamente apoiada pelo ex-senador Aloizio Mercadante (PT-SP), por se tratar de um “nacionalista”. É evidente a fritura de Guedes, cada vez mais enfraquecido. Na economia, sempre houve certa convergência entre as concepções nacionalistas dos militares e as ideias anti-imperialistas da esquerda tradicional. Com Bolsonaro no poder, é possível desenhar um cenário para as eleições de 2022 no qual essas forças se confrontarão novamente, como em 2018. Ainda não surgiu um político capaz de articular a agenda liberal e galvanizar o apoio popular, como Tancredo Neves.
Hélio Schwartsman: As tentações do imediatismo
Abraçado ao centrão, Bolsonaro dá rédeas soltas ao imediatismo econômico
Jair Bolsonaro descobriu o caminho das pedras. Ele até que tentou seguir as bandeiras de sua campanha eleitoral, na qual rejeitou o "establishment" político, notadamente o centrão, e afirmou que governaria com o apoio de frentes parlamentares, em especial o das bancadas BBB (bíblia, boi e bala).
É óbvio que não deu certo. Ironicamente, foi uma derrota sua no Congresso, o generoso auxílio emergencial de R$ 600, que o fez experimentar as delícias do populismo. Com a ajuda de emergência, até grupos demográficos que pareciam bastiões inexpugnáveis do PT passaram a aprovar a gestão do capitão reformado.
Bolsonaro gostou e agora, abraçado ao centrão, dá rédeas soltas ao imediatismo econômico. Acaba de intervir na Petrobras e ameaça fazer o mesmo no setor elétrico, para assegurar preços baixos aos consumidores/eleitores.
O imediatismo é um dos muitos problemas que assombram as democracias. Pela lógica imposta por mandatos de quatro anos, sempre vale a pena para o governante sacrificar o futuro para se dar bem no presente. Como o auxílio emergencial mostrou, é fácil arrancar aplausos distribuindo benesses.
Os termos da equação seriam alterados se os mandatos durassem 20 ou 50 anos. Nesse cenário, responsabilidade fiscal e uma estratégia política baseada em ganhos incrementais mas constantes ganhariam importância eleitoral. Não recomendo, porém, o esticamento dos mandatos. Aí perderíamos uma das principais virtudes da democracia, que é a relativa facilidade com que ela despacha os maus políticos para casa.
O sistema só funciona bem quando o "establishment" se convence da necessidade de preservar o médio e o longo prazos e veta os arroubos populistas mais escandalosos dos dirigentes de turno. Até pareceu que o Brasil havia chegado a esse ponto de amadurecimento institucional nos anos FHC, Lula 1 e a primeira metade de Lula 2, mas, como vimos, era só uma ilusão.
Eliane Brum: Governo Bolsonaro decreta a morte de um pedaço da Amazônia
Ao autorizar Belo Monte a secar a Volta Grande do Xingu, o Ibama mudou de lado e assinou a permissão para um ecocídio na maior floresta tropical do mundo
A Amazônia é hoje a principal razão para o Brasil manter alguma relevância internacional. É da conservação da maior floresta tropical do planeta, o maior sumidouro terrestre de carbono do mundo, que dependem os principais acordos internacionais, como o maior de todos eles, o do Mercosul com a União Europeia. É também da sobrevivência da floresta que cada vez mais dependem a autorização e a aceitação dos produtos brasileiros nos mercados europeus e nos Estados Unidos de Joe Biden. Estratégica para controlar o superaquecimento global, a Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno, como têm repetidamente alertado cientistas com reconhecimento global, como Carlos Nobre. No momento em que a floresta se converter numa savana, o Brasil será apenas um país com desigualdade abissal, racismo criminoso, miséria em expansão e um presidente que virou piada no mundo. Terá também cometido um suicídio econômico, ao matar a floresta que regula o clima que permite a agricultura, afetando toda a cadeia de produção de alimentos e alguns dos principais produtos de exportação.
Nesse contexto, e num momento de progressiva recessão, o que o Governo Bolsonaro fez, pressionado por setores da política e do mercado interessados em manter o controle do sistema elétrico e faturar com ele? Autorizou a Norte Energia SA, empresa concessionária da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a liberar um volume de água para a Volta Grande do Xingu que comprovadamente, tanto pelos estudos científicos quanto pela experiência prática, é insuficiente para manter a vida. O que está acontecendo agora, nesse momento, é o que o direito internacional chama de “ecocídio” e que consiste no extermínio de um ecossistema inteiro. O que mata a natureza, como a emergência climática e também as pandemias já provaram, mata também a possibilidade de sobrevivência da espécie humana.
A autorização para o ecocídio aconteceu em 8 de fevereiro e foi celebrada nas páginas de economia de alguns dos principais jornais do Brasil. Nenhum outro acontecimento é mais grave e nenhum é mais escandaloso, com possível exceção da escalada da covid-19 sem confinamento nem plano de vacinação responsável. Uma semana antes de autorizar Belo Monte a reduzir drasticamente a água para a Volta Grande do Xingu, o mesmo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) considerou a vazão proposta pela empresa para a Volta Grande do Xingu inaceitável por não haver estudos confiáveis capazes de comprovar a segurança socioambiental de uma das regiões mais biodiversas da Amazônia.
Em linguagem dura, a área técnica do Ibama determinou que a Norte Energia S.A. refizesse os estudos e voltasse a apresentá-los: “Faltou dados de base para testes e comprovação dos resultados, faltou esclarecimento como fontes e origem de dados, faltou clareza na redação do texto, citações sem resultado e sem discussão. (...) A presente análise também discorda da suposta validação do modelo. (...) Essa análise NÃO considerou satisfatória as respostas dadas aos questionamentos 1,2 e 4. (...) Por fim, verificou-se conclusões baseada em especulações sobre garantia de manutenção de ambientes aquáticos sob vazões do hidrograma de testes sem dados dos estudos bióticos”.
Percebam que não são minhas as palavras, mas do próprio Ibama. Desde 2020, a Norte Energia luta na Justiça contra as decisões do órgão ambiental pela quantidade de água na Volta Grande. O parecer técnico citado tem a data de 1º de fevereiro de 2021 (leia na íntegra). Apenas uma semana mais tarde, em 8 de fevereiro, o diretor-presidente do Ibama, o advogado Eduardo Fortunato Bim, ignorou a avaliação técnica e autorizou a Norte Energia a liberar quase SETE VEZES MENOS a quantidade média de água que o Ibama havia determinado anteriormente como o mínimo essencial ―e quase NOVE VEZES MENOS a quantidade média de água da vazão natural do rio em fevereiro, época da cheia. A Norte Energia agora está oficialmente autorizada a liberar insuficientes 1.600 metros cúbicos de água por segundo, em vez dos 10.900 metros cúbicos por segundo determinados anteriormente pela área técnica do Ibama e dos 14.000 metros cúbicos por segundo da vazão natural média do Xingu nessa época do ano.
Para “compensar” a destruição da Volta Grande, a presidência do Ibama fez um “Termo de Compromisso Ambiental” com a Norte Energia, pelo qual a empresa “investe” 157,5 milhões de reais em ações de mitigação ao longo de três anos (leia na íntegra). Por exemplo: já que vão exterminar os peixes, que já não conseguem nem se alimentar nem se reproduzir, peixes que neste exato momento deveriam estar fazendo a piracema, mas em vez disso estão morrendo por falta de água, a empresa faz um projeto de reprodução de peixes em laboratório. É sério, não é piada. Antes fosse. Troca-se um pedaço da floresta por uma série de projetos artificiais que já se mostraram pouco viáveis nas compensações anteriores da Norte Energia que, na maioria das vezes, só enriquecem as empresas contratadas para executá-las.
Vale lembrar que a Norte Energia S.A. comprovadamente ainda não concluiu a totalidade das ações de mitigação necessárias para ter a licença de operação da usina ―e já opera desde 2016. A licença para operação foi dada pelo Ibama no final de 2015 sem que a empresa tivesse cumprido as condicionantes que condicionavam a operação. O que condicionava deixou de condicionar, num dos grandes escândalos de uma trajetória repleta deles.
As novas medidas supostamente compensatórias vão para essa conta de fiado que nenhum mercadinho de esquina aceitaria, mas o Governo brasileiro, sim. Inclusive porque quase metade (49,98%) das ações da Norte Energia é hoje composta pelo Grupo Eletrobras, um grupo composto por estatais. O segundo maior grupo de acionistas são fundos de pensão (20%), Petros e Funcef, o que significa que são fundos de previdência complementar dos funcionários da Petrobras e da Caixa Econômica Federal. Seria interessante saber o que os servidores pensam de sua previdência estar conectada com um desastre ecológico na Amazônia. A compensação, além de impossível na prática, é apenas uma promessa, já que o passivo da empresa é enorme, como provam mais de 20 ações do Ministério Público Federal (confira aqui).
Na prática, o presidente do Ibama autorizou que a empresa altere completamente o ciclo biológico da Volta Grande do Xingu, atingindo pelo menos dois povos indígenas, os Yudjá (também conhecidos como Juruna) e os Arara, o que é inconstitucional, assim como comunidades de ribeirinhos, de pescadores e de agricultores familiares. Autorizou também a degradação do Xingu, um dos maiores rios da Amazônia, além de toda a fauna e a flora da Volta Grande, uma das regiões mais extraordinárias da floresta, com algumas espécies endêmicas, como o acari zebra, o que significa que só existem naquele bioma e desaparecerão com ele. O presidente do principal órgão ambiental do Governo brasileiro autorizou uma empresa a controlar a água de um dos grandes tributários do Amazonas e destruir um pedaço da maior floresta tropical do mundo e engana a população afirmando que seria possível compensar a tragédia ecológica provocada. A floresta é um organismo integrado, complexo e interdependente, assim como o próprio planeta. O que acontece na Volta Grande do Xingu repercute em todo o sistema e vai acelerar a escalada da Amazônia rumo ao ponto de não retorno, no qual a floresta se converte numa savana.
O que aconteceu para que a área técnica do Ibama diga não e a área política diga sim? Pressão do que se chama setor elétrico e de seus agentes. E pressão com o apoio das editorias de economia de alguns dos grandes jornais do país ―sendo a principal exceção o repórter André Borges, de O Estado de S. Paulo, que tem feito uma cobertura irretocável. Desde janeiro há um cerco intenso sobre o Ibama e também sobre a opinião pública. As notas vazadas para a imprensa e, na maioria das vezes, reproduzidas sem crítica, anunciavam a ameaça de colapso do sistema elétrico do país caso o Ibama recusasse o volume de água demandado pela Norte Energia que, vale repetir, é comprovadamente incompatível com a manutenção do ecossistema da Volta Grande do Xingu.
Em 15 de dezembro, o Ministério de Minas e Energia já havia afirmado em ofício: “Conclui-se que as alterações no Hidrograma definido para a UHE Belo Monte, avaliadas pela ótica da geração de energia elétrica, se traduzem em relevantes impactos negativos ao setor elétrico brasileiro, com efeitos diversos, sistêmicos e coletivos, de planejamento, comerciais e operacionais, afetando, inclusive, a segurança energética”.
Em 27 de janeiro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) enviou um ofício ao Ibama, assinado pelo diretor-geral, André Pepitonne da Nóbrega, afirmando: “Sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto, o impacto estimado da medida aplicada nos dois primeiros meses de 2021, janeiro e fevereiro, seria próximo a 1,3 bilhão de reais para o consumidor final de energia elétrica”. O ofício (leia aqui) foi reproduzido como matéria por parte da imprensa sem mencionar o impacto socioambiental de uma vazão de água enormemente reduzida para a Volta Grande nem explicar como o diretor-geral da Aneel chegou a esse cálculo, para além da mera afirmação de que isso se deveria ao custo do “aumento da produção em usinas termelétricas”, mais caras e poluentes.
Em 28 de janeiro, o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, enviou uma nota técnica ao Ibama, afirmando: “Em resumo, sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental que foge das atribuições desta Secretaria, e assumindo as consequências energéticas apresentadas pelo ministério setorial responsável (Ministério de Minas e Energia), a manutenção pelo IBAMA do referido hidrograma pode atrapalhar a necessária retomada do crescimento econômico do país após crise sanitária sem precedente, importando riscos à ordem e à economia pública”. (O grifo é por minha conta, leia aqui)
Percebam que tanto o Ministério da Economia como a Aneel usam a malandragem de uma ressalva: “sem adentrar aos aspectos ambientais do assunto”, caso da Aneel, ou “sem entrar em qualquer discussão jurídica ou de mérito ambiental”, caso do Ministério da Economia. Como é possível fazer uma análise, no ano de 2021, sem abarcar a questão ambiental, isso em qualquer região do globo, e ainda com mais ênfase, na Amazônia? Não é preciso ter curso rápido de economia para compreender que isso é ou má fé ou incompetência ou ambas. Meio ambiente não é um tema paralelo, mas a linha que atravessa todos os outros temas. Tratar o meio ambiente como tema tangencial é de uma ignorância imperdoável e inaceitável neste momento histórico. Meio ambiente é a nossa casa, essa que a juventude climática denuncia que está em chamas ―e está. E, graças ao Brasil governado por Bolsonaro, também literalmente.
Vale lembrar que o fundo soberano da Noruega, o maior do mundo, excluiu a Eletrobras em 2020 devido às violações humanas e ambientais ocorridas na construção e operação de Belo Monte. “Risco inaceitável de que ela [Eletrobras] contribua para violações graves ou sistemáticas dos direitos humanos” foram as palavras usadas. Hoje, são os setores econômicos internacionais que mais pressionam pela conservação da Amazônia, não porque seus dirigentes repentinamente tenham se transformado em ecologistas, mas porque não são burros. E porque têm mais de dois neurônios são capazes de compreender que, sem a floresta não há futuro para a espécie e, portanto, também não haverá nem consumidores nem lucro. Se algum funcionário, mesmo de baixo escalão, fizesse qualquer análise de impacto sem “adentrar o tema ambiental” em qualquer organismo internacional ou em qualquer grande empresa com competividade hoje estaria demitido. O mesmo vale para jornalistas de economia. Aparentemente, os dirigentes brasileiros se formaram no século 20 e nunca mais leram nada. Ou, talvez, ficaram retidos ainda nos primeiros tempos da revolução industrial.
É também por violações ambientais, especialmente na Amazônia, que o acordo da União Europeia com o Mercosul naufraga nos parlamentos de países europeus. Nesta sexta-feira, por exemplo, o Fridays For Future, movimento liderado pela sueca Greta Thunberg, fará um tuitaço global pedindo que os parlamentos dos países europeus não ratifiquem o acordo da União Europeia com o Mercosul por causa da destruição da Amazônia. Duas de suas líderes vieram ao Brasil de barco à vela no final de 2019 para conhecer a floresta e conversar com lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas no evento Amazônia Centro do Mundo, que aconteceu na Terra do Meio e em Altamira, no Pará, com a presença de Raoni e Davi Kopenawa, entre outros intelectuais da floresta.
Não há nada mais imbricado com o tema ambiental hoje, num mundo em colapso climático, que a economia. Mas os dirigentes da área no Brasil acham perfeitamente normal fazer a análise de um fato que resultará em enorme impacto ambiental sem “adentrar na questão ambiental”. A pasta de Paulo Guedes também achou apropriado usar expressões típicas de governos autoritários, sempre sacadas do coldre quando é necessário apavorar a população: “riscos à ordem e à economia pública”.
Nenhuma análise pode ser levada a sério sem o custo socioambiental. O Brasil tem sido fortemente pressionado e vem perdendo investimentos e mercado para seus produtos por conta do aumento da destruição da Amazônia, mas abre 2021 decretando o fim de um pedaço da floresta. Ao contrário dos impactos da alegada redução da produção de energia por Belo Monte, os impactos socioambientais sobre a Volta Grande do Xingu são bem acompanhados e documentados pelos melhores cientistas há anos. Basta ler as pesquisas e documentos. No mais recente, datado de 28 de janeiro e apresentado ao Ministério Público Federal, alguns dos principais pesquisadores brasileiros afirmam (leia na íntegra):
“Considerando que as populações indígenas e ribeirinhas moradoras da Volta Grande do Xingu têm como fundamento de seu modo de vida a codependência com os processos ecossistêmicos da região, quaisquer alterações imponderadas, imprudentes e/ou precipitadas desses processos levam a cenários de fragilização desses povos num sentido amplo da expressão. Trata-se da imposição irreversível de perda da soberania alimentar das famílias locais que tende a ser agravada para as próximas gerações, de fragilização econômica associada à perda de biodiversidade vegetal e animal, além da perda de qualidade de vida e de saúde dessas e das próximas gerações”.
Desde antes de sua construção, especialistas no setor elétrico já denunciavam que Belo Monte serviria mais para produzir propina do que energia, já que o rio Xingu vive uma estação de seca por metade do ano. Mesmo assim, a obra foi construída: orçada em 19 bilhões de reais no leilão, em 2010, o custo hoje já ultrapassou os 40 bilhões de reais, a maior parte financiado por dinheiro público do BNDES. A corrupção foi finalmente exposta pela Operação Lava Jato, ao revelar propinas pagas pelas empreiteiras que construíram a obra ao PMDB e PT, partidos no poder durante a construção.
Grande parte dos alertas feitos pelo painel de especialistas que analisou o impacto do projeto de Belo Monte sobre o ecossistema antes mesmo do leilão da usina se confirmaram. Em dezembro de 2019, o repórter André Borges, do Estadão, denunciou que a Norte Energia havia solicitado à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorização para construir usinas térmicas para compensar os meses de seca do Xingu. Além de caras, as térmicas são altamente poluentes. Semanas antes, EL PAÍS e The Guardian já tinham revelado que, em carta à diretora-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias Ferreira, o diretor-presidente da Norte Energia, Paulo Roberto Ribeiro Pinto, afirmava que precisava alterar a vazão do reservatório intermediário da hidrelétrica de Belo Monte devido à seca severa do Xingu, para evitar danos estruturais na barragem principal.
Além da inviabilidade técnica da usina, da corrupção e da destruição ambiental com efeitos em todo a região amazônica, a construção de Belo Monte foi determinante para converter Altamira, a principal cidade do Médio Xingu, na mais violenta da Amazônia. Em julho de 2019, a cidade foi também palco do segundo maior massacre carcerário da história do Brasil, com 62 mortos, a maioria decapitados ou queimados. Hoje, a cidade enfrenta, em plena pandemia, uma série de suicídios de crianças e adolescentes. A usina também foi determinante para tornar a região epicentro de desmatamento e de queimadas. Causou ainda grande impacto na saúde da população. O próprio Ministério da Saúde apontou o enorme aumento da desnutrição infantil de crianças indígenas durante a construção. Profissionais da saúde mental ligados à Universidade de São Paulo documentaram o impacto da expulsão do território produzida pela usina sobre a população ribeirinha no projeto Refugiados de Belo Monte. Obra totalmente paradoxal no cenário político do Brasil, a primeira turbina foi orgulhosamente inaugurada pela ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016, e a última orgulhosamente inaugurada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro (sem partido), em 2019.
O atual e avançado capítulo de destruição é o que a Norte Energia e parte do governo, do mercado e da imprensa chamam de “Hidrograma de Consenso”, um nome digno da distopia de George Orwell. Na nota técnica do início de fevereiro, o próprio Ibama diz que não há consenso algum. Nas palavras literais: “Consideradas as evidências documentais de que os cronogramas A e B [vazões alternadas] NÃO foram oriundos de discussões técnicas envolvendo o Ibama, mas de uma decisão unilateral por parte do empreendedor, esse parecer se restringe aos mesmos como HIDROGRAMAS DE TESTE, e não de consenso”. (A caixa alta é do Ibama, não minha).
O “teste” mostrou o que já era antecipado pelos cientistas, a incompatibilidade entre uma quantidade tão reduzida de água e a reprodução da vida. O juiz federal que deu decisão favorável ao Ibama em detrimento da Norte Energia, no ano passado, baseou sua sentença no “princípio da precaução, da prevenção e da inversão do ônus da prova”. Assim, “impôs ao empreendedor o dever de provar que a sua atividade questionada não causa ou não está causando danos ao meio ambiente”. Como afirmou a área técnica do Ibama, a Norte Energia não conseguiu provar: “Esse parecer não considera adequada a abordagem dada pelo relatório técnico [da Norte Energia], sugerindo sua DEVOLUÇÃO e readequação”. (mais uma vez, a caixa alta é do Ibama, não minha).
E então veio a motosserra da área que se diz econômica, com a ameaça do colapso energético, do risco à segurança nacional e do enorme “ônus aos consumidores”. Na prática, o Governo Bolsonaro rifou a Volta Grande do Xingu por supostos 157,5 milhões de reais para uma usina que custou mais de 40 bilhões, cuja principal acionista é a Eletrobras. E qual é o plano para a Eletrobras? A privatização, no qual o enorme passivo ambiental e humano de Belo Monte, consolidada no cenário internacional como uma catástrofe ecológica na Amazônia, é um sério entrave, porque isso que se costuma chamar de “mercado” é ávido e inescrupuloso, mas não é burro. Quem ganha? Quem perde? Os interesses em torno de Belo Monte, desde antes do seu controverso leilão, têm se mostrado bem pouco republicanos.
Aceitando por um momento, apenas como exercício mental, que os interesses são pelo bem público, que existe uma preocupação genuína com a questão energética e que os dirigentes podem provar aquilo que afirmam: colapso energético, ameaça à segurança nacional, 1,3 bilhão de ônus para os consumidores etc. Aceitando, apenas hipoteticamente, que essas afirmações estariam corretas e foram proferias de boa fé, o que temos do outro lado? O colapso já em curso de uma região de 130 quilômetros de floresta tropical habitada por povos indígenas, ribeirinhos, pescadores e agricultores familiares, além de espécies de fauna e flora ainda não totalmente conhecidas, em um dos rios mais biodiversos do mundo. E isso num momento em que as principais autoridades do mundo, em todas as áreas, afirmam que a crise climática é o maior desafio da trajetória humana e que, para enfrentá-la, a Amazônia é estratégica. Este colapso, por sua vez, está totalmente documentado pelos cientistas mais respeitados para quem quiser se informar e estudar.
Aceitando ainda, apenas hipoteticamente, que a redução da produção de Belo Monte significaria um risco real de colapso energético, é importante assinalar que isso tornaria o planejamento brasileiro para o setor um arcaísmo incompatível com o atual momento global. Enquanto outros países, com muito menos potencial que o Brasil, têm feito enormes investimentos em energia solar e eólicas, o Brasil destrói a floresta e planeja destruir ainda mais, como já mostrou ao anunciar recentemente a retomada dos projetos hidrelétricos na Amazônia. Nenhum profissional sério hoje considera hidrelétrica na Amazônia “energia limpa”. Essa visão já foi totalmente superada pelas evidências bem documentadas da realidade e da ciência.
Aceitando apenas hipoteticamente que as duas premissas (e não apenas uma) são verdadeiras ―a do colapso ecológico, amplamente documentado, e a do colapso energético, essa apenas na boca de algumas autoridades do atual governo e suas visões ultrapassadas―, não seria sensato seguir o princípio básico da precaução? Algo dessa magnitude e impacto na maior floresta tropical do mundo não deveria ser ao menos amplamente discutido e com toda a sociedade? É assim, numa canetada, que o Governo de Bolsonaro condena um pedaço da Amazônia?
Destruir a floresta é destruir os padrões de chuva e do clima. É destruir a produção de alimentos, a renda dos agricultores e a competitividade e aceitação dos produtos brasileiros no mercado internacional. É impactar as condições de vida dos moradores de São Paulo e do Rio de Janeiro. É atingir o futuro de todos os habitantes do planeta. É disso que se trata. E, como o Governo é o agente da destruição, resta a nós impedir que mais um crime, esse de enormes proporções, aconteça. Ou a sociedade brasileira e global se mobiliza ou o ecocídio será consumado. Se a Volta Grande do Xingu morrer, estaremos dando mais um passo rumo ao nosso próprio suicídio como espécie.
Nesta quarta-feira, 17 de fevereiro, o guerreiro indígena Aruká Juma morreu de covid-19. Ele era o último homem dos Juma, povo amazônico exterminado ao longo das últimas décadas por sucessivos ataques genocidas. O risco da pandemia para um povo de recente contato era conhecido e a construção de uma barreira sanitária foi determinada pelo Supremo Tribunal Federal. O Governo de Jair Bolsonaro não a fez. E o último Juma morreu. Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), no início do século 20 o povo Juma contava com 15.000 pessoas. Em 2002, estavam reduzidos a cinco ―um, dois, três, quatro, cinco. Hoje, não resta nenhum homem. O Governo Bolsonaro terminou de extinguir um povo e acaba de determinar a morte da Volta Grande do Xingu. Se seguirmos calados, é melhor sepultar logo isso que chamamos de Brasil. Numa vala comum, já que estão faltando covas nos cemitérios para tantos mortos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Raul Jungmann: Biden e a Amazônia
Um dos primeiros atos do Presidente Joe Biden significou uma reviravolta profunda no posicionamento dos Estados Unidos frente à crise climática e, por tabela, na relação com o Brasil e a Amazônia. Me refiro a “Executive Order in Climate Change Policy”, que contém três inovações maiores, dentre outras.
Em primeiro lugar, a alocação do tema “crise climática” à Defesa e Segurança Nacional dos EUA, revelando um senso de urgência e importância estratégica globalmente inequívocas e inéditas. Em segundo, a coordenação de todo o governo – ministérios, fundações, universidades e agências, em articulação com o setor privado, para dar respostas conjuntas ao desafio do clima.
Em terceiro lugar, a citação da Amazônia, a necessidade da sua preservação, com destaque e prioridade sobre as demais regiões. Essa diretiva, partindo de uma nação endereçada a outra nação soberana, tem um claro viés colonialista e é inaceitável.
Não desconhecemos que a Amazônia é um dos 14 hotspots mundiais, com reflexos no clima de todo o planeta. E que, em tempos de globalização e interconexão ambientais, temos que reconhecer a necessidade de alinharmos a soberania e integridade nacional aos requerimentos da crise climática.
Mas, daí a aceitar que intenções e projetos alheios, por melhores que sejam, desconsiderem a tutela indeclinável do Brasil sobre o seu território, vai uma distância insuperável.
Idêntica abordagem encontra-se em outros dois textos recentes, endereçados à administração Biden: o “Amazon Protection Plan”, subscrito por ex-negociadores-chefe dos EUA sobre o clima, e as “Recomendations on Brazil to President Biden and the New Administration”, de lavra de uma centena de acadêmicos, brasileiros e americanos.
Sem dúvida, o “plano”, terá mais peso que as “recomendações”, dado os que os assinam, e também pelo fato que o segundo contém bons insights, mas também erros grosseiros.
Em novembro teremos a COP 26 em Glasgow, Escócia e, antes, o Presidente Biden pretende realizar duas cúpulas para debater a crise climática. Uma com chefes de estado de todos os países e outra com as principais economias. Já a União Europeia/UE, irá exigir, para fechar o acordo com o Mercosul, um compromisso nosso com as cláusulas ambientais do acordo.
Por ora, não estão no radar nem a securitização, nem sanções pela questão ambiental na Amazônia, e a disposição dos EUA e da UE é de colaborar conosco. Mas, não tenhamos dúvidas, o cumprimento dos acordos e resultados concretos serão cobrados.
*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
El País: Bolsonaro busca patrocinadores para 63 milhões de hectares da Amazônia
Governo quer que empresas e pessoas físicas do Brasil e do exterior doem dinheiro para preservar reservas naturais. Ambientalistas consideram a iniciativa como meramente propagandística
Naiara Galarrafa Gortázar, El País
O Governo brasileiro quer que empresas, fundos de investimento e pessoas físicas, tanto do Brasil como dos outros países, contribuam com dinheiro para preservar a Amazônia. Para isso, lançou na terça-feira uma iniciativa em busca de patrocinadores para as 120 reservas naturais criadas nas últimas décadas, abrangendo 15% da superfície da maior floresta tropical do mundo em território brasileiro. São 63 milhões de hectares. O programa Adote um Parque ―nome que subestima a exuberância, a extensão e o valor ecológico dessas áreas, que somadas têm o tamanho da França— foi apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro em Brasília. Os ambientalistas o consideram uma iniciativa meramente propagandística.
O Brasil sente cada vez mais a pressão política e comercial pela política de seu Governo para a Amazônia, pressão à qual os EUA de Joe Biden devem somar-se agora. A iniciativa está aberta a patrocinadores estrangeiros, embora, para Bolsonaro e boa parte dos brasileiros, o interesse externo no território amazônico esconda ameaças à sua soberania. O preço difere. Os brasileiros podem adotar uma reserva ecológica por 50 reais (8 euros, 9 dólares) por hectare; os estrangeiros, por 10 euros (65 reais).
Por enquanto, a primeira, e única empresa que aceitou participar é a rede francesa de supermercados Carrefour. O presidente francês, Emmanuel Macron, é precisamente o mandatário que criticou mais duramente nos últimos dois anos o Governo de Bolsonaro por seu desinteresse em preservar a Amazônia, pelo crescimento do desmatamento a níveis recordes e pelo aumento das queimadas. O ultradireitista, que em campanha criminalizou as ONGs e prometeu priorizar o desenvolvimento econômico da Amazônia sobre sua preservação, referiu-se à coincidência: “O que podemos falar para aqueles que nos criticam é o seguinte: ‘Olha, não temos condições, por questões econômicas, de atender nessa área. Venham nos ajudar. E uma empresa francesa foi a primeira que apareceu”.
O Carrefour precisa melhorar sua reputação no Brasil depois que, em novembro, dois de seus seguranças, brancos, espancaram até a morte um cliente negro às portas de um de seus supermercados. A multinacional planeja, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, formalizar a adoção da reserva de Lago do Cuniã, de 75.000 hectares, localizada em Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Esse território, do tamanho de Caracas, tem um estatuto legal que permite a extração controlada de madeira ou a agricultura de subsistência. Outras cinco empresas negociam patrocínios, disse o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, à agência Bloomberg.
A gestão das reservas ―denominadas unidades de conservação― continuará nas mãos de organismos ambientais governamentais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e o Instituto Chico Mendes (ICMBio, concentrado em preservar a biodiversidade). As ONGs e os ativistas ambientais sustentam que seria muito mais eficaz parar de erodir sistematicamente a capacidade dessas instituições. Em um comunicado, o Greenpeace acusou o Governo Bolsonaro de promover “uma nova ação midiática para limpar sua imagem” enquanto “continua destruindo os instrumentos que protegem as unidades de conservação, desmantelando o ICMBio, militarizando suas estruturas e impondo significativos cortes orçamentários”.
Ao Carrefour e a outras empresas que possam estar interessadas, a gestora florestal e ativista Cristiane Mazzeti pediu em um tuíte que parem de usar o meio ambiente para limpar sua reputação e “se apressem em cumprir suas promessas de desmatamento zero”.
As tensões internas no Gabinete de Bolsonaro ficaram expostas também na apresentação do Adote um Parque. O principal interlocutor de diplomatas e fundos de investimento preocupados com a política ambiental do Governo é, desde a crise das queimadas de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão, que não participou da cerimônia, à qual compareceu o ministro Salles. O titular do Meio Ambiente disse abertamente em uma reunião de ministros que iria aproveitar que a pandemia estava atraindo toda a atenção da mídia para aprovar leis que enfraquecessem a fiscalização ambiental e trouxessem facilidades para o agronegócio.
O Governo Bolsonaro verbalizou pela primeira vez a ideia de buscar patrocinadores para a preservação da Amazônia em plena discussão pública com o ator americano Leonardo DiCaprio em 2019, quando as queimadas devoraram milhares de hectares na Amazônia.
O Estado de S. Paulo: 'Já sou contra privatizar Eletrobrás pelo custo ao governo, melhor vender a Caixa', diz Elena Landau
Economista critica a insistência do governo em atropelar o Congresso e propor uma Medida Provisória para vender as ações da companhia no mercado; segundo ela, privatização perdeu a importância e se tornou 'mero simbolismo'
Anne Warth, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - O governo vai acabar tendo que pagar para privatizar a Eletrobrás, diz a economista Elena Landau. Ex-diretora da área de privatizações do BNDES durante o governo Fernando Henrique Cardoso e colunista do Estadão, Landau critica a insistência do governo em propor, mais uma vez, uma Medida Provisória para capitalizar (vender ações no mercado) a companhia. Para ela, será uma tentativa de atropelar o Congresso, já usada no passado sem sucesso, e que vai trazer mais insegurança jurídica ao processo, já que a tendência é que o texto caduque antes de ser aprovado.
Landau afirma ainda que a privatização da Eletrobrás perdeu relevância e se tornou mero simbolismo. “O setor elétrico anda bem sem a Eletrobrás, e o governo vai acabar pagando para privatizar. Eu já sou contra a privatização nesses termos. Isso não me mobiliza mais”, afirmou, ao Estadão/Broadcast. Confira os principais trechos.
O que a sra. achou da ideia do governo de enviar, novamente, uma Medida Provisória para privatizar a Eletrobrás?
Qualquer proposta dentro do programa de privatizações demanda enorme segurança jurídica e aceitação por parte dos investidores e do mundo político. Não pode ser feito por MP, que só tem força de lei enquanto não caducou, e depois que caduca, perde validade e cria uma enorme insegurança jurídica. Se for para simplesmente repetir o que já está no projeto de lei que enviaram ao Congresso, que respeitem e não atropelem o Congresso Nacional. Não podem mandar MP para cortar o caminho. E se for para autorizar a contratação de estudos para a privatização, cai no requisito da inconstitucionalidade, pois uma MP dessa natureza não teria nem urgência, nem relevância. Não tem sentido nenhum. Isso já foi tentado no governo Temer e a MP 814 caducou. Todo mundo viu que ia dar errado e mandaram um projeto de lei. Estão repetindo o erro. Ainda que fosse aprovado, daria uma rigidez muito grande ao processo todo. Se precisasse mudar qualquer item da lei, teria que voltar ao Congresso para ajustar. O projeto de lei deve ser votado apenas depois dos estudos e ter apenas aquilo que realmente precisa de lei, como a descotização. Mas aí dá pra fazer uma lei apenas sobre descotização.
O governo considera que precisa dar uma sinalização positiva ao mercado com a renúncia de Wilson Ferreira Jr. A sra. considera que a MP seria esse sinal?
Não sei como o mercado comprou, em algum momento, que a privatização da Eletrobras iria andar no governo Bolsonaro. No governo Temer até tudo bem, porque privatizaram sete distribuidoras e era uma gestão com agenda claramente liberal e reformista. Era crível acreditar na privatização da Eletrobrás no governo Temer, mas no governo Bolsonaro não tem abertura comercial, não tem reforma administrativa. Como vão acreditar na privatização da Eletrobrás? Por isso a saída de Ferreira Jr é tão significativa, porque era o único empenhado na privatização. A MP é uma resposta atabalhoada a isso.
Na sua opinião, qual seria a melhor alternativa para privatizar a Eletrobrás?
Recuar completamente e fazer um único pedido ao Congresso, que é a revogação do trecho do artigo 31 da Lei 10.848, do governo Lula, que excluiu a Eletrobrás e suas subsidiárias do Programa Nacional de Desestatização (PND). Sou a favor de retomar as privatizações como sempre foi feito. Nesse caso, a ordem dos fatores altera o produto. Definir a modelagem antes da autorização de venda é um erro. Entrega ao Congresso uma competência que é do Executivo, quando o Legislativo não tem estrutura técnica para isso. Politicamente é um erro, você precisa começar o jogo da negociação política com uma série de supostos ganhos, como redução das tarifas, dinheiro para o Norte e o São Francisco, e o Congresso sempre vai pedir mais. Não é mais fácil rever todos os encargos setoriais e subsídios para carvão, fontes renováveis, agronegócio, em vez de abater esse custo das tarifas com outorga? Quem definiu o valor que irá para o São Francisco? É preciso um estudo muito detalhado sobre o valor da outorga (quanto a União receberá na operação), incluindo a questão de Tucuruí. É uma questão técnica, não política.
Como a sra. vê a questão da capitalização?
A capitalização foi decidida em 2018, mas dentro das circunstâncias da Consulta Pública 33, para evitar que a Eletrobrás ficassem de fora e perdesse a oportunidade de descotizar a energia de suas usinas (ou seja, vender a energia a preço de mercado). A partir disso, aproveitando a capitalização, daria para diluir a participação da União na empresa. Veio o projeto de lei e o tempo foi passando. O bônus de outorga contribuiria para o resultado primário de 2018, mas essas circunstâncias fiscais hoje são muito diferentes. Em três anos, poderiam ter feito estudos paralelos de forma a maximizar o retorno ao Tesouro, para avaliar os modelos possíveis, as memórias de cálculo e a outorga. Falta transparência nesse processo, que é algo fundamental no programa de privatizações e no serviço público. E ainda tem a questão de Tucuruí (uma das maiores hidrelétricas da Eletronorte, cuja concessão vence em 2024), que era um futuro longínquo em 2018 e agora está próximo demais para ser ignorado.
Onde estão as resistências à privatização da Eletrobras?
Hoje, na área política, estão concentradas no presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), por causa de Furnas, e na bancada do Norte, nos senadores Eduardo Braga (MDB-AM) e Davi Alcolumbre (DEM-AP). Mas há as resistências de sempre, como os fornecedores, que sempre cobram sobrepreço para vender para a União e usam muitas vezes práticas não republicanas, dos empregados e das corporações.
Como vender a ideia da privatização e vencer a resistência da sociedade?
O discurso da privatização precisa mostrar os benefícios desse processo. A privatização da Gerasul, hoje Engie, mostra o potencial de uma empresa que sai da gestão pública, sem amarras de compras, crédito e recursos humanos. Ela era um pedaço da Eletrobrás e já chegou a valer mais do que a Eletrobrás. A melhor peça a favor da privatização desse governo foi o estudo sobre salários e privilégios das estatais. Vender estatal com o discurso fiscal é muito ruim, ainda mais depois do déficit por causa da covid-19. Os críticos vão fazer uma conta de padaria e dizer que entrará R$ 15 bilhões quando o buraco é muito maior. Além disso, depois da capitalização bilionária que fizeram na Emgepron (estatal militar), o discurso fiscal ficou muito fragilizado.
Com tantas críticas ao processo, a senhora ainda é a favor da privatização da Eletrobrás?
Para mim, a privatização da Eletrobrás se tornou uma questão de simbolismo, porque não tem mais relevância. O setor elétrico anda bem sem a Eletrobrás. O governo vai acabar pagando para privatizar. Eu já sou contra. Não me mobiliza mais. Em 2011, a Eletrobrás tinha 34% da geração, hoje tem 30% e em 2024 terá 24%; na transmissão, era 52% em 2011, hoje é 45% e em 2024 será 39%. A empresa não investe mais, está minguando, e os maiores interessados em reverter esse processo deveriam ser os funcionários, pois o investimento se tornou uma questão de sobrevivência para a empresa.
Se a Eletrobrás fica de fora, qual sua lista prioritária de privatizações?
Estou muito mais focada no simbolismo de vender Valec, EBC, Telebrás, fazer um pente-fino nas empresas dependentes do Tesouro Nacional, ver qual delas se justifica além da Embrapa. Cadê as escolas com banda larga da Telebrás? Para que serve a Valec? A EBC se tornou a TV Bolsonaro e agora compra novela do bispo Edir Macedo, que é um aliado. Se for para comprar novela, comprem da Globo porque é muito melhor. Estou muito mais interessada em vender a Caixa e acabar com o populismo do presidente Pedro Guimarães, que usou o banco para avançar no mercado das fintechs, abrindo agência quando todo mundo está fechando, um cara supostamente liberal fazendo o uso mais populista possível de um banco público. O estrago que a Caixa faz no setor bancário é muito maior que o da Eletrobrás no setor de energia.
O governo diz que a mudança no comando da Câmara vai fazer a privatização andar. A sra. acredita nisso?
O próprio ministro Bento Albuquerque já falou que a privatização ficará para 2022. Fazer privatização no meio de uma campanha presidencial, com o presidente contra, eu nunca vi. Já vi em 1998, mas Fernando Henrique e todo o governo eram a favor. Alguém acha que Bolsonaro vai apoiar? Só se for em fevereiro, com o Congresso distraído e tudo aprovado em 2021. De qualquer forma, com a mudança no comando da Câmara, a desculpa de jogar a culpa no Rodrigo Maia (DEM-RJ) caiu. Perdemos uma Câmara reformista, Maia era um aliado da agenda liberal. Alguém acha que o PP de Arthur Lira (AL) é a favor?
Mas as resistências à agenda de privatizações vão além do Congresso?
Não precisa atravessar a Esplanada dos Ministérios para encontrar inimigos da privatização. Eles estão na própria Esplanada. Valec, Ceitec, EBC, todas as estatais militares. Os ministros que comandam essas empresas são os inimigos. O governo se especializou em jogar a culpa nos outros. Bolsonaro ainda é o mais consciente deles, é um mentiroso contumaz, mitômano, que fala com uma seita que acredita em tudo que ele fala e para o resto distribui cargos. Já o ministro Paulo Guedes vive numa realidade paralela, cria e acredita. O mágico não pode acreditar na mágica. Bolsonaro não é maluco, maluco é quem acredita nele. Vai fazer o que quiser e pegou Guedes para ser seu fiador. Como já disse o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, “é simples assim, um manda e outro obedece”. É um governo populista e vai dar muito trabalho para explicarmos, no futuro, esse interregno populista que nada tem a ver com liberalismo. Guedes prestou um grande desserviço à causa liberal ao participar desse governo e não implantar nada da pauta liberal.
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O Globo: Novo estudo comprova a 'boiada' de Salles na área ambiental
Pesquisadores compilaram 57 mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro em dispositivos legais que enfraqueceram regras de preservação
Rafael Garcia, O Globo
SÃO PAULO - Um grupo de pesquisadores que compilou despachos federais de regramento ambiental no Brasil encontrou durante o governo Bolsonaro 57 dispositivos legais que se encaixam nas categorias de “desregulação” e “flexibilização”, enfraquecendo regras de preservação. Mais da metade das medidas foi expedida após o ministro Ricardo Salles ter dito em reunião que pretendia “passar a boiada” das propostas do Executivo para o setor, enquanto a pandemia de Covid-19 concentrava a atenção da mídia.
A pesquisa, que retrata um quadro de degradação do arcabouço de proteção ambiental no país, foi liderado pelas ecólogas Mariana Vale e Rita Portela, da UFRJ. As cientistas usaram para o estudo informações do projeto de transparência de dados Política por Inteiro, que lê o Diário Oficial da União usando robôs.
O grupo se concentrou nos chamados atos “infralegais”, decisões do Executivo que não dependem de aval do Legistativo, de vários ministérios, mas que tivessem impacto ambiental. Também incluíram no estudo dados de desmatamento e aplicação de multas ambientais. O resultado do trabalho foi descrito em um artigo no periódico acadêmico Conservation Biology.
“Encontramos uma redução de 72% nas multas ambientais durante a pandemia, apesar de um aumento no desmatamento da Amazônia durante o período”, escrevem os pesquisadores. “Concluímos que a atual administração está se aproveitando da pandemia para intensificar um padrão de enfraquecimento da proteção ambiental no Brasil.”
Flexibilização controversa
Entre as medidas destacadas pelos pesquisadores durante o período da pandemia está a que libera atividade de mineração em áreas que ainda aguardam autorização final, publicada em junho de 2020. Outra norma, no mês seguinte, reclassificou 47 diferentes pesticidas como de categoria menos danosa, sem respaldo em literatura científica.
De setembro passado, os cientistas destacam a medida que facilita autorização para pesca industrial. “A autorização sai sem qualquer tipo de triagem ou avaliação dos pescadores e de suas práticas”, afirmam os cientistas.
O estudo também comparou a taxa relativa de multas por desmatamento na Amazônia, e a comparou com o ano anterior.
Quando a área de floresta derrubada atingiu quase 120 mil km² por mês em agosto de 2019, nos dois meses seguintes a quantidade de multas por esse tipo de crime na região oscilou entre 40 e 60 por mês. No auge da primeira onda da Covid-19, o desmatamento também foi alto, com quase 100 mil km² derrubados num mês, mas as multas ficaram abaixo de 10 por mês.
O estudo também analisou mudanças de pessoal no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
— Houve substituição de staff técnico em posições de chefia por staff não técnico, que foi marcada pela retirada de servidores com anos de experiência dentro das autarquias ambientais para serem substituídos, por exemplo, por policiais militares de carreira — afirma Erika Berenguer, ecóloga da Universidade de Oxford e coautora do estudo.
A reportagem encaminhou ao Ministério do Meio Ambiente uma cópia do estudo, mas não recebeu resposta até a conclusão desta edição.
Cristina Serra: O centrão e a pauta da pilhagem
Bolsonaro é obcecado por garimpo, agropecuária e hidrelétricas em terras indígenas
A nova configuração de poder no Congresso é a mais favorável em tempos recentes à agenda do "correntão", que pretende legalizar crimes já em curso na Amazônia, como grilagem de terras, desmatamento e garimpo em áreas indígenas.
Bolsonaro terá em Arthur Lira, experiente colecionador de infrações ao Código Penal, um parceiro à altura para conduzir a pauta da pilhagem. Em sua campanha à presidência da Câmara, o líder do centrão serviu-se de jatinho da Rico Táxi Aéreo, de Manaus. Em seu site, consta que a Rico cresceu no setor de transporte com "pequenas aeronaves que serviam ao garimpo na região". A mesma empresa doou R$ 200 mil à campanha de Lira a deputado, em 2014.
Uma das maiores obsessões de Bolsonaro é o projeto que libera mineração, garimpo, agropecuária, construção de hidrelétricas e extração de petróleo e gás em terra indígena. O projeto trata os povos nativos com a mesma lógica do colonizador europeu: dividir para governar. Estimula conflitos em torno da repartição de poder e do dinheiro das indenizações que vierem a receber.
Na essência, é um projeto etnocida. Os cupins da manipulação política e econômica têm o potencial de desestruturar essas sociedades por dentro. É também genocida porque os povos terão, forçosamente, contato com todas as desgraças levadas pelos invasores: doenças, drogas, violência. E alguém acredita que os órgãos de fiscalização terão condições de agir nos confins da Amazônia se não foram sequer capazes de monitorar barragens em Minas Gerais ?
O projeto viola o preceito constitucional de respeito à integridade das terras "tradicionalmente" ocupadas pelos indígenas, criado durante a Constituinte em árduo processo de negociação entre a direita e a esquerda. Pela direita, pasme, o negociador foi o então senador Jarbas Passarinho, ex-ministro da ditadura. Mas aqueles eram tempos de diálogo e de gestação de um pacto para a reconstrução do país.
Hoje, estamos diante da destruição desse pacto e da ruína civilizatória.
El País: Arthur Lira poderá fazer área ambiental ter saudades de 2020
Faltou ao caos ambiental brasileiro no ano passado um ingrediente básico tradicional: o Congresso
Sim, é verdade que tivemos um terço do Pantanal virando cinza, o maior desmatamento na Amazônia em 12 anos, a “boiada” passando, o ministro do Meio Ambiente desmontando a própria pasta, o combate à mudança do clima extinto, o Ibama manietado e o vice-presidente da República ameaçando controlar “100% das ONGs”. Mas faltou ao caos ambiental brasileiro no ano passado um ingrediente básico tradicional: o Congresso.
Todo o desastre que vimos, que não foi pequeno, resultou do Executivo operando praticamente sozinho. Isso não é normal por aqui. Em geral o Parlamento, dominado pela bancada ruralista, é a fonte da maioria dos retrocessos ambientais. Em 2020, dois fatores impediram que isso ocorresse. Um foi a pandemia, que interrompeu o trabalho das comissões e pôs no caminho de suas excelências coisas mais urgentes do que destruir o futuro do Brasil e ampliar nosso isolamento internacional. O outro foi Rodrigo Maia.
Apesar de todas as críticas que possam ser feitas a Maia (cole a sua favorita aqui), o deputado evitou que a caixa de Pandora ambiental fosse escancarada por seus colegas e pelo Palácio do Planalto. Maia engavetou o projeto sociopata de Bolsonaro de abrir terras indígenas a todo tipo de exploração comercial; deixou caducar na undécima hora a MP da Grilagem; e manteve em banho-maria até mesmo uma proposta de seu interesse, o desmonte do licenciamento ambiental. De forma inédita, o Congresso virou um amortecedor de choques ambientais produzidos pelo Executivo.
Com a retomada das atividades parlamentares, a demanda reprimida por favorecer lobbies de poluidores, avançar sobre terras públicas e eliminar regulações emergiria em 2021 de qualquer forma, principalmente via comissões ―mesmo com Baleia Rossi, Luiza Erundina ou o papa Francisco na presidência da Câmara. A vitória acachapante de Arthur Lira (PP-AL) nesta segunda, porém, pode colocar as ameaças e os retrocessos num outro patamar. Caso Lira tenha como uma de suas prioridades a agenda antiambiental costurada entre ruralistas e Bolsonaro, veremos no Congresso uma enxurrada histórica de tentativas de aprovação de retrocessos ambientais. Nesse cenário, o inferno é o limite.
Só para refrescar a memória: a última atuação de Arthur Lira no plenário num tema ambiental, no ano passado, foi uma articulação para aprovar a Medida Provisória que liberava a grilagem de terras no Brasil. O texto não foi a voto. Hoje é Lira quem controla o que vai ou deixa de ir para o plenário.
No dia do infame discurso da “boiada”, Ricardo Salles lamentou que o Governo precisasse operar o desmonte ambiental de forma “infralegal”, porque nada passava no Congresso. Com o Centrão no comando, esse óbice pode deixar de existir. Antigos sonhos do Governo, como ver anistiadas as invasões de terras praticadas por seus apoiadores na Amazônia e ter o garimpo legalizado em terras indígenas, ficam subitamente mais próximos.
As áreas protegidas do país também estão ameaçadas, no atacado. Em mais de uma ocasião Bolsonaro lamentou que a redução ou extinção de unidades de conservação ―como a Estação Ecológica Tamoios, onde ele foi multado por pesca ilegal― só possa ser feita por projeto de lei e não por decreto. O Governo trama desde 2019 contra o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A extinção do Instituto Chico Mendes, que o Governo deseja levar a cabo o quanto antes, não será um ato isolado.
Juntem-se a essas propostas os clássicos imortais das bandas podres do ruralismo e da indústria na Câmara: o enfraquecimento do licenciamento ambiental, a flexibilização ainda maior do Código Florestal, a venda de terras a estrangeiros e a liberação da caça e de agrotóxicos. Algumas dessas “boiadas”, uma vez sacramentadas em lei, tornam-se irreversíveis.
Mas calma, porque fica pior. Além da agenda antiambiental, o consórcio entre Bolsonaro e o Centrão também pode ser campo fértil para fazer avançar a possibilidade de “hungarização” do Brasil ―o sonho do clã Bolsonaro e seus agregados militares de solapar a democracia. O primeiro ato do novo presidente da Câmara na noite de segunda-feira, dissolvendo o bloco da oposição, passa uma mensagem bem clara sobre o tamanho do apego de Lira à democracia. Assim, não seria espanto ver tramitando no Congresso propostas contra as instituições identificadas como inimigas pelo regime Bolsonaro: as ONGs (o “câncer”), a academia (os “baderneiros”) e a imprensa.
Compõe o rol de tragédias da nossa nacionalidade o fato de essa investida contra o desenvolvimento sustentável ocorrer justamente no momento em que a pauta ambiental assiste a uma virada histórica no mundo. A eleição de Joe Biden criou uma conjunção astral inédita entre EUA, Europa e China a favor da ação contra as mudanças climáticas. A recuperação pós-covid-19 desses países tem tudo para ser impulsionada pela economia de baixo carbono, fazendo da proteção ambiental e das populações tradicionais um ativo, além do respeito a nossa própria constituição. Porém, no Brasil, não apenas estamos ignorando vantagens comparativas nesse setor, como estamos deliberadamente implodindo suas bases. Infelizmente, o preço poderá ser cobrado em sanções comerciais e diplomáticas, investimentos e empregos.
Espero estar errado sobre tudo o que escrevi aqui, mas, se há coisa que a história recente do Brasil tem nos ensinado é que até podemos esperar o melhor, mas devemos sempre nos preparar para o pior.
*Marcio Astrini é secretário-executivo do Observatório do Clima, rede de 60 organizações da sociedade civil.
Rolf Kuntz: Presidente dos EUA se torna um novo desafio para Bolsonaro
Com a política de Biden, a relação entre comércio e meio ambiente poderá ganhar uma importância desconhecida até agora. Quem cuidará disso no governo?
O combate à mudança climática será um dos pontos centrais da diplomacia, da política de segurança nacional e dos planos econômicos do governo americano, anunciou ontem o presidente Joe Biden. O mesmo recado foi transmitido em sessão do Fórum Econômico Mundial pelo representante especial da Casa Branca para questões do clima e do ambiente, John Kerry, secretário de Estado no governo do presidente Barack Obama. Não há escolha, disse Kerry, entre criar empregos pelo crescimento econômico e cuidar do ambiente. Grandes empresários, acrescentou, já apontam o caminho. Em seguida citou, entre outros, o bilionário Elon Musk, fabricante de carros elétricos.
O anúncio dá uma nova dimensão à advertência feita pelo candidato Joe Biden, num debate eleitoral, sobre a devastação da Amazônia. Eleito, poderia contribuir com bilhões de dólares para a preservação da floresta ou impor restrições comerciais ao Brasil. Resposta do presidente Jair Bolsonaro: “Depois que acaba a saliva, tem de ter pólvora. Não precisa nem usar a pólvora, mas tem de saber que tem”.
O enviado John Kerry nem sequer mencionou o Brasil. Mas citou uma grande potência econômica e militar, a China, responsável, segundo ele, por 30% das emissões de carbono. Nenhuma rivalidade comercial, afirmou, ofuscará a união dos governos americano e chinês a favor de políticas sustentáveis. Dois dias antes do enviado da Casa Branca, o presidente da China, Xi Jinping, havia discursado em defesa do multilateralismo, da cooperação econômica, do respeito às normas internacionais e da colaboração contra a covid-19 e na busca de grandes objetivos comuns.
Os dois pronunciamentos afirmaram valores muito diferentes daqueles proclamados pelo presidente Donald Trump, seguidos por seu discípulo Jair Bolsonaro incorporados na diplomacia executada pelo ministro Ernesto Araújo. A reunião do Fórum de Davos, nesta semana, foi em parte uma celebração de uma era pós-Trump: proteção do ambiente, multilateralismo, cooperação contra a covid-19 e ação coordenada para uma economia mais verde foram bandeiras defendidas em várias sessões, a partir de vários ângulos.
Malsucedido em sua única participação numa reunião anual do Fórum, em 2019, o presidente Jair Bolsonaro decidiu novamente faltar. Foi substituído pelo vice-presidente Hamilton Mourão, escalado para uma sessão sobre a Amazônia.
Foi um evento morno, com presença de vários brasileiros, do presidente da Colômbia, Iván Duque, e do presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Mauricio Claver-Carone. Falou-se de planos para preservação da floresta, comentou-se o potencial econômico da região e o presidente do BID prometeu ajuda. Não houve críticas nem autocríticas.
O presidente Bolsonaro evitou os incômodos de participação no Fórum, mas terá de reconhecer, no dia a dia, os desafios da nova política americana. Muito ocupado com a reeleição e com seus assuntos familiares, provavelmente deixará as questões econômicas e diplomáticas para outras pessoas. Com a política de Biden, a relação entre comércio e meio ambiente poderá ganhar uma importância desconhecida até agora. Quem cuidará disso no governo?
*É JORNALISTA
Confira a reunião do Grupo de Sustentabilidade da FAP
Assista ao vídeo da apresentação online do conselheiro Sérgio Besserman, professor do departamento de Economia da PUC e coordenador estratégico do Climate Reality Project no Brasil, sobre sustentabilidade, realizada no último dia 19, no Grupo Sustentabilidade do Conselho Curador da FAP (Fundação Astrojildo Pereira).
Besserman é ex-diretor do BNDES, ex-presidente do IBGE, do Instituto Pereira Passos, e do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (RJ). O tema sustentabilidade é um dos que foram elencados como prioritários pela atual gestão do Conselho Curador da FAP.